Tramas da (Ir)Racionalidade Contemporânea para a ... · mito-razão. Neste estudo, aprofundamos a...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E APLICADAS
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
Tramas da (Ir)Racionalidade Contemporânea para
a composição do Mito-Tecno-Lógico
João Maria Pires
Natal - RN
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E APLICADAS
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
Tramas da (Ir)Racionalidade Contemporânea
para a composição do Mito –Tecno -Lógico
João Maria Pires
Tese apresentada como exigência parcial para obtenção
do título de doutor à comissão julgadora da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a
orientação da professora Dra. Vilma Vitor Cruz.
Junho – 2004
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Sociais e Aplicadas Departamento de Educação
Programa de Pós-Graduação
A tese: TRAMAS DA (IR)RACIONALIDADE CONTEMPORÂNEAPARA A COMPOSIÇÃO DO MITO-TECNO-LÓGICO.
Elaborada por JOÃO MARIA PIRES
e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora, foi aceita pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como
requisito parcial à obtenção do título de
AGRADECIMENTOS.
O processo de construção do ser no mundo seja ele teórico, ou prático, ocorre por
caminhos individuais e coletivos em função de estímulos internos e externos. A escolha do
caminho a ser trilhado é de fundamental importância uma vez que, o que ficarão serão as
marcas impressas no percurso. Tais marcas representam a experiência única apreendida
com as expectativas e as ansiedades projetadas em função do desconhecido, do “novo” a
ser explorado. Por isso as marcas impressas ao longo deste estudo, únicas na sua
importância, são valores incomensuráveis e incomunicáveis na sua inteira manifestação.
Desse modo, resta-nos agradecer a todos aqueles que direta ou indiretamente, conscientes
ou não, favoreceram a impressão dessas marcas no percurso que, por ora, finalizamos.
Em atenção especial, agradecemos:
À Vilma Vitor, na forma de carinho e gratidão, pelo modo como conduziu
sabiamente sua árdua tarefa de Orientadora, favorecendo-nos a melhor compreensão
possível, das idéias aqui desenvolvidas, durante todo o percurso em que estivemos
construindo e desconstruindo nossa visão de mundo. Suas orientações indicaram os elos
fundamentais da infinita trama do homem no mundo e a intrincada teia das relações
contemporâneas das quais despontam o Mito-Tecno-Lógico.
Aos Colegas de Estudos e Pesquisas, Gilmar e Eliane, agradecemos o apoio afetivo
e intelectual gerado em torno dos bons momentos de convivência na academia, extraindo e
abstraindo, dela, o debate das idéias e dos ideais, nas formas de compreensão do mundo.
Momentos que contribuem para o amadurecimento intelectual e a formação do caráter
profissional de cada um de nós.
Aos amigos do Departamento de Filosofia da UERN, Anselmo, Antonio Jorge,
Bosco, Tebas, Geraldo, Olga, João Batista, Willian Coelho, os quais souberam
compreender a importância deste estudo, para o nosso amadurecimento intelectual e
emocional e, por isso, apoiaram plenamente nosso afastamento parcial do saudável circulo
de amizade.
Ao colega Almir, funcionário, competente e atencioso, que extrapola os limites da
burocracia para acompanhar, integralmente, todos os pós-graduandos da UERN,
agradecemos a atenção e a compreensão com a qual soube nos cobrar empenho e
cumprimento dos procedimentos burocráticos, ao mesmo tempo em que estimulava a árdua
tarefa de conclusão do nosso estudo.
Ao amigo João Batista Xavier, que nos abriu as portas do seu “mundo das idéias”,
a rica biblioteca que tivemos total acesso aos seus raros exemplares de filosofia, educação,
ciência e tecnologia. O espaço imaginativo foi complementado, pelos agradáveis momentos
discursivos oferecendo, ao mesmo tempo, compreensão intelectual e descontração
emocional, para diminuir a tensão acumulada no desenvolvimento deste estudo.
Aos que fazem a CAPES, Instituição Federal, de papel fundamental no incentivo ao
crescimento intelectual do nosso país, e a abertura interativa nos espaços discursivos que se
formam no conjunto das nossas Instituições acadêmicas. O apoio material, na forma de
recurso financeiro, recebido durante a construção deste material, foi de grande valia para
chegarmos ao final, do mesmo, no prazo previsto.
Em fim, agradecemos a todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para
o desenvolvimento das idéias aqui desenvolvidas. Também na forma simples de aprovar ou
criticar idéias, está disponível uma grande e saudável forma de contribuição.
Reconhecimento Especial.
Aos meus pais, seu Francisco e dona Geralda, responsáveis não só pela minha
gestação, mas também pela minha primeira visão de mundo. Esta, organizada em função da
vida simples e honesta que conseguiram me oferecer, foi pautada em valores serenos de
respeito, amor, sinceridade e dedicação, projetada pela segurança de melhores dias. Tais
conceitos abstraídos das vivências e necessidades cotidianas foram, depois, organizados e
complementados por professores da rede pública de ensino. Para os meus pais, toda a
minha gratidão e o meu reconhecimento.
À Rita, Allan e Karla, esposa e filhos, meu especial agradecimento, amor e
carinho. Eles foram co-responsáveis pelo que conseguimos produzir até o momento.
Acreditamos que não basta ter consciência da história e da vida para avançar além dos seus
limites. A ciência e a própria consciência são também resultados das experiências
individuais e coletivas. Por outro lado o viver coletivo exige, por vezes, abdicar dos planos
“perfeitos” elaborados na solidão do eu para doar-se ao outro. Por isso, meu amor e a minha
compreensão de esposo e pai, é, neste momento, traduzido em reconhecimento ao projeto
maior de família e de vida coletiva, que juntos estamos construindo, aliando ciência com
paciência, para garantir o melhor do que se põe como consciência.
Resumo:
A trama mito-tecno-lógica, contemporânea, foi desenvolvida a partir da dicotomia
mito-razão. Neste estudo, aprofundamos a referida dicotomia tomando como referência os
contextos históricos do Renascimento e do Iluminismo, ressaltando a discussão da
racionalização econômica como fio condutor do desenvolvimento ocidental, no qual
identificamos o jogo do racional e do irracional, para assegurar a superioridade da razão.
No contexto desse jogo, analisamos as implicações da modernização, para a educação, em
função da racionalidade instrumental, responsável pelo ambiente de adequação dos
instrumentos tecnológicos ao cenário da modernização contemporânea. O novo contexto é
constituído por pontos de intersecção e ruptura entre a técnica, a ciência e o mito. Através
da nossa análise, percebemos que as necessidades básicas para o conjunto da
contemporaneidade encontravam-se vinculadas às mudanças nas formas de produção, para
o qual a máquina passou a determinar o ritmo do trabalho e a qualidade do produto. Por sua
vez, as mudanças nos processos produtivos promoveram o surgimento das marcas
comerciais que, no nosso modo de ver, representaram a síntese da perfeita harmonia do
mito, da técnica, da ciência e da tecnologia, na condução da racionalização econômica até à
modernização contemporânea. Desse modo, a modernização contemporânea nos chega pela
racionalização econômica, desenvolvida com o respaldo dos conhecimentos técnico-
científicos, e comunicada pelas articulações do mito-tecno-lógico.
Abstract:
The plot myth-techno-logic, contemporary, was developed starting from the dualism
myth-reason. In this study, we deepened the alluded dualism taking as reference the
historical contexts of the Renaissance and of the Enlightenment, emphasizing the
discussion of the economical rationalization as conductive thread of the western
development, in which we identified the game of the rational and of the irrational, for
assure the superiority of the reason. In the context of that game, we analyzed the
implications of the modernization, for the education, in function of the instrumental
rationality, responsible for the environment of adaptation of the technological instruments
to the scenery of the contemporary modernization. The new context is constituted by points
of union and of ruptures among the technique, the science and the myth. Through our
analysis, we noticed that the basic needs for the contemporary society were linked to the
changes in the production means, for which the machine determine the rhythm of the work
and the quality of the product. However, the changes in the productive processes promoted
the appearance of the commercial marks that, as we see it, they represented the synthesis of
the perfect harmony of the myth, of the technique, of the science and of the technology, in
the conduction of the economical rationalization to the contemporary modernization. Thus,
the contemporary modernization it arrives us for the economical rationalization, developed
with the support of the technician-scientific knowledge and communicated by the
articulations of the myth-techno-logical.
Résumé:
L'intrigue du mythe-techno-logique, contemporain, a été développée commencer de
la dualité raison-mythe. Dans cette étude, nous avons approfondi la dualité prend comme
référence les contextes historiques de la Renaissance et d'Iluminism, signaler la discussion
de la rationalisation économe comme fil conducteur du développement de l'ouest dans que
nous avons identifié le jeu du rationnel et d´ irrationnel, pour assurer la supériorité de la
raison. Dans le contexte de ce jeu, nous avons analysé les implications de la modernisation,
pour l'éducation, dans fonction de la rationalité instrumentale, responsable pour
l'environnement et adaptation des instruments technologiques au décor de la modernisation
contemporaine. Le nouveau contexte est constitué par points de l'intersecção ou rompt
parmi la technique, la science et le mythe. À travers des notre analyse, nous avons
remarqué que les besoins de base pour le contemporaneidade ont été liés aux changements
dans les formes de la production pour que la machine a commencé à déterminer le rythme
du travail et la qualité du produit. Ainsin, les changements dans les processus productifs ont
encouragé l'apparence des marques commerciales qui, à notre façon de voir, ils ont
représenté la synthèse de la parfaite harmonie du mythe, de la technique, de la science et de
la technologie, dans la conduction de la rationalisation économic à la modernisation
contemporaine. Ainsi, le chemin, la modernisation contemporaine il nous arrive pour la
rationalisation économe, développée avec la réserve de la connaissance technicien -
scientifique, et a communiqué par les articulations du mythe - techno - logique.
SUMÁRIO
páginaIntrodução: 11
Capítulo 1– A Racionalidade no Modelo Ocidental de Desenvolvimento. 32
1. Formação e projeção da Racionalidade Moderna. 34
2. Alguns traços do Renascimento e do Iluminismo na contribuição da
Racionalização Ocidental.49
3. A re-orientação técnica e científica no Desenvolvimento Ocidental. 62
Capítulo 2- O Mito, a Técnica e a Ciência Contemporânea. 82
1. A perspectiva mítica no Desenvolvimento Econômico e na
Modernização Ocidental. 84
2. Articulações da Racionalização Econômica para assegurar o ter. 98
3. Marcas do Mito-Tecno-Lógico na projeção do “novo”: a acomodação
comunicativa aos apelos da Modernização. 117
Capítulo 3- Impactos do Mito-Tecno-Lógico na Educação Brasileira:
negociando com as incertezas. 135
1. A institucionalização do saber e do saber-fazer na Modernização da
Educação. 137
2. Educação e Modernização: exigência da Racionalidade Tecnológica
para efetivar o rito de passagem. 148
Capítulo 4- Tramas do Mito-Tecno-Lógico na reinvenção do Moderno. 173
1. O vínculo metafórico do Mito-Lógico com o Mundo. 175
2. Articulações da (Ir) Racionalidade Instrumental para reforçar o Mito-
Tecno-Lógico como mediador na Comunicação Intersubjetiva. 196
3. Ousando pensar uma outra Trama Mito-Lógica. 211
Considerações Finais: 221
Bibliografia: 242
INTRODUÇÃO
(...) quando partimos à busca de nós mesmos, quando nos esforçamos
para nos tornarmos o que já somos, devemos nos assemelhar às
estrelas, conquistar a impossível imobilidade, sempre negada a nós,
seres contingentes que habitamos o Mundo sublunar, mas que
resplandece nos astros. O individuo se pensa no interior de um
Mundo fechado, pleno, imóvel e que o convida a procurar a sua
permanência: descubra a ordem do Mundo, encontre nela o seu lugar
e lute para aí chegar e ficar.
(Paulo Vaz)
1. Introdução.
Na História do Conhecimento Humano, é possível encontrar a tese de que a Racionalidade,
implementada pelos gregos, anulou a expansão e a convivência da Razão com o Mito. Ou
ainda essa mesma tese em perspectiva complementar, como sugerem alguns teóricos, a
saber: a convivência forçada entre o Mito e a Razão ocorre apenas como estágio de
superação do primeiro (o Mito), pelo segundo (a Razão).
O fundamento dessa tese se encontra na idéia de que à Razão cabe resguardar e assegurar a
relação lógica, o direito de chegar à verdade sobre a real Natureza das coisas, bem como o
próprio movimento que torna possível pensar e compreender o Mundo.
Com isso, a perspectiva mítica foi concebida, na dimensão epistemológica, como a
Pré-História da Racionalidade Humana. Seguindo por esse raciocínio, o Mito passou a ser
associado a fatores de Natureza ilusória, duvidosa ou incompreensível, com sentidos que
obscurecem a noção de verdade (racional, lógica). O conteúdo mítico, disposto como
ordem e sentido para o Mundo, é apreendido e superado pela Racionalidade na forma de
Conhecimentos objetivos e inseridos em movimentos de construção e desconstrução das
relações Homem-Natureza-Homem.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que ao Mito coube o campo da imaginação, ou
o domínio sobre o lado obscuro do Mundo e do Homem, simbolizado pelas trevas da
Ignorância, à Razão coube a responsabilidade de iluminar e reforçar a vigilância sobre o
Mito, para que ele não interferisse no Logos do Mundo. Desse modo, o movimento de
expansão do Homem no Mundo organizou-se e se difundiu como visão dicotômica: de um
lado, a auto-suficiência da Razão; do outro, a dependência do Mito, que oferecia seu
conteúdo figurativo apenas para respaldar a autenticidade daquela.
Ora, assimilar a dicotomia Mito-Razão, reforçando a tese da auto-suficiência da
Racionalidade, parece-nos um caminho perigoso e desleal quando se analisa a importância
dos Mitos através dos princípios e valores educativos, adotados durante muito tempo como
orientação do Homem no Mundo. Em função daqueles é que foram pensadas e
racionalizadas as primeiras alternativas para superar momentos de caos e angústias, vividos
pelo Homem, frente à diversidade dos fenômenos naturais.
O caminho dicotômico, ao nosso ver, torna-se perigoso e desleal porque, ao se
oferecer uma visão de Mundo dual, a verdade pode deixar de levar em consideração a
contribuição de um dos pólos interpretativos, bem como as contradições e divergências
entre eles, no caso o Mito e a Razão. Desse modo, a verdade passa a ser assumida como
única e absoluta e o mérito de apreendê-la, de apenas um dos pólos da relação.
Apesar de simples e fácil a disposição dedutiva do argumento acima sugerido, o
fato é que a tese que defende a superação do Mito, pela Razão, foi posta em prática e
passou a servir de justificativa para as estratégias de expansão, ocupação e domínio do
Homem sobre o Mundo e sobre outros de sua espécie. Essa prática foi adotada e difundida
pelos ocidentais, como Racionalização do Mundo.
Assim, influenciada pelos Gregos Antigos, a perspectiva Ocidental foi admitida
como necessária e justa, na medida que se propunha a levar a luz e o Conhecimento àqueles
que viviam nas trevas da Ignorância. A dicotomia Mito-Razão com ênfase na
Racionalidade afirmou-se, então, como estratégia metodológica pelos caminhos “retos” do
conhecer. O Mito, por sua vez, foi associado ao caminho “torto”, do simbólico e do
passional, oposto ao caminho lógico e formal da Razão.
Nesse sentido, o caminho adotado delineava os processos de organização,
sistematização e produção dos Conhecimentos, responsáveis pela fundamentação das
interpretações do Homem sobre si mesmo, e sobre o Mundo. Interpretando ou
interpenetrando, construindo ou desconstruindo, ou (numa perspectiva insana) destruindo, a
Racionalização Ocidental do Mundo seguiu no curso do desenvolvimento da Humanidade,
reforçando a visão dicotômica Razão-Mito, Bom-Mau, Racional-Irracional, Modernos-
Não-Modernos.
Desse modo, as formas e os conteúdos da Racionalização foram inventados e
reinventados de acordo com as especificidades do desenvolvimento de cada época. Vale
ressaltar que a tese da auto-suficiência da Razão e sua tendência excludente em relação ao
Mito está hoje sendo questionada e revista como parâmetro interpretativo das relações
Contemporâneas. Os fundamentos para tal questionamento são muitos e variados, embora,
de modo geral, apresente a necessidade de se reverem os fundamentos e os papéis
interpretativos do Mito e da Razão, considerando a possibilidade de uma interface entre os
dois, apesar das especificidades de cada um.
Acreditamos, pois, que as questões acima integram o eixo das mudanças que
ocorrem hoje, re-produzindo, no contexto das relações comunicativas, os conflitos e as
interfaces entre o Mito e o Logos (este atuando como princípio racional organizativo),
atualizadas como proposta para a Modernização e a Racionalização do Mundo. Essa
perspectiva nos serviu de estímulo para desenvolver o presente estudo, fundamentalmente
teórico.
A opção pelo caminho teórico foi tomada levando-se em consideração aspectos da
Racionalidade relacionada com o atual contexto da Modernização. Dentre esses,
ressaltamos a perspectiva Instrumental que se oferece como respaldo teórico e prático para
o Desenvolvimento Econômico ser tomado como fim, e não como parte da Modernização
Contemporânea.
Outro aspecto da Racionalidade, indissociável do primeiro, que nos chamou a
atenção para este estudo, está relacionado ao “status” mítico, atribuído à Racionalidade
Instrumental, através dos produtos tecnológicos, com a finalidade de efetuar o rito de
passagem do Não-Moderno, para o Moderno.
A compreensão dos aspectos acima propostos, como parte intrínseca ao contexto
das Mudanças Contemporâneas, pressupõe discussão acerca da Racionalidade e da
Irracionalidade, manifestas como conteúdo e forma míticos. Essa discussão, vemo-la hoje
ainda em fase embrionária e incipiente, tanto nos Meios de Comunicação, quanto nos
espaços acadêmicos, contribuindo assim para a formação de uma atitude distanciada em
relação aos fatores que deram origem à problemática da Modernização, e àqueles que a
atualizam na Contemporaneidade.
Essa atitude de distanciamento ou não-aprofundamento da Racionalidade
Contemporânea, quando vista a partir dos fundamentos da Técnica e da Ciência, projetados
na Tecnologia, justifica-se em função da própria problemática que lhe é inerente, ou seja,
está diretamente relacionada à ênfase atribuída aos produtos tecnológicos e à lógica que os
anima e dá suporte, e não aos processos constituídos pelo jogo da (Ir) Racionalidade, nos
quais os produtos da Tecno-Ciência são gerados e difundidos como instrumentos de
Racionalização e Modernização.
Assim, ousamos optar pelo caminho teórico com a esperança de contribuir para a
abertura discursiva das questões aqui colocadas, bem como de outras que se apresentam
como modeladoras do atual contexto de Modernização. Queremos deixar claro que o desejo
foi nosso, mas o árduo percurso foi trilhado com ajuda de muitos. Dentre os quais, Kostas
Axelos, que nos ofereceu uma dimensão mais ampla para compreendermos melhor o jogo
do Mito-Lógico. 1
O autor supracitado, em várias de suas obras, aborda o movimento das mudanças,
provocado pela fusão da Técnica e da Ciência, na Tecnologia, destacando a dimensão de
complexidade e cumplicidade que ocorre implícita no jogo que funde as Naturezas do Mito
e do Logos, seja para compor uma interpretação unificada sobre o Mundo, na qual, ambos,
o Mito e o Logos, governam as transformações do Mundo, seja para compor,
separadamente, visões destes, dando origem assim, ao jogo dos contrários, no qual cada um
procura superar o outro com a intenção de se firmar como verdade no Mundo.
Por sua vez, a releitura da dicotomia Mito-Razão, sugere, também, que se
questionem os produtos da Racionalidade Instrumental e a lógica inerente ao Modelo
Ocidental de Desenvolvimento. Essa perspectiva nos remete para as políticas destinadas a
re-inventar os princípios básicos da Racionalização Econômica, que historicamente
acompanhou todo o movimento de Ocidentalização. A questão que se coloca, portanto, diz
respeito à forma e ao conteúdo da Racionalização Econômica, investidos como
Modernização Social e Cultural.
1 Axelos manifesta-se contrário às explicações totais e totalizantes. Ele defendeu a tese de que devemos procurar compreender as mudanças Contemporâneas além da lógica fechada que se oferece no eixo dicotômico Sujeito-Objeto, Mito-Razão. Nessa perspectiva, o referido autor admite a necessidade de nos envolvermos no movimento exploratório para buscar compreender o caráter amplo e profundo do Mito que existe na Racionalidade, de modo a ser possível desarticular, pacientemente, esse Mito.
Ao nosso modo de ver, a questão acima acompanhou todo o movimento de
Ocidentalização do Mundo, pautada no Mito da Superioridade da Razão. Significando, para
nós, que a ponte entre o Mito e Razão nunca se rompeu como muitos acreditam. E, hoje, a
concebemos em perfeito estado de conservação, sendo muito usada como elo da
Comunicação. Nesta, a ênfase recai sobre os caracteres modificadores dos níveis social e
cultural, aplicados em função do que se Projetou por Moderno.
Desse modo, a Comunicação Contemporânea parece reforçar a estreita ligação entre
o Mito e a Razão, na medida que o conjunto das informações atualmente veiculadas, tanto
na perspectiva informacional, quanto na educacional, assume características da
Racionalidade assumida pela Racionalização Econômica e dirigida para a Modernização.
Tal perspectiva tem a forma lógica e racional, embora o conteúdo seja mítico e fenomenal.
Este, tomado aqui no sentido das aparências, do que se mostra para nós.
Ao interpretamos o conjunto dos citados fatores, no contexto da Modernização
Contemporânea, como configuração da Trama Mito-Tecno-Lógica, encontramos pistas
que indicaram, como pressupostos básicos, as implicações da (Ir) Racionalidade
Tecnológica aplicada como instrumento normativo e formativo do modo de pensar e
viver o “novo” contexto de projeção da Modernização Social e Cultural, o qual ocorre
em sintonia com as políticas de desenvolvimento implementadas pelas esferas política e
econômica.
Por sua vez, os intrincados e ambivalentes caminhos da Modernização revelam
um interessante movimento de adequação, ou mesmo acomodação, social e cultural, aos
interesses econômicos. A função desse movimento é, a um só tempo, unir e romper
velhos e novos valores, bem como projetar na Sociedade Contemporânea o desejo e a
necessidade do “novo”, seja ele processo ou produto.
Enquanto processo, esse “novo” se identifica como “criativo”, “avançado”,
“rápido”, “prático”, “eficiente”, “racional”, etc; enquanto produto, se reveste de
elementos e significados próximos aos oferecidos pelas Religiões. O produto, resultado
dos Saberes Técnicos e Científicos, fundidos como Tecnologia, incorporou o status do
“novo” e o espírito de “Moderno” ao sentido etimológico de Religião, para se
apresentar, socialmente, como veiculo de ligação e interfaces entre os Mundos do
Sagrado e do Profano.
As contradições da Modernidade colocam em evidência o jogo da (Ir)
Racionalidade que se difundiu no Projeto Ocidental de Desenvolvimento, o qual chegou
à Contemporaneidade como eixo de composição da Trama Mito-Tecno-Lógica. Esse
jogo, ou a Trama propriamente dita, envolve Conhecimentos técnicos e científicos,
fundidos na forma e no conteúdo dos produtos tecnológicos. O movimento de
composição, sistematização e aplicação dos Conhecimentos envolvidos tem um caráter
ideológico e uma orientação econômica.
A Trama Mito-Tecno-Lógica ganhou corpo e reconhecimento, através das
políticas de desenvolvimento dirigidas para a implementação das mudanças sociais e
culturais. A dinâmica responsável pela articulação dessa trama na Contemporaneidade se
difunde nas políticas de desenvolvimento, onde o Racional aparece em estreita ligação
com o Irracional. Este último, quando associado ao pensamento mítico e revestido pelo
manto ideológico, adotou o Conhecimento Técnico-Científico como princípio
progressivo da Ocidentalização do Mundo.
Outrossim, a interface entre a Razão e o Mito, a Racionalidade e a
Irracionalidade, pode ser vista, principalmente, na produção artístico-cultural do
Renascimento, a qual emergiu junto com os valores que animaram o Homem
Renascentista na busca para suas angústias existenciais, a fim de equilibrar, ou mesmo
deslocar, o enfoque medieval que transferia a segurança e o bem-estar espiritual para
outro Mundo que não este.
Abordar, pois, o Mito, levando em consideração seu conteúdo e sua dimensão
explicativa, instiga-nos a chegar próximo à idéia mito-lógica defendida por Kostas Axelos,
para quem o Mito e a Razão participam do movimento das transformações contemporâneas,
alternando em sentido e governabilidade para o Mundo. Ora aproximando-se um do outro,
ora separados, mas, em ambos os casos, inseridos no foco das mudanças.
Desse modo, apesar de opostos entre si, o Mito e a Razão também poderão ser
tomados como complementares entre si. Isto porque, segundo Axelos, os dois participam
do jogo que dá sentido e ordem, ou mesmo, desordem às transformações que ocorrem no
Mundo. Ao nosso modo de ver, a base teórico-explicativa que assegura validade para essa
idéia tem ligações com a Racionalidade que deu sentido ao Desenvolvimento Histórico da
Ocidentalização e que, hoje, encontra-se amparando a reinvenção do Mito, em novas bases
epistemológicas.
A hipótese de que a Razão e o Mito participam diretamente do Projeto de
Modernização do Mundo, teoricamente, se aproxima de outra idéia: a de que a Razão pode
ter sido desviada dos princípios Iluministas, pelo Mito, na perspectiva de assegurar a
Superioridade Tecno-Científica, como mola propulsora da Modernização. Isto nos remete
ao contexto do Renascimento e do Iluminismo, para encontrar indicadores do modo de
pensar e agir dos Modernos, transladados para as Sociedades Contemporâneas.
Desse modo, conduzimos nossa análise até os veículos de difusão das idéias e
dos ideais, movidos pela Racionalidade em nome da Modernização. Nesses movimentos,
encontramos traços dos padrões de cientificidade assumidos como instrumento de
modelação e continuidade da Modernidade, em que estimula-se, em reconhecimento aos
avanços, a transição e adequação do Não-Moderno ao Moderno, através dos apelos ao
Progresso.
O referencial ideológico discursivo, extraído das bases da Racionalização
Econômica Capitalista, foi diluído nas relações sociais, políticas, culturais e intelectuais,
para servir de estímulo à criatividade tecno-científica, a qual deveria dar suporte ao
crescimento produtivo na perspectiva desenvolvimentista, e à autonomia racional, que
reforça a base material e, aparece como superação da visão espiritual, mítico-teológica.
Os elementos contextuais, acima referidos, serviram de base de apoio estratégico
para construir o modelo para o que se convencionou chamar de Moderno. A idéia foi
incorporada a ações e reações implementadas em nome do progresso social e da
ascensão racional, por meio da fusão e difusão dos princípios e diretrizes do
Renascimento e do Iluminismo. Idéias que, mesmo parecendo paradoxais, exerceram
grande influência na formação da visão do Homem, da Natureza, da Cultura e da
Sociedade.
Dito de outro modo, o Renascimento e o Iluminismo ofereceram a dimensão
privilegiada do que compõe a Racionalidade e a Irracionalidade na formação do
Indivíduo, seja pela nova identificação do Homem Renascentista, com sua capacidade
interior, pautada na Razão; seja pelo ímpeto incontrolável de descobrir-se e conhecer o
que está à sua volta, para afirmar-se como Ser do Mundo. Esses dois movimentos
também deram ênfase a auto-suficiência da Razão como único caminho para chegarmos
à Verdade.
A partir da base contextual acima descrita, passamos a trabalhar com a base
interpretativa oferecida por Jürgen Habermas2, a partir de cujas idéias, estabelecemos um
fio condutor entre o processo de Racionalização Econômica e as mudanças direcionadas
para a Modernização Contemporânea, promovida pela Racionalidade Tecno-Científica e
Tecnológica. Entre essas mudanças, a ênfase dada foi para as Relações de Comunicação.
A abordagem de Habermas nos proporcionou abertura interpretativa para
compreendermos a dimensão comunicativa da Racionalidade Contemporânea,
estabelecendo pontes intersubjetivas entre o sujeito e o objeto, saindo, portanto, das
dimensões excludentes postas pelo pré-domínio da Subjetividade. Desse modo, avançamos
com Habermas nos contrapontos da Racionalidade Comunicativa, trabalhando no sentido
de evidenciar, para as relações Contemporâneas no contexto das Comunicações,
possibilidades de ampliação da base racional, para além da dimensão instrumental.
A base teórico-explicativa habermasiana nos serviu também como referência
discursiva para re-definirmos a relação Mito-Razão, visto que a Contemporaneidade nos
suscita a possibilidade de estar participando da Trama Mito-Tecno-Lógica, através da
reinvenção do Mito, pela Razão. A Racionalização da Economia e a implementação da
Modernização seriam co-responsáveis pela estreita ligação entre a Racionalidade, aplicada
2 Habermas, autor ainda hoje pouco compreendido na profundidade das idéias expressas no conjunto de suas obras, entrou como apoio estratégico na nossa análise, pela atualização com que aborda as questões e as novas perspectivas que envolvem a discussão e compreensão da Racionalidade Contemporânea. A proposta de
na perspectiva Instrumental e a (Ir) Racionalidade Mítica, assimilada sob a forma político-
ideológica.
O contexto discursivo acima sugerido abriu espaço para outras áreas do
Conhecimento Técnico e Científico se apropriarem dos recursos tecnológicos, passando a
interferir diretamente no sistema de organização da Comunicação. Destacamos como
perspectiva modificadora dos parâmetros normativos das relações comunicativas a
linguagem áudio-visual e a disputa econômica em torno da criação e manutenção das
marcas associadas aos produtos de melhor cotação no mercado. Ainda nessa direção,
ressaltamos a corrida pela informação em tempo real, bem como sua difusão através dos
sistemas de rede e dos recursos de processamento inseridos nos instrumentos tecnológicos.
Por sua vez, a dimensão político-ideológica conta, hoje, com sofisticados recursos
do aparato tecnológico, para oferecer conteúdos ideologizados e mitificados, no contexto
das relações comunicativas, referendados pelo Conhecimento Técnico e Científico. Desse
modo, o conteúdo assume a forma de apelo ao consumo dos instrumentos tecnológicos e a
responsabilidade pela reinvenção e atualização dos Mitos Contemporâneos, atuando em
perfeita sintonia com a lógica do Desenvolvimento Econômico.
As encruzilhadas identificadas nos caminhos da Modernização, durante a
nossa viagem investigativa, nos levaram a estabelecer relações entre a Racionalidade
Instrumental inserida nos instrumentos tecnológicos e a (Ir)Racionalidade, projetada
pelas políticas educacionais, que elegeram a Informatização como “presente dos
deuses”, e depois enviada para encobrir deficiências históricas dos processos formais
da Educação, em específico a brasileira.
Habermas aponta para uma Racionalidade Comunicativa, constituída e harmonizada dialeticamente numa perspectiva Intersubjetiva, avançando, pois, na relação dicotômica do sujeito-objeto.
Uma das hipóteses admitidas como guia tomou como proposição principal a idéia
de que o atual processo de Modernização, voltado para as escolas públicas brasileiras, tem
origem na ênfase demasiada atribuída à Racionalidade como aplicação Instrumental,
dirigida às políticas da Racionalização Econômica. Desse modo, ressalta-se a
Racionalidade Instrumental associada aos recursos técnicos e tecnológicos, em detrimento
da Racionalidade Crítico-Reflexiva, preocupada com a emancipação dos indivíduos.
Como apoio para a justificativa da hipótese acima, apontamos o valor quantitativo,
enfatizado na formação Instrumental e assimilado por processos de aprendizagem sem base
discursiva. Essa perspectiva produz o vazio qualitativo, traduzido na incapacidade de se
fazer leitura consistente das mudanças no Mundo. Tal vazio, na verdade, pode ser
identificado, também, como desvio da capacidade crítico-reflexiva dos indivíduos, de tal
maneira que a dimensão crítico-reflexiva é transferida para a eficiência e a velocidade dos
processos técnicos e tecnológicos.
O contexto de fundo está constituído como estratégia teórico-metodológica para
apresentar o conteúdo, em dinâmica clara e consistente. Esse contexto também foi tecido na
aproximação entre o prazer e o rigor no tratamento analítico, envolvendo jogos de opostos,
tais como: o Sagrado e o Profano, o Mito e a Razão, a Racionalidade e a Irracionalidade, a
Modernidade e a Pós-Modernidade.
Outro autor que serviu de apoio teórico no nosso caminho analítico foi Bruno
Latour.3 Este nos envolveu por caminhos da Racionalidade que se cruzam com os do Mito,
gerados no bojo das políticas econômicas e sociais que permearam todo o contexto
3 Assim como Axelos e Habermas nos motivaram a sair da perspectiva “confortável” posta pela visão dicotômica do Mundo, a partir das relações sujeito-objeto, Razão-Mito, Latour nos convida a sairmos em busca da dimensão interpretativa que leva em consideração as contradições postas pela Racionalidade moderna, mas, que também aponte alternativas consistentes para compreendermos o papel da Racionalidade
discursivo, do qual emana a trama das principais transformações da Sociedade
Contemporânea. A postura crítico-reflexiva que Latour nos oferece difere da proposta pelos
Modernos, que admitiam uma consciência observadora e crítica fora dos processos e das
relações constituídas, a um só tempo, pelo sujeito e pelo objeto.
A postura crítica de Latour nos ajudou a assumir, como estratégia de análise teórica,
uma abertura interpretativa capaz de viabilizar o trânsito discursivo entre a objetividade e a
subjetividade, sem danificar a dimensão hermenêutica aqui pretendida. Desse modo,
conduzimos nossa análise com a pré-ocupação de racionalizar as informações
desenvolvidas, visando a construir argumentos teórico-demonstrativos que não
favorecessem posições fechadas, de caráter dogmático.
Para efeitos didáticos explicativos, nossa abordagem foi dividida em quatro
capítulos. No primeiro, adotamos a Racionalização do Desenvolvimento Ocidental como
fio condutor na discussão do racional e do irracional. A discussão e a análise dessa questão
tiveram seus reflexos nas decisões do Capitalismo Internacional, estimulando a obsessiva
marcha em prol da Modernização, na qual a Ciência e a Tecnologia se anteciparam às
outras áreas do Saber, oferecendo grandes e rápidas revoluções.
Entendemos que, na esteira dessa marcha obsessiva, encontramo-nos envoltos pela
intensa onda de símbolos e linguagens, que reinventam Mitos indutores de
comportamentos, em sintonia com o jogo de interesses que alimentam o Mercado
Financeiro. Tal qual Ulisses, na Odisséia de Homero, foi submetido ao canto das sereias,
nós também ficamos expostos aos encantos do Mito, que se atualiza pelas maravilhosas
invenções da Tecnologia.
Contemporânea. Para Latour, uma das preocupações da Racionalidade Contemporânea, deverá ser resgatar a Ciência da Política.
O caminho da Evolução Técnico-Científica foi mais enfaticamente abordado no
segundo Capítulo deste estudo. Servimo-nos de recortes históricos que nos ofereceram
indicadores das rápidas mudanças que o saber-fazer da Tecnologia preparou para a
Sociedade Contemporânea. Esforçamo-nos para apreender e destacar formas e
conteúdos assumidos pelas idéias mais ambiciosas do Conhecimento humano, para
gerar, produzir e disponibilizar informações sobre o Homem e o Mundo em
quantidade e tempo recorde.
Destacamos ainda no segundo Capítulo a dimensão e a importância que as
idéias passaram a ter no movimento de articulação do Mito-Tecno-Lógico, nas
Sociedades Contemporâneas. Estamos nos referindo à elevação social, cultural e,
principalmente, econômica das idéias que, na forma de marcas - logotipos com
conteúdos associados aos produtos -, são transformadas em mercadorias e depois
comercializadas de acordo com sua cotação no mercado financeiro.
Enfatizamos que essas marcas representam, atualmente, a melhor
exemplificação da Trama Mito-Tecno-Lógica. Através delas, podemos perceber com
mais clareza a ligação entre a Razão e o Mito. As novas orientações da Racionalização
Econômica são reforçadas por este, que permanentemente se atualiza no movimento
de invenção e reinvenção dos valores, desejos e sentimentos, incorporados às marcas e
aos produtos a elas associados. Dessa relação, saí um produto de alto valor simbólico
(com o conteúdo mitificado), para ser inserido na dinâmica da Racionalidade que
implementa a Modernização Social.
No aspecto teórico-demonstrativo que trata da Evolução Técnico-Científica,
procuramos fazer uma ponte entre as questões Contemporâneas com idéias
desenvolvidas no primeiro Capítulo, no tocante ao Movimento de Colonização
desencadeado pelo Ocidente, em nome da Racionalização Econômica e a
Modernização Social. Procuramos mostrar que, desde sua origem a Ocidentalização
do Mundo, alimentou-se de guerras e imposições políticas, culturais e sociais,
adotadas em nome da Modernização, vista como urgente e necessária ao Modelo de
Civilização que a Ciência e a Tecnologia apontavam como o melhor e o mais racional
entre os modos de viver da Raça Humana.
Essa perspectiva da Tecno-Ciência foi objeto de discussão, também, no terceiro
Capítulo, onde mostramos que tal perspectiva foi pensada na forma linear, embora
tenha sido constituída em bases de relações contraditórias. Mesmo assim, tem
implicações importantes no Modelo de Desenvolvimento assumido pelo Brasil, a partir
de finais da década de 60, inícios da década de 70, período em que, contagiados pelo
crescimento econômico internacional e nacional, vivíamos sob o êxtase do imaginário
“Milagre Brasileiro”, pautado na idéia de Crescimento Econômico assimilada do
Modelo Ocidental de Desenvolvimento.
A necessidade de que o Brasil poderia ingressar no mesmo grupo dos países
desenvolvidos ou das grandes potências mundiais, através do saber Técnico-Científico,
foi amplamente exaltada e difundida em discursos de caráter ideológico. Tais
elementos nos levaram a pensar na influência mítica como base de orientação da
universalização do Desenvolvimento. Nesse sentido, o Mito-Tecno-Lógico nos chegou
pelas vias da Economia, desenvolvendo-se como estratégia de Modernização e se
atualizando como instrumento de Formação.
Ainda no terceiro Capítulo, destacamos como a Informatização chegou à
Educação atrelada às intempéries da Política e da Economia, oferecendo à Escola
perspectivas de reencontrar seu espaço social, através da Racionalidade Instrumental.
Os profissionais da Educação, mesmo confusos com a decodificação da linguagem, e o
que fazer com ela, esforçam-se para superar os obstáculos e não ficarem fora do
movimento das transformações.
No entanto, a questão exige abordagem crítica dos aspectos específicos da
Informatização, seja por tratar-se do Conhecimento ainda não apreendido pela
maioria dos educadores - e mesmo por ampla parcela da sociedade -, seja por tratar-
se de elementos inerentes ao próprio Projeto de Modernidade em desenvolvimento.
Dessa forma, acreditamos oferecer, através deste estudo, referencial teórico-
discursivo para compreensão da nova dimensão da Educação, na abordagem da
Racionalidade e/ou Irracionalidade, implícita no Projeto de Informatização destinado
as Escolas Públicas, no qual se evidencia a dimensão política sufocando a dimensão
pedagógica.
Além disso, alertamos para a necessidade de um movimento amplo,
interdisciplinar, em prol da compreensão de elementos tanto técnicos quanto
pedagógicos, que permeiam não apenas a implantação da Informática na Educação,
mas todo o Projeto de Modernização Social. Tal perspectiva vai além da capacitação
de professores e alunos em utilizar os computadores como mero instrumento de
continuação de práticas pedagógicas que não priorizam a crítica dos processos e dos
conteúdos.
Por fim, chegamos ao quarto Capítulo preocupado com a dimensão crítico-reflexiva da
Racionalidade. Saímos em defesa dessa perspectiva, admitindo-a como instrumento de
mediação para as relações na Sociedade Contemporânea. Reforçamos que historicamente
essa dimensão vem perdendo espaços para a Racionalidade Instrumental, uma vez que esta
teria sido beneficiada pela fusão dos Conhecimentos técnicos, científicos e tecnológicos.
Além disso, a Racionalidade Crítico-Reflexiva, na Contemporaneidade, é confrontada pelo
discurso sedutor do Mito, que se projeta na reinvenção do novo cenário da Modernidade,
sem, contudo, obrigar-se a solucionar velhas questões.
Nesse sentido, a abordagem aqui desenvolvida se propõe a oferecer, senão
estudo pormenorizado da questão, pelo menos um quadro contextual que comporte
descrição das transformações desencadeadas pelo Processo Ocidental de
Modernização, resultando em novas orientações do saber-fazer, bem como em
aplicações e implicações da Racionalidade Instrumental, que serve de suporte teórico
na reinvenção de Mitos direcionados para a Educação.
Desse modo, admitimos, entre os objetivos deste estudo, a necessidade de
enveredar pelos caminhos da Modernização para compreender a perspectiva Mito-
Tecno-Lógica adotada como instrumento para efetivar a transição do Não-Moderno para
o Moderno. No caminho investigativo, procuramos ser identificado não como alguém
que já os conhece, mas como quem busca sentir e viver o prazer na aventura pelo
desconhecido, para chegar ao conhecido. O percurso foi desenvolvido procurando
administrar com responsabilidade os sentimentos e a emoção do perigo, em sintonia com
o rigor estratégico para evitar o erro e não cair no precipício.
Assumimos, pois, aqui, o caminho investigativo pautado estrategicamente na
mediação do prazer e do rigor, como percurso metodológico, e no Mito e na Razão,
como recurso epistemológico. O processo analítico-descritivo adotado foi desenvolvido
por meio de leituras e análises crítico-reflexivas, do conhecimento dado e posto como
interpretação de Mundo desenvolvida por outros que também se aventuraram.
Nesse sentido, no presente estudo buscamos identificar, organizar e estabelecer
relações entre idéias e ideais que compõem a percepção e o desenvolvimento da Razão e do
Mito, na perspectiva do que se tomou por Modernização. O percurso exigiu esforço crítico-
reflexivo para compreender o movimento de construção-desconstrução-construção da
concepção de Mundo predominante, bem como os princípios teóricos que serviram de
suporte na formação e/ou transformação do que já estava posto, como História e
Conhecimento.
Enveredamos, pois, por trilhas abertas por aqueles que conseguiram traduzir o esforço
acima em leitura, interpretação e compreensão do Mundo, como instigante exercício de raro
prazer teórico. Por outro lado, abstrair e extrair de tais leituras e interpretações elementos
significativos para constituir conteúdo e forma assumidos pela Contemporaneidade exigiu
cuidados e estratégias teórico-metodológicas para compor a linha demarcatória e a
aproximação entre o prazer e o rigor.
O exercício de busca e interpretação veio acompanhado da exigência acadêmica, pautada
em prazos, limites e objetivos predefinidos, forçando-nos a colocar o rigor acima do prazer.
Neste caso, o rigor entrou como instrumento regulador entre as ações possíveis e
necessárias a serem cumpridas. Desse modo, administrar a relação entre o prazer e o rigor
encontrou-se diretamente associada aos caminhos trilhados e constituídos a partir do
tratamento das informações e dos objetivos pretendidos.
Por sua vez, as prerrogativas necessárias para percorrer os caminhos do conhecer foram
pautadas em ações do refletir e do analisar. Serviram de objeto da análise e da reflexão,
textos, contextos, idéias e ideais organizados como modo de pensar e viver em determinada
época. Em todo o percurso, a Razão e o Mito se cruzaram e se constituíram como
representação e interpretação, a partir das leituras e re-leituras das idéias e das relações que
se desenvolveram, se articularam e se projetaram como Pensamento Contemporâneo.
Nesse sentido, a reflexão e a análise, neste estudo, caminharam no sentido de identificar e
compreender o que denominamos de Trama Mito-Tecno-Lógica. Esta, a encontramos
desenvolvida por estreitos caminhos que se comunicam e se escondem pelas bifurcações
ideológicas, através das estratégias da (Ir)Racionalidade Tecnológica, fundidas em ações da
Racionalização Econômica, e confundidas como pretensões de Modernização Social.
Assim, podemos dizer que nosso prazer esteve focalizado na leitura e na
compreensão dos diferentes contextos de articulação do Mito e da Razão, como
delineadores dos caminhos e perspectivas do Pensamento Contemporâneo. A
compreensão deu-se a partir das leituras e interpretações dos processos sociais e
culturais, organizados em torno das orientações instituídas pela Ciência e pela Técnica.
Tais orientações, nós as concebemos como vetores da Racionalização Econômica na
Trama Mito-Tecno-Lógica, fundidas na Tecnologia.
No tocante ao rigor, aplicamo-lo como regulador para a nossa objetividade e não
como inibidor da nossa subjetividade. Desse modo, entendemos que nossas reflexões e
análises caminharam próximas e possivelmente eqüidistantes aos nossos interesses, de
forma a possibilitar-nos transitar pelos caminhos e descaminhos da Razão e do Mito, da
Racionalidade e da Irracionalidade, sem nos ausentarmos do movimento que os re-
produz, ou os re-inventa no Contexto Contemporâneo.
Outrossim, podemos dizer que a administração do prazer e do rigor, neste estudo,
esteve dirigida para a compreensão das interpretações textuais e contextuais dadas e
apresentadas como elementos intrínsecos da Modernização, e a fundamentação em torno
de re-flexões e pré-ocupações construídas a partir de alguns conflitos, protagonizados
pelo Mito e pela Razão nas Relações Comunicativas Contemporâneas.
Partimos do pressuposto de que a clareza teórica pressupõe definição conceitual
como parâmetro argumentativo. Por isso, como dissemos anteriormente, tomamos como
referência o contexto e as falas de teóricos que se envolveram em discussão semelhante
à nossa. Dentre eles, Adorno, Horkheimer, Weber, Habermas, Touraine, Berman,
Bauman, Latour, Rouanet, dentre outros. Entendemos que o esforço despendido para ler,
rever, criticar e melhorar o já conhecido também pode oferecer uma perspectiva
diferente, e quiçá original, do que se delineia como “novo” ou “Moderno”, no futuro que
ora se manifesta nas mudanças e transformações da Sociedade Contemporânea,
principalmente no que diz respeito à Educação.
Por fim, esclarecemos que a incursão realizada neste estudo teve o caráter de
reunir subsídios teóricos, referentes aos processos e produtos da Racionalização, numa
linha interpretativa ao mesmo tempo crítica e próxima do Mito. A intenção também foi a
de estabelecer ligações entre elementos históricos do Desenvolvimento Humano,
aparentemente distintos entre si, mas, ao nosso modo de ver, diretamente relacionados à
dinâmica que se estabelece entre o Mito e a Razão. A idéia aqui pretendida foi atualizar
nossa compreensão da relação entre o Moderno e o Não-Moderno. Assim, esperamos ter
cumprido a contento o caminho pretendido. Ou, ao menos ter oferecido pistas claras e
consistentes, para que outros possam seguir com a discussão.
CAPITULO 1
A Racionalidade no Modelo Ocidental de Desenvolvimento
(...) A criatividade é celebrada na cultura ocidental como o ápice da
realização individual. No entanto, não diminui absolutamente os feitos de
Beethoven ou Einstein notar que seus momentos de criação foram na
verdade, resultado de complexas circunstâncias sociais. A criação, da
maneira que idealizamos atualmente, é uma ilusão. Algo que tendemos a
reconhecer nos outros, e não em nós mesmos.
(Joseph Schwartz).
Primeiro Capítulo
A Racionalidade no Modelo Ocidental de Desenvolvimento.
1. Formação e projeção da Racionalidade Moderna.
(...) todos os homens desejam controlar o mundo natural, mas apenas alguns conseguiram
desenvolver meios eficientes e sofisticados de controle. Então o que separa o selvagem do
civilizado é que, enquanto o primeiro tentou controlar o mundo conversando com ele e
imitando-o com desenhos e danças, o segundo ultrapassou esses recursos patéticos e partiu
para a invenção e o emprego de meios extra-somáticos que alcançaram de fato os objetivos
desejados (Turner: 1990, p.21).4
É difícil a tarefa de caracterizar o que se tomou por Modelo Ocidental de
Desenvolvimento.5 Uma das dificuldades é o acesso às idéias e aos elementos que teriam
gerado ou constituído tal Modelo de Desenvolvimento, atribuindo-lhe valores e normas
universais. Outra dificuldade é a complexidade das relações que compõem o movimento
executável das ações políticas, por suscitarem medidas carregadas de intenções geradoras
de reações e fortes conflitos, para serem implementadas e aceitas como via de
desenvolvimento viável para todos.
Mesmo assim, uma perspectiva menos audaciosa, mas, nem por isso, destituída de
pretensão, procuramos descrever aspectos relevantes desse Desenvolvimento Ocidental,
seguindo a trilha já aberta por outros autores que se empenharam em compreender o
4 Turner, Frederick. O Espírito Ocidental contra a Natureza.Rio de Janeiro: Campus, 1990. p.21. 5 Expressões do tipo “Modelo Ocidental de Desenvolvimento”, e “Projeto Ocidental” serão apresentadas, neste estudo, como resultado de interfaces históricas, envolvendo, principalmente, aspectos do Poder econômico amparados e normatizados pelo Poder político, com objetivos específicos de construir, renovar ou transformar as relações de mercado, a partir dos interesses de gerenciamento do capital, para imprimir um determinado ritmo de desenvolvimento social.
fenômeno que possibilitou a extensão da valorização da Racionalidade Técnica e Científica
no que se convencionou chamar de Modernidade.6
Na base teórico-investigativa, buscamos, ainda que por elementos gerais, uma
caracterização das principais idéias e princípios dessa Modernidade, pelo Modelo de
Desenvolvimento econômico rumo ao que seria adotado como Modernização. Esperamos
fazer uma viagem em torno de alguns fatos históricos que motivaram o Movimento
Civilizatório Ocidental, próximo à Modernidade e ao que dela avançou para os períodos
posteriores até os dias de hoje.
A dificuldade, já por nós apontada, encontra respaldo em Elias (1993)7, o qual
demonstra como é difícil identificar, nas mudanças, o que influencia os rumos e as
alterações comportamentais específicas do ritmo e do caminho pelo qual as transformações
são implementadas.
Todavia, o mesmo autor deixa claro que não imagina o Processo Civilizador como
resultado de indivíduos isolados, que pensam, planejam e articulam as mudanças, rumo à
"civilização desejada”. Ou que esta seja concretizada, por inteiro, pelos longos "séculos de
progresso" que alimentam a História e o movimento de realização dos indivíduos.
6 Assumimos, aqui, o mesmo entendimento de Zygmunt (1999). Modernidade como um “... período histórico que começou na Europa Ocidental no século XVII com uma série de transformações sócio-estruturais e intelectuais profundas e atingiu sua maturidade primeiramente como projeto cultural, com o avanço do Iluminismo e depois como forma de vida socialmente consumada, com o desenvolvimento da Sociedade Industrial (Capitalista e, mais tarde, também a Comunista)”. (Nota 1. p. 299). Diferindo de Modernismo que deve ser entendido como uma “... tendência intelectual (filosófica, literária, artística) que – com origem remontável a muitos eventos intelectuais específicos da Era precedente – alcançou sua força integral no início do século XX e que em retrospecto pode ser visto (por analogia com o Iluminismo) como um ‘projeto’ de Pós-Modernidade ou um estágio preliminar da condição Pós-Moderna. Com o Modernismo, a Modernidade voltou o olhar sobre si mesma e tentou atingir a visão clara e autopercepção que por fim revelariam sua impossibilidade, assim pavimentando o caminho para a reavaliação pós-Moderna”. (Nota 1. p. 300). Ver obra “Modernidade e Ambivalência”, Rio de Janeiro: Zahar, 1999.7 Elias, Norbert. O processo civilizador. Vol.2. Rio de Janeiro, Zahar, 1993.
Desse modo, o Processo Civilizador, não é percebido por Elias (1993) como
resultado de medidas conscientes, "racionais" e deliberadas. Contudo, esse autor ressalta
que a Civilização não sendo, resultado específico da Racionalização, produto da "ratio"
humana, como resultado de um planejamento calculado, ela, também não pode ser tomada
por contraste, ou seja, imaginada como movimento irracional.
Para Elias (1993), nada na História indica que o processo de mudança tenha sido
realizado "racionalmente", através de qualquer educação intencional, nem tampouco que
tenha ocorrido por meio de mudanças caóticas e não-estruturadas, sem planejamento algum
(Elias:1993, p.193-4).
O referido autor defende a tese de que o Processo Civilizador deve ser apreendido
dos planos e ações, impulsos emocionais e racionais que constantemente se entrelaçam nas
relações sociais. Supõe ele que essa interdependência surja de uma ordem sui generis, mais
irresistível e mais forte do que a vontade e a Razão das pessoas que a compõem. Algo como
uma ordem inerente aos impulsos e anseios humanos, entrelaçados no social, que influencia
o curso da mudança histórica, subjacente ao próprio Processo Civilizador.
Essa ordem nem é "racional" - se por "racional" entendemos que ela resultaria
intencionalmente da deliberação e do propósito de pessoas isoladas -, nem "irracional"
- se por "irracional" queremos dizer que tenha surgido de maneira incompreensível.
(...) Os hábitos mentais que tendem a nos prender a pares de opostos, como "racional"
e "irracional" ou "espírito" e "natureza", aqui se mostram inadequados. Neste
particular, também a realidade não é construída exatamente como o aparato
conceitual de um dado padrão gostaria que acreditássemos, quaisquer que tenham
sido os serviços valiosos que em seu tempo nos tenha prestado como bússola a nos
orientar em meio a um mundo desconhecido.8
8 Elias: 1993, p.194.
Ainda em Elias (1993), encontramos a idéia do que representou o Movimento de
Modernização do Ocidente.
(...) a função geral do conceito de civilização expressa a consciência que o Ocidente tem de
si mesmo. Poderíamos até dizer: a consciência nacional. Ele resume tudo em que a
sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais
antigas ou a sociedades contemporâneas ‘mais primitivas’. Com essa palavra, a sociedade
ocidental procura descrever o que lhe constitui caráter especial e aquilo de que se orgulha: o
nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura
científica ou visão do mundo, e muito mais (p. 23).
Como contraponto ao Processo Civilizador Ocidental acima apresentado, é
interessante destacar que a difusão da idéia de Superioridade Racional pelo Ocidente pode
ter sido supostamente projetada e reforçada por alguns historiadores. O importante é que
hoje essa tese está posta na berlinda por diversos autores, dentre os quais o próprio Elias
(1993), que cuidadosamente fizeram novas leituras e interpretações do fenômeno da
Ocidentalização.
O movimento de Ocidentalização, contudo, ainda continua uma grande questão a
ser discutida, analisada e revista. Pergunta-se, por exemplo: O que teria capacitado o
Ocidente a organizar e superar suas próprias estruturas e avançado rumo ao
desconhecido, para além dos limites de sua Geografia?
É Turner (1990) quem nos chama a atenção para o fato de que o próprio Ocidente
herdou ou tomou de empréstimo a maior parte das habilidades e tecnologias por ele usadas,
e que só teriam chegado à América milhares de anos depois de povos orientais, africanos,
celtas e semitas.9
Uma breve referência ao que se esconde na idéia da Superioridade Ocidental, por
meio da Historiografia que trata do assunto, Poderá nos revelar indicadores de que a
Racionalidade difundida foi resultado de mentes brilhantes, ocidentais, com configurações
próximas da natureza divina, escamoteando raízes profundas e possivelmente mais
humildes e humanas. O próprio Turner (1990) nos dá mostras das influências que o
Ocidente recebeu e menosprezou:
Todos os estudiosos da história das explorações sabem que as contribuições da civilização
ocidental para as ciências da cartografia e da navegação foram na verdade sínteses,
aplicações e extensões, e não inovação autêntica. Os chineses inventaram o papel, a tinta e a
impressão, sem os quais seriam impossíveis os mapas e informações náuticas; criaram
também a agulha magnética. O próprio mapa é provavelmente uma invenção babilônica e as
cartas marítimas foram criadas pelos predecessores mediterrâneos dos gregos.(...) nem a
própria máquina, o artefato cultural típico do oeste, nasceu no Ocidente, e sim no antigo
Oriente Médio. Não obstante, coube aos europeus, conforme mostrado por Lewis Mumford,
‘adaptar todo o modo de vida ao ritmo e às capacidades da máquina’. Foi a civilização
ocidental, e apenas ela, que teve o gênio de extrair todo o potencial das idéias e invenções
alheias, de coletar e fazer uma nova síntese do seu ‘ lixo tecnológico’. 10
As evidências apresentadas acima deixam claro que a base de organização e
projeção da Racionalidade Ocidental tem raízes profundas e complexas. Por outro lado, não
podemos negar que a difusão do conteúdo da Racionalidade desprezou (intencionalmente)
elementos significativos inerentes ao processo, e concentrou esforços apenas no produto.
9 Turner, Frederick. O Espírito Ocidental contra a Natureza.Rio de Janeiro :Campus, 1990. p. 05. 10 Ibidem.
Estratégia típica do processo de Mitificação, que focaliza os elementos narrados e
revelados, como resultados, exemplos e valores a serem assimilados como princípios
verdadeiros.
A linha de raciocínio oferecida por Turner (1990) nos apresenta indicadores que
demonstram aspectos relevantes no modo como o Ocidente incorporou elementos míticos
aos de desenvolvimento da Racionalidade. O autor localizou geograficamente as raízes do
Processo de Ocidentalização no Oriente Médio, de onde herdamos influências da
Racionalidade Tecnológica, traduzidas na capacidade de fabricar símbolos culturais a
serem incorporados em atitudes e crenças míticas. 11
Ainda com Turner (1990) encontramos uma excelente caracterização de atitudes
possivelmente codificadas e implantadas nas Escrituras, que serviram de referências para a
composição da Racionalização Ocidental. Hábitos e atitudes relacionadas a previsão,
segurança, proteção, reprodução, etc., constituídos em longos períodos da Civilização
Oriental, podem ter servido de base e orientação para os ocidentais.
(...) esses povos [do Oriente Médio] estiveram entre os primeiros a concretizar um dos mais
atraentes sonhos da Humanidade, o de uma vida sedentária. Esse modo de vida oferece um
conjunto de seguranças, sendo talvez a mais importante de ordem psicológica (...) a garantia
de ter um domicílio conhecido e fixo, com nomes, pontos de referência e a proximidade dos
ossos dos antepassados.(...) a segurança econômica de ter uma fonte de água conhecida e
confiável, pastagens e abrigo. (...) esses povos foram desenvolvendo um hábito notável e
novo: o da previsão, o de pensar constantemente em termos de futuro econômico. 12
11 Turner (1990) faz referências às tecnologias agrícolas e pecuárias e a certas atitudes em relação ao mundo natural, tomadas como estratégias ‘civilizadas’ de sobrevivência e controle. No aspecto espiritual, ele nos remete ao fato de que a principal História Sagrada dos antigos israelitas serviu de matriz espiritual para o Cristianismo, se transformando depois na primeira metade do Texto Sagrado de toda a Civilização Ocidental. (Turner: 1990, p.22).
Na perspectiva de estreitar vias interpretativas, assumiremos as informações acima, como
pressupostos delineadores da Racionalidade Ocidental. Buscaremos identificar nesse
Modelo de Desenvolvimento uma ordem, racional ou irracional, que teria atuado
fortemente nas decisões econômicas e sociais, para configurar a obsessiva marcha em prol
da Modernização. Por essa via de interpretação, é provável que encontremos a Ciência e a
Tecnologia, antecipando-se às outras áreas do saber, oferecendo grandes e rápidas
revoluções, através dos seus produtos.
Pretendemos, além disso, identificar na perspectiva racional da Ocidentalização a
Racionalização Econômica, como fator determinante na Modernização. Conduziremos
nossa abordagem para a idéia de que recebemos como resultado dos diversos estágios da
Modernização, um legado constituído fortemente na lógica do Desenvolvimento
econômico, associado a uma ampla Mitificação da realidade.
Transformada em hipótese a idéia acima, abre-se um espaço para imaginarmos uma
relação com a Odisséia de Homero. O cenário mítico, transladado para o ambiente
contemporâneo, pode oferecer excelentes elementos para reflexão. Homero descreveu a luta
racional do seu herói, Ulisses, para superar a Irracionalidade contida nas doces ilusões
míticas que estimulavam seus desejos e sentidos.
Atualizados o ambiente e os autores, o contexto contemporâneo parece reforçar a
trama Mito-Razão, Irracional e Racional, na qual nos submetemos constantemente aos
caprichos sedutores e frenéticos das sereias, tal qual Ulisses. Guardadas as devidas
proporções, nossa luta contemporânea ocorre em função dos encantos favorecidos pelas
maravilhosas invenções tecnológicas, que a Racionalidade produziu.
12 Idem. p.23.
A relação acima ganha relevo e significado para a interface Mito-Razão, se os
encantos inseridos nos produtos tecnológicos assumirem conotações próximas do sagrado e
do divino; ou seja, se os produtos tecnológicos forem tratados como presentes dos deuses,
nos quais encontram-se recursos que representam um modo especial de ser: rápido, prático,
eficiente, bonito, inteligente, racional, poderoso, superior e, por que não, moderno.
Além disso, o Ocidente, ao se conceber como modelo civilizatório para o mundo,
incorporou a dimensão mítica à idéia de Superioridade e Poder absoluto na Razão,
apostando no fato de atingir a ‘maturidade’ pelo processo de Racionalização e
Modernização. Dessa percepção, brotou a certeza de que o Desenvolvimento Ocidental não
era algo a ser questionado, mas um exemplo a ser seguido.
Por esse raciocínio, aos países considerados imaturos em matéria de
Desenvolvimento e Crescimento Econômico, restavam submeterem-se aos princípios
básicos da colonização: aceitar as condições impostas por aquele que conhece, e ficar sob
seu poder, adequando-se aos instrumentos de exploração e controle.
A aceitação do Mito da Superioridade Absoluta, pelos países não-desenvolvidos, ou
em desenvolvimento, pode ser captada nas conseqüências advindas com a incorporação do
Modelo de Desenvolvimento Ocidental, através de...
injeções de capital estrangeiro e a criação de ‘pólos de desenvolvimento’, como condições
necessárias e suficientes para conduzir os países menos desenvolvidos à etapa de
decolagem. Em outras palavras, o essencial era importar e instalar máquinas. (...) o
Desenvolvimento chegou a significar um crescimento indefinido, e a maturidade, a
capacidade de crescer sem fim. Assim concebida, enquanto ideologias, mas também, a um
nível mais profundo, enquanto significações imaginárias sociais, eles eram e continuam a
ser consubstanciais a um grupo de ‘postulados’ (teóricos e práticos) dos quais os mais
importantes parecem ser: a ‘onipotência’ virtual da técnica; a ‘ilusão assintótica’ relativa ao
conhecimento científico; a ‘racionalidade’ dos mecanismos econômicos; 13 (Castoriadis:
1987, p.141 - 146).
A perspectiva interativa entre pólos dicotômicos como Razão-Mito, Racional-
Irracional, pode ser vista nas concepções que envolveram os períodos do Renascimento e
do Iluminismo. Basta uma rápida viagem no tempo, ligando momentos-chaves da evolução
e revolução nos modos de ser, ver e conviver no mundo “moderno”, para vermos aspectos
intrigantes da aplicação da Racionalidade Humana. Tais períodos nos oferecem um misto
de Ordem e Caos, Racionalidade e Irracionalidade, Mito e Razão.
Transladada a idéia do Mito da Superioridade Ocidental para uma aproximação com
a Razão investida no Projeto Iluminista, encontramos elementos que fluíram do movimento
de Racionalização e Modernização, para uma nova dinâmica caracterizada nos processos
comunicativos contemporâneos. A esse respeito, Touraine (1995)14 nos diz que o Ocidente
viveu e pensou a Modernidade como uma Revolução.
Nessa perspectiva revolucionária, ressaltada por Touraine (1995), encontramos a
idéia de que o Ocidente, para difundir o espírito da Modernidade, adotou como estratégia a
teoria da tábua rasa, visando a proporcionar aos indivíduos libertar-se dos efeitos das
desigualdades transmitidas, dos medos irracionais e da própria ignorância do passado.
A exemplo disso, citamos o fato de que o êxito obtido na Indústria, no início de suas
transformações, esteve ligado diretamente a tragédias humanas que ocorreram com as crises
na agricultura. Estas por sua vez, estiveram associadas a, fome, peste, êxodo, imigração,
etc. e aos camponeses que se viram forçados a abandonar seus locais de origem para buscar
13 Ver Castoriadis, C. As encruzilhadas do Labirinto/2: Os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
sobrevivência nos grandes centros urbanos, onde foram empregados como mão-de-obra
barata nas indústrias.15
Nesse sentido, Touraine (1995) nos chama a atenção para o fato do movimento
intensivo e progressivo da Racionalização ter substituído as idéias de Sujeito e de Deus,
pelas Leis Naturais. Isto, em um certo sentido, justificou a preocupação, já evidenciada em
séculos anteriores, da necessidade de um modelo natural do Conhecimento Científico o
qual seria o carro-chefe para a concretização da idéia de Progresso (Touraine: 1995, p.20).
A idéia de progresso ocupa um lugar intermediário, central, entre a idéia de racionalização e
a idéia de desenvolvimento. Este dá primazia à política, aquela ao conhecimento: a idéia de
progresso afirma a identidade entre política de desenvolvimento e triunfo da razão; ela
anuncia a aplicação da ciência à política e por isso identifica uma vontade política com uma
necessidade histórica. Acreditar no progresso é amar o futuro ao mesmo tempo inevitável e
radioso. (Touraine: 1995.p.71-2).
Castoriadis (1987), por sua vez, nos oferece pistas das idéias de Racionalização e
Progresso, vinculadas às perspectivas do Conhecimento Técnico e Científico, muito
próximas da idéia de Poder.
(...)nada há, por exemplo, a dizer contra a indústria Moderna como tal: o que está errado é
que ela é utilizada para benefício e/ou o poder de uma minoria, em vez de sê-lo para o bem
de todos. (...) o sistema tecnológico de uma sociedade não pode ser separado, idealmente ou
realmente, daquilo que essa sociedade é. (...) a ilusão não consciente da ‘onipotência virtual’
14 Touraine, Alain. Crítica da Modernidade. 3
a ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1995.
15Por exemplo, a crise agrícola que ocorreu após 1815 reduziu os camponeses a uma grande massa destituída e desmoralizada, enquanto que para o processo de industrialização os efeitos foram positivos, porque o novo Modelo de produção exigia mais mão de obra. A Grã Bretanha beneficiou-se também da grande imigração irlandesa, que fugiam da grande catástrofe provocada pela fome que assolou o país entre 1835 - 50. (Cf. Hobsbawm: 1997, p. 61-9)
da Técnica, ilusão que tem dominado os tempos modernos, apóia-se em outra idéia não
tematizada, e dissimulada: a idéia de poder (Castoriadis: 1987, p.152-3).
Desse modo, percebemos que, mesmo sob a visão dicotômica, os fundamentos que
respaldam as perspectivas do Mito, da Razão, do racional e do irracional, mantêm uma rede
interativa de produção e aplicação dos conhecimentos. A História do Conhecimento
Humano nos oferece indicadores de que o homem sempre esteve disposto a pôr ordem e
sentido em sua existência. Por outro lado, à medida que o indivíduo buscou compreender o
caos criado à sua volta, passou também a transformar o que estava ao redor de si e, a si
mesmo.
A Razão, no que diz respeito ao seu contexto histórico-evolutivo, foi por vezes
assumida como instrumento interpretativo da realidade, com conotações religiosas
próximas às sagradas e divinas. Neste estudo, para efeitos de caracterização do pensamento
moderno, a tomamos, prioritariamente, como fenômeno humano, submetido a condições
históricas definidas e variando conforme as condições dispostas nos conflitos e nas relações
estabelecidas pelos indivíduos em períodos específicos do Processo Civilizatório.
Para nós, a abordagem demonstrativa das várias interfaces da Razão humana, no seu
movimento de ascensão racional e social, se aproxima do que disse Vernant (2002):
(...) não se pode mais supor uma razão exterior ao curso da história, presidindo de fora e de
cima todo o progresso das Ciências, fixando a partir de princípios racionais colocados a
priori e definindo de uma vez por todas a direção do movimento científico. A razão aparece
imanente à história humana, em todos os níveis; não se pode separá-la dos esforços
incessantemente produzidos e renovados pelo homem para entender o mundo da natureza e
o mundo social. 16
Outrossim, conceitos como os de Racionalidade e de Modernidade, no contexto
histórico-evolutivo do Desenvolvimento Ocidental, sofreram várias mutações ao longo do
tempo, oportunidade em que ganharam espaço e “status” de liberdade, avanços, progresso,
quando vistos em interfaces com o movimento paralelo de normatização das relações
econômicas.
À frente do movimento econômico, encontramos o espírito capitalista, 17 o qual
incorporou a Modernidade Cultural traduzindo-a como Modernização Social. Desse modo,
a Racionalidade passou, a passos largos, a ser vista sob a lente do Desenvolvimento
Econômico, que ampliou e reforçou estreitos laços do racional com o irracional.
No que diz respeito à organização e caracterização do Pensamento Moderno sob a égide do
espírito capitalista, nossas referências nos levam para a expansão do comércio e as
mudanças ocorridas com a transição do Sistema de Manufatura para o Sistema Fabril.
Nesse contexto, a Manufatura, grosso modo, pode ser caracterizada pelo grande número de
trabalhadores sob um mesmo teto, desempenhando diferentes tarefas em função de um
plano de produto final comum. Todo o processo era coordenado e dirigido pelo proprietário
dos meios de produção.
16 Vernant, Jean-Pierre. Entre mito & política. São Paulo-SP: Edusp, 2002. p. 192. 17 O termo “espírito capitalista” está sendo empregado com sentido amplo, visando a ressaltar aspectos das mudanças que ocorriam entre os indivíduos, com as novas relações que se estabeleciam com a expansão do comércio, fazendo surgir instituições financeiras, bancos, bolsas, tendo em vista subsidiar as atividades mercantis, principalmente através de empréstimos, que se tornavam boas alternativas para acumular o capital.
A ressalva que se faz, para o tipo de organização na Manufatura, é no que diz
respeito ao ritmo das atividades de produção, ainda sob o Poder dos trabalhadores. Estes
executavam tarefas específicas e limitadas, mas sem perder o contato com o produto final.
Na manufatura, o trabalhador é transformado em trabalhador parcial, mas ainda é ele, com
sua habilidade e rapidez, quem comanda o processo de trabalho, quem determina o ritmo e
o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de uma mercadoria. Nisto estão
os limites da manufatura, que vão constituir sérios entraves ao desenvolvimento do capital:
em primeiro lugar, embora o trabalho seja desqualificado, ainda é o trabalhador com a
ferramenta quem elabora o produto e este trabalhador especializado ainda necessita de um
longo período de aprendizagem, o que lhe dá força ante o capital; em segundo lugar, como a
manufatura tem sua base no elemento subjetivo, no trabalhador, ela está restrita pelo limite
físico, orgânico, deste, que impede que a produtividade do trabalho aumente
incessantemente (Andery: 1988, p.167). 18
Ainda seguindo as pistas do Processo de Ocidentalização, e Modernização,
conduziremos nossa abordagem para uma incursão pelos séculos XVII e XVIII, priorizando
a interface entre a Ciência, a Técnica e a Tecnologia no cenário constitutivo da
Modernidade, representando esta o “ponto alto” da Racionalidade Humana.
A Modernidade, ora foi aceita como resultado da superação dos conflitos interiores
dos indivíduos, pela capacidade de Racionalização, ora foi tomada como fenômeno fora dos
limites da Razão humana, representando uma dádiva dos deuses. Ainda é possível encontrar
uma identificação da Modernidade com a idéia de um curso natural da evolução do
Homem e da Natureza que lhe é exterior.
18 Andery, Maria Amália et al. Para compreender a ciência. Rio de Janeiro - RJ: Espaço e Tempo / EDUC, 1988.
Na diversidade das referências acima sugeridas, o Desenvolvimento Social, no
contexto da Racionalização e da Modernização Ocidental, encontra-se ligado à perspectiva
econômica, que o projeta em função da Racionalidade Tecnológica. Essa dinâmica em parte
justifica o próprio Desenvolvimento da humanidade, pois, o homem, mesmo em meio à
confusão, ao caos aparentemente incompreensível, procura uma ordem e um sentido. E, na
medida que compreende esse caos criado à sua volta, passa a transformar o mundo ao redor
de si e a si mesmo.
Assim, tudo leva a crer que o que se tomou por Racionalização e Modernização das
Sociedades se desenvolveu pautada em princípios de exploração do Homem e do Mundo,
configurados na lógica de acumulação do capital, 19 e numa ampla parceria com o Saber da
Ciência e o Saber-Fazer da Técnica, inseridos, nos produtos tecnológicos.
Marx (1980)20, algum tempo atrás, já anteviu o que mudaria nas relações de
produção das Sociedades Industrializadas, com a nova parceria entre o Capital, a Ciência e
a Técnica. Para ele,
A capacidade real de produção objetivou-se e materializou-se na economia automatizada da
sociedade, na ciência e na tecnologia, instituições social do progresso e da produção, e, é
natural que cada indivíduo, na sua qualidade de ser social, tendo contribuído ao longo da
história para o progresso dessa ciência e dessa tecnologia, e de um modo geral para a
criação de bens material, veja nessa produção objetivada uma parte vital de si mesmo. A
atitude relativamente à produção automatizada e aos seus meios não mais pode ser a do
19 Assumimos essa lógica como referência ao que vem sendo denominado de Globalização Econômica. Nas palavras de Elizabeth Bastos (2000), identifica-se enquanto visão de um sistema capitalista mundial que tem como características empresas transnacionais, nova divisão internacional do trabalho, nova dinâmica vertiginosa das transações bancárias e das bolsas de valores, novas formas de inter-relacionamento da mídia, computadores e automação, fuga da produção para áreas desenvolvidas do Terceiro Mundo, etc., visando, naturalmente, à maximização dos lucros e à exclusão das diversidades em favor de uma essência totalitária. Sua lógica é mercantilista. Ver Elizabeth Bastos Duarte. “Fotos & Grafias”. São Leopoldo-RS: Unissinos, 2000. p. 12.
proprietário privado, que seria absurda e insustentável, mas uma atitude de caráter coletivo e
social. (...) Essa novidade é imposta pela própria natureza do caráter social da produção
automatizada, que realiza diretamente a destruição da ‘relação de proprietário privado’do
tipo capitalista clássico. Entretanto, um novo perigo surge: o nascimento de uma oligarquia
tecnoburocrática, de uma camada social que tenta utilizar a nova forma de produção social
para se colocar por meios políticos não-democráticos, em nome da sociedade, acima da
sociedade. (...) o regulador da produção deixa de ser a lei da mais-valia, para ser
obrigatoriamente o próprio valor de uso, e com ele as necessidades dos consumidores. Surge
a questão das efetivas necessidades humanas e de uma produção orientada em função dessas
necessidades (p.27-28).
A questão acima aparece em interfaces da Racionalização Econômica com a
(Ir)Racionalidade Mítica, objetivadas na Modernização. Essas interfaces regulam o
Processo Ocidental de Desenvolvimento e respaldam o Projeto Econômico Capitalista de
Acumulação de Riquezas, além de preparar o cenário social cultural em função do que se
toma por Moderno, de modo a articular a Racionalidade Cultural com a (Ir)Racionalidade
Instrumental que é difundida como instrumento de Modernização.
O Movimento de Ocidentalização do Mundo assumiu a Modernização como
exigência da Racionalidade Técnica e Científica, traduzida em avanço, crescimento e
Desenvolvimento econômico e social, caracterizando assim o amadurecimento da própria
Razão humana, a qual, para projetar-se, pressupõe uma Sociedade, também, Racional.
Desse modo, a Modernização desponta como extensão da Racionalidade Moderna, por
meio das relações estabelecidas entre o Indivíduo e a Natureza, em que a ação é
racionalizada dentro dos princípios universais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
20 Marx, Karl. Conseqüências sociais do avanço tecnológico. Trad. Rudi Supek. São Paulo: Edições
Na mesma direção, projetou-se fortemente a visão unilateral do Sujeito que
conhece, definido como pólo determinante nas relações com a Natureza. Com isso, em
todas as dicotomias constituídas pelas categorias Sujeito-Objeto, Ação-Transformação,
Razão-Emoção, o Homem, ser pensante, passou sobremaneira a exaltar sua Razão como
forma de diferenciar-se dos outros homens e animais, bem como da própria Natureza.
Por fim, as idéias aqui apresentadas e generalizadas, na sua extensão explicativa,
oferecem indicadores dos rumos tomados pela Racionalização e Modernização Ocidental
incorporados ao amplo contexto do Desenvolvimento Econômico. Isto sugere a existência
de uma forte interface entre pólos opostos do Conhecimento, Razão-Mito, Racionalidade-
Irracionalidade, projetados pela Racionalização Econômica, como estratégias de modelação
do Pensamento Moderno Ocidental.
Para os próximos tópicos, aproximaremos tais indicadores do processo histórico
envolvendo os períodos do Renascimento e do Iluminismo, nos quais se inicia o processo
de institucionalização do Saber e do Saber-Fazer, impulsionando o movimento de
modernização caracterizado pelas transformações sociais e econômicas em função das
novas perspectivas oferecidas pelos conhecimentos técnicos e científicos.
2. Alguns traços do Renascimento e do Iluminismo na contribuição da
Racionalização Ocidental.
Historiadores, de um modo geral, admitem que já nos séculos XV e XVI, era
possível encontrar traços de um novo Ocidente. A justificativa encontra-se no fato de
Populares, 1980, p.27 - 28.
que, a partir desses períodos, foi possível presenciar a emergência de um ser humano
menos alheio às transformações da Natureza, mais autônomo e dotado de uma
consciência de si mesmo – curioso em relação ao mundo, como conseqüência de sua
confiança na capacidade de discernimento entre o bem e o mal.
Aproximar a dimensão autônoma do indivíduo dos conhecimentos21 produzidos
nos períodos em questão será nosso intento de abordagem para este tópico. Embora não
tencionemos tratar a questão apenas como o resultado das relações estabelecidas nessa
época. Admitiremos, guardados os devidos “avanços” e “retrocessos” comparados aos
períodos anteriores, crenças, valores e padrões que se estruturaram e passaram de um
período para outro, formando um Conglomerado Herdado22. Este, através de sucessivos
movimentos cumulativos, foi e será a referência para a formação de concepções de
mundo nas principais tendências, em diferentes épocas.
Como trabalhamos com informações abstraídas dos conflitos entre diversas
gerações, concentraremos nossa atenção nas manifestações da Racionalização e da
Modernização, caracterizadas nos conflitos, angústias e expectativas dos indivíduos,
para controlar a diversidade dos fenômenos inerentes tanto à natureza interna como
externa aos homens. Nesse sentido, usaremos recortes históricos do Renascimento e do
21 Mesmo correndo o risco de uma abordagem simplificada, o termo “conhecimento” será explorado, aqui, nas suas múltiplas manifestações: mítica, religiosa, técnica e científica. Para diminuir os riscos, delimitaremos as formas de conhecimento aqui apresentadas, oferecendo, senão filosoficamente, pelo menos conceitualmente, uma caracterização do conjunto de fatores que organizam e modelam tais formas. 22 Expressão atribuída a Gilbert Murray, por E. R. Dodds, significando a lenta formação de crenças e valores que se estruturam no modo de pensar de um povo ou geração, através de sucessivos movimentos civilizatório (ver Dodds, E.R. Os gregos e o irracional. Portugal: Gradiva, 1988. p.194).
Iluminismo23, como base de apoio teórico para elegermos parâmetros do modo de pensar
e agir dos ditos Modernos.24
Os movimentos acima sugeridos, nas especificidades que lhes são inerentes,
justificam serem tomados como referência na contextualização da Racionalidade
Moderna e no que dela foi desviado pela Racionalização Econômica, por servirem de
trampolim para a difusão de idéias e ideais que popularizaram o reverenciamento da
Razão como instrumento dos progressivos avanços técnicos e científicos no próprio
programa de intenções para a Modernidade.
O referencial discursivo será constituído por elementos extraídos das relações
sociais, políticas, culturais e intelectuais, abstraídas do conjunto de idéias que
propagaram o Renascimento e o Iluminismo.25 De tais elementos contextuais nos
serviremos analiticamente, para formar uma base teórico-investigativa com apoio
estratégico para desenvolvermos o referencial descritivo do que se convencionou chamar
de Moderno.26
23 Assumiremos aqui o termo Iluminismo, com a mesma configuração atribuída por Rouanet. Com um enfoque que extrapola o contexto do século XVIII, que não se encontra limitado a uma época específica, mas, a partir das idéias da Ilustração segue, enquanto tendência intelectual, no combate ao Mito e ao Poder , com base na Razão Discursiva. De certa forma, o Projeto Iluminista, na visão de Rouanet, visa a auto-emancipação dos indivíduos, através de um conjunto de valores e ideais, consubstanciados em tendências como o Racionalismo, o Individualismo e o Universalismo. (cf. Rouanet: 2001, p.97). 24 Baumer (1990) admite que o século XVII é o primeiro século Moderno. A justificativa que ele apresenta para essa afirmação, reside no fato de que nesse período o nível de educação das pessoas já estava em crescimento, o que possibilitava um número cada vez maior de pessoas projetarem-se na perspectiva dos Modernos, ou seja, pensarem sua autonomia, respaldados na Racionalidade. (Baumer: 1990, op. cit. p.43). 25 Apesar de alguns autores admitirem que os humanistas do Renascimento e da Reforma não assumiram a postura, ou se autodenominaram de “modernos”, eles não negam a importância que esse período, somado ao movimento Iluminista, representou no impulso das idéias e comportamentos que se seguiram na formação e transformação do mundo, na perspectiva do “novo”, do moderno. Ao Renascimento credita-se a oposição ao saber dos escolásticos, filósofos e teólogos que dominavam as Universidades da Idade Média. O Iluminismo, nas palavras de Rouanet, foi o responsável pelos contornos da Modernidade. Tinha por base a emancipação do indivíduo pautado em um conjunto de valores e ideais, consubstanciados em tendências como o Racionalismo, o Individualismo e o Universalismo. (Rouanet: 2001, p.97) 26 Encontramos vários sentidos e referências para as palavras “moderno” e “modernidade”. Segundo Latour2000, tantos sentidos quantos forem os pensadores e os jornalistas. No entanto, para Latour2000,
Idéias, ações, reações, fusões, difusões, ou mesmo confusões, geradas da
aplicação dos princípios e diretrizes do Renascimento e do Iluminismo, são objetos de
análises e discussões de historiadores, cientistas sociais, filósofos e teóricos de um modo
geral que se interessam pelos caminhos e bifurcações que nos trouxeram os scripts da
Modernidade. Estes, abstraídos de “mentes iluminadas”, ofereciam indicadores para
interpretarmos nosso papel de sujeitos do conhecimento, sujeitos do saber, sujeitos do
fazer, enfim, para compor e montar a nossa historicidade.
O script para a Modernidade tornou-se instrumento importante no
reconhecimento da autonomia dos indivíduos, que começaram a repensar valores e
padrões e a se arriscarem na grande aventura humana de pensar e organizar sua
existência, sem depender de uma História pré-escrita e revelada por intermediários que
não conheciam a natureza do próprio autor.
Os valores e princípios forjados em dimensões inalcançáveis pelos limites
racionais passaram a ser objeto de questionamento e desconfiança. Por mais paradoxais
que representassem as informações e explicações postas pela Razão humana, na época,
exerceram influência e mudanças significativas na formação dos indivíduos,
principalmente por rever posturas e parâmetros normativos.
Além do mais, os períodos em questão ofereceram-nos interfaces entre
componentes da Racionalidade e da Irracionalidade27, inseridos em processos de
mesmo com todas essas referências, as definições ainda apontam para a passagem do tempo. As palavras “moderno”, “modernização” e “modernidade” são geralmente definidas, por contraste, um passado arcaico e estável, mas, também, sempre colocadas em meio uma briga ou polêmica onde há ganhadores e perdedores: os Antigos e os Modernos. Isto o levou a admitir que Moderno é duas vezes assimétrico: assinala uma ruptura na passagem regular do tempo e um combate no qual há vencedores e vencidos. (Latour: 2000, p.15). 27 Pretendemos dar ao termo “irracionalidade” um pouco mais de atenção, visando a atender a imposições de consistência à temática por nós escolhida. O referido termo, apesar de muito usado ainda é pouco discutido no meio acadêmico. Dedicaremos um espaço específico para aprofundar, conceitualmente, relações
aprendizagem e formação que conduziram à caracterização do mundo moderno. A
identificação do Moderno com a racionalização das ações ressaltou a importância dos
indivíduos desenvolverem sua natureza interior, incentivando-os a produzir
conhecimentos nas diferentes áreas do saber e do fazer.
Graças ao ímpeto incontrolável de descobrir-se e reconhecer-se como sujeito
responsável pelo que estava à sua volta, o indivíduo identificou-se como moderno e
sentiu orgulho em defender sua autonomia e sua individualidade, afirmando-se como Ser
do (dominante) mundo, e não simplesmente como um Ser no (morador) mundo. Essa
personalidade do indivíduo renascentista, quando transladada para o contexto
contemporâneo, torna visíveis tanto a Racionalidade, quanto a Irracionalidade com que
se alimentaram as idéias e os ideais para garantir as bases de expansão da visão
Moderna, como reforço na Ocidentalização do mundo e como Projeto de
Desenvolvimento.28
A determinação do indivíduo renascentista em buscar novos horizontes e parâmetros de
orientação no mundo possibilitou-o ir além do crescimento interior e o forçou a acreditar no
domínio do conhecimento, na criatividade, na exploração da natureza exterior, sujeita aos
caprichos de sua natureza interior, e não mais como um legado divino, revelado em
contraditórias do tipo: racional-irracional, logos-mito. Para o momento, tomaremos o termo “irracional” dentro da visão geral que o classifica como conotação negativa e contrária à aplicação dos corretos princípios e procedimentos da Razão. 28 O “Projeto Ocidental de Desenvolvimento” deverá ser tomado como resultado de interfaces históricas do Poder econômico com o Poder Político, construindo, renovando ou transformando as relações de mercado, a partir dos interesses de gerencia do capital. Nas palavras de Latouche, “a apoteose do Ocidente não é mais a presença real de um Poder humilhante por sua brutalidade e arrogância. Ela se apóia nos poderes simbólicos cuja dominação abstrata é mais insidiosa, e por isso mesmo menos contestável. Esses novos agentes da dominação são a Ciência, a Técnica, a Economia e o Imaginário sobre os quais repousam: os valores do Progresso”. Cf. Serge Latouche. A Ocidentalização do mundo: ensaios sobre a significação, o alcance e os limites da uniformização planetária. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994. p.22. (coleção horizontes da globalização). Ver também, Pires (2000), op. cit.
condições sobrenaturais, a fim de bem conduzir o povo nas questões espirituais e nas
relações materiais de sobrevivência, para ampla aliança entre o céu e a terra.
A capacidade de discernimento do Homem Renascentista por vezes o levou a assumir
posturas céticas quanto às ortodoxias, rebelando-se contra autoridades que se apresentavam
como responsáveis por suas crenças e ações. O homem do período em questão encontrava-
se ainda muito ligado ao passado clássico, embora, pela sua nova condição de sujeito
pensante, se encontrasse imbuído de uma dimensão de mundo na qual se mostrava
fortemente empenhado com a projeção do futuro.
A visão do futuro do indivíduo renascentista o tornou demasiadamente orgulhoso de sua
humanidade, consciente de sua distinção e seguro de sua capacidade intelectual para
compreender e controlar a Natureza (Tarnas: 2000, p. 305). Tal postura ganhou ênfase com
a produção artístico-cultural do Renascimento, a qual emergiu junto com os valores que
animaram o Homem Renascentista na busca de significados existenciais, a fim de
equilibrar, ou mesmo deslocar, o enfoque medieval no destino espiritual que admitia
garantias para outro mundo, e não para este.
Em Tarnas (2000)29, encontramos mostras do Homem Renascentista emergindo
de um contexto configurado pelo caos, no qual a Racionalidade e a Irracionalidade
aparecem juntas entre os escombros dos desastres, das lutas religiosas e das convulsões
sociais. A Peste Negra, a Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França, somados à
Pirataria, são exemplos na História que demonstram a ambientação favorável para
reacender mitos e crenças medievais.
29 Cf. Tarnas, Richard. A Epopéia do Pensamento Ocidental: para compreender as idéias que moldaram nossa visão de mundo. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2000. (p.247).
Por sua vez o enfoque preterido para a configuração da perspectiva do homem
moderno, neste estudo, não autoriza se fazer uma leitura do homem renascentista numa
dimensão unilateral de inventor, inovador ou precursor da Técnica e dos instrumentos
que lhe deram origem. O mais próximo que objetivamos é identificar, no processo
histórico, a partir do Renascimento, aplicações do Conhecimento Racional30 configurado
no Conhecimento Técnico-Científico, interagindo com elementos do pensamento mítico
e/ou irracional 31 estreitando, ou não, laços entre as visões de mundo, moderna e
contemporânea.
O ponto alto do contexto renascentista pode ser associado ao rompimento de valores éticos
e morais valorizados em séculos anteriores, sob a interpretação e orientação das concepções
míticas e religiosas sobre o Mundo. O impulso que proporcionou o rompimento também
serviu para incentivar a expansão de idéias e teorias que motivaram um re-direcionamento e
uma re-interpretação teórico-científica das categorias de Homem, e de Natureza.
Sobre isso Tarnas (2000) nos diz o seguinte:
como acontecera na revolução cultural da Idade Média, muitos séculos antes, as invenções
Técnicas desempenharam um papel essencial na formação da nova era. Especialmente
quatro delas [todas com precursores no Oriente] entraram em uso disseminado no Ocidente,
com imensas ramificações culturais: a bússola magnética, permitindo as façanhas da
navegação que abriram o Globo à exploração européia; a pólvora, contribuindo para o fim
da velha ordem feudal e a ascensão do nacionalismo; o relógio mecânico, fator de decisiva
30 O termo “racional”, nesse primeiro momento da discussão, deverá ser tomado na sua dimensão interpretativa mais “simples”, como uma ação articulada, mental e humana, dirigida para a sistematização e compreensão de fins determinados. Ao longo do trabalho, apresentaremos o entendimento de vários pensadores que se detiveram mais profundamente sobre o tema. 31 O conceito de irracional exige uma melhor definição. A princípio não aprofundaremos a paradoxal idéia da ação irracional, seja como algo não-racional, que se encontra fora do âmbito da razão, seja a irracionalidade, sinônimo de falha da própria razão. Parcialmente tomaremos o irracional, como um desvio da razão. Mais adiante buscaremos delimitar melhor o conceito.
mudança no relacionamento do Homem com o tempo, a Natureza e o trabalho, separando e
libertando a estrutura das atividades humanas da predominância dos ritmos da Natureza; e a
imprensa, que produziu um fabuloso aumento no aprendizado, levando tanto as obras
clássicas como as Modernas a um público cada vez mais amplo e erodindo o monopólio do
conhecimento há muito nas mãos do clero. (p.247).
As palavras de Tarnas (2000) demonstram a importância que as invenções técnico-
científicas tiveram, para os padrões de civilização da época renascentista. A partir delas se
percebe o impulso para o Desenvolvimento econômico, favorecido pelo conhecimento, pela
exploração e aplicação dos novos instrumentos da Técnica e da Ciência. A Pólvora e os
acessórios para ela adaptados viabilizaram a derrocada das estruturas feudais medievais, e
tornaram possíveis o surgimento das Nações-Estado e, conseqüentemente, o reforço das
forças seculares contra a Igreja Católica.
A Imprensa ocupou espaço, no amplo processo de difusão das idéias, disseminando a
palavra impressa, profetizando o advento do Mundo Novo. O “novo” já era estimulado nas
esferas econômica e social, pelo desejo de acumulação individual e o sentimento de
libertação coletiva, traduzidos em exploração dos insumos e a imploração por consumos.
Na esfera cultural, as leituras e as reflexões solitárias eram realizadas por uns poucos
indivíduos, que ofereciam oportunidades, teóricas e práticas, para romper as maneiras
tradicionais de pensar.
A engenhosa engrenagem que proporcionou a descoberta e o funcionamento do Relógio
Mecânico, estimulou uma visão mecanicista para se compreender, explicar e explorar o
próprio funcionamento do Mundo em suas várias manifestações. O processo de elaboração
e produção do saber teórico e prático, vinculado a alguns curiosos inventores, que
teimavam em fazer uso da imaginação criativa para resolver problemas estruturais, de
grandes e pequenas proporções, somava-se ao de outros intelectuais que, mesmo isolados
em seus pequenos mundos abstratos, pensavam estratégias para conquistar o Mundo com
seus sonhos.
Desse modo, é possível perceber que o Homem Renascentista apresentou-se
permanentemente estimulado para o novo, para arriscar-se em grandes aventuras pelos
caminhos do Saber. Aventuras que o forçaram ao alargamento da Razão, para uma
dimensão de compreensão mais precisa do Mundo e do que o punha em movimento. Tais
aventuras foram expandidas, principalmente, com uso da Bússola Magnética.
Os avanços técnicos e científicos tornaram possível avançar intelectualmente, através dos
intrincados caminhos do Mundo Natural, pouco a pouco desvelado pelas investigações
Científicas. Assim, o Conhecimento Racional aparece como resultado do aperfeiçoamento
técnico nos diferentes modos de apreensão e exploração da Natureza, articulados em prol
do avanço da invenção mecânica e da construção de equipamentos de todos os tipos.
A leitura contextual de fatores intrínsecos à formação do Homem Renascentista demonstra
que o Renascimento, longe de significar um movimento unilateral, pautado no Poder
racional e criativo da nova geração que se formava, destacou-se, fundamentalmente, pela
oportunidade criada para a releitura das idéias do contexto anterior, mesmo sem haver a
clareza no que estava por vir, ou do que lhe daria suporte.
Tarnas (2000) chegou a admitir que o Renascimento derivava da síntese de muitos opostos,
dentre os quais cita o Cristão e o Pagão, o Moderno e o Clássico, o Secular e o Sagrado,
Ciência e Religião, Poesia e Política. De onde conclui que o Renascimento foi ao mesmo
tempo uma era em si mesmo, e uma transição (Tarnas: 2000, p.251).
O conflito interior do Homem Renascentista envolveu de um lado o teológico e o místico e,
do outro, o lógico-racional. Quando colocado na perspectiva comparativa, o renascimento
revela traços de um passado solidamente fundado em valores morais fortemente voltados
para uma possível recuperação do elo perdido entre o Homem e o Mundo, e de um futuro
que se projetou e se organizou em função da superação do que existia como normatização
da condição humana no Mundo.
Os fatores acima se juntaram na composição da História Renascentista, provocando
mudanças significativas na concepção de Homem e de Mundo, o que se refletiu na
modelação da Cultura Ocidental, chegando até à Contemporaneidade, como pressupostos
ou exigências para estabelecer padrões normativos de formação ou deformação do
Moderno.
Tarnas (2000) nos ofereceu uma síntese do que representou o espírito do Homem
Renascentista para a modelação da Racionalização e Modernização do Mundo Ocidental. O
destaque encontra-se nos legados da Técnica e da Ciência, que, oportunamente, souberam
ocupar estrategicamente os espaços que antes estavam reservados ao Mito e à Religião,
para projetarem um novo sentido para o Mundo.
o novo triunfo mecânico proporcionou um Modelo conceitual básico e a metáfora para a
ciência emergente da nova era - na verdade, para toda a cultura moderna - moldando em
profundidade a moderna visão do Cosmo e da Natureza, do ser humano, da sociedade ideal
e até mesmo de Deus. (...) Esse novo valor, colocado no individualismo e na genialidade
pessoal, reforçava uma característica semelhante dos humanistas italianos, cujo senso de
mérito pessoal também se baseava na capacidade individual e cujo ideal era igualmente o do
Homem emancipado, com múltiplos talentos. (...) Marcada pelo individualismo secular, pela
força de vontade, pela multiplicidade de interesses e impulsos, pela inovação criativa e por
um desejo de desafiar as limitações tradicionais da atividade humana, esse espírito em
pouco tempo começou a disseminar-se por toda a Europa, proporcionando os traços do
caráter da Modernidade (Tarnas 2000 p. 248-251).
Alimentado por tais idéias e fundamentado na análise crítica das relações de
comunicação que orientam as ações dos indivíduos, o Homem tido como moderno
conquistou seu espaço social, elucidando alguns obstáculos que lhe surgiram no árduo
processo existencial, e, pela descoberta do seu potencial racional, pareceu assumir a direção
e os novos rumos de suas relações com o Mundo e com os outros da sua espécie. Seu modo
de pensar, agora moderno em relação aos seus antecessores, parecia seguir o rumo da
liberdade que a Modernidade32 lhe oferecia.
Nesse sentido, sob os cuidados e a orientação dos Iluministas33, a Civilização
Ocidental começou sua nova caracterização da história da Racionalidade Humana. O
indivíduo, no quadro geral dos seus conflitos existenciais, foi estimulado a chamar para si a
responsabilidade de gerenciar e administrar o caos à sua volta, ordenando-o, através da
Razão. A meta principal foi a superação de toda e qualquer crença que despertasse e
32 Existe uma ampla literatura abordando a questão da Modernidade. Mas, para a definição e contextualização do termo, preferimos utilizar Bauman (1999), que, também em nota de rodapé, nos oferece informações objetivas da Modernidade: “período histórico que começou na Europa Ocidental no século XVII com uma série de transformações sócioestruturais e intelectuais profundas, atingindo sua maturidade primeiramente como projeto cultural, com o avanço do Iluminismo, e depois como forma de vida socialmente consumada, com o desenvolvimento da Sociedade Industrial (Capitalista e, mais tarde, também a Comunista)”. Cf.Bauman, Zygmunt, Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Editora, Zahar, 1999. (Nota p. 299). 33 Autores como Habermas e Rouanet, estabeleceram uma nítida distinção entre Iluminismo e Ilustração. Para esses autores, o Iluminismo extrapola a dimensão cronológica de movimento ocorrido no século XVIII, em torno de filósofos enciclopedistas como Voltaire e Diderot. Para esse momento histórico-cultural, os autores designam o termo “Ilustração”. Ver a esse respeito, Rouanet, “Mal-estar na Modernidade”. Por outro lado, Adorno e Horkheimer, na tradução de Guido Antonio de Almeida, utilizam o termo Esclarecimento, para designar esse movimento no qual o indivíduo se esforça para vencer as trevas da ignorância. (ver a esse respeito a obra de Adorno e Horkheimer - Dialética do esclarecimento, tradução de Guido Antonio de Almeida).
alimentasse a esperança dos indivíduos com fins outros que não aqueles pautados no pleno
exercício do racional.
A visão tradicional cristã, subsidiada pela visão mítica, era pessimista em relação à
natureza do homem. Com o Renascimento e a Reforma, gradualmente essa visão cedeu
lugar a uma visão antropológica, que valorizava o homem na sua dimensão mundana,
pautada em questões existenciais que exigiam aprofundamentos introspectivos e
valorização dos conhecimentos da Ciência, da Técnica e da Cultura como princípios da
racionalização da História Humana.34
A nova perspectiva antropológica, segundo Baumer (1990), se expandiu ao longo da
História em duas direções: uma ampliava o projeto do Logos35 Racional, de origem grega,
através do conhecimento empírico e da capacidade humana para explorar a Natureza
usando as máquinas e as ferramentas que o próprio homem criou, e ainda hoje continua
criando. A via antropológica de projeção da Racionalidade humana aliou-se ao que havia de
melhor em termos de conhecimentos e métodos científicos para apreender, controlar,
explorar e compreender os fenômenos que se mostravam problemáticos aos indivíduos.
Outra tendência de projeção da Racionalidade humana enveredou pelas alamedas da psique,
em busca do conhecimento da alma humana, desvelando a engenharia psíquica das paixões
34 Baumer (1990), coloca a questão de Deus ao lado de outras quatro grandes questões – a História, o Homem, a Natureza, a Sociedade. Ao abordar a história da idéia de Deus, ele diz que a partir da Reforma essa idéia assumiu significados que variam conforme a necessidade de cada época ou tendência, até atingir seu ponto mais alto com Nietzsche, decretando a Morte de Deus. Cf. Baumer, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno. vol. 1, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro – RJ: Edições 70, 1990. p.28-30.35 Logos, palavra grega que, em sentido amplo e o mais próximo possível da nossa tradução, pode ser associada a razão. Para os gregos antigos, o Logos esteve associado ao princípio formativo do próprio mundo, assumindo conotações metafísica, religiosa, natural ou racional, dependendo da tendência ao qual se identificava o pensador. Nós estaremos tomando o termo “logos” na acepção mais contemporânea, como principio racional, pensamento ordenador, que se propõe a identificar e/ou oferecer um sentido lógico-racional ao homem e ao mundo, confundindo-se com a própria razão.
e descobrindo, através do que a põe em movimento, o ambiente no qual poderia estarem
alojadas tanto a Razão quanto sua irmã gêmea, a Desrazão.
A linha psíquica de abordagem escolheu trilhar o caminho oposto ao da luz, da Razão, ou
seja, enveredou pelo sombrio mundo das sensações, dos impulsos bárbaros e, portanto, do
irracional. Tal caminho colocou na berlinda a dimensão de lucidez e Racionalidade
enfatizadas pelo Homem Moderno (Cf. Baumer: 1990, p.31).36
Tarnas (2000), por exemplo, nos diz que comparado aos seus antecessores medievais, o
Homem Renascentista pareceu ter subitamente saltado para uma situação virtualmente
sobre-humana, salto que, segundo o autor, pela identidade com sua capacidade racional, o
autorizava a compreender os segredos da Natureza, bem como a refletir sobre outras
manifestações de identificação do Ser no mundo, como a Arte e a Ciência.37
No que diz respeito à Arte e à Ciência como duas esferas do Conhecimento, estas teriam
emergido juntamente com o Homem Renascentista, com inigualável precisão empírica e
força estética, principalmente em função da Linguagem Matemática (Cf. Tarnas: 2000, p.
246).
Desse modo, acreditamos que as categorias de Homem e de Natureza, no contexto da
Racionalização e da Modernização Ocidental, participam de um amplo leque de questões
que delineiam os caminhos de interfaces entre o Mito e a Razão, reforçando a visão
36 Estamos apenas querendo chamar a atenção para a importância de estudos paralelos visando a compreender aspectos, aparentemente, opostos aos responsáveis pelo bom desenvolvimento da Razão, dentre os quais estão em evidências as obras de Sigmund Freud, como marco para pesquisas direcionadas a compreensão da dimensão interna do Homem, considerada até então como um espaço inatingível, secreto e sombrio no que revelar das profundezas do homem. 37 Vale lembrar, aqui, referências de identidades, entre os acadêmicos, encontradas nos séculos XV e XVIII: “Cidadão da República das Letras”. Termo que servia para autenticar o costume e a cultura de indivíduos letrados, que se destacavam pelo cultivo do saber gerado, principalmente, através da troca de cartas, livros e visitas. Depois surgiram “Humanistas”, “Philosophes”, “Intelligentsia”, “Intelectual”. (para mais informação ver Peter Burke in: Uma história social do conhecimento. Rio de Janeiro - RJ: Zahar. 2003).
Moderna de Homem e de Mundo. Nesse sentido, a visão chegada à Sociedade
Contemporânea, teria raízes no crescimento interior do Homem Renascentista, pautada na
valorização da capacidade racional e da formação técnica, vinculada à criatividade, para
conhecer e explorar fenômenos manifestos na natureza externa ao indivíduo.
Por outro lado, na contextualização do pensar tomado por moderno, encontramos
conexões da capacidade dos indivíduos em racionalizar suas ações, próximo da perspectiva
mítica. O que pode ser entendido como desvio de aplicações e procedimentos relativos à
“retitude” racional, gerado pela presença da irracionalidade. Na verdade, estamos querendo
chamar a atenção para uma possível composição da Razão e do Mito, na organização do
Pensamento Moderno e sua respectiva projeção no Projeto da Modernização.
Seguiremos, no próximo tópico, com a perspectiva de aprofundar a questão acima
sugerida, usando como referência o Desenvolvimento da Racionalidade Tecnológica no
Ocidente. Nesse sentido, ressaltaremos pontos de intersecção e/ou rupturas da Técnica, da
Ciência e do Mito. A premissa que se forma em torno dessas questões, até o momento, nos
leva a identificar a Racionalidade Tecnológica em estreita relação com o que se
convencionou chamar de Progresso.
Temos claro que a estreita relação que estamos evidenciando é resultado de uma
série de fatores, teóricos e práticos, algo do tipo do Conglomerado Herdado, expressão a
que fizemos referência anteriormente, com o propósito de abarcar crenças, valores e
diversos elementos ao longo dos processos civilizatórios, que tanto podem ser objeto de
conflito quanto acomodação de teorias explicativas para a realidade e o contexto da época
em evidência.
No caso da idéia de Progresso, ela chegou a ser lema político e econômico apoiado nos
conhecimentos da Técnica e da Ciência, ambas articuladas em torno do papel da
Racionalidade, com a função de imprimir um forte ritmo ao desenvolvimento econômico e
social. Os rumos do Desenvolvimento estavam orientados pelos modernos modelos de
apreensão da realidade, respaldados no status de “caminho seguro”, conquistado pelo
método científico. Tais elementos, ao que parece, justificam uma incursão por esses
caminhos. Eis, portanto, nosso mote analítico para o próximo tópico.
3. A re-orientação Técnica e Científica no Desenvolvimento Ocidental.
Seguiremos como orientação, neste tópico, o movimento de expansão da
Racionalidade Moderna e do Desenvolvimento Técnico-Científico, como contribuições
para a continuidade do processo de Modernização. A referência para discorrer sobre as
questões inerentes à Racionalidade será a que predominou nos séculos XX e XXI. De
tais períodos, destacaremos fatores constituintes do perfil mítico-ideológico, já iniciado
nos tópicos anteriores, mas reforçando evidências do que se convencionou como “crise
da Razão Contemporânea” e uma possível ruptura com a Modernidade.
Na seqüência, abordaremos questões conceituais da interface racional-irracional,
procurando delinear configurações do Pensamento Mítico com o Conhecimento
Técnico-Científico numa possível fusão com a esfera Econômica. Tal fusão representa
uma forte parceria do Mito e da Razão, para compor uma trama Mito-Tecno-Lógica,
cuja função seria a de acomodar conflitos de ordem política, social e cultural, a fim de
solidificar as bases do Sistema Capitalista Contemporâneo.
Na perspectiva acima proposta, a Ciência, no que se afirma como caminho metodológico
para o Conhecimento verdadeiro e seguro, respalda a identidade do sujeito cognoscente e
descarta as estratégias que se pautam em explicações míticas ou religiosas, para conhecer,
explorar e qualificar a natureza interna e externa ao indivíduo. Com isso, as estruturas
lógicas e metodológicas se organizam em torno do Conhecimento Científico, visando a
desfazer a confusão Homem-Mundo, numa intensidade que extrapola os limites da
Racionalidade humana.
Outrossim, a Ciência, no modelo acima descrito e reforçada pelo rigor metodológico,
alimentou a via interpretativa que assegurava ao sujeito, o direito, na forma de caminho
metodológico, e o poder, no nível ideológico. Por essa via, era possível acessar diretamente
o objeto (significando aquilo que está fora do sujeito) e, através de ações racionalizadas,
explorá-lo, conhecê-lo e dominá-lo.
Por outro lado, enquanto a Ciência tratou de tornar o objeto menos perigoso e, portanto,
cognoscível, o Mito investiu no desconhecido, ou seja, em esconder os detalhes e os
fundamentos do que se apresentava como fenômeno. Desse modo, o Mito se encarregou de
difundir apenas os contornos do que pode ser apreendido pela Razão humana. O resto ficou
a cargo da imaginação e da criatividade, que fomentaram a curiosidade e o desejo de
aventurar-se em busca do conhecimento mais próximo da verdade possível.
Voltando para a discussão central, o Mito e a Razão, apesar de contraditórios entre si,
parecem participar e reforçar a relação dicotômica sujeito-objeto. Essa relação ganhou
importância como caminho interpretativo no processo de Racionalização, pela extensão de
outro nível de relação: Homem-Natureza.
Pragmaticamente, a relação acima representou ganhos significativos para a Racionalidade
humana, por inserir-se no conjunto dos instrumentos e processos do conhecer, que
impulsionaram o “avanço” estratégico e metodológico, ao mesmo tempo que redefiniram o
comportamento e a postura dos indivíduos frente ao desconhecido.
Com isso, estamos querendo dizer que o Mito e a Razão acompanharam os níveis de
relações que se apresentaram como caminhos interpretativos nos diversos estágios do
Processo Civilizatório,38 na medida e na proporção da projeção das idéias, teorias e
conhecimentos que se apresentaram e se identificaram como modeladores de
comportamentos.
Tais modeladores eram organizados por meio dos produtos e processos da aprendizagem,
objetivados na estruturação do contexto social que se mostrava como resultado dos
conflitos de interesses dos grupos mais articulados.
De outra forma, mas, ainda no contexto das idéias abstraídas do recorte
histórico dos séculos XX e XXI, passaremos a analisar aspectos da Revolução
Eletroeletrônica e Tecnológica, e o que dela nos foi legado como forma e conteúdo. A
ênfase será para o desvio dos princípios da Racionalidade e da Modernidade efetuado
em nome da exploração econômica, a fim de estimular o desejo e as expectativas com
os novos direcionamentos para a Racionalização e a Modernização Contemporânea.
Acreditamos que entre as questões que influenciaram diretamente a relação
Mito-Razão, a Técnica e a Ciência foram, no nosso entendimento, as áreas do
Conhecimento que mais ofereceram subsídios para estreitar a relação. Na
38 O termo “Processo Civilizatório” é empregado aqui com o sentido de influência da Cultura Ocidental nas outras culturas, impondo seu nível de tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua
Contemporaneidade, os laços ficaram ainda mais estreitos pela fusão da Tecno-
Ciência na Tecnologia, atualizando o que temos de mais evidente, nas relações Mito-
Razão, Racionalidade-Irracionalidade, em nome da Modernização.
Mais adiante, tomaremos para reflexão mais aprofundada aspectos dessa
temática que deram formas e conteúdos a estratégias mais ambiciosas do
conhecimento e da informação sobre o homem e o mundo. Contudo, apenas
antecipamos indicadores que revelam o estreitamento entre os níveis da Razão e do
Mito no binômio, Racionalidade-Irracionalidade.
Para tal, referimo-nos aqui ao destaque que tiveram a Técnica e a Ciência
como estruturas geradoras e aglutinadoras de conhecimentos e experiências, a serviço
do jogo de interesses que estimulou ações com conotações de “avanço”, tanto da
Racionalidade quanto da irracionalidade humana. Esses elementos aparecem
configurados na difusão da idéia de Progresso e Desenvolvimento, que a perspectiva
Ocidental adotou como estratégia de Modernização.
O século XIX e o inicio do século XX foram uma época de crise, um tempo em que as
pessoas se deixavam impressionar pela tecnologia e viajavam grandes distancias para
se maravilhar com os motores a vapor nas feiras mundiais, um tempo em que os
artistas pintavam as novas forjas e fornalhas em dimensões romanticamente
aumentadas.(...) a combinação de grandes dimensões e alta complexidade, associadas
aos sistemas tecnológicos praticamente garantia que as catástrofes ocorreriam com
freqüência bem menor do que nos séculos anteriores.(...) à medida que os desastres
eram controlados no Ocidente (...) os próprios meios para preveni-los às vezes criavam
o risco de desastre ainda maiores no futuro. Além disso, esses novos problemas eram
cultura científica ou sua visão de mundo (Ver a esse respeito, Norbert Elias In: O processo civilizador. Rio de Janeiro-RJ: Zahar.1994. p. 23.vol. 1).
freqüentemente de natureza gradual distribuída e, portanto, muito mais difíceis de
resolver do que os problemas agudos, localizados (Tenner 1997:p.32).39
O desenvolvimento técnico e científico, pelo que vimos, esteve muito presente
no Projeto de Colonização implementado pelo Ocidente, para expandir não apenas os
limites geográficos de sua extensão territorial, mas, principalmente os limites da
Racionalização Econômica que fornecia as bases estruturais dos rumos da
Modernização.
A idéia de colonização, por exemplo, foi objeto de implementação pelos países
ditos desenvolvidos, visando a forjar uma pseudoautorização internacional, que os
permitisse destruir territórios ou roubar a identidade cultural dos países
subdesenvolvidos ou emergentes. As guerras e as imposições econômicas, políticas,
culturais e sociais foram amplamente utilizadas como instrumentos de Poder e
soberania entre povos e nações (muito presente ainda hoje, no cenário internacional).
Todo o cenário acima sugerido foi montado e desenvolvido em nome da
Racionalização e Modernização do mundo, os quais se faziam urgentes e necessárias
como erradicação da barbárie e do respaldo que o Mito lhe proporcionava. O “novo”
despontava como modelo ideal de Civilização apontado pela Ciência e Tecnologia
como o melhor e o mais racional dentre os modelos até então concebidos pela raça
humana.
Para Tarnas (2000), a Ciência se desenvolveu assumindo uma representação do
Conhecimento Objetivo que a projetou para a Contemporaneidade como salvadora da
Cultura Moderna. Essa representação da Ciência, já assinalada anteriormente, a
39 Tenner, Edward. A vingança da tecnologia: as irônicas conseqüências das inovações mecânicas, químicas,
caracterizou como caminho metodologicamente seguro para alcançar certezas
epistemológicas e facilitar o processo de objetivação do mundo. Isso tudo graças aos
“Poderes” advindos com os avanços da previsibilidade de suas ações e pela
“transparência” na manipulação dos dados experimentais que impulsionavam o “controle”
da Natureza (Tarnas: 2000, p.306).
É interessante observar que, apesar das conquistas científicas indicarem uma certa
“segurança” nos produtos da Ciência e da Tecnologia e gerarem uma crescente onda de
aceitabilidade do discurso apresentado como técnico e científico, ainda é grande o medo,
o receio e o distanciamento, da maioria da população, em se envolver pelos intrincados
caminhos do Conhecimento Científico.
Mesmo sem entrar em detalhes, observamos que a questão acima está diretamente
associada a uma postura consciente e intencional da comunidade científica, que vincula
saber e poder, atribuído ou conquistado, como modo de delimitar o que é, e o que não é,
científico. Ao que nos parece, o invólucro que recobre o conjunto de tais ações no
contexto da Modernização escapa aos limites da Racionalização e entra pelos caminhos
da Mitificação, seduzindo muitos dos que tentam se aproximar para romper os limites do
seu próprio conhecimento.
Para o momento, o que nos interessa é ressaltar que o sentido e a necessidade de ordem,
inerente ao exercício da racionalidade humana, parecem haver estado junto aos
sentimentos de medo e submissão aos mistérios do desconhecido. O que serviu e ainda
hoje parece servir de conteúdo ideal para construções criativas, que inventam ou
reinventam Mitos e os expõem através de mirabolantes narrativas.
biológicas e médicas. Rio de Janeiro: Campus, 1997. (p.32).
A combinação Mito-Razão foi explorada durante muito tempo mais como jogo de
contrários do que como partes distintas de um mesmo fenômeno. O que estamos
querendo inserir na discussão é um outro grupo de contrários que reforçou e redefiniu
direcionamentos de visões dicotômicas, em vários momentos do Processo Civilizatório,
tais como Mito-Razão, Homem-Natureza, Sujeito-Objeto, Ciência-Senso Comum, etc.
Estamos nos referindo a categorias conceituais, aparentemente contrárias entre si, que se
fazem presentes em todas as esferas de organização coletiva dos indivíduos: saber e
poder.40
Para efeito de aproximação conceitual, adotaremos para o binômio saber-poder a mesma
conotação com a qual esteve associada durante vários períodos da Racionalização
Ocidental. Ou seja, associada ao Conhecimento e à Dominação. Nessa perspectiva e
dentro do legado que nos chegou, concebemos o binômio em evidência, adequando-se
aos novos símbolos e modelos de comportamentos sociais, graças ao discurso técnico e
científico adotado como instrumento comunicativo essencial para o projeto de
modernização contemporânea.
No entanto, ao retroceder na História da evolução humana, encontraremos traços da
adequação, acima sugerida, inscritos nas ações aplicadas nos primórdios do modelo de
dominação proposto pelo Ocidente, implícitas nas políticas de Colonização, que foram
efetivadas em nome do Desenvolvimento Econômico. O contexto oferecia uma
perspectiva de futuro, na qual a
40 No momento, estamos usando essas expressões no sentido mais amplo que o termo possa oferecer: Conhecimento, Dominação, Experiência Individual, Exploração Comercial visando a lucro excedente, Conhecimento Técnico e Científico como visão de mundo superior, a qualquer outra interpretação, etc.
Europa seria a fábrica do universo, enquanto o resto do mundo seria fornecedor de
matérias-primas e produtos primários. Considerava-se que esta divisão ‘espontânea’
do trabalho correspondia aos dotes naturais de recursos de cada parceiro e oferecia
vantagens para todos. Ela jamais teria existido ‘naturalmente’ se a ordem colonial e
imperial não tivesse instituído pela violência aberta (abertura de mercados a tiros de
canhão, culturas obrigatórias) ou pela violência simbólica (intimidação, sedução).41
O fato histórico, acima descrito, nos permite perceber além da preocupação com a
extensão territorial, o caráter de trocas comerciais de mercadorias que passaram a ser
intensificadas a partir da segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento da
indústria na Europa.42 Esta, por sua vez, trouxe junto o processo extremamente rápido da
produção, transformando a estrutura básica do mercado internacional, passando da
esfera da circulação de mercadorias para a da produção.43
Começara, portanto, o processo de consolidação e independência (ou interdependência)
valorativa da Racionalização Ocidental. Contudo, o Mito, para usar uma expressão
mercantilista, a outra face da moeda, ou a outra face do fenômeno, assumiu a forma da
Modernização do mundo, sob o discurso inovador da Ciência e da Técnica. A
consolidação do processo foi assegurada pelo cultivo do que ainda havia sido semeado
pelo colonizador, nas descobertas do Novo Mundo.
41 Latouche, Serge. A ocidentalização do mundo: ensaios sobre a significação, o alcance e os limites da uniformização planetária. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994. p.22. (coleção horizontes da globalização). 42 O início da Indústria Moderna foi possível graças a pelo menos dois fatores: a existência de capital acumulado (boa parte conseguido com saques e explorações em diversos níveis) e a existência de uma classe trabalhadora livre, sem propriedades (resultante em sua grande maioria dos fechamentos de terras e elevação dos arrendamentos). Andery. Op. cit. P.165. 43 Ver a esse respeito, Anita Kon. “Tecnologia e trabalho do cenário da globalização”. In: Desafios da Globalização. Petrópolis-RJ: Vozes, 1998. (p. 62). Ela aponta esse processo como movimento de transformação e internacionalização do capital financeiro, resultando na acumulação de capital nos Bancos, os quais unindo-se às empresas no processo produtivo, passaram a atuar, não apenas como intermediários, mas como monopolistas do capital-dinheiro, de meios de produção e de matéria-prima em vários países.
No giro da roda do mundo, renovaram-se, estrategicamente, as relações de exploração.
Para o que antes era senhor-escravo, tomou a forma do binômio patrão-empregado.
Alteraram-se, também, as formas e os instrumentos de dominação: a terra, o chicote -
símbolos visíveis do poder -, deram lugar à indústria, aos produtos eletroeletrônicos,
como instrumentos de um saber e de um saber-fazer, da Ciência e da Técnica.
A perspectiva mítica, para acompanhar os mesmos padrões de mudanças acima
apresentados, trocou a distante linguagem sagrada dos deuses do Olímpo, que expunha
claramente o poder e o capricho dos deuses sobre homens, ainda que metafórico; por
uma linguagem mais sutil, liberal, com característica mais mundana, escondendo
princípios de uma dominação autoritária, sob disfarces democráticos.
Esta apoteose do Ocidente não é mais a presença real de um Poder humilhante por sua
brutalidade e arrogância. Ela se apóia nos poderes simbólicos cuja dominação abstrata é
mais insidiosa, mas por isso mesmo menos contestável. Esses novos agentes da dominação
são a ciência, a técnica, a economia e o imaginário sobre o qual elas repousam: os valores
do progresso.44
A dicotomia saber-poder, disseminada nas relações do saber da Ciência e do saber-fazer da
Técnica, desenvolveu-se semelhante à interface atribuída ao binômio Mito-Razão. Ou seja,
projetou-se em íntima ligação com o Desenvolvimento Ocidental. O poder, intrínseco às
transformações técnicas e científicas, forçou o surgimento de formas mais sutis de
dominação, fortalecendo a parceria com o saber, subsidiando (ideologicamente) o discurso
técnico-científico, que, por sua vez, servia para respaldar (metodologicamente) as
44 Latouche: 1994, p.26.
estratégias necessárias ao exercício, permanência ou continuidade que o status do Poder
exigia.
Sabemos, pela História do conhecimento humano, que a Razão humana ganhou impulso e
poder através da Linguagem Matemática, ao desvelar os segredos dos deuses e possibilitar
a descoberta do Novo Mundo, numa versão menos sagrada e mais profana. Indivíduos
como Platão, Galileu, Descartes, Newton e outros, grandes pensadores, acreditaram na
Linguagem Matemática e, através dela, se empenharam na construção de sistemas que
possibilitaram ampliar uma possível ruptura entre o Sagrado e o Profano, o Racional e o
Irracional, o Mito e o Logos.
Desse modo, a relação Homem-Natureza passou a ser conduzida pela Ciência, que assumiu
o papel de protagonista na reorientação do Mundo. Mas o que dizer das tendências míticas,
religiosas ou irracionalistas? A projeção da Ciência, como instrumento de elevação do
espírito humano, e portadora da verdade sobre o Mundo, aboliu de fato outras
interpretações? Ou, para admitirmos uma opinião mais moderada, a ruptura entre os
Modelos interpretativos da realidade foi apenas de caráter momentâneo, considerando o
grande período de predomínio das interpretações mítico-religiosas?
O fato é que, a ênfase demasiada na Razão pareceu-nos ter projetado, também, sua
mitificação. Ou seja, o projeto de reorientação do mundo, implementado pela
Racionalidade Técnica e Científica, ao tentar romper em definitivo com as interpretações
mítico-religiosas, foi supervalorizado e, por vezes, assumido com conotações de divino.
As regras lógicas e simbólicas que constituíram o espírito matemático passaram a
ser estrategicamente configuradas como métodos e instrumentos pelo quais o indivíduo
Poderia purificar-se dos valores profanos, e construir, racionalmente, um modelo de
compreensão do mundo.
Na verdade, a breve referência acerca da supervalorização da Razão em sintonia
com a visão mítica, que aqui estamos ressaltando, nos servirá apenas de pretexto para
introduzir a idéia, ainda em forma de hipótese, de que a perspectiva cientificista, intrínseca
ao projeto de Modernidade, não aprofundou o jogo dicotômico dos pólos, Mito-Razão,
Racional-Irracional. Antes, parece tê-lo unificado ainda mais, ou, até mesmo, servido de
base na formação do que se projetou para o Homem Moderno.
A hipótese acima apresentada parte do pressuposto de que a formação do
Pensamento Moderno Ocidental teve como base um conteúdo racional, resultado de uma
Razão constituída historicamente, e uma forma mítica, configurada pela ênfase demasiada
nos métodos e nos instrumentos de produção do Conhecimento.
Desse modo, o conteúdo e a forma do Conhecimento, convertido em modelo do
Pensar Moderno, representado pela Razão Instrumental, avançou como Racionalização do
Mundo e ganhou espaço no Desenvolvimento Econômico, Social e Cultural. Tal dinâmica
passou a adotar os padrões, o rigor e a precisão do método científico como estratégia de
legitimação do Poder e do Modelo Ocidental de Desenvolvimento.
Próximo do que estamos sugerindo, temos a Matemática que, depois de ganhar “status” de
linguagem exata e formal, capaz de decifrar os enigmas tanto dos deuses quanto dos
homens, serviu de suporte metodológico para a atividade Científica e reduziu toda a
complexidade da ordem cósmica às leis da Lógica.
Com isso, o Homem deixou de temer a Natureza e passou a submetê-la aos seus
mais escrupulosos caprichos, em nome do Desenvolvimento Econômico, Social e Cultural.
Tal Desenvolvimento, por sua vez, foi difundido como a mais pura manifestação de
superioridade do Logos.
O método científico gerou atitudes mecanicistas também no pensamento político da Europa
dos séculos XVII e XVIII. O conhecimento da lei universal da aceleração, por exemplo,
levou as pessoas a achar que o progresso da sociedade também se aceleraria com o passar
do tempo. Regularidade e uniformidade tornaram-se a marca da sociedade ‘moderna’. Na
Inglaterra, a posição financeira da monarquia foi regularizada e feita uniforme, por meio de
um salário real, e os assuntos nacionais passaram a ser codificados e monitorados pelo
primeiro banco nacional (Burke: 1998, p.182).45
A necessidade vinculada ao interesse no aumento da produção semeou o campo
para o cultivo da criatividade e da técnica. Essa conjunção de possibilidades somadas a um
conjunto maior de fatores contextuais desencadeou uma série de invenções e reações que
mudaram a dinâmica, os hábitos e os valores do homem moderno. Entrava em cena a
máquina, com o papel específico de substituir a força motriz, gerada pela energia humana,
por outras fontes de energia no processo de produção.
Com isso, a ferramenta foi retirada das mãos do trabalhador e passou a fazer parte
da máquina, rompendo-se, assim, a unidade entre o trabalhador e sua ferramenta.
Fragilizava-se, portanto, o sistema manual, a manufatura, em nome do sistema mecânico: o
fabril.
Com a introdução da máquina, elimina-se a necessidade seja de trabalhadores adultos
resistentes, seja de operários especializados e hábeis, uma vez que o operário nada mais tem
a fazer senão vigiar e corrigir o trabalho da máquina. Há, assim, uma maior desqualificação
do trabalho operário, que não mais precisa passar por uma longa aprendizagem para exercer
sua função: como conseqüência, torna-se possível a utilização de mão-de-obra não
45 Burke, James e Ornstein, Robert. O presente do fazedor de machados: os dois gumes da história da cultura humana. Rio de Janeiro – RJ: Bertrand Brasil, 1998.
qualificada (principalmente mulheres e crianças). (...) o trabalhador perde o controle do
processo de trabalho. É ele quem se adapta ao processo de produção. A máquina determina
o ritmo do trabalho e é responsável pela qualidade do produto (Andery: 1988, p.168).
Assim, o moderno modo de pensar, organizado sob a ótica do Iluminismo, se
projetou dentro das novas orientações culturais. O capitalismo, enquanto sistema
econômico, disponibilizou os recursos necessários para solidificar o processo de
Modernização e preparou o melhor ambiente futurista para a exploração e a difusão dos
produtos tecnológicos.
Na verdade, a sintonia entre o Saber e o Poder, estabeleceu laços mais fortes e
consistentes quando ocorreu em função de um terceiro elemento: a Economia. Formou-
se desse modo o tripé responsável pela expansão e consolidação do Mito no processo de
Racionalização Ocidental.
O Desenvolvimento é a aspiração ao Modelo de consumo Ocidental, ao Poder da magia dos
Brancos, ao status relacionado a esse modo de vida. O meio privilegiado de realizar esta
aspiração é, evidentemente, a Técnica. Aspirar ao Desenvolvimento quer dizer comungar com a
fé na Ciência e reverenciar a Técnica, mas também reivindicar por conta própria a
Ocidentalização, visando ser mais Ocidentalizado para se Ocidentalizar ainda mais.46
Assim, o Capitalismo se firmou como parceiro no processo de Racionalização e
Modernização Ocidental, instrumentalizando e incorporando a própria dinâmica, na qual
implementaria, ou acomodaria, as novas orientações para o Desenvolvimento econômico e
social, modelando e inovando estrategicamente as relações entre o capital e o trabalho,
agora com o apoio da Racionalidade Tecno-Científica.
É possível encontrar em Marx47 uma leitura das implicações que tal simbiose
reservava ao Homem Moderno.
no processo de produção o homem, intermediário entre a natureza e o produto, através do
fornecimento de uma mediação que consistia essencialmente na utilização da sua própria
energia de trabalho, será pouco a pouco substituído pela máquina e pelo instrumento,
passando a ser a própria natureza, ou como diz Marx, ‘o processo de produção industrial’, a
força de trabalho colocada entre a natureza e o produto fabricado (...) O que é essencial, do
ponto de vista sociológico e tecnológico, é que o homem fica ou se coloca acima do
processo de produção que ele dominou, preenchendo apenas na produção a função de
vigilante ou controlador, e não mais de fonte de energia ou de força de trabalho, e
desempenhando o papel de planificador, uma vez que dominou o processo natural, isto é, as
suas leis (p.26).
A nova configuração social advinda do rápido processo no qual se propagaram
Modelos racionais de interpretações do mundo reforçou a posição de superioridade do
Homem em relação à Natureza fora dele, em relação aos outros homens e em relação a si
próprio, posto que atingíamos o ponto no qual o próprio homem se espantava com seus
feitos. Uma pequena amostra do espaço e do Poder que a Razão passou a ocupar na
sociedade.
Era o sinal da chegada dos novos tempos.48 Tempos modernos em que a
Racionalidade Técnica e Científica, agora com o apoio direto do capital financeiro, reinaria
soberana sobre a Terra. A expansão dos processos da Racionalização Técnica e Científica
46 Latouche: 1994, p.29. 47 Marx, Karl. Conseqüências sociais do avanço tecnológico. Trad. Rudi Supek. São Paulo: Edições Populares, 1980. 48 Em Habermas (1998), encontramos referências a Hegel, como tendo sido o primeiro a usar a expressão “tempos modernos” e “novos tempos”, para exprimir uma consciência histórica, uma convicção de que o
tornava-se inevitável ao Progresso e a todos que desejavam um lugar à “sombra” (para não
esquentar muito o juízo).49
O método científico gerou atitudes mecanicistas também no pensamento político da Europa
dos séculos XVII e XVIII. O conhecimento da lei universal da aceleração, por exemplo,
levou as pessoas a achar que o progresso da sociedade também se aceleraria com o passar
do tempo. Regularidade e uniformidade tornaram-se a marca da sociedade ‘Moderna’. Na
Inglaterra, a posição financeira da monarquia foi regularizada e feita uniforme, por meio de
um salário real, e os assuntos nacionais passaram a ser codificados e monitorados pelo
primeiro banco nacional. 50
Assim, a Racionalização Técnica e Científica ganhou aliados em todos os campos
sociais, adotada como método e linguagem de compreensão das relações envolvendo o
Homem e a Natureza. Na direção social e política, encontramos em Burke (1998) uma
interessante referência ao filósofo Inglês John Locke.51 Este, segundo o autor, propôs
aplicar as leis mecânicas da Ciência Moderna à normatização do funcionamento das
futuro já começara. “O espírito da época caracteriza o presente como uma transição que se consome na consciência da aceleração e na expectativa do que há de diferente no futuro”. Cf. Habermas: 1998, p.17). 49 Essa relação que vemos ser articulada entre Racionalidade técnica e científica e o capital financeiro, será o principal vetor de organização e desenvolvimento do processo civilizatório que se seguirá, principalmente porque, como nos faz ver Burke (1998), o capital era um tipo novo e excitante de instrumento pelo potencial aparentemente ilimitado de auto-crescimento, fato que estava perfeitamente de acordo com o novo conceito científico de universo infinito e que agora trazia junto, em uma nova dinâmica, a Ciência e o Capitalismo. Cf. James Burke & Robert Ornstein.O presente do fazedor de machados. Rio de Janeiro - RJ: Bertrand Brasil, 1998, p.196. 50Idem. Burke: 1998, p.182. 51 John Locke (1632 -1704), de origem social burguesa, defendeu dentre outras coisas o Liberalismo e uma Monarquia Parlamentarista. Preocupado com a questão dos fundamentos do entendimento humano, enveredou numa tentativa de relacionar objetivamente noções de Política e de Religião. Tais noções levaram esse filósofo a desenvolver teses reconciliadoras entre leis universais descobertas pela Ciência, necessárias à compreensão e domínio da Natureza, com ânsia de lucro que vinha sendo estimulada pela harmonia que se estabelecia entre a Racionalidade Técnica e Científica e o Capitalismo. Locke, acreditando que o mundo fora evidentemente construído de acordo com a Ordem e a Razão, admite que a Lei Natural teria sido planejada por Deus, para o aperfeiçoamento e a preservação da Humanidade. Desse modo, Locke conclui que as leis sociais e o governo deveriam agir imbuídos do espírito de preservação da existência ordenada do indivíduo. O que implica assegurar que o interesse próprio esteja voltado para a preservação da propriedade privada. “o maior e mais fundamental objetivo (...) dos homens se unirem em comunidades econômicas é a preservação da propriedade”. Cf. Burke: 1988, p.197.
sociedades. Algo que Locke admitia ser possível, graças a uma lei natural e social que
governasse tanto os assuntos relacionados aos homens, quanto os de natureza física ou
mecânica.
Segundo Burke (1998), a lei advogada por Locke tomava como princípio básico a
ordem do mundo sendo regida pelo mesmo interesse que movia o comportamento dos
indivíduos. E cabia ao Estado a boa condução dos interesses em jogo.
O único objetivo do governo deveria ser o de assegurar que nada restringisse a força natural
do interesse próprio. Dado que sua expressão mais comum era a propriedade privada, a
principal responsabilidade do Estado deveria ser então protege-la, deixando livres os
cidadãos para se concentrarem no aumento da riqueza. (...) a tendência natural daqueles que
possuíam propriedades seria a coexistência, de tal modo que a busca de interesse próprio
fosse, por conseguinte, iluminada pela comunidade e voltada para a maximização do bem
individual e comum através da aplicação da ciência ‘útil’.52
A intenção suposta na citação acima se constituiu como ponto alto da extensão das
idéias de Locke e da própria lógica de expansão da Racionalidade Técnica e Científica.
Encontramo-la configurada em dois símbolos e parâmetros do Modelo de Modernidade
Contemporânea: o nascimento da nação dos Estados Unidos e o conjunto das leis nas quais
se respalda essa Nação.
Para Burke (1998), a linguagem que modela e dá consistência Moderna à
Constituição assemelha-se à linguagem de laboratório, em que uma sociedade racional e
livre deve ser edificada sobre a base das leis naturais, do consenso e das verdades auto-
evidentes. Talvez, por isso, os Estados Unidos estejam, hoje, associados ao Mito da
52 Burke:1988, p.183.
Modernidade, e apresentem-se ao mundo como a Poderosa Nação Contemporânea. (Burke
1998, p.183).
O fato, é que o Método Científico, vinculado às invenções técnicas produzidas em escala
maior e aplicado a todas as áreas do saber, passou a ser cultivado como valor prático,
moral, intelectual e racional, para novas conquistas do indivíduo. A mecanização dos
processos, a quantificação dos valores, a precisão dos resultados, a inovação dos produtos,
a matematização da linguagem, a experimentação como saber e a cientificidade como
Poder começaram a aparecer, no conjunto da formação do indivíduo, como categorias
essenciais na modelação do Pensamento Moderno.
O ritmo mais intenso das mudanças, ao mesmo tempo em que revelou a audácia
humana em avançar no processo de racionalização e modernização, imprimiu uma certa
comodidade ao indivíduo, que passou a ficar à mercê das intensas e ousadas inovações da
Ciência e da Tecnologia, as quais delinearam com mais sistematicidade e rapidez o amplo
processo de Modernização que chegou até nossos dias.
Com isso não estamos querendo negar a necessidade de se investir nos projetos
tecnológicos. Apenas estamos ressaltando fatores que vieram junto com as novas
perspectivas da Modernização, implementados sem uma prévia formação para conviver
junto aos novos instrumentos.
De modo geral, o fio histórico que nos trouxe até à nossa condição humana
contemporânea possibilitou percebermos o desenvolvimento de uma formação social e
cultural de vários períodos civilizatórios, traduzindo os “avanços” de modelo de
Modernização, que congregou traços da Racionalidade e da Irracionalidade, em um amplo
movimento de transformações que se formou paralelamente.
Assim, a tentativa de conhecer, ainda que sem saber o quê, fez o homem descobrir e
assumir a postura de morador do mundo. À medida que passou a se sentir mais seguro no
mundo, o indivíduo percebeu que Poderia ser, além de morador, também, criador,
administrador, explorador, destruidor, defensor (?), dominador, etc. Essa descoberta faz,
ainda hoje, a diferença na dinâmica das relações estabelecidas entre o indivíduo e os outros
da mesma espécie, e, entre ele e a Natureza que lhe é exterior.
É em nome de uma ordem e de um progresso para o mundo que o homem apresenta
ao mundo e aos outros homens (aqueles que não conseguiam perceber esse sentido do
mundo e “naturalmente” foram ficando para trás) o sentido que melhor lhe convém. Esse
sentido passou a ter também um outro sentido: o da legitimidade da força, da soberania.
Quando, num passado remoto, saímos da África e começamos a abrir nosso caminho
através do planeta, guiados por chefes tribais cujos instrumentos de fazer machados
lhes conferiam Poderes de corte-e-controle sobre o mundo, não percebíamos (ou não
cuidávamos) o quão próximos já estávamos do fim da jornada. Por dezenas de
milhares de anos, continuou sendo a prática geral usar os presentes dos fazedores de
machados para tirar do mundo tudo o que queríamos sem dar nada em troca. Um
nível de vida sempre mais elevado era tudo o que importava..(...) O resultado é que
somos hoje, nos países industrializados, mais saudáveis, mais ricos, mais bem
alimentados, mais informados e mais móveis do que qualquer ser humano jamais foi. E
o fato de o progresso ter trazido em seu rastro um certo grau de devastação não nos
deve surpreender, porque à medida que progredíamos, destruíamos”. 53
Assim, o que se convencionou chamar de ordenação, ou sentido do mundo,
encontra-se, hoje, vinculado tanto às necessidades existenciais dos indivíduos,
53 James Burke e Robert Ornstein. “O presente do fazedor de machados”: os dois gumes da história da cultura humana. Rio de Janeiro -RJ: Bertrand Brasil, 1998, p.16
traduzidas no conhecimento adquirido com a tentativa de superação dos medos,
angústias e expectativas diante do desconhecido, como também, às necessidades
circunstanciais, forjadas pelos indivíduos de acordo com seus interesses individuais,
em sintonia com a ignorância e/ou a ingenuidade coletiva, sobre a qual se demarcam
espaços e se demonstra poder.
A ordenação e o sentido aos quais nos referimos grosso modo podem ser
tomados por uma ordem mundial, identificada pela obsessiva marcha da Ciência e da
Tecnologia sobre outras áreas do saber, promovendo através do fazer de suas
pesquisas e dos produtos que apresenta ao mercado uma intensa onda de Mitificação
da realidade.
Essa mitificação é justificada por uma “pseudonecessidade” gerada dos
encantos com as maravilhosas invenções tecnológicas, construídas inteiramente para o
consumo em nome do prazer, da segurança, do conforto, e também, do conhecimento
e do domínio completo do homem moderno sobre a Natureza.
Ao que nos parece, a sutileza no processo de institucionalização da dominação
passou a ser pressuposto das sociedades racionalizadas. Através da Técnica e da Ciência,
foi possível acomodar o grau das incertezas quanto ao futuro que se projetou. O projeto de
Racionalização das relações de produção, tecnicamente organizadas e objetivamente
conhecidas, passou a oferecer os produtos tecnológicos que serviram de suporte material
para uma sociedade que se identificava pelo que consumia e, por isso mesmo, acreditava
estar gozando, já no presente, de sua inteira plenitude racional.
Habermas (1997), em sua obra “Técnica e Ciência como Ideologia”, numa
referência ao pensamento de Marcuse, nos mostra que...
(...) À medida que aumenta a sua eficiência apologética, a “racionalidade” neutraliza-se
como instrumento de crítica e rebaixa-se a mero corretivo dentro do sistema; a “única coisa
que assim ainda se pode dizer é que, no melhor dos casos, a sociedade está “mal
programada”. Por conseguinte, ao nível do desenvolvimento técnico-científico, as forças
produtivas parecem entrar numa nova constelação com as relações de produção: já não
funcionam em prol de um esclarecimento político como fundamento da crítica das
legitimações vigentes, mas elas próprias se convertem em base da legitimação. Isto é o que
Marcuse considera novo na história mundial.54
Nesse sentido, podemos dizer que os méritos obtidos pelo método científico em
vários períodos do Desenvolvimento humano, no trato da apreensão dos princípios gerais
da Natureza, acrescidos da trajetória que possibilitou à Lógica e às Ciências da Matemática
na precisa manipulação dos dados, foram transferidos para as relações de produção. A
eficácia no domínio da Natureza chegou ao social através da instrumentalização dos
processos produtivos e a precisão nos modos de produção.
Os fatores acima descritos, associados à metodologia científica, proporcionaram um
alto grau de aceitabilidade do domínio tecnológico nas sociedades, visto que geraram uma
eficiência na condução do programa de consumo e uma credibilidade Técnica para a
legitimidade política do sistema. Tudo isto ganha corpo pelas teias de uma dominação
eficiente do homem sobre os homens, sendo ampliada não só através da tecnologia, mas
também, enquanto tecnologia.
(...) a tecnologia proporciona igualmente a grande racionalização da falta de
liberdade do homem e demonstra a impossibilidade 'técnica' de ser
autônomo, de determinar pessoalmente a sua vida. Com efeito, esta falta de
54 Habermas: 1997, p.48.
liberdade não surge nem irracional nem como política, mas antes como
sujeição ao aparelho técnico que amplia a comodidade da vida e intensifica a
produtividade do trabalho. A racionalidade tecnológica protege assim antes a
legalidade da dominação em vez de a eliminar e o horizonte instrumentalista
da razão abre-se a uma sociedade totalitária de base racional.i
CAPITULO 4
Tramas do Mito-Tecno-Lógico na reinvenção do Moderno: implicações
do seduzir na Comunicação do Homem com o Mundo Contemporâneo
(...) Se há uma coisa da qual não podemos mais nos livrar é das
naturezas e das massas, ambas igualmente globais. A tarefa política
recomeça da estaca zero. Foi preciso mudar completamente a
fabricação de nossos coletivos para absorver o cidadão do século
XVIII e o operário do século XIX. Será preciso uma transformação
equivalente para abrir espaço para os não-humanos criados pelas
ciências e técnicas.
(Bruno Latour)
Quarto Capítulo
Tramas do Mito-Tecno-Lógico na reinvenção do Moderno: implicações
do seduzir na Comunicação do Homem com o Mundo Contemporâneo.
1. O vínculo metafórico do Mito-Lógico com o Mundo.
Até o momento estivemos analisando aspectos econômicos, sociais e culturais do
Movimento de Ocidentalização do Mundo, constituído historicamente através das ações e
relações que delinearam o processo evolutivo dos indivíduos. Paralelamente, estabelecemos
discussões acerca da Racionalidade e da Irracionalidade, difundidas em nome da
Modernização Econômica, que se justifica e se legitima na acumulação de riquezas e bens
de consumo.
Ao longo da análise, apresentamos também indagações, dúvidas e esclarecimentos
em torno das relações de produção e sistematização da informação e dos conhecimentos
que são oferecidos como suportes da estrutura educacional, associando saber e poder como
catalisadores da Trama Mito-Técno-Lógica, e assegurando os instrumentos de controle na
Comunicação Contemporânea.
Em linhas gerais, circunscrevemos relações conceituais que estimularam a
amplitude do Mito, da Técnica, da Ciência e da Tecnologia. Dentro dos limites da nossa
compreensão, também destacamos algumas implicações desses conceitos na Sociedade
Contemporânea. Apesar de ainda existirem questões envolvendo tais conceitos, estas não
foram tomadas como perspectiva de mudança paradigmática na nova composição
interpretativa do Pensamento Contemporâneo.
Essa composição e mudança paradigmática, a que nos referimos, focalizam questões
como objetividade-subjetividade e intersubjetividade, em torno das quais se organizam os
processos comunicativos. Nesse contexto, ainda prevalece a orientação que tem seus
fundamentos basilares respaldados em pólos interpretativos projetados pela visão
dicotômica sujeito-objeto, a partir da qual se analisam outros pares interpretativos: Mito-
Razão, Homem-Natureza, Indivíduo-Sociedade, Ciência-Senso Comum.
Abordar tais questões, entretanto, exigirá de nós uma redução metodológica como
estratégia de análise, a fim de estabelecermos recortes compreensíveis, aproximando
discussões históricas de questões atuais. A redução a que nos referimos visa a afunilar
categorias epistemológicas e ontológicas, parcialmente desenvolvidas neste estudo, e
aprofundar interfaces do Mito com a Razão. Na seqüência do desenvolvimento,
deveremos apresentar uma perspectiva de análise que rompe com o modelo dicotômico
dos Modernos, pautado na relação sujeito-objeto, como base de sustentação para vir a
compreender o Movimento das Transformações Contemporâneas.
No que diz respeito ao Cenário Mundial, o conjunto das informações apresentadas
neste estudo nos revelou que a Sociedade Contemporânea serve de palco para a extensão da
Modernização Política e Econômica, na qual a Educação, em específico a brasileira, ocupa
lugar de destaque. O script que dinamiza as ações da Educação brasileira, no contexto da
Modernização, a apresenta como ambiente propício para acomodar a magnífica fusão do
Mito com a Racionalidade Técnico-Científica e, para gerar o que denominamos de Mito-
Tecno-Lógico. Este detém o papel principal e entra em cena como o protagonista das
mudanças mundiais.
As informações e questões aqui desenvolvidas também nos apresentaram
indicadores de que a montagem do espetáculo da Modernização passou, historicamente, por
grandes investimentos em produtos técnicos e tecnológicos. Ela chegou à
Contemporaneidade apoiada nos suportes eletroeletrônicos, servindo de mola propulsora
para as políticas de acumulação e reprodução do Capital.
A representação coletiva da fusão que deu origem ao Mito-Tecno-Lógico na
Sociedade Contemporânea pautou-se por princípios básicos de motivação individual e pelo
desejo de se consumir indiscriminadamente produtos tecnológicos. Desse modo, prevalece
a doce ilusão de que participamos de uma “nova” Era, apontada por alguns teóricos como
“o ponto alto da evolução da espécie humana”. O destaque e o louvor ficam por conta da
Racionalidade Técnico-Científica. E, nesse mesmo contexto, a Escola esforça-se para
ocupar seu lugar no rito de passagem, do Não-Moderno para o Moderno ou Pós-Moderno.
Implicações da relação acima descrita não são fáceis de ser diagnosticadas, por isso as
colocamos, parcialmente, no campo das incertezas, o que se justifica porque, tanto poderão
provocar grandes alterações, como não alterar em nada o ambiente sócio-cultural e
educativo em que se insere a instituição Escola. Essa postura encontra respaldo nas palavras
de Duarte (2000), para quem,
(...) O diagnóstico do presente cultural, na sua multiplicidade e pluralismo, na sua pelo
menos aparente ausência de limites, não permite certezas sobre o devir, desafiando qualquer
tipo de previsão sobre o futuro. Falar sobre ele, hoje, é enredar-se num exterior
irrepresentável que ignora descontinuidades de opiniões ou posições isoladas, para partilhar
pontos cruciais que reúnem, sob eixos comuns, posturas, às vezes, opostas.55
Por outro lado, entendemos que se faz necessário aproximar as fronteiras das certezas e
incertezas, o que nos força a entrar na esfera cognitiva, mediada pela discussão da
assimilação, construção e desconstrução do Conhecimento. Nesse caminho, a análise não
tem mão-única, ou seja, se por um lado reconhecemos e valorizamos o indivíduo
atribuindo-lhe o ‘status’ de Ser pensante - o que exige e pressupõe estar capacitado para
discernir entre o que é e o que não é -, por outro, corremos o risco de desconhecer, ou não
valorizar, a dimensão imaginativa e sensitiva, na qual pode ter sido gerado, envolvido e
desenvolvido o próprio Pensamento.
Por isso, a perspectiva metodológica que assumimos neste estudo é uma via de
mão-dupla, procurando evitar ou, pelo menos, diminuir os riscos de cair na armadilha
cognitiva da falsa sensação de “plenitude racional”. Nossa intenção é identificar a
existência de um canal aberto entre o pensar e o fazer, o qual mantém íntima ligação com o
processo de reordenação do mundo sob o comando do Mito-Tecno-Lógico. Contexto já
descrito em tópicos anteriores, em que observamos o apelo feito, hoje, à Racionalidade
Técnico-Científica, como forma de oferecer motivos e estímulos fomentadores de desejos
para o consumo, justificando assim tanto a produção tecnológica, quanto as ações pensadas
e idealizadas nos níveis político e econômico.
Com o intuito, por exemplo, de forjar estratégias para a aceitação social do sutil
movimento de exploração e acumulação do Capital Financeiro, aciona-se o discurso da
mídia sensacionalista, para acomodar as dúvidas e as incertezas. Por sua vez, o discurso
mítico contemporâneo induz a se acompanhar passivamente as constantes redefinições das
noções conceituais e valorativas de espaço e tempo, ser e não-ser, pensar e conhecer, viver
55 Duarte: 2000 p.09, Op. cit.
e morrer, com a mesma postura ou “naturalidade” de quem vê, ou pratica, um ato de
barbárie, resultante de mentes insanas em defesa de falsos direitos humanitários.
O discurso do Mito-Tecno-Lógico encontra-se assim resguardado pela
Racionalidade Técnico-Científica, embora se destaque pelo alto grau de Irracionalidade que
o acompanha no processo e na produção de ações reguladoras para a Modernização. É
possível que o referido Movimento discursivo contenha algum vírus corrosivo, atuando
destrutivamente no conjunto do Conhecimento Técnico-Científico e invertendo suas
funções, para acelerar a produção pautada em um saber que se acredita ter, e não na dúvida
que se credita para conhecer.
Em Habermas (1998), encontramos uma interpretação do entrelaçamento dessas
questões, que poderão ajudar a construir um referencial mais consistente. No discurso
filosófico da Modernidade, o autor critica as idéias de Adorno e Horkheimer, difundidas na
obra “Dialética do Esclarecimento” (Iluminismo)56, na qual defendem a tese de que a
Racionalização proposta pelo Iluminismo já contém em si mesmo o germe da sua
contradição, ou seja, o Mito.
Para demonstrar a afirmação acima, Adorno e Horkheimer utilizam a obra de
Homero, a “Odisséia”, na qual relata as aventuras do guerreiro Ulisses, e o seu retorno para
Ítaca, após a guerra de Tróia. As aventuras se passaram em ambientes de Natureza mítica,
onde o autor – Homero - apresenta o herói Ulisses, explorando tanto a capacidade racional,
quanto as habilidades e artimanhas da Guerra, para escapar dos obstáculos que lhe
dificultavam o seu retorno.
O esforço de Habermas (1998) se apresenta no sentido de demonstrar que Adorno e
Horkheimer estão equivocados quanto à idéia de que o Mito e a Razão participam de uma
mesma unidade. Ele tem claro que, para os autores supracitados, a potência mítica se
mostra com o propósito de retardar a emancipação do indivíduo. Para isso, o Mito utiliza
sedutoras teias que impedem a Racionalidade de seguir seu curso emancipatório.
O caminho seguido por Adorno e Horkheimer toma como pressupostos de análise
estágios da consciência e algumas estratégias assumidas pelo “eu” racional, para dominar
os perigos da Natureza externa. Os dois autores usam a narrativa mítica de Homero - a
Odisséia - para destacar o conflito no qual vive o indivíduo contemporâneo representado
pelo interno (a Racionalidade) e pelo externo (os obstáculos que se põem à Razão).
Numa das passagens mais conhecidas da Odisséia de Homero - o encontro de
Ulisses com as sereias -, fica evidenciado o conflito vivido pelo guerreiro, na sua tentativa
de não se deixar arrastar pelo canto sedutor das belas sereias. É o momento em que Ulisses
mostra como usar a razão para dominar obstáculos externos, ainda que para tal tenha que
reprimir os instintos interiores, os quais são presas fáceis para as estratégias que utilizam
conteúdos sedutores, tais como o encanto das sereias, que geram confusões na aplicação
correta da razão e, por conseguinte, levam a atitudes irracionais.
Para Habermas (1998), Adorno e Horkheimer querem nos levar à interpretação de
que a Ciência Moderna assumiu a sua forma no Positivismo Lógico, mas seu conteúdo foi
absorvido pela Razão Instrumental, e por isso, renunciou à pretensão de um conhecimento
teórico em favor da aplicabilidade Técnica. Segundo Habermas (1998), essa interpretação
56 Considerado por Habermas como o “livro negro”, que trata do processo de autodestruição do
Iluminismo. (Cf. Habermas, J. O discurso filosófico da Modernidade. Lisboa - Portugal: Dom Quixote,
1998. p.109).
teria estimulado os dois autores supracitados a ampliar o leque de suas análises, em função
de uma tese mais ampla e mais vaga.
Na tese em questão, Adorno e Horkheimer admitem que os padrões normativos das
sociedades modernas perderam o crédito, seja em virtude da dissolução das imagens
religioso-metafísicas do Mundo, seja porque ficaram à mercê da Ciência, como única
autoridade diretiva (Habermas: 1998 p.113).
Nas críticas que faz a esses autores, Habermas (1998) destacou o fato destes
tratarem o processo de Racionalização como tendência inevitável à Instrumentalização.
Nesse sentido, ele utiliza a crítica marxista da Ideologia, na formação do Iluminismo e
retoma os princípios da formação do Pensamento Mítico, estabelecendo relações com as
teses dos dois autores.
Para Habermas (1998), Horkheimer e Adorno compreendem o Iluminismo numa
perspectiva finita e fracassada da Racionalidade, para escapar às potências do destino
mítico. Essa perspectiva coloca a emancipação sob a maldição das peripécias do Mito, que
usa estratégias sedutoras para perseguir os que lhe procuram escapar. Por outro lado, a
trajetória da desmitologização é definida, pelos dois autores, como transformação e
diferenciação de conceitos fundamentais aos quais o Mito está conectado.
Neste caso, o Pensamento Mítico tem o propósito de não permitir a diferenciação
conceitual entre coisas e pessoas, o inanimado e o animado, ou seja, entre objetos que
possam ser manipulados e agentes aos quais atribuímos ações e manifestações
lingüísticas. Desse modo, o papel da desmitologização está em desfazer a confusão que
se forma entre os conceitos de Natureza e de Cultura. Para Habermas (1998), esse papel
assumido pelo Iluminismo através da Racionalização, procurou estabelecer a
dessocialização da Natureza e a desnaturalização do Mundo Humano (Habermas: 1998
p.116).
Segundo o citado autor, a crítica da Ideologia pretende demonstrar que a meticulosa
distinção entre conexões de sentido e conexões de realidade se confunde porque as
exigências de validade são determinadas por relações de poder. Nesse sentido, ele dirá que
tal crítica se justifica porque contesta a verdade de uma teoria suspeita, ao demonstrar a
falta de veracidade da uma teoria que se supõe ter uma compreensão desmitologizada do
Mundo.
Por outro lado, Habermas (1999), através de sua teoria da Ação Comunicativa,
abordou o traço mágico-animista que constitui o Pensamento Mítico, fazendo uma ressalva
à confusão que se estabeleceu entre os conceitos e categorias de Natureza e Cultura. O
autor partiu do pressuposto de que no Pensamento Mítico ocorre uma nivelação dos
diversos âmbitos da Realidade, nivelação esta, que, segundo Habermas (1999), serve para
esconder as especificidades inerentes à própria diversidade da qual se compõe a Realidade.
No que diz respeito ao jogo das relações e influências entre a Natureza e a Cultura,
o mesmo autor (1999) nos diz que o processo de assimilação da Natureza, pela Cultura,
torna possível o surgimento de uma Cultura que em certo sentido é naturalizada e
coisificada. Diferentemente do que ocorre quando o inverso se manifesta, ou seja, quando a
Cultura é assimilada pela Natureza. Neste caso, é esta que assume traços antropomórficos e
fica, portanto, “humanizada”.57
Canalizando suas preocupações para os espaços que a perspectiva mítica tem
ocupado na Sociedade Contemporânea, Habermas (1999) nos diz que:
(...) A interpretação, segundo a qual todo fenômeno está em correspondência com todos os
demais fenômenos, pela ação de poderes míticos, não só possibilita uma teoria explicar e
tornar possível, narrativamente, o mundo, mas, também uma prática com que o mundo pode
ser controlado de forma imaginária (Op. Cit., p.76).
Habermas (1999) afirmou que Weber fixou sua abordagem da Racionalidade, associando-a,
no processo de Racionalização Social, à idéia de Racionalidade dirigida a um fim, o que
ficou conhecida como Racionalidade Instrumental. Segundo Habermas (1999), o conceito
de Racionalidade weberiano, por um lado, se aproxima do que pensou Marx e, por outro,
do que pensaram Adorno e Horkheimer.
Para melhor esclarecer o que afirmou, Habermas (1999) descreveu três modos de percepção
da Racionalização Social. Uma na forma como a entende Karl Marx - na dimensão de
Racionalização Social que se implanta diretamente com a ampliação do Saber Empírico, os
avanços das técnicas de produção, a mobilização, qualificação e organização cada vez mais
eficaz da força de trabalho socialmente disponível.
Ainda fazendo referências à visão marxista, Habermas (1999) ressaltou que as instituições
responsáveis pela distribuição do poder social, na ótica de Marx, regulavam o acesso aos
meios de produção e só ofereciam mudanças sob pressão racionalizadora das forças
produtivas.
Outro modo de percepção da Racionalização Social, descrito por Habermas (1999)
diz respeito à Racionalização no contexto de entendimento de Weber, para quem o marco
institucional da Economia Capitalista e do Estado Moderno foi visto como subsistema da
57 Para explicitar essa questão, Habermas cita Godelier, para quem a mentalidade primitiva gera uma dupla
ação racional dirigida a um fim. Segundo Habermas (1999), Weber temia como
conseqüência da ampliação da Razão dirigida a um fim - ou Razão Instrumental - a
burocratização e a coisificação das relações sociais.
A outra visão apresentada por Habermas (1999, p.199) refere-se a Adorno e
Horkheimer. Sob o signo de uma Razão Instrumental autonomizada, a Racionalidade da
dominação da Natureza se amalgama à Irracionalidade da dominação de umas classes sobre
outras. As forças produtivas desencadeadas operam a estabilização da relação de produção
alienada.
Habermas (1999) aproveitou para tecer críticas à postura de Adorno e Horkheimer
admitindo que esses pensadores desviaram os intentos de Weber e Marx, principalmente no
que se refere à Ciência e à Técnica, pois, enquanto Marx as tomava potencialmente como
forças emancipatórias, Adorno e Horkheimer as tinham como meio de repressão social.
Na seqüência de sua abordagem, Habermas (1999) demonstrou sua discordância
com cada uma dessas teorias. Como ponto de partida, o referido autor mostra-nos que tanto
Marx, Weber quanto Adorno e Horkheimer, identificaram Racionalização Social com o
aumento da Racionalidade Instrumental estratégica do contexto de ação. Outro ponto que o
autor destaca é o fato dos pensadores supracitados já vislumbrarem um conceito mais
amplo de Racionalidade.
Habermas (1999) reforçou esse conceito, dizendo que os pensadores em questão não
ultrapassaram os limites da Racionalidade Instrumental. A Razão apontada por Habermas
(1999) é a de que os conceitos de ação em que se baseiam Marx, Weber, Adorno e
ilusão: uma ilusão sobre si mesma e uma ilusão sobre ações no mundo (Cf. Habermas: 1999. Op.cit. p.76).
Horkheimer não são complexos o bastante para apreender, nas ações sociais, todos os
aspectos da Racionalização Social.
A compreensão científica do Mundo se tornou ponto de referência no processo
histórico universal do desencantamento desse mesmo Mundo. Sempre que o Conhecimento
Empírico-Analítico levou a termo o desencantamento do Mundo e a transformação deste
em mecanismo causal, ocorreu uma tensão contra as pretensões do Postulado Religioso. O
argumento de que o Mundo é um cosmos ordenado por Deus foi posto na berlinda várias
vezes pelo Conhecimento Científico, como tentativas de re-orientação e sentido ético.
Desse modo, Habermas (1999) nos fez ver que Weber admitiu a Ciência Moderna
como resultado da Sociedade Racionalizada, incluindo também a Arte entre os fenômenos
da Racionalização da Cultura. O processo de Racionalização Social nas Culturas Modernas
demonstra que a Arte, autônoma no seu processo de evolução, manteve relação de
complementaridade com a Racionalização da vida cotidiana, juntamente com a
apresentação expressiva que a subjetividade faz de si (Habermas: 1999, p.219).
Segundo Habermas (1999), Weber colocou de um lado a Contracultura de cunho
Estético (produzida pela Arte e a Subjetividade constituída a partir dela), a Ciência e a
Técnica, e, do outro, as modernas Idéias Jurídicas e Morais. Tudo compondo o conjunto da
Cultura Racionalizada. Porém, na perspectiva weberiana, o Racionalismo Ético e Jurídico é
que ofereceu as condições para o nascimento da Sociedade Moderna. Nesse sentido, o
fenômeno da Racionalização da Sociedade Ocidental foi o processo pelo qual emergiram a
Empresa Capitalista e o Estado Moderno.
Para Habermas (1999), o interesse de Weber está na materialização institucional das
estruturas de consciência modernas, ou seja, na transformação da Racionalização Cultural
em Racionalização Social. O referido autor destacou que Weber desenvolveu o conceito de
Racionalidade, distinguindo entre domínio teórico e domínio prático da realidade, sendo
que o ponto-chave da Racionalidade weberiana estaria no conceito de ação racional
direcionado a fins práticos ( Habermas: 1999 p.228-229).
Quanto à concepção de Racionalização, Habermas (1999) afirmou que Weber
entendeu por racional o processo de desencanto que teria levado à desintegração das
concepções religiosas do Mundo e que também teria gerado, na Europa, uma Cultura
profana. Ainda no que diz respeito ao desencanto, ou Racionalização do Mundo,
Weber atribui às modernas Ciências Empíricas a autonomização das Artes, as Teorias
da Moral e do Direito, a responsabilidade pelo processo de formação das esferas
Culturais e os valores envolvendo a aprendizagem segundo as leis internas dos
problemas teóricos, estéticos ou práticos e morais.
Para Habermas (1999), Weber vê como resultado da Racionalização Ocidental
o desenvolvimento das Sociedades Modernas, bem como o surgimento das novas
estruturas sociais caracterizadas pela Empresa Capitalista e um aparelho burocrático
do Estado. O autor, fazendo referência ao termo “Modernização” e nos mostra que
este teria ocupado espaço nas discussões acadêmicas, de uma forma mais consistente,
a partir dos anos 50.
No que diz respeito à Modernização, Habermas (1999) viu na sua dimensão
conceitual uma interface de vários fatores, dentre os quais destacou: a) a formação de
capital e mobilização de recursos; b) o desenvolvimento das forças produtivas e o
aumento da produtividade do trabalho; c) o estabelecimento de poderes políticos
centralizados e a formação de uma identidade nacional; d) a expansão do direito de
participação política, de formas urbanas, e da formação Escolar formal.
Habermas (1999) demonstrou ainda que a proposta implícita na teoria da
Modernização tomou por base a abstração do conceito de Modernidade weberiano. As
conseqüências dessa abstração conceitual, segundo o autor, vêm na forma de uma
desconexão da Modernidade com as suas origens na Europa e no Racionalismo
Ocidental. Tal desvinculação implicou processos de Modernização, concebidos como
objetivação histórica de estudos racionais e não como processos de Racionalização
(Habermas: 1999, p. 14).
Desse modo, o conceito de Modernização se projetou desvinculado e autônomo
em relação à Modernidade e à Racionalidade Ocidental. A autonomia da
Modernização foi tomada como algo que progride por si mesmo em torno do seu
próprio eixo, causando um Movimento transformador. Segundo Habermas (1999), a
concepção de autonomia na Modernização levou autores adeptos do Pós-Moderno a
considerar, erroneamente, as premissas do Iluminismo como mortas e os fundamentos
da Modernidade Cultural, obsoletos. Essa idéia caracterizou a Modernidade como
uma progressiva e auto-suficiente Modernização Social (Habermas: 1999, p.17).
Segundo Habermas (1999), um dos primeiros pensadores a oferecer um
conceito de Modernidade foi Hegel. Para o autor, Hegel ousou usar o conceito de
Modernidade com expressões, tais como “novos tempos”, “tempos modernos”, para
exprimir uma consciência histórica. Daí, o referencial de delimitação histórica passou
a ser o começo de um novo período histórico, e o ano de 1500, o início desse novo.
O fato, acima descrito, acontecido no século XVIII, gerou uma nova
representação da História. O Tempo passou a ser concebido como meio para resolver
problemas surgidos. O espírito da época caracterizou o presente como uma transição
que se consumia na consciência da aceleração e da expectativa do que há de diferente
no futuro.
Para Habermas (1999), vivemos em um presente que se projeta no horizonte
dos novos tempos e se vê como atualidade de uma época que tem de se assumir numa
renovação contínua. O autor fez questão de ressaltar que Hegel, ao se preocupar com
a certificação da Modernidade, foi o primeiro a elevar a questão da separação desta à
categoria de Problema Filosófico. Desse modo, cabia à Filosofia traduzir em
pensamentos o seu próprio tempo, ou seja, a Época Moderna.
Habermas (1999) apontou ainda três acontecimentos históricos que influenciaram
no estabelecimento do princípio da Subjetividade: a Reforma, o Iluminismo, a Revolução
Francesa. A Vida Religiosa, o Estado e a Sociedade, bem como a Ciência, a Moral e as
Artes transformaram-se em encarnações da Subjetividade. O referido autor também nos
ofereceu uma abordagem conceitual da Racionalidade com aspectos interpretativos que
poderão nos ajudar na empreitada, por uma perspectiva de projeções epistemológicas e
ontológicas, além daquelas já oferecidas pela dicotômica visão do sujeito e do objeto.58
Outrossim, se nos movemos no Mundo impulsionados pelo desejo e pela vontade de
incorporar o que nos rodeia, e sendo esse o Movimento que poderá nos oferecer o conteúdo
do pensar, então parece-nos esta uma tarefa árdua a ser cumprida simplesmente pela Razão
individual, qual seja a de modelar o Mundo na perspectiva coletiva. Acrescente-se, ainda, a
dificuldade para organizar criticamente o conteúdo a ser pensado, pelo poder sedutor da
linguagem inserida nos processos midiáticos de Informação e Comunicação, aos quais se
misturam Sensibilidade, Eroticidade, Criatividade, Racionalidade e Conhecimento. O
58 Habermas, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social. Madrid – Espanha: Taurus. 1999. p.69.
resultado só poderá ser um: a dificuldade em representar as diferenças socio-culturais
(nacionais, regionais e locais) na organização da unidade (global, universal).
Ora, temos claro que o atual Processo Civilizatório tem suas bases de
desenvolvimento nos processos e produtos do conhecimento das gerações que ousaram
avançar além do que estava dado, ou seja, projetar o futuro além dos riscos e limites que a
Racionalidade da época ofereceu como parâmetro de controle da imaginação e do desejo.
Desse modo, a Sociedade Contemporânea não é mais nem menos do que as sociedades
anteriores, apenas está à frente dos conhecimentos já disponibilizados pelos movimentos
civilizatórios anteriores. Por isso, encontra-se capacitada a avançar além da Racionalidade
Normativa das épocas anteriores, para modelar um futuro que não lhe pertence, mas que em
muito contribui para sua evolução.
A idéia esboçada acima nos oferece reforço à hipótese de que as transformações
efetivadas em prol da Modernização têm sua base de sustentação e articulação nos mesmos
fundamentos que regem os desejos dos indivíduos e os interesses do Capital Financeiro.
Isso se justifica pelo fato do Mito-Tecno-Lógico encontrar-se alicerçado, também, no nível
ideológico e não apenas nos níveis epistemológico, ontológico ou psicológico.
Assim, da leitura contextual feita até o momento, o Processo Civilizatório que ora
presenciamos, encontra-se vinculado ao Projeto de Modernização e a Ciência, a Técnica, a
Ideologia e a Tecnologia formam a base de sustentação do Mito-Tecno-Lógico e da
Racionalização Econômica. Desse modo, admitimos um estreito vinculo entre as ações
internas, pelas quais o indivíduo se projeta no e para o mundo, e as ações externas, que
transformam o cenário da Sociedade Contemporânea, de acordo com as conotações que
prendem ou desvirtuam os processos de realização plena da Razão. Com isso, o
Pensamento Crítico parece paulatinamente ceder lugar à Imaginação Criativa e Mitológica.
Outrossim, a intrincada teia que envolve e configura o pensar reflexivo do sujeito -
o indivíduo contemporâneo - encontra-se articulada a ações, relações e comunicações
externas, tal qual um cordão umbilical pelo qual passam e se articulam as idéias, antes
mesmo de se constituírem sistema de interpretação do Mundo. Desse modo, a
compreensão contemporânea do Mito-Tecno-Lógico parece pressupor, ou mesmo exigir,
uma nova perspectiva de análise. Um jogo ao mesmo tempo interpretativo e interativo, que
vai além da relação sujeito-objeto.
Neste momento da análise, acreditamos ser pertinente procurar saber se essa relação
(sujeito-objeto) ainda faz sentido hoje como esquema interpretativo, ou onde está centrada
a força do pólo regente, se no sujeito ou no objeto. Ou, ainda, se as alterações indicam, de
fato, mudanças na perspectiva de análise: para ambos, ou para nenhum dos pólos
interpretativos. Ao que parece, faz-se necessário aprofundar a discussão no sentido de
evidenciar o que de fato serve de suporte ontológico e/ou epistemológico ao sujeito e ao
objeto, nos processos e produção do Conhecimento Contemporâneo.
A complexidade da interpretação que se pauta na relação sujeito-objeto tem raízes
na Grécia Antiga, onde despontou como teoria explicativa, que prevaleceu durante muito
tempo e, ainda hoje, ocupa espaço entre teóricos contemporâneos como estratégia
metodológica para adequar interpretações teóricas à realidade. Tal perspectiva atravessou o
Período Medieval numa íntima articulação com a Moral e a Religião Cristã, momento em
que teve minimizado o papel do sujeito como pólo regente na produção do Conhecimento,
sem, contudo, negar-lhe o “status” de porta-voz da verdade, ainda que esse Conhecimento
lhe chegasse essencialmente pela revelação.
A trajetória descrita acima se confunde com o desenvolvimento dos conhecimentos
subjetivos, re-elaborados, sistematizados e aplicados como estratégia para acomodação e
transformações objetivas do Ser no Mundo. Com isso, estamos querendo inserir na
discussão pares de categorias como as de epistême e métis que foram precursores da visão
dicotômica sujeito-objeto, ao significarem, respectivamente, “o correto caminho da Razão”
e “o desvio da retitude racional pelas armadilhas criativas e intuitivas da poésis e das
sensações”.
A visão dicotômica chegou até o sujeito como pólo regente da relação, ao trilhar os
caminhos da Modernidade. Período em que se desenvolveu uma intensa procura pela
Identidade e Emancipação Racional, em oposição aos Princípios Morais e Religiosos
cultivados na Era medieval. Aparecem então indicadores de que estamos no jogo
existencial configurado por conflitos indefinidos de atitudes polarizadas do Eu, ou do
Outro. Por isso, nada a dizer, se considerarmos tais atitudes partes do complexo movimento
comunicativo, no qual modernas concepções ideológicas disputam espaços entre o saber e
o poder, disfarçadas de instrumentos éticos, políticos e pedagógicos, para a formação dos
novos horizontes cognitivos.
Não é à toa que historiadores e teóricos do Conhecimento nos levam, em suas
narrativas, por ricos exemplos de como diferentes pesos e medidas, atribuídos a um ou
outro personagem da relação sujeito-objeto, influenciaram direta e indiretamente no modo
de pensar, ser e existir de várias gerações. As configurações, por vezes pendem para o
sujeito, que deseja e admite incorporar o objeto, passiva ou ativamente, exalando domínio
pleno de sua Racionalidade. Outras vezes tendem a fortalecer o objeto, ao demonstrar
resistência em revelar-se ao sujeito, oferecendo-lhe apenas perspectivas descritivas e
induzindo ou desafiando-o a ver e compreender as limitações na lógica de suas
manifestações racionais.
O monopólio do Conhecimento, pelo sujeito ganhou espaço na Modernidade e
pouco a pouco vem sendo diluído, para dar lugar a processos mais amplos, no qual não
cabe simplesmente a tese de que o Conhecimento só ocorre, para o sujeito, por simples
disponibilidade do objeto, ou, só ocorre para o objeto, por ser a fonte permanente e
inesgotável das informações. A visão limitada e unilateral do eixo sujeito-objeto passou a
oferecer espaços para interpretações alternativas, em que idéias como as de “uno” deu lugar
a expressões como as de "multi”, “inter”, ou “pluri” dimensionalidade.
A Contemporaneidade trouxe consigo um leque de questões ontológicas e
epistemológicas que impulsionaram dicotomias, como as de Ser e Mundo, Mito e Razão,
para composições ambiciosas, revisadas e redirecionadas para a perspectiva do “novo”,
como sinônimo de novidade, diversidade, virtualidade, praticidade, comodidade e, por que
não, modernidade, ainda que esta se encontre longe do que não conseguiu efetivar como
Projeto Político-Social, para garantir o “status” de moderna. O destaque ficou por conta da
autonomia excessiva que se atribuiu ao sujeito e pelo que foi objetivado como
Conhecimento Técnico-Científico, representando tudo o que se convencionou chamar de
moderno.
Trabalhar, com a possibilidade de aproximar perspectivas ontológicas e
epistemológicas, como suporte para sair dos limites da relação dicotômica sujeito-objeto,
exige um olhar especial para o que a Contemporaneidade reconhece e aplica como
Processos Comunicativos. Acreditamos que por esses caminhos perceberemos como os
pólos dicotômicos, regentes, começaram a se aproximar um do outro: como se estivessem
conspirando, mutuamente, contra os projetos individuais, seja em sentido negativo, de
autodestruição da relação, seja em sentido positivo, de composição de outra dimensão
interpretativa.
Por sua vez, os caminhos acima referidos exigem pontos específicos para reflexão,
respaldados por conceitos-chaves que se dissolvem em formas e conteúdos comunicativos.
Como alternativa de análise, poderemos, por exemplo, nos fixar no conteúdo lógico-
discursivo e perguntar sobre a validade dos argumentos que se oferecem como base
explicativa. Ou então, nos fixarmos na dimensão ontológica, que fundamenta a relação
existencial dos envolvidos, a fim de buscar interpretações cognitivas para as atitudes
subjetivas e/ou objetivas que sustentam a comunicação sujeito-objeto. Ou ainda, como via
analítica alternativa, admitir possibilidades de rompimento dos limites discursivos
protagonizados pelo Eu (sujeito) e pelo Outro (objeto), articulado pela perspectiva crítico-
reflexiva das proposições postas.
Vale ressaltar que a compreensão cognitiva que se enuncia como Modelo
Contemporâneo de Comunicação oferece-nos indicadores de que estaria configurada na
relação comunicativa interativa, pautada não mais na categoria unilateral do “Eu”, do “Tu”,
ou do “Outro”, mas na nova dimensão que comporta uma interpretação mais ampla: o
“Nós”.
Posta dessa forma, a dicotomia que comporta categorias complexas como as de
Sujeito-Objeto, Ser-Mundo, Homem-Natureza parece destituída do “status” universal de
compreensibilidade ou veracidade objetiva e subjetiva. Ora, não estamos tratando, aqui,
meramente da extensão especulativa ou da associação que dela se projeta como trajetória
evolutiva do Ser no Mundo, ou seja, do processo e produção do Conhecimento.
Na verdade, a referida trajetória não pode ser captada na sua totalidade, mas,
também, não pode ser ignorada ou apenas pensada como simples complemento do processo
no qual se interpõem princípios, através dos quais se organizam e se definem gestões
sociais. Ao que nos parece, as relações comunicativas contemporâneas de fato sofrem
influência do ritmo acelerado em que se processam informações e Conhecimento,
redefinindo códigos e símbolos que medeiam a complexa Rede Comunicativa.
Por outro lado, é visível no meio acadêmico encontrar acirradas discussões visando à
compreensão da Contemporaneidade, numa nítida demonstração de que ela ainda continua
emblemática e problemática nos diferentes níveis de sua composição, seja ele o social, o
político, o cultural ou o econômico, implorando por análises investigativas consistentes,
apesar dos esforços empregados por teóricos e pesquisadores para ir além dos contornos
audiovisuais e do enfático jogo de sedução dos processos comunicativos que intensificam
as relações.
Entre os fenômenos que tornam a Contemporaneidade mais carente de análises, colocamos
o Movimento de abertura discursiva que sai da visão unilateral do Eu ou do Outro, para
uma perspectiva mais ampla - o Nós. Tal abertura, como via de mão-dupla, influencia e é
influenciada pelo modo de pensar e compreender as relações sociais contemporâneas, nos
seus diferentes aspectos. Assim, mesmo reconhecendo os limites do pensar e do comunicar
que a dicotômica relação sujeito-objeto nos legou, caminharemos no sentido de
compreender as perspectivas que se abrem com a linguagem interativa do “Nós”, assumida
como categoria da Intersubjetividade.
As questões acima representam uma tentativa de visualizar as fronteiras do Eu e do
Outro, do dentro e do fora. Mas, como vimos anteriormente, essas questões são heranças
históricas da inquietude do espírito humano, o qual, desejoso de transcender a ordem
natural do Mundo, buscou referências internas e externas para situar-se no amplo processo
existencial. Daí, a notoriedade que ganhou a especulação em torno de questões gerais de
natureza ontológicas, ou epistemológicas, como princípios geradores de antigas e novas
concepções teórico-explicativas, da relação Homem-Mundo.
Nas discussões aqui apresentadas, defrontamo-nos com implicações que nos
remeteram para a problemática do Conhecimento Contemporâneo no contexto dos
processos comunicativos e como produto de ações e relações historicamente constituídas.
Aprofundar a questão exige e pressupõe canalizar esforços para a raiz do problema: a
relação sujeito-objeto. É algo comparável a vasculhar “a caixa de Pandora”, procurando por
evidências do que gera determinados “males”, e ainda dialogar com a “esperança” que
ficou retida na caixa, alimentando possibilidades de recuperar o pré-juízo, interpretativo e
auto-suficiente nas justificativas, diretamente associado à maioria dos estragos.
Entraremos na discussão pretendendo compartilhar um modo de pensar e
compreender a questão supracitada, ainda que tal pretensão deixe transparecer traços
imprecisos da base reflexiva que nos orienta, embora tal pretensão, como a colocamos no
sentido de ‘permanente esforço de formação’, possa revelar-se imatura ou inconsistente,
mas, de modo algum, inconseqüente. Assim, reforçando o já-dito em tópicos anteriores,
existem movimentos teóricos especulativos que visam a alterar a base interpretativa do
paradigma pautado na dicotomia sujeito-objeto, e nossa atenção estará voltada para captar e
relacionar as diretrizes de tais movimentos, com os conceitos de Mito, Técnica, Ciência e
Tecnologia.59
59 Sem a preocupação imediata em citar referências teóricas ou autores específicos que abordam essa questão, queremos apenas chamar a atenção para as mudanças paradigmáticas que vêm sendo ventiladas, por
Partiremos do pressuposto de que é necessário abrir “a caixa de Pandora”, vasculhar
seu conteúdo e discutir sobre ele, enfatizando os limites interpretativos que se projetam
como “esperança” para o “novo” modelo de compreensão da realidade. Nesse sentido,
vasculharemos acerca da relação sujeito-objeto para apreender o conteúdo e a dinâmica de
atualização do Mito-Tecno-Lógico na Contemporaneidade. Por outro lado, ainda não
dispomos de evidências concretas e consistentes do que, de fato, as novas projeções
paradigmáticas poderão apresentar como padrões normativos para substituir ou alterar
aquela relação.
Desse modo, o referencial teórico discursivo sairá das propostas de Jürgen
Habermas e Bruno Latour, dos quais utilizaremos idéias e argumentos para verificar o
alcance e a extensão do Mito-Tecno-Lógico e o que pode, ou não, ser substituído na relação
sujeito-objeto. A idéia é aprofundar e compreender fissuras e implicações teórico-
metodológicas, a fim de dar sustentabilidade à base analítica e, a partir dela,
desenvolvermos nossa impressão sobre a perspectiva Intersubjetiva. O que muda, ou não,
com essa perspectiva no jogo de articulação entre o Mito e a Razão.
2. Articulações da (Ir)Racionalidade Instrumental para reforçar o Mito-Tecno-
Lógico como mediador na Comunicação Intersubjetiva.
pensadores de tendências modernas e pós-modernas. No estudo em questão, estaremos nos aproximando das idéias defendidas por Jungen Habermas, Bruno Latour, e outros, próximos a eles, concordando, ou não, com seus argumentos. Tentaremos, à luz desses autores, encontrar reforço para as análises aqui realizadas.
A Intersubjetividade configura-se como dimensão necessária na compreensão da
dinâmica interativa, pelas novas tendências filosóficas e sociológicas que despontaram,
principalmente entre os séculos XIX e XX, como alternativa de interpretação para os
fenômenos relacionados ao Ser e à Sociedade. As novas exigências encontram-se
associadas às novas articulações da Linguagem como parâmetro normativo para as relações
comunicativas. Para Habermas (2001)60,
(...) O modelo sujeito-objeto da filosofia da consciência se vê atacado por duas frentes: de
um lado pela filosofia analítica da linguagem e, do outro, pela teoria psicológica do
comportamento. Ambas renunciam a um acesso direto aos fenômenos da consciência e
substituem o saber intuitivo, a reflexão ou a introspecção, por procedimentos que não
apelam para a intuição. Propõem análises que partem das expressões lingüísticas ou do
comportamento observável e estejam abertas para uma compreensão intersubjetiva.
(Habermas: 2001 p.18).
A compreensão dos processos evolutivos, para chegar aos parâmetros interativos da
Intersubjetividade, nos remete para as alterações nas relações subjetivas que se projetaram,
como características transitórias, das sociedades ditas modernas para a sociedade hodierna,
acelerando transformações nos níveis epistemológicos e ontológicos, em prol de uma
perspectiva de análise que aponte para além da relação sujeito-objeto.
A primeira investida para constituir os fundamentos explicativos para a questão, no
sentido do que provocou e impulsionou a ruptura da visão dicotômica de Homem e Mundo,
é saber qual é o conteúdo discursivo que medeia a Comunicação atual, e o que ele oferece
como validade para as novas regras interativas e normativas. Deixamos claro que não
estamos nos referindo apenas às estruturas lógico-formais que se impõem como dimensão
60 Habermas, J. Teoría de la acción comunicativa, II: Crítica de la razón funcionalista: Taurus. 2001.
compreensiva do Mundo, mas ousamos pensar, aqui, na possibilidade de sair dos limites
formais argumentativos e avançar pelo que se esconde na estrutura simbólica que recobre e
recompõe relações sociais e culturais contemporâneas.
Sabemos que a Intersubjetividade reflete o processo histórico e envolve intrincada
cadeia de discussões e transformações que aos poucos minaram a estrutura sujeito-objeto.
Habermas (2001), referindo-se à projeção evolutiva dessa questão, a coloca no mesmo
contexto da problemática da Racionalização. Ele mostra a linhagem de pensadores alemães
que discutiram a problemática da Racionalidade, começando por Kant e Hegel e passando
por Marx, Max Weber e Lukács, até Adorno, Horkheimer e demais pensadores que
trabalharam na Teoria Crítica.
Os autores acima referidos, dentro das exigências históricas nas quais se
envolveram, desenvolveram estudos da Racionalidade voltada principalmente para o social,
embora, segundo Habermas (2001), todos eles tenham ficado presos a interpretações da
Razão Instrumental e a uma crítica associando Racionalização a coisificação.61
Em outro momento da sua abordagem, o referido autor voltou a fazer referências a
tais pensadores, para reforçar a tese de que eles não conseguiram ultrapassar a linha
demarcatória do entendimento que os possibilitava sair da interpretação baseada na ação
teleológica, da Racionalidade Instrumental, para a Racionalização Social, validada na fala,
orientada ao entendimento intersubjetivo fundado na Ação Comunicativa.62
(...) Marx, Max Weber, Horkheimer e Adorno identificam racionalização social com
aumento da racionalidade instrumental e estratégica dos contextos de ação (...) os conceitos
de ação em que se baseiam não são bastante complexos para apreender, nas ações sociais,
todos os aspectos em que pode tomar a racionalização social. (...) a racionalização das
61 Ver Habermas: 2001 p. 07. Op. Cit.
orientações de ação e das estruturas do mundo da vida não é o mesmo que o aumento de
complexidade dos sistemas de ação (Habermas: 1999, p.199).
A perspectiva acima mostra a complexidade que se esconde como conteúdo
substancial acerca da Racionalidade e da composição da Intersubjetividade, bem como o
que pode se romper na estrutura interpretativa sujeito-objeto. Nossa análise seguirá na trilha
projetada por Habermas (1999), a fim de clarear o fenômeno da Racionalização Social e o
que está retendo a esperança, na “caixa de Pandora”. Acreditamos que esse caminho nos
levará a ações alternativas que possibilitem romper o invólucro que recobre o Mito-Tecno-
Lógico e a Intersubjetividade.
Sem querer, pois, projetar características de indeterminação ou indefinição, na
relação discursiva que se mostra como elo de ligação entre sujeito-objeto, faremos uma
breve contextualização dos caminhos da Racionalização que apontam para a
Intersubjetividade. Estes são apresentados como alternativas para a compreensão dos
padrões e normas necessários ao bom desenvolvimento das relações baseadas na interação e
na comunicação, avançando e ampliando a subjetividade e a objetividade do
Conhecimento.
Acreditamos que os conceitos desenvolvidos por Habermas (1999) de
Racionalização Social e Ação Comunicativa constituem parte do referencial discursivo para
o que procuramos como contexto de ruptura epistemológica e ontológica, em favor da
Intersubjetividade como perspectiva de análise.
(...) O conceito de racionalidade comunicativa possui conotações que em última instância
remontam à experiência central da capacidade de unir sem coagir e de geral consenso na
fala argumentativa, em que diversos participantes superam a subjetividade inicial de seus
62 Ver Habermas, 1999, ps. 199 e 433. Op. Cit.
respectivos pontos de vistas e, graças a uma comunidade de convicções racionalmente
motivada, asseguram a unidade do mundo objetivo e da intersubjetividade do contexto em
que desenvolvem suas vidas.63
Vemos, pois, o papel da Racionalidade Comunicativa dentro da comunidade de
Comunicação, posto que ela oferece possibilidades de ampliar positivamente o processo de
coordenar ações sem recorrer à coerção e ainda solucionar consensualmente. Na abordagem
de Habermas(1999), os conceitos de Racionalização Social e Ação Comunicativa estão
associados aos conceitos de Mundo da Vida, Mundo Objetivo, Mundo Social e Mundo
Subjetivo.64
Esse autor, referindo-se à composição e caracterização da Intersubjetividade, admite a
necessidade de aprofundar a questão da Racionalização Social, como projeção para
entender as transformações na Sociedade Contemporânea. O autor deixa claro não ter a
pretensão de reduzir a teoria da Sociedade à teoria da Comunicação. Por isso, assume o
conceito de Sociedade simultaneamente como sistema e mundo da vida, numa relação
direta de influência de um sobre o outro, abrindo caminho para justificar a teoria da Ação
Comunicativa.
Por meio desta, o autor em questão admite ser possível ampliar o leque de entendimento
entre os membros da comunidade pautados na racionalização das ações e na normatização
das relações que o contexto intersubjetivo pressupõe. Nessa direção, Habermas segue
demonstrando a dinâmica conceitual que envolve a questão, com vistas a ultrapassar os
63 Habermas:1999, p.27. 64 Habermas toma o conceito de Mundo, no âmbito da Subjetividade, participando de uma relação de complementaridade com o Mundo externo. Dentro dessa relação ele distinguiu Mundo objetivo – como a totalidade dos fatos; Mundo social - representando a totalidade das relações interpessoais que são
limites da afirmação e da negação, em função de algo maior: a Racionalidade voltada para
o entendimento e o acordo dos envolvidos .65
As configurações habermasianas exigidas para a constituição da Intersubjetividade
deixam claro que os processos comunicativos, racionalizados e regulados por normas,
compõem uma prática comunicativa que ocorre em função das estratégias, vivências e
articulações do mundo da vida, mas dirigidas à consecução, manutenção e renovação do
consenso que descansa sobre o reconhecimento intersubjetivo, suscetível a críticas dos
membros da comunidade, para serem validados.
(...) Nos contextos de ação comunicativa, só pode ser considerado capaz de responder sobre
seus atos, aquele que seja capaz, como membro de uma comunidade de Comunicação, de
orientar sua ação por pretensões de validade intersubjetivamente reconhecidas. (...) Um grau
maior de racionalidade comunicativa amplia, dentro de uma comunidade de comunicação,
possibilidades de coordenar ações sem recorrer a coerção e solucionar consensualmente os
conflitos de ação. (...) A racionalidade imanente a esta prática se põe de manifesto no que o
acordo alcançado comunicativamente tem de apoiar-se, em última instância, em razões e na
racionalidade daqueles que participam desta prática comunicativa (...), pois, a prática da
argumentação como instância de apelação, permite prosseguir na ação comunicativa por
outros meios, quando se produz um desacordo que já não pode ser absorvido pelas rotinas
cotidianas e que, tão pouco pode ser decidido pelo emprego direto, ou pelo uso estratégico
do poder.66
reconhecidas pelos integrantes, como legítima e Mundo subjetivo - significando a totalidade das vivências a que cada indivíduo tem acesso privilegiado (ver Habermas:1999, p.101).65 “Entendimento” na perspectiva habermasiana, está diretamente relacionado com a obtenção de um acordoentre os participantes na Comunicação acerca da validade de uma emissão. Tal acordo está associado ao reconhecimento intersubjetivo, configurado pela pretensão de validade do sujeito para o que assume na sua fala (ver Habermas: 2001, p171). 66 Habermas: 1999, p.32-37.
O curso intersubjetivo em evidência nos conduz para a interpretação teórico-
metodológica, subtraído do eixo dicotômico sujeito-objeto, numa perspectiva diferente -
quiçá se mostre como alternativa - na qual as possibilidades da mediação comunicativa
estarão fundamentadas em outra categoria, outro pólo regente, que não o sujeito ou o
objeto, mas o “Nós”. Vê-se, portanto, por que a questão enunciada é relevante, exigindo no
mínimo, que se denuncie a dinâmica e o movimento no qual o sujeito e o objeto se movem,
para depois apreendê-los na especificidade e organização que os inserem no coletivo.
Ora, sabemos que tal questão não é simples de ser abordada e elucidada, como
parece expressar o significado de sua apresentação. Além do mais, construir explicações a
partir de referenciais fixos ou previamente determinados pode parecer fácil, mas tem lá suas
dificuldades. Imagine, pois, o grau de dificuldade quando o referencial posto - como parece
ser o nosso - refere-se a algo que, na sua dinâmica interna, comporta conteúdo flexível e
composição complexa que se oferece ilimitada, na sua compreensão subjetiva, e indefinida,
na sua expressão objetiva.
Por isso, tomaremos alguns cuidados delimitativos, a fim de melhor desenvolver
nossas linhas de raciocínio. Definiremos o referencial em questão, os processos
comunicativos, de fora para dentro, ou seja, aproximando elementos gerais do que
identifica a relação sujeito-objeto, para em seguida detectar traços específicos do jogo
epistemológico que os envolve.
Admitiremos, por exemplo, que no processo comunicativo em questão, tanto o
sujeito quanto o objeto se movem em torno de elementos existenciais, com raízes na
Ontologia e na Epistemologia. Ambas, na complexidade conceitual do conteúdo histórico
que lhes é inerente, fundamentam e atribuem identidade ao sujeito racional, pautada na
capacidade de afirmar ou negar, a si mesmo e ao Outro, tudo aquilo com o qual estabelece
ou poderá vir a estabelecer relação comunicativa, segundo suas necessidades.
O movimento no qual parecem se realizar os processos interativos e comunicativos,
na complexidade acima descrita, alimenta-se de categorias normativas e racionalizadas,
com vistas ao entendimento do que serve de mediação na comunicação do Eu e do Outro.
Com isso, a conexão que se estabelece para a superação das necessidades do sujeito e do
objeto pode ser assumida sob a forma ontológica e o conteúdo epistemológico.
A trajetória interpretativa entra pela via do caráter mediador das ações
comunicativas, buscando sistemas de aprendizagem que resultam tanto da aproximação
subjetiva, ou subjetivação, quanto da aproximação objetiva, ou objetivação, do Eu com o
Outro, no ambiente de sistematização do mundo da vida.67
A subjetivação realiza-se como movimento e sentido da ação racional, desprendida
pelo sujeito que quer apreender um objeto qualquer de seu interesse. Tal ação envolve o Eu
(que pensa, interpreta, analisa, se comunica e apreende, racionalmente, o objeto de seu
desejo) e o Outro (o objeto, que também pode ter as mesmas características do sujeito). A
objetivação, por sua vez, tomada como ação inversa da subjetivação, é o processo no qual o
objeto se afirma procurando impor-se como pólo regente da relação.
A subjetivação e a objetivação dependem de como a comunicação é assumida pelo
Coletivo. As dificuldades são complexas, principalmente seguindo pela via da
construção lógica e simbólica do discurso. Para a Ação Comunicativa, no contexto da
67 Os termos “subjetivação” e “objetivação” são apresentados, aqui, reciprocamente, como esforço de aproximação metodológica do sujeito para com o objeto e do objeto para com o sujeito. Tal esforço se efetiva por meio do rigor crítico no tratamento analítico das questões que entrelaçam as relações de realização, seja do sujeito, seja do objeto. O conceito de mundo da vida, na perspectiva habermasiana, entra como correlato dos processos de entendimento atuando como fonte de convicções difusas e aproblemáticas, das quais os indivíduos organizam uma imagem do Mundo (ver Habermas: 1999, p.104).
Lógica Formal, exige-se que seja assegurada a veracidade das proposições, a fim de se
obterem a consistência e a validade racional para os argumentos apresentados.
Com o aspecto lógico-formal do discurso menos enfatizado, talvez seja possível
priorizar uma perspectiva onto-epistêmica, 68 na qual o processo comunicativo é
submetido a uma ação-interativa que possibilite identificar o que é, ou não, atributo
predominantemente subjetivo, quando relacionado com a natureza interna, pela
capacidade racional e reflexiva inerente ao sujeito, ou objetivo, quando se referir à
natureza externa do sujeito, objetivada e associada às impressões do objeto.
O esforço despendido visa a ampliar as vias de análises, de atitudes subjetivas ou
objetivas, para atitudes intersubjetivas. Estas tendem a incorporar o conteúdo simbólico-
lingüístico envolvido na Ação Comunicativa, a partir de regras previamente estabelecidas.
Com isso, a comunicação sujeito–objeto abre-se para a interpretação em que princípios
universais não são unicamente resultados da mente, do “eu” que pensa e decide, mas, por
ações interativas da comunidade organizada, em função do Nós.
Desse modo, a relação sujeito-objeto deixa de ser reflexo da interpretação
unilateral do processo, para a qual o sujeito era o responsável direto pela ação e produção
do Conhecimento. Este seria o resultado da decodificação dos símbolos lingüísticos que
medeiam as relações sociais. Na perspectiva do objeto, restava apenas a restrita tarefa de
oferecer-se, enquanto linguagem e discurso, ao sujeito responsável pela apreensão e
decodificação dos atos lingüísticos.
68 Com esta expressão queremos nos referir a possibilidades metodológicas de fugir das estruturas analíticas da Lógica Formal, para uma perspectiva em que a Lógica Analítica assuma características de uma ação racional, atuando como estratégia interativa do discurso. A intenção é compreender a construção epistemológica do discurso, sem esquecer as relações ontológicas nas quais se estruturam a formação do Ser Social.
Assim, podemos entender os modos de processar as informações dadas, como
etapas do conjunto maior de complexos elementos que movimentam a roda do
desenvolvimento e das transformações impulsionadas pelos saberes de cada geração. Desse
modo, podemos arriscar uma configuração contemporânea para a qual o Conhecimento já é
buscado na sua forma tridimensional69 ou multidimensional, sintonizada com os modos de
comunicação que se estabelecem por meio de complexas redes de conexões tidas como
infovias.
Essa configuração da Sociedade atual tanto pode apresentar-se como etapa gloriosa
da Racionalidade humana, como projetar no indivíduo contemporâneo sensações de perda,
ou mesmo vazio, por começar a perceber a fragilidade de consistentes conceitos, como os
de verdade, tempo, espaço, matéria, amor, felicidade, existência, realidade, etc. Sólidos
conceitos, que precisam ser revistos, por não delimitarem mais a fronteira e os limites entre
a Imaginação e a Realidade.
O movimento em nome do “novo” nos impõe a impressão de que não tem mais
sentido pensar o presente e o futuro na perspectiva da relação unidimensional, ou mesmo,
bidimensional. O modelo de compreensão do Ser e do Mundo, bem como a própria
Realidade que os envolve, passam a ser repensados e revistos em função da abertura
conceitual que servirá de parâmetro normativo para as novas relações. Desse modo, a
Contemporaneidade, organizada sob novas bases de relações e comunicação, impõe aos
pólos dicotômicos da relação sujeito-objeto a sina de desaparecerem gradativamente como
perspectivas de análise.
69 Estamos apenas querendo nos referir a uma perspectiva diferente da bilateralidade dicotômica fundada nos dois pólos sujeito-objeto. Neste caso, acrescentamos um terceiro elemento, para oferecer um novo ângulo de abordagem.
A Comunicação Contemporânea, ao objetivar-se na sua forma ontológica através de
relações de produção extremamente variadas e interativas, de sutis manifestações políticas e
evidentes apelos culturais, pauta-se por fortes tendências organizacionais que lhe dão
suporte teórico e prático para reivindicar antigos direitos de justiça e cidadania.
Desse modo, as estruturas conceituais e valorativas tradicionais, como, por
exemplo, a escola, a família e as instituições de classes - os sindicatos dos trabalhadores -
são diluídas pela dinâmica das estratégias do Sistema Econômico, ficando sem saber o
rumo a ser tomado para acompanhar o sentido das mudanças.
Vemos, pois, projetarem-se na Atualidade, ações normativas pautadas por princípios
do Sistema Econômico, conservador nos seus ideais de exploração e acumulação de
riquezas e avançado na sua dinâmica de investimento compulsivo. Esse sistema é guiado
pela Racionalidade Instrumental, permanentemente em estado de alerta para renovar as
estratégias de consumo. Assim, a Contemporaneidade esbanja criatividade e sedução na
invenção e reinvenção de marcas catalisadoras de valores modeladores de comportamentos,
solidificando-se por meio de complexos símbolos e significados epistemológicos, que
poluem a Linguagem e os Processos de Comunicação.
Em decorrência, a Linguagem Comunicativa Contemporânea, visual e oral, aparece
caracterizada por um conteúdo vazio de significados explicativos e uma forma repleta de
apelos sensuais e imaginativos, que assumem uma dinâmica e uma importância social,
muito próximas do poder e das representações mitológicas. A conexão de conceitos,
símbolos e codificações contemporâneas fluem velozmente através das Linguagens Visuais
e das Redes de Comunicação, que se estendem por todo o Planeta, unindo e/ou desunindo
culturas, valores e povos.
Com isso, a velocidade na Comunicação, acompanhada de perto pela eficiência e o
apoio direto do Sistema Econômico, geram uma dinâmica que incide fortemente, não
apenas na modelação do sujeito ou do objeto específico, mas, também, na estrutura
normativa que impulsiona o Sistema Comunicativo, agora em rede, com a interação e o
interesse dos sujeitos e objetos, a um só tempo, ou em tempo real. Desse modo, as
evidências que se apresentam em torno das questões contemporâneas nos levam à hipótese
de que estamos diante de um novo processo comunicativo, o qual exige novos parâmetros
normativos na elaboração e aplicação de concepções teórico-metodológicas com estruturas
de análise e interpretações teórica e prática.
Por outro lado, mas em sintonia com os objetivos da Modernização Econômica, os
instrumentos tecnológicos, articulados com os sistemas traçados pela eletroeletrônica,
ganham “status” científico e poder lógico simbólico para traçar e projetar configurações
subjetivas e objetivas da realidade social e cultural do indivíduo contemporâneo.
Uma amostra da interface lógica, epistemológica, mitológica e ontológica pode ser
vista pela própria estrutura teórico-metodológica, que pressupõe conhecimento respaldado
na subjetividade e/ou objetividade, interferindo diretamente no processo de apreensão do
Conhecimento na perspectiva crítico-reflexiva.
O desenvolvimento teórico-metodológico pelo qual a comunidade científica constrói a
objetivação do Mundo aparece na Sociedade Contemporânea, parceiro da Racionalidade
Instrumental, posta a serviço das grandes corporações financeiras, na forma de
conhecimentos produzidos por técnicos e cientistas competentes.
Por outro lado, a diferença que se apresenta para a relação comunicativa do sujeito e
do objeto tende a aumentar, porque a estratégia de manipulação é gerada sob as orientações
do Sistema Econômico, e não fica restrita apenas à mitificação da produção dos bens de
consumo, mas, também, porque influencia na própria mitificação do Conhecimento
Subjetivo, o que eleva, por um lado, a exaltação do sujeito que produz, e, por outro, o
objeto produzido, com destaque para os associados da Tecnologia.
O que é objetivado do Conhecimento, é subtraído da relação, destacando apenas
pólos individualizados da dicotomia, o Eu e/ou o Outro. O sujeito e/ou o objeto. A relação
processual que é a fonte das mudanças é mitificada e passa a ser desacreditada pelo agente
transformador, por incorporar o conteúdo ideológico, como expressão unilateral do
Conhecimento, o que nos leva a acreditar que estamos diante de mais um elemento da
caracterização do nosso suposto referencial: o Mito.
O momento exige que se pergunte, por exemplo: A quem interessa a mitificação
do Conhecimento? Tal questão, inserida na perspectiva de análise que estamos
desenvolvendo, encontra-se vinculada a novas articulações no processo comunicativo. O
que nos deixa com a seguinte preocupação: o “Nós”, tomado como pólo regente para as
relações Contemporâneas, e por estar diretamente relacionado ao Eu e ao Outro no eixo
ontológico e epistemológico, pode, de fato e de direito, forçar o movimento para superar a
dicotomia sujeito-objeto?
Levando em conta o que abordamos até o momento, podemos dizer que o Mito,
enquanto conteúdo ou forma, pode ser visto em sedutoras linguagens de Comunicação, a
serviço do Sistema Econômico, que o utiliza para fortes apelos consumistas. Também é
visível a interferência desse sistema na composição valorativa e na larga associação com
boa parte da comunidade científica para o fomento à pesquisa, como estratégia de
apropriação dos resultados obtidos. Fica, portanto, clara a manifestação da
instrumentalização da Razão, na perspectiva de captação e concentração de riquezas em
favor de uma minoria.
A instrumentalização do Conhecimento eleva a produção dos bens de consumo
através de estratégias de enaltecimento da Racionalidade Tecnológica, projetada como
modeladora na Comunicação Contemporânea. Além do mais, mitifica o sujeito (que detém
a linguagem técnica) ou o objeto (produto eletro-eletrônico), como responsáveis pelo novo
estilo que orienta o modo de ser, ver e pensar do conjunto dos indivíduos. A estratégia
ideológica associa-se ao Mito-Tecno-Lógico, visando pelo menos a dois objetivos: a)
separar, do processo comunicativo, a base epistemológica da base ontológica; b) fortalecer
a base econômica do sistema responsável pelas transformações;
No primeiro caso, a estratégia ideo-mitológica70 objetiva separar do processo
objetivo-subjetivo71, tanto os fundamentos epistemológicos que permitem a produção do
Conhecimento, quanto os sujeitos que interagem no processo. A intenção posta por essa
perspectiva, na verdade, visa a subtrair da relação sujeito-objeto os conflitos inerentes à
relação estabelecida entre os dois pólos, e apresentar, “mágica” ou “miticamente”, o
produto e cada pólo separadamente, na sua mais pura individualização.
Ao mitificar o sujeito como pólo regente da relação, os Meios de Comunicação
podem, por exemplo, apresentar uma notificação com apelo interpretativo para o conteúdo
(mítico-epistemológico) centrado nesse elemento. O discurso apresentaria o sujeito como
“o melhor”, “o maior”, “o mais competente”, e renomado sujeito, seja ele indivíduo simples
do povo ou cientista que o mercado pagou para produzir a fórmula X ou Y. Por outro lado,
70 Com essa expressão, queremos expressar uma perspectiva metodológica, que comporta, na sua forma e no seu conteúdo, elementos lingüísticos e simbólicos da Ideologia e da Mitologia, unificadas como estratégias de interpretação discursiva.
se a mitificação for direcionada para o objeto, a notificação poderá ser a mesma, mudando
apenas o foco interpretativo para a forma (mítico-ontológico). Nestes termos, o destaque no
discurso seria para “o melhor”, “o maior”, “o mais rápido” e eficiente objeto. Estaria o
produto identificado pela sua marca, linguagem e sensualidade, pronto para ser comprado.
A ênfase valorativa nos pólos individualizados, tanto do sujeito como do objeto,
atualmente é vista como necessidade de relocação dos pólos, numa tendência para
ampliação e abertura entre os dois, ou seja, tanto o sujeito quanto o objeto tendem a seguir
caminhos opostos e extremados no Processo Comunicativo Contemporâneo, quanto mais
respaldo cognitivo obtenham. Cada um realiza-se, ontológico e epistemologicamente, nos
limites de sua esfera de atualização, seja negando ou incorporando, excluindo ou incluindo
o outro, conforme suas necessidades, ou aquelas que lhes são postas pelo Sistema
Econômico.
No segundo caso, quando o objetivo é fortalecer a base sistêmica responsável pelas
transformações - no caso o econômico - a estratégia ideo-mitológica revela sua verdadeira
face por assegurar as bases de sustentação do Sistema Capitalista, ou seja, os recursos
comunicativos disponíveis para modelar as novas relações são aplicados dentro do rigor
que a Racionalidade Instrumental lhes impõe.
Por sua vez, a abertura interpretativa fica por conta da linguagem audiovisual que se
encarrega de fundir ou - para usar um jargão contemporâneo - digitalizar símbolos e
fetiches, e reinventar mitos em fotos e fatos extraordinários. Estes servem como poderosos
instrumentos para a hábil arte de regular, soltar ou apertar o nó nas relações políticas e
econômicas, conforme a necessidade dos Sistemas.
71 Adotamos essa terminologia para designar uma relação de composição interativa entre o objeto e o sujeito. Com isso, estamos admitindo uma possibilidade de não-predominância, ou arrogância participativa, na
Assim, a mitificação e as transformações se desenvolvem a partir do que se decide
nos jogos de interesses, tomados como prioridades para o Sistema Econômico. A esse
Sistema interessa conhecer não apenas os pólos regentes da relação sujeito-objeto, mas
também, e principalmente, as bases nas quais ambos se objetivam ou subjetivam enquanto
processo. Na relação, o sistema não é mero coadjuvante, ou um espectador, fora do
processo comunicativo. Ao contrário, ele se reconhece, tanto no sujeito quanto no objeto,
conforme a força do pólo regente, melhor dizendo, este parece ser por ele determinado. Só
parece, pois é possível visualizar, como parâmetro normativo do discurso Contemporâneo,
a dimensão ideo-mítica, na qual o Mito e a Ideologia entram como categorias de análise.
Neste caso, o pólo regente extrapola a dimensão unilateral do sujeito e do objeto, mas sem
excluí-los do processo, re-estruturando as bases metodológicas e analíticas do discurso,
para uma interpretação também de perspectiva intersubjetiva.
Assim entendemos a estrutura básica da Comunicação Contemporânea, trabalhada
pela Racionalidade Discursiva e, voltada para a Intersubjetividade, mas também sendo
alimentada por elementos simbólicos carregados da Irracionalidade Mítica e Ideológica, os
quais surgem e interferem nas ações comunicativas modeladoras do “novo” perfil de
indivíduo.
Desse modo, a preocupação passa a ser a de identificar e administrar o conteúdo
interativo do “Nós”, como categoria consistente de análise metodológica, para saber como é
pensada e apreendida a mitificação do Conhecimento, sob a perspectiva intersubjetiva e o
que, de fato, propõe o “Nós”, para a normatização das relações que orientam o Discurso
Contemporâneo.
relação sujeito-objeto, para produção do Conhecimento.
Por fim, acreditamos que as noções do movimento de articulação e projeção da
Intersubjetividade, assumida como estratégia metodológica de compreensão da Realidade,
podem ser capazes de avançar no entendimento das mudanças que modelam o Processo
Civilizatório Contemporâneo. A idéia que nos instiga a prosseguir nessa empreitada aponta
para a Contemporaneidade ligada à Comunicação, gerida não mais pela unilateralidade do
Eu, ou do Outro, mas pela ampla e complexa rede de composições e interações que
respaldam as intenções do Coletivo: o Nós.
3. Ousando pensar uma outra Trama Mito-lógica.
Na tentativa de pensar alternativas para o modelo de interpretação que se pauta na
dicotomia sujeito-objeto, talvez possamos dizer que o conteúdo da Intersubjetividade não
indica simplesmente a negação do Eu, ou do Outro em favor do Nós, aparentemente
despretensioso, ou abstratamente pensado e concebido como interlocutor, mediador do
discurso mágico, capaz de fabricar soluções fáceis para bem conduzir o jogo comunicativo
de difícil articulação.
Na verdade, a Comunicação Intersubjetiva extrapola os processos discursivos que
configuram as relações comunicativas contemporâneas, ligando o eixo que cruza as
dimensões ontológicas e epistemológicas, em busca de parâmetros consistentes para a
aceitação ou negação dos princípios e normas que deverão orientar as ações coletivas.
Entendemos, pois, se justificar o esforço crítico-reflexivo para avançar além da autonomia
individualista do Eu - Tu, em favor de uma sintonia coletivista baseada no Nós.
Para seguir nessa empreitada, encontramos em Latour (2000)72 apoio teórico
significativo. O autor, em seu livro: “Jamais fomos modernos”, aborda a evolução histórica
da Modernização, mostrando as conseqüências advindas da proliferação de seres híbridos
de natureza e cultura, que a visão moderna teimou em deixar de fora, ou não dar a devida
importância no contexto interpretativo da relação sujeito-objeto.
Associadas à noção de híbrido73, tem-se as noções de “tradução ou rede”, sob cuja
base analítica o autor conduziu sua análise. Segundo ele, essas noções são mais flexíveis
que a noção de sistema, mais históricas que a de estrutura e mais empíricas que a de
complexidade.
Latour (2000) discutiu questões pertinentes à Modernidade e o que ela nos legou
como implicadores normativos e distintivos das relações contemporâneas, nos oferecendo
uma interpretação alternativa e ousada para que se venha a compreender o leque das
transformações geradas em nome da Modernização.
Para o referido autor, a Contemporaneidade participa da vivência híbrida,
configurada em redes sociotécnicas, ainda não apreendida e compreendida por grande parte
dos críticos e teóricos apegados à interpretação dicotômica dos Modernos, os quais teimam
em ver o movimento e as relações contemporâneas separadamente, seja como
naturalização, socialização ou desconstrução.
Um dos pontos focalizados por Latour (2000) para demonstrar fissuras no projeto
assumido pelos Modernos diz respeito ao que foi deixado de fora do modelo interpretativo,
72 Latour, Bruno. Jamais fomos modernos. São Paulo - SP: Editora 34, 2000. 73 O conceito de híbrido é amplo em Latour. Contrapondo-se à idéia de “puro”, refere-se a toda mistura que dá origem a seres e coisas em um contexto de relação sociotécnica, resultado do amálgama de Natureza e Cultura. Nessa perspectiva, o autor quer contrapor-se à visão separatista e dicotômica dos Modernos, com uma interpretação que dá espaço para o que fica fora dessa interpretação. Tudo o que não é aceito, apreendido, filtrado ou purificado pelo sujeito ou pelo objeto é traduzido em híbrido e constituído em rede de
processamento.
seja pelo sujeito, seja pelo objeto. Na verdade, é o contexto no qual ocorre a proliferação
dos híbridos, os quais, por não conseguirem acomodar-se aos limites da interpretação
fechada dos Modernos, geram um Movimento paralelo de mudanças que acaba atropelando
os princípios formais que medeiam as relações. Segundo esse autor:
(...) Quando surgiam apenas algumas bombas de vácuo, ainda era possível classificá-las em
dois arquivos, o das leis naturais e o das representações políticas, mas quando nos vemos
invadidos por embriões congelados, sistemas especialistas, máquinas digitais, robôs
munidos de sensores, milho híbrido, bancos de dados, psicotrópicos liberados de forma
controlada, baleias equipadas com rádio-sondas, sintetizadores de genes, analisadores de
audiência, etc; quando nossos jornais diários desdobram todos estes monstros ao longo das
páginas, e nenhuma destas quimeras sente-se confortável nem do lado dos objetos, nem dos
sujeitos, nem no meio, então é preciso fazer algo (Latour: 2000 p. 53).
Na sua linha de raciocínio, Latour (2000) partiu do pressuposto de que o
moderno74 se difundiu historicamente, tanto no plano teórico quanto no plano prático, pela
dupla separação do sujeito e do objeto, do interno e do externo. Atualmente esse modelo
interpretativo está sendo revisto e redefinido para se ampliarem os limites de expansão da
aceitação do “diferente”, do “híbrido”, do “novo”, embora, ainda dentro da visão moderna
de “purificação” ou “proteção” dos pólos regentes, preocupando-se apenas em adequar os
conflitos e as divergências nas novas estratégias de convivência dos sujeitos e dos objetos.
No jogo de estratégias para acomodar a visão moderna, Latour (2000) apontou três
grandes tendências filosóficas: uma preocupada em reforçar os extremos, na separação
74 Para Latour (2000), moderno designa dois conjuntos de práticas totalmente diferentes que, para permanecerem eficazes, devem permanecer distintas, embora recentemente tenham deixado de sê-lo. Um dos conjuntos de práticas o autor admite que comporta o papel de misturar seres e coisas para gerar híbridos de Natureza e Cultura. O outro conjunto faz o papel inverso: separa, de um lado, humanos e não-humanos do
entre o sujeito e o objeto; outra preocupada com o vazio deixado entre os pólos regentes, ou
seja, na mediação entre o sujeito e o objeto; e a terceira estratégia, preocupada
principalmente em isolar o pensamento do Ser, do pensamento dos Entes. No caminho
analítico-discursivo, o autor percorre o paradoxo moderno, descrevendo etapas teórico-
interpretativas da Modernização, demonstrando o que nos prende a ela e o que dela
devemos tomar para projetar nossa emancipação (Cf. Latour: 2000 p. 56).75
Latour (2000) nos oferece uma breve trajetória da Modernização, com recheios de
ingenuidade e ousadia dos Modernos, motivados por suprimir as trevas para depois edificar
e iluminar o paraíso dos humanos - a Civilização -, distinta dos outros, dos bárbaros, os
não-humanos:
(...) A modernização, mesmo tendo destruído a ferro e sangue quase todas as culturas e
naturezas, tinha um objetivo claro. Modernizar permitia distinguir claramente as leis da
natureza exterior e as convenções da sociedade.(...) o passado era mistura bárbara; o futuro,
a distinção civilizadora. (...) os modernizadores sabiam que ilhas de barbárie permanecem
nos locais onde a eficácia técnica e o arbitrário social, estão por demais misturados. Mas em
breve teríamos completado a modernização, liquidado estas ilhas, e estaríamos todos sobre
um mesmo planeta, todos igualmente modernos, todos igualmente capazes de tirar proveito
outro. Segundo esse autor, a Contemporaneidade convive com o paradoxo moderno, o qual quanto mais nos proibimos de pensar os híbridos, mais seu cruzamento se torna possível (Cf.Latour: 2000, p.17.). 75 Latour, apesar de colocar essas três grandes estratégias numa relação de conjunto, admite que cada uma delas percorre o paradoxo Moderno à sua maneira. Na primeira dessas tendências, o autor focaliza as figuras de Kant, Hegel e Habermas, para os quais atribuiu o papel de transformar uma simples distinção em separação ainda maior. Com Kant, as coisas-em-si tornam-se inacessíveis e o sujeito transcendental distanciou-se infinitamente do Mundo. Com Hegel, a dialética tentou evitar a contradição kantiana entre purificação e a mediação. Intensificou-a ainda mais. A Habermas atribuiu o esforço para proteger o projeto moderno, à custa de desfazer uma certa confusão entre sujeitos falantes e pensantes e a pura Racionalidade natural e Técnica permitida pela antiga Filosofia da Consciência. Mas o esforço despendido apenas serviu para aumentar o abismo entre os objetos conhecidos pelo sujeito e a Razão Comunicacional. Como referência para a segunda tendência, Latour apresenta a Semiótica, ou Semiologia. Segundo o autor, ao reforçarem em demasia o papel do discurso e da linguagem como mediadoras do sujeito com o Mundo, constituíram uma referência simbólica de autonomia da linguagem que não facilita a conexão entre os pólos discursivos. Na terceira vertente, o autor focalizou a figura de Heidegger, a quem atribuiu o papel de ter traçado um ponto central, onde tudo está contido, longe tanto dos sujeitos, quanto dos objetos (Cf. Latour: 2000 p.56-70).
das coisas que escapam, para todo sempre, à sociedade: a racionalidade econômica, a
verdade científica, a eficácia técnica (Latour: 2000 p.129).
Na seqüência da sua abordagem, o autor supracitado disponibilizou uma série de
elementos e fatores que demonstram o erro dos Modernos. A modernização, a iluminação,
ou a purificação dos impuros, dos não-humanos, dos híbridos, não deram conta de
harmonizar o ambiente paradisíaco imaginado pelos Modernos. Ao contrário, ampliaram-se
as ilhas de barbárie e, em grande escala, os híbridos proliferaram, a ponto da “terra
prometida”, idealizada pelos Modernos, não conseguir abarcar ou absolver os colonizados.
(...) A temporalidade moderna dava a impressão de uma aceleração contínua, relegando ao
vazio do passado, massas cada vez maiores de uma mistura de humanos e não-humanos. A
irreversibilidade mudou de campo. Se há uma coisa da qual não podemos mais nos livrar é
das naturezas e das massas, ambas igualmente globais. A tarefa política recomeça da estaca
zero. Foi preciso mudar completamente a fabricação de nossos coletivos para absolver o
cidadão do século XVIII e o operário do século XIX. Será preciso uma transformação
equivalente para abrir espaço para os não-humanos criados pelas ciências e técnicas (Latour:
2000 p.134).
Desse modo, Latour (2000) nos oferece uma alternativa que ao mesmo tempo é um misto
de frustração em relação aos descaminhos dos Modernos, mas também esperança de que
nem tudo está perdido. O autor vê a possibilidade de pelo menos conservar na
Contemporaneidade as luzes da Modernidade, sem, contudo, adotar suas linhas diretrizes de
desenvolvimento.
Em sua obra “A Esperança de Pandora”, Latour (2001)76 voltou à questão dos
Modernos e ao legado que estes nos deixaram como herança da visão dicotômica sujeito-
objeto, segundo a qual a Contemporaneidade deveria continuar a separação entre o “velho”
e o “novo”, o “mesmo” e o “diferente”, o “bárbaro” e o “civilizado”, o “antigo” e o
moderno” etc.
Entretanto, esse autor fez questão de reforçar que sempre vivemos num mundo
híbrido, constituído ao mesmo tempo de deuses, pessoas, estrelas, elétrons, usinas nucleares
e mercados, de tal forma que, hoje, constatada a ineficiência do projeto dos Modernos, cabe
a nós transformá-lo em "desordens" ou em um "todo orgânico" ( Latour: 2001, p. 30).
Na intenção de nos levar por caminhos que demonstrem a ineficiência do Projeto
Moderno e, conseqüentemente, os limites do paradigma sujeito-objeto, o referido autor nos
oferece elementos teóricos e práticos para se pensar a articulação dos vários níveis de
conhecimento que definem e distinguem a subjetividade e a objetividade, na tentativa de
aproximar os pólos opostos, o sujeito e o objeto.
Para ilustrar sua idéia e melhor se fazer entender, Latour (2001) tece seus
argumentos a partir de uma proposição simples, “Armas matam pessoas”, a qual hoje serve
de slogan a campanhas contra a violência e a favor do desarmamento. Na seqüência
demonstrativa, o autor nos mostra que, no jogo de relações e interesses econômicos e
comerciais, a proposição é replicada pelos fabricantes de armas e munições, com outra
proposição: “Armas não matam pessoas; pessoas matam pessoas”.
Criada a polêmica em torno da questão, Latour (2001) passou a analisar os vários
argumentos em torno do tema. Restringiremos a sua análise, destacando os pontos centrais
76 Latour, Bruno. A Esperança de Pandora: ensaio sobre a realidade dos estudos Científicos. Bauru – SP: EDUSC, 2001.
desses argumentos que conduziram à conclusão do autor. As duas proposições acima
levaram-no a desenvolver uma versão materialista e outra sociológica.
A primeira proposição - “Armas matam pessoas” - assume a perspectiva
materialista, por tratar a arma a partir dos seus componentes materiais irredutíveis às
qualidades sociais do atirador. O argumento principal dessa versão pauta-se pela idéia de
que, por causa da arma, o cidadão ordeiro, bom camarada, torna-se perigoso. Enquanto que
os defensores da segunda proposição, assumindo uma perspectiva sociológica, dirão que a
arma não faz nada sozinha. Esta é apenas uma ferramenta, um meio, um veículo neutro à
vontade humana. Sendo o atirador um bom sujeito, a arma será usada com prudência e só
matará quando necessário (Latour: 2001, p. 204-5).
Nas palavras do autor, a versão materialista admite que:
(...) o cidadão ordeiro fica transformado quando carrega armas. O bom sujeito que,
desarmado, poderia simplesmente enfurecer-se pode assassinar caso deite mão a um
revólver – como se o revólver tivesse o poder de metamorfosear. (...) assim os materialistas
adiantam a tese intrigante de que nossas qualidades como sujeitos, nossas competências e
nossas personalidades dependem daquilo que trazemos nas mãos (Latour: 2001, p.204).
A versão sociológica dos fabricantes, diferentemente dos primeiros, afirma que:
(...) a arma acrescenta alguma coisa, embora não à condição moral da pessoa que a
empunha. (...) a única contribuição da arma consiste na aceleração do ato. Matar com
punhos ou lâminas é apenas mais lento, mais sujo, mais nojento. Com uma arma mata-se
melhor, mas ela em nada modifica o objetivo da pessoa. Desse modo, os sociólogos
apresentam a perturbadora sugestão de que podemos dominar técnicas, as quais nada mais
são que escravos flexíveis e diligentes (Latour: 2001, p.205).
Na fusão das teses acima, o autor discute a questão: Quem ou o que é responsável
pelo ato de matar? Ele responde a esta e outras questões, abordando significados para o
termo “mediação” e ressaltando o que é acrescentado aos agentes envolvidos – no caso a
arma e o sujeito que a empunha.
Nesse sentido, Latour (2001) afirma que há duplo equívoco por parte dos
materialistas e dos sociólogos, no que diz respeito às duas proposições apresentadas: tomar
como ponto de partida as essências dos sujeitos ou dos objetos, fato que inviabiliza avaliar
o papel mediador tanto das Técnicas quanto das Ciências, posto que sujeitos e objetos,
quando analisados na forma de proposições, não podem ser considerados pólos fixos
(Latour: 2001 p. 207).
O autor supracitado recorre a um significado do termo “mediação”77, próximo do
significado de “translação” ou “deslocamento de objetivos”, o que considera ocorrer com a
arma e com o sujeito que a empunha. Nesse caso, segundo o autor, cria-se um vínculo antes
inexistente entre os dois pólos, que de uma certa forma os modifica.
Outrossim, para Latour (2001), a visão dicotômica entre sujeito e objeto impede de se
pensar na possibilidade de que não são nem as pessoas nem as armas que matam. A
responsabilidade pela ação deve ser dividida entre os vários envolvidos (Latour: 2001, p.
208).
Desse modo Latour (2001) constrói indicadores de que o paradigma Moderno
sujeito-objeto não mais dá conta de abarcar as contradições ou mesmo as próprias adições
que contribuíram para a constituição da Contemporaneidade. Esta não comporta mais a
77 O autor trabalha com a idéia de que a mediação é mais ampla que o termo “intermediário”. Ela significa um evento ou um ator que não podem ser exatamente definidos pelo que consomem ou pelo que produzem. Para o autor, “intermediário” pode ser definido por aquilo que o provoca. Enquanto que mediação sempre ultrapassa sua condição ( Latour: 2001, p. 351).
adequação interpretativa dos objetos alojados apenas na dimensão da natureza, fora do
sujeito. Ou a compreensão do sujeito, apenas no limite do que a Sociedade lhe impõe como
normatização das relações.
(...) o equívoco do paradigma dualista foi sua definição de humanidade. Até a forma dos
humanos, nosso próprio corpo, é em grande medida de negociações e artefatos
sociotécnicos. Conceber humanidade e tecnologia como pólos opostos é, com efeito,
descartar a humanidade: somos animais sociotécnicos e toda interação humana é
sóciotécnica.(...) a ilusão da modernidade foi acreditar que, quanto mais crescemos, mais se
extremam a objetividade e a subjetividade, criando assim um futuro radicalmente diferente
de nosso passado. Após a mudança de paradigma em nossa concepção de ciência e
tecnologia, sabemos agora que isso nunca acontecerá e, na verdade, nunca aconteceu.
objetividade e subjetividade não são pólos opostos, elas crescem juntas e crescem
irreversivelmente (Latour: 2001, p. 245).
Como conteúdo do novo paradigma, Latour (2001) sugere um quadro
compreensivo, no qual os destaques da Contemporaneidade, figurados pela Ciência e
Tecnologia, apareçam como dimensões socializadoras entre humanos e não-humanos, de
modo que “moderno” não signifique um distanciamento crescente entre Sociedade e
Tecnologia ou mesmo sua alienação. Ao contrário, seja sinônimo de cumplicidade, ou,
como o próprio autor admite, a intimidade aprofundada pela trama cerrada entre ambas
(Latour: 2001, p.225).
Para partir o ‘cabo de guerra’ entre o sujeito e o objeto e aproximar os dois pólos na
mesma ação, a teoria e a prática, Latour (2001) trabalhou com a idéia de que os Modernos
usaram o martelo da crítica para destruir todos os ídolos e os fetiches que estivessem ao
alcance da Razão, para poderem edificar o seu projeto de mundo, metodologicamente
construído na segurança que os fatos científicos lhes ofereciam.
O esforço de Latour (2001) ocorre então no sentido de mostrar que fatos e fetiches
participam da mesma unidade: os fatiches.78 A quebra na ligação entre “fato” e “fatiche”,
no contexto dos Modernos, foi para “libertar” a Razão, a Ciência, dos grilhões dos Mitos,
dos ídolos, dos maus pensamentos que obscurecem a retitude do conhecer e do fazer,
caminhos reservados aos iluminados, aos racionais.
Para restituir a ligação acima descrita, entre saber e fazer, teoria e prática, sem a
conotação de privilégio polarizado aos fatos ou aos fetiches, ao sujeito ou ao objeto, a um
mundo dentro (a mente) e a outro fora (a natureza), o autor assumiu o fatiche como ação,
mediadora e não polarizadora, de eventos.79 No entender de Latour, a ação não diz respeito
ao domínio, nem do sujeito sobre o objeto, nem do objeto sobre o sujeito, mas à ação
mediadora.
Ao acordo modernista, pautado na dicotomia sujeito-objeto, o autor não oferece
alternativas mágicas para a negação, acomodação ou superação, embora, ao concebê-lo
como modelo ultrapassado para se compreender a Contemporaneidade, aposta em ações
que ousam pensar o diferente e abandonar a idéia da mente que, mesmo isolada do Mundo
exterior, admite certezas sobre ele. Ações que reúnam Natureza e Sociedade, no mesmo
78 O autor nos lembra que fato e fetiche podem ser remontados a uma mesma raiz - fatum, com vínculos no português, fazer. Na verdade, o autor sugere a possibilidade de fato (conhecimento) e fetiche (crença) terem sido drasticamente separados pela crítica dos Modernos, os quais atribuíram aos fatos uma maior composição da Razão. Ao fetiche coube o vazio significado de crença, projetado pelos desejos, numa desesperada tentativa de participar do sentido da realidade. O termo fatiche é uma alternativa encontrada pelo autor para representar a ligação, quebrada pelos Modernos, entre fato e fatiche.79 O autor tomou emprestado o termo evento, do filósofo Whitehead, que o usou para substituir a noção de descoberta, direcionando a atenção para a historicidade dos descobridores e não para o objeto descoberto. Latour usou o termo, para substituir a idéia de ação polarizada no sujeito, ou no objeto, ou mesmo de contradição como admite a Dialética. Evento, enquanto ação, aproxima-se da idéia de bifurcação, ou circunstâncias, algo surpreendente pelo feito e pelo fazer (Latour: 2001, p.322).
coletivo80de entidades socializadas. Ações que, na perspectiva de Latour (2001), são
sutilmente assumidas por aquilo sobre o que se exerce (Latour: 2001, p.340).
80 Latour assume o termo coletivo, para substituir ao termo sociedade que é um artefato imposto pelo acordo modernista. Coletivo, para esse autor, refere-se às associações de humanos e não-humanos (Latour: 2001, p. 346).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percorremos, neste estudo, os caminhos convergentes e divergentes do que
afirmamos constituir, na Contemporaneidade, a Trama Mito-Tecno-Lógica. Fizemos uso de
várias interpretações da História do Conhecimento Humano, ao analisar os caminhos e
descaminhos tomados pela Racionalidade. No entanto, nossa atenção esteve
particularmente voltada para a relação Mito-Razão. Durante a análise estivemos procurando
Saber se o conteúdo e a aplicação da Racionalidade, historicamente constituída, teriam
anulado a expansão e a convivência da Razão com o Mito.
A abordagem exigiu organização sistemática das idéias, posturas e intenções assumidas como análise, através das quais procuramos apreender as ligações, rupturas e articulações entre os conhecimentos que fundamentaram as bases do que chamamos de Modernização.
Faremos, pois, neste momento, uma breve retomada dos principais aspectos aqui desenvolvidos, a fim de melhor visualizar horizontes e possibilidades de aplicação dos conteúdos apreendidos. Podemos dizer que trabalhamos, desde o início, com o que representou o Movimento de Modernização do Ocidente, adotando, como primeira hipótese, a idéia de que o Ocidente, para difundir sua Racionalidade, incorporou o espírito da Modernidade e adotou, como estratégia, a teoria da tábua rasa, em sua relação com os povos e nações não-modernas. Desse modo, investiu na idéia mitificada da Superioridade Racional, e partiu para a catequização do Mundo, acreditando proporcionar aos indivíduos, a libertação dos efeitos da Irracionalidade e da própria ignorância do passado vivido sob o domínio do Mito.
Em alguns momentos da análise da trajetória do Conhecimento Humano,
percebemos a convivência forçada entre o Mito e a Razão, indicando o primeiro apenas
como estágio a ser superado pelo segundo, pelas estratégias da Racionalidade Humana.
Além disso, encontramos indicadores demonstrando que a auto-suficiência da Razão quase
anulou por completo a possibilidade ou interferência dos Conteúdos das Interpretações
Míticas. De modo geral, foi possível perceber que houve, na perspectiva Ocidental, um
grande investimento em assumir a Racionalização do Mundo, como caminho seguro para a
Evolução da Raça Humana.
Nesse sentido, a dicotomia Mito-Razão passou a ser aprofundada com ênfase na(s)
verdade(s) proveniente(s) da Racionalidade. Com isso também se afirmaram as
divergências nos caminhos e nos métodos do conhecer, cuja perspectiva racional procurou
fechar, pelo menos durante muitos anos, os caminhos de projeção do Mito como dimensão
possível a ser levada em conta nos processos de organização, sistematização e produção dos
Conhecimentos . As interpretações do Mundo, mais seguras e convincentes, deveriam
assim, a todo custo, excluir os elementos dos discursos míticos, bem como outras
manifestações do Saber, próximas da composição mítica.
Desse modo, conduzindo nossa análise a partir dos passos dos investimentos
despendidos na Racionalização do Mundo, vimos que os investimentos econômicos é que
garantiram suporte e aceitabilidade à Racionalidade. Esta foi aceita como modo seguro de
interpretar ou interpenetrar determinados contextos das relações comunicativas, seja
construindo, desconstruindo ou até mesmo destruindo fenômenos.
Sendo assim, a Razão seguiu no curso do desenvolvimento da Humanidade, até à
Contemporaneidade, reforçando a visão dicotômica, Razão-Mito, Bom-Mau, Racional-
Irracional, Modernos-Não-Modernos.
Atualmente, mesmo ainda em alta a tese da auto-suficiência da Razão, a visão
excludente do Mito, bem como suas bases interpretativas, está sendo questionada e revista
no contexto das relações contemporâneas. Ao nosso modo de ver, o fato do Mito da
Superioridade da Razão ter caminhado junto com o Processo de Ocidentalização do Mundo
contribuiu para esconder a evolução paralela do Mito. A ênfase nos princípios
modificadores da Racionalidade Técnica e Científica, aplicados em função da idéia de
“Moderno” relegou aos Conteúdos Míticos o plano das aparências, sendo, com eles,
dissolvidos também importantes valores educativos.
O Mito, ao nosso ver, só passou a ser notado e levado em conta, quando os
resultados dos Conhecimentos Técnicos e Científicos assumiram formas e conteúdos da
Tecnologia. Esta Racionalização do Conhecimento, somada à fusão dos interesses
econômicos, foi alvo de grandes investimentos financeiros, visando a perspectivas mais
progressivas e mais lucrativas. Esse contexto favoreceu uma abertura para aproximações
com o Mito. Interpretamos o conjunto desses fatores, no contexto da Modernização, como
configurações da Trama Mito-Tecno-Lógica.
Na seqüência da nossa trajetória analítica, trabalhamos com a idéia de que o
resultado da Racionalização dos Saberes Técnicos e Científicos, fundidos como
Tecnologia, incorporou o status do “novo” e o espírito de “Moderno” ao sentido
mitológico, para melhor se apresentar cultural e socialmente. Com isso, o Mito-Tecno-
Lógico passou a ser o protagonista da Modernização, na perspectiva mais ampla possível, a
ponto de se manifestar como instrumento simbólico, capaz de expandir as fronteiras entre o
Sagrado e o Profano, entre o Mito e a Razão.
Assim, podemos dizer que o foco principal da nossa análise foram as
contradições da Modernização Contemporânea, vistas no jogo da (Ir)Racionalidade,
gerando o que identificamos como Trama Mito-Tecno-Lógica. No bojo dessa Trama
encontramos envolvimentos dos Conhecimentos Técnicos e Científicos e Tecnológicos,
com os Conteúdos Míticos. Intermediando, ou mesmo articulando, a relação e a
aplicação dos citados Conhecimentos, encontramos o caráter ideológico, responsável
pela projeção dos produtos tecnológicos, assimilados como instrumentos progressivos da
Modernização do Mundo.
Toda essa Trama tem como pano de fundo o contexto das relações de Comunicação, que oferece o ambiente e os meios mais rápidos e eficientes para inventar e reinventar idéias e valores contemporâneos, os quais movem o jogo da Modernização. Em nossa análise, encontramos traços dos padrões de cientificidade, assumidos como instrumento de legitimidade da Racionalização Econômica, e usados para estimular a aceitação do atual Modelo de Modernização. Assim, mitifica-se a dimensão Instrumental da Racionalidade para estimular a transição e a adequação do Não-Moderno ao Moderno, através dos apelos ao Progresso, em reconhecimento aos avanços tecnológicos.
Destacamos também a dimensão “formadora” do Mito-Tecno-Lógico, traduzida
nas ações da Racionalidade Instrumental, aplicadas aos processos formais da Educação,
pelos quais a Escola se orienta para conduzir o processo de formação dos indivíduos.
As encruzilhadas da Modernização conduzem, inevitavelmente, aos caminhos da
Educação. Assim, pelos caminhos analíticos, também, chegamos à Modernização desta
estabelecendo relações entre a Racionalidade Instrumental inserida nos instrumentos
tecnológicos e a (Ir) Racionalidade projetada pelas políticas educacionais.
Procuramos, ainda neste estudo, identificar referenciais teórico-discursivos
alternativos, para compreender a dimensão da Educação que se apresenta no contexto
da Modernização brasileira, tendo claro que os processos educativos deverão ser
canalizados para a dimensão crítico-reflexiva da Racionalidade, como forma de ir
além da Formação Instrumental, implícita no projeto de Informatização destinado às
escolas, públicas e privadas. Assim, vimos a necessidade de compreender os elementos
técnicos e pedagógicos da Informatização da Educação, e suas implicações para a
Modernização Social.
Outrossim, vimos idéias como a de “novo” e de “Moderno” surgirem associadas a resultados da superação dos conflitos interiores dos indivíduos, pela Razão. Por outro lado, a própria Razão Humana foi assumida como fenômeno fora dos próprios limites da Racionalidade, ou seja, como “dádiva dos deuses”. Essa aproximação entre o Mito e a Razão foi objeto de muitos conflitos teóricos e práticos durante todo o Processo Histórico-Evolutivo da Humanidade, seja por escamotear ou excluir um, ou outro, pólo da ligação, seja por incluí-los na intensa teia das relações comunicativas. Para desenvolver a trama entre o Mito e a Razão, partimos dos recortes históricos do Renascimento e do Iluminismo. Apoiado nas principais idéias difundidas nos referidos Movimentos, o passo seguinte foi investigar o modo de pensar e agir do que se convencionou por “Moderno”. Por esse caminho, chegamos a identificar o “Moderno” intrínseco ao processo de Racionalização das ações dos indivíduos. Sob essa perspectiva, percebemos que estes desenvolveram sua capacidade interior, sua Racionalidade, produzindo conhecimentos em diferentes áreas do Saber. Por sua vez, procuramos deixar claro, ao longo da abordagem, que a configuração da perspectiva do Moderno, neste estudo, não Poderia ser vista e concebida como dimensão evolutiva linear e unilateral. A Técnica e o Saber a ela inerentes, bem como os desdobramentos que culminaram na construção do Conhecimento Científico e sua fusão mais recente com a Tecnologia, participaram de articulações históricas muito mais amplas e anteriores ao contexto analisado.A partir das questões acima, nossa preocupação foi estabelecer ligações contextuais no que
representou a união ou ruptura do Mito com uma Razão. Daí, se justificar a nossa atenção
na busca por referências contextuais que demonstrassem a síntese do espírito do Homem
Renascentista, visto que, a partir dela, Poderíamos estar mais perto dos fundamentos que
modelaram a Racionalização e a Modernização no Mundo Ocidental. Nessa perspectiva,
procuramos focalizar as orientações do Iluminismo, como o possível “começo” para a nova
caracterização da História da Racionalidade Humana.
Na seqüência do raciocínio anterior, aprofundamos a dicotomia da relação Mito-Razão,
ressaltando a caracterização atribuída a cada um dos pólos do Conhecimento. Os rumos
tomados em função do pólo predominante caracterizavam ou o caminho escuro das
sensações, dos Mitos e da ignorância, ou o caminho oposto, o da luz, da Razão. Através da
nossa análise, mostramos que foi em torno dos conflitos Mito-Razão, Sujeito-Objeto que a
Comunidade Científica se organizou e se projetou como porta-voz da Racionalidade e do
Método Científico, como caminho seguro para o desenvolvimento da Raça humana.
A partir do novo contexto, passamos a ressaltar a nova caracterização do Conhecimento, demonstrando pontos de intersecção e/ou rupturas da Técnica, da Ciência e do Mito. A idéia de Progresso foi o referencial adotado para mediar a articulação entre essas três esferas do Conhecimento. Desse modo, reforçamos a tese de que os Conhecimentos da Técnica e da Ciência, identificados com o papel da Racionalidade, imprimiram o ritmo do Desenvolvimento Econômico e da Modernização Ocidental. Todo o processo acima referido ocorreu extremamente rápido, em função das inovações da
Técnica e da Ciência, as quais impulsionaram a produção e transformaram a estrutura
básica do Mercado Internacional. No rápido movimento das mudanças econômicas e
sociais, evidenciamos, como perspectiva fundamental das transformações, a renovação das
relações de exploração. As mudanças sociais, promovidas pela Racionalização Econômica,
assimilaram a dicotomia Saber-Poder disseminada nas relações dos Conhecimentos da
Técnica e da Ciência, incorporadas ao binômio Mito-Razão.
Por sua vez, encontramos aplicações do Método Científico mediando e, ao mesmo tempo,
reforçando a relação Saber-Poder. Em função desse método, chegamos às atitudes
mecanicistas predominantes na Europa dos séculos XVII e XVIII. Nesse contexto,
percebemos que as necessidades básicas do conjunto da Humanidade encontravam-se
vinculadas ao aumento da produção, para o qual a máquina determinava o ritmo do trabalho
e a qualidade do produto.
Assim, passamos a trabalhar com a idéia de que a Racionalidade Técnica e Científica era
responsável por estreitar os laços entre o Saber e o Poder. As metas e os objetivos traçados
pela Comunidade Científica ganharam o apoio significativo dos representantes da
Economia emergente, como alternativa para acelerar o Progresso Social e o
Desenvolvimento Econômico, na direção da Modernização, que se apresentava como o
futuro próspero da Raça Humana.
As formas e os conteúdos do citado futuro foram traçados sob a perspectiva do “novo” e do
“moderno”, tendo por base a mecanização dos processos produtivos, os valores e as novas
linguagens que começaram a aparecer e a interferir no conjunto da formação dos
indivíduos. Desse modo, podemos dizer que a Técnica e a Ciência, ao estabelecerem a
forma da Modernização, no padrão dos objetos técnicos e tecnológicos, ofereceram,
também, o conteúdo para legitimar a Racionalização Econômica.
Por outro lado, perguntamo-nos sobre os rumos da Modernização a partir das
invenções tecnológicas. Destacamos a forma e o conteúdo das políticas de
desenvolvimento, inteiramente voltadas para o consumo dos produtos técnicos e
tecnológicos, a fim de implementar os valores adotados pela Modernização, tais como:
prazer, segurança, conforto, comodidade, etc.
Nesse sentido, ao que nos parece, os resultados da aplicação dos Conhecimentos
Técnicos e Científicos não ficaram restritos apenas ao domínio interpretativo do
Homem Moderno sobre os fenômenos da Natureza. O Método Científico foi
intensamente aplicado, tanto no que diz respeito à apreensão dos princípios gerais da
Natureza, justificando a precisa manipulação dos dados em função da lógica das
Ciências da Matemática, quanto para justificar a ênfase demasiada na pureza dos
princípios da Racionalidade Humana e esconder possíveis impurezas advindas das
articulações políticas e econômicas.
Temos claro que a questão do Método Científico reflete a profundidade dos fatores
teóricos e práticos que tecem a complexa teia das relações, nas quais encontra-se
imersa a produção dos Conhecimentos, embora estivéssemos interessados em
estabelecer ligações entre a aplicação racional dos recursos técnicos e científicos e a
irracionalidade na manipulação dos resultados apresentados como Modernização
Social. A Instrumentalização dos processos produtivos, nesse contexto, vai além dos
modos de produção.
Nosso objetivo passou a ser, portanto, demonstrar a articulação dos Conhecimentos Técnicos e Científicos com os interesses da Racionalização Econômica, promovendo a um só tempo a reorientação da Racionalidade Moderna e da dicotomia Mito-Razão. Entendemos que a ênfase, e o empenho, no fortalecimento de tal articulação nos conduziram para compor, na Contemporaneidade, a trama do Mito-Tecno-Lógico em novas bases de relações comunicativas. Por outro lado, percebemos que as novas articulações mantinham-se ainda resguardas em velhos princípios capitalistas, de fortalecimento do Poder, a partir do controle das idéias e dos desejos. Empenhamo-nos, pois, em demonstrar as articulações da Racionalização Econômica no contexto contemporâneo da Modernização, desvelando o envolvimento do Mito com o Conhecimento Técnico-Científico, ao mesmo tempo em que procurávamos identificar o lugar do racional na Trama do Mito-Tecno-Lógico. Partimos da conservação dos princípios organizativos da Racionalidade humana, assumida como instrumento capaz de nos afastar dos conflitos e das interfaces apelativas do Irracional Mítico. Objetivamos captar os apelos sedutores dos conteúdos mitificados e diluídos nos discursos e nas relações comunicativas. Entretanto, os impactos da Racionalidade Tecnológica apontaram para direcionamentos diferentes, no tocante ao papel da Razão no contexto da Modernização e o seu afastamento em relação ao Mito. Percebemos que, tanto no que diz respeito às mudanças no mundo do trabalho, quanto no que se refere à nova configuração dos valores sociais e culturais, em vez de se ampliar a ruptura entre o Mito e a Razão, a relação se intensificou como instrumento de formação dos processos comunicativos contemporâneos, interferindo na elaboração dos princípios educativos e, conseqüentemente, na formação dos indivíduos.
Desse modo, o contexto das Comunicações, favoreceu a nova configuração da Modernização. Isso porque, além de gerar novas linguagens, proporcionou a abertura para difusão do Mito-Tecno-Lógico, de modo mais rápido e eficiente, através das redes de Informações. Essa perspectiva nos levou a admitir a hipótese de estarmos participando, atualmente, de um contexto histórico no qual predomina a lógica de reinvenção do Mito, como suporte de legitimação da Racionalização Econômica, tendo como participação efetiva, no dinâmico fluxo do ciclo Mito-Logos, a Técnica e a Ciência.
Outrossim, os instrumentos disponíveis no contexto contemporâneo reforçaram a tese de que o Mito-Tecno-Lógico se movimentou na ampla rede das informações culturais, sociais, políticas e econômicas, através das quais foram desenvolvidas artimanhas para desviar a Razão dos “retos” caminhos. Refiro-me, aqui, à ênfase demasiada atribuída à Racionalidade Instrumental, em detrimento da pouca atenção despendida para a Dimensão Crítico-Reflexiva da Racionalidade. Com isso, percebemos a clara finalidade da Trama Mito-Tecno-Lógica: a projeção do “novo” e sua respectiva acomodação nas Relações Comunicativas, através da simples assimilação aos apelos da Modernização.
No contexto de reinvenção do Mito, enfatizamos, como ponto fundamental dessa Trama, as mudanças ocorridas com os valores sociais e culturais, principalmente após o surgimento das marcas como identidade, ou (como alguns admitem), a alma dos produtos comercializados. Essas mudanças dizem respeito à incorporação dos valores míticos à Racionalidade Comunicativa e ao valor econômico que as marcas ganharam, em função dos lucros a partir da aceitação pelos consumidores. As marcas, ao nosso modo de ver, representam uma síntese da perfeita harmonia instrumental do Mito, da Técnica, da Ciência e da Tecnologia, posto que, ao mesmo tempo em que escondem os princípios míticos e ideológicos que as fundamentam, se oferecem como produtos da Racionalidade Comunicativa e instrumentos de transição do Não-Moderno para o Moderno. Desse modo, as marcas reforçam a nova flexibilização econômica servindo de instrumento indutor da Modernização, além de atualizar a política de exploração do capital financeiro e fornecer os parâmetros formativos para adequar a sociedade aos novos apelos do Mercado. Com isso, as marcas entram, também, como suporte e apoio estratégico da Racionalidade Instrumental, diluídas nos processos educativos, colocando a Escola como trampolim na reinvenção do Mito-Tecno-Lógico.Assim, a composição e a decomposição dos Saberes do Mito, da Técnica e da Ciência, na forma e no conteúdo, ocorrem sob orientação da Racionalização Econômica, com a finalidade de dar sentido e consistência à Modernização. Por outro lado, o Mito-Tecno-Lógico entrou na Contemporaneidade como protagonista do destino do Homem e do Mundo. E, ao ser permanentemente reinventado pelos recursos audiovisuais da mídia,contribuiu nas discussões paradigmáticas, redefinindo as dicotomias Mito-Razão, Sujeito-Objeto.Ainda no que diz respeito à Educação e às articulações do Mito-Tecno-Lógico, procuramos destacar, desde as origens da formação do Pensamento Moderno, uma possível ligação com os princípios formais e institucionais. Nesse sentido, percebemos que a educação formal dos indivíduos, nas suas origens, manteve estreita ligação com os processos da Racionalização Econômica investidos na função de modernizar. O que reforça a idéia de que a dimensão crítico-reflexiva da Racionalidade, no que se refere à Educação, cedeu espaço para a Racionalidade Instrumental, a qual se desenvolveu vinculada aos processos produtivos.De outra forma, os impactos sociais resultantes das distorções políticas e econômicas,
agravadas pelo Desenvolvimento Técnico e Científico, são reflexos do predomínio da
Irracionalidade, no jogo dos contrários Mito-Razão. Canalizando, pois, essa visão para os
processos educativos, é possível identificar o fosso entre os que se apropriaram dos
fundamentos técnico-científicos, e deles obtiveram o lucro e a acumulação de riquezas, e os
que se apropriaram das linguagens e dos instrumentos técnicos, como forma de acompanhar
a evolução tecnológica e manter o “status” de Moderno.
Ora, se admitirmos o papel institucional das escolas, seja como centros de formação
do caráter, institutos de difusão do Conhecimento, seja como entidades normativas,
controladoras do comportamento social, não Poderemos restringir seus conteúdos
formadores, apoiados apenas nas mudanças estruturais das sociedades, embora não
possamos negar que os impactos da Modernização e suas articulações com o Mito-
Tecno-Lógico legaram para à Educação Contemporânea, em específico, a Brasileira, a
incômoda situação do convívio com as incertezas.
Além do mais, na análise que fizemos sobre a Educação e os impactos sofridos no contexto da Modernização, o papel da Racionalidade Crítico-Reflexiva apareceu de forma tímida e retraída diante do fortalecimento da Racionalidade Instrumental, no que diz respeito ao tratamento das questões sociais. Podemos até dizer que, no conjunto das políticas sociais, as ações do Sistema Educacional costumam ganhar destaque nos programas eleitorais, como metas prioritárias no processo de Modernização, embora ainda seja grande o esforço e a luta dos educadores e da Sociedade Civil organizada, no sentido de buscar as mínimas condições materiais para garantir a Educação da grande massa dos indivíduos analfabetos à margem do Desenvolvimento Econômico e Social. . O contexto histórico que foi nosso objeto de análise, neste estudo, nos ofereceu elementos para situar as discussões da chamada Revolução Científico-Tecnológica, e o que dela nos chegou através do rápido movimento das mudanças ocorridas em nome da Modernização, principalmente através dos produtos da Microeletrônica e da Informática. Movimentamo-nos, por meio das discussões, procurando demonstrar que a nova configuração exigiu uma reorganização nos modos de conceber as relações de trabalho, provocando o surgimento de teorias e projetos de conteúdos políticos liberais e neoliberais, e apontando caminhos para a adequação da Política e da Economia às necessidades sociais. Por outro lado, a reorganização do atual contexto econômico e social não apresentará
resultados significativos se não levar em consideração o conjunto dos fatores aqui
desenvolvidos, como articuladores da Trama Mito-Tecno-Lógica. Assim, nos orientamos
pela possibilidade dessa Trama, nas Sociedades Contemporâneas, estar promovendo a
emergência de padrões culturais valorativos, pautados na falsa plenitude racional, ou de
padrões normativos que se estruturam em torno do vazio-ético-moral.
Consideradas as possibilidades acima descritas, Poderemos estar imersos numa trama de
características muito mais destrutivas do que construtivas. Nesse contexto, a dimensão
crítico-reflexiva da Racionalidade e a perspectiva educativa dos Conteúdos Míticos poderão
estar submetidas aos ditames da Irracionalidade. Há elementos indicadores de que as
mudanças que estão ocorrendo são resultado do jogo das articulações do Mito-Tecno-
Lógico.
A nova caracterização das Sociedades Contemporâneas, pautada fundamentalmente nas
incertezas, eleva nosso grau de expectativa em torno do movimento das mudanças que
estão ocorrendo no Mundo, bem como em torno da resposta que poderemos dar, no sentido
de resgate da nossa identidade cultural e do nosso papel social na composição do novo
contexto da Modernização. A Trama do Mito-Tecno-Lógico na reinvenção do Moderno,
como procuramos ressaltar neste estudo, oferece sérias implicações na Comunicação e na
Formação dos homens, com conseqüências diretas para as relações de construção do
Mundo Contemporâneo.
Em linhas gerais, o que procuramos desenvolver no conjunto das idéias postas aqui para
análise esteve relacionado a dimensões conceituais amplas do Mito, da Técnica, da Ciência
e da Tecnologia. Através dos referidos conceitos, destacamos parcerias historicamente
constituídas pelo jogo dos interesses políticos e econômicos como contribuição ao
desenvolvimento da idéia de Modernização. Desse modo, evidenciamos no movimento das
mudanças contemporâneas a idéia do presente como transição, que se consome na
consciência da aceleração e da expectativa do que há de diferente, como futuro.
Nossa intenção, neste estudo, não foi a de ficar meramente na extensão especulativa ou na
associação espontânea e superficial dos fatos e dos conceitos aqui desenvolvidos. O desejo
de conhecer foi incorporado ao esforço de compreender os fundamentos da Trama Mito-
Tecno-Lógica. Esta, por sua vez, conforme descobrimos, revela-se envolvida tanto da
Racionalidade como da Irracionalidade, para projetar o cenário da Modernização como
trajetória evolutiva do Ser no Mundo.
Outrossim, temos claras a extensão e complexidade intrínsecas ao conteúdo que foi objeto
da análise neste estudo, bem como a profundidade exigida para abordá-lo de modo
consistente. Muitos pontos apresentados talvez não tenham tido o aprofundamento
discursivo necessário ao pleno desenvolvimento, mas, pelo menos, buscamos situá-los e
atualizá-los nas questões principais das transformações pelas quais passam as Sociedades
Contemporâneas.
Os ataques que vem sofrendo o paradigma fundado na visão dicotômica sujeito-objeto, o qual se vê atacado de um lado pela Filosofia Analítica da Linguagem e, do outro, pela Teoria Psicológica do Comportamento, bem como as novas orientações das ações comunicativas articuladas em torno da Intersubjetividade, são apenas algumas demonstrações das redefinições que vêm ocorrendo, com extensões que já estão além das discussões no mundo acadêmico. Vimos que as alterações na trajetória interpretativa das Sociedades Contemporâneas entram
pela via ideológica, assumem o caráter mediador das ações comunicativas e extrapolam
seus limites informacionais, atuando como instrumento formador nos sistemas de
aprendizagem. Desse modo, para nós, fica claro que as novas orientações difundidas em
nome da Modernização resultam tanto em mudanças subjetivas, quanto em transformações
objetivas, alterando, ao mesmo tempo, as relações do Eu com o Outro, e do próprio
ambiente no qual ocorre a sistematização do Mundo e da Vida.
Por outro lado, acreditamos que os Conhecimentos resultantes da decodificação dos símbolos lingüísticos, os quais medeiam as relações sociais, poderão ser trabalhados nos processos educativos, de modo a redefinir as alterações provocadas pela Trama Mito-Tecno-Lógica, em direção a objetivos mais próximos das reais necessidades sociais. O caminho pode ser construído a partir do acesso aos objetos técnicos e tecnológicos, mas,
principalmente a partir da apreensão crítico-reflexiva das linguagens e dos recursos modificadores dos processos comunicativos. Buscar a diferença no que se apresenta mitificado no discurso e na comunicação entre os sujeitos e os objetos. Entendemos, pois, que o esforço concentrado e dirigido para a perspectiva acima sugerida quebrará elos importantes do Mito na lógica da Trama Contemporânea, ao mesmo tempo que aumentará a aplicação da Dimensão Crítico-Reflexiva da Racionalidade e diminuirá as atenções para a Dimensão Instrumental. Desse modo, acreditamos que estaremos contribuindo para diminuir os espaços das estratégias de manipulação gerada sob as orientações do Sistema Econômico, posto que, ao restringirmos a simples assimilação dos conteúdos da mitificação aos bens de consumo, também restringimos a própria mitificação do Conhecimento Subjetivo. Nesse sentido, combatemos o mero processo de Instrumentalização do Conhecimento que vem sendo apresentado à Sociedade e principalmente à Educação, como caminho fácil e seguro para alcançarmos os objetivos da Modernização. Atrelado a essa Instrumentalização, encontramos uma intenção castradora do cultivo da postura crítica dos indivíduos, camuflada nos bens de consumo, como recursos ao enaltecimento da Racionalidade Científica e Tecnológica, em sintonia com a visão moderna, modeladora da Comunicação Contemporânea.
Nessa perspectiva, caminhamos em nossa análise, para acreditar numa alternativa de quebra da Trama Mito-Tecno-Lógica, pautada numa dimensão de Mundo que saia dos limites propostos pela visão dicotômica, Sujeito-Objeto, Mito-Razão. Uma dimensão que extrapole a aceitação de pólos excludentes nas relações. Uma dimensão que não admita a unilateralidade do sujeito ou do objeto, mas, sem excluí-los do processo, re-estruture as bases metodológicas e analíticas do discurso, para uma interpretação mais ampla.
Ao que nos parece, pois, a Modernização é inevitável no Contexto Contemporâneo. Todavia não devemos deixá-la avançar pautada em papéis sociais e culturais, predefinidos por princípios da Racionalização, que se traduz como “purificadora dos impuros”, que humaniza os não-humanos ao modernizar os Não-Modernos. Temos clareza de que a Razão não deu conta de harmonizar o ambiente paradisíaco imaginado pelos Modernos.
Por outro lado, não podemos conceber a Modernização Contemporânea se desenvolvendo apenas na perspectiva linear, uniforme e invariável, de modo a atender apenas aos apelos da Racionalidade Instrumental. Entendemos que as contradições inerentes ao Modelo de Racionalidade (Instrumental) que hoje predomina como orientação da Modernização, devem ser questionadas e re-pensadas, com vistas a ampliar as bases interpretativas da Racionalidade para reforçar sua dimensão crítico-reflexiva.
Com isso, a Modernização passando a ser vista sob a dimensão crítico-reflexiva da Racionalidade que lhe dá suporte e orientação, teria suas contradições sob análise profunda e criteriosa, de modo a oferecer resultados e alternativas voltados para incluir, e não excluir, todos os que dela participam. Desse modo, ao ampliarmos as bases da Racionalidade Crítico-Reflexiva, Poderemos, ao mesmo tempo, promover a desmistificação do Mito da Racionalidade Instrumental e favorecer o surgimento do
movimento que reúne o Mito e o Logos, como princípio da Modernização e da Racionalização na sua dimensão mais humana.
Assim, podemos apresentar como uma possível conclusão deste estudo, após o longo
caminho analítico aqui percorrido, reforçar a necessidade de construirmos a
Modernização Contemporânea, sob a perspectiva da Racionalidade Crítico-Reflexiva.
A instrumentalidade da Razão, por sua vez, seria rediscutida e re-orientada
criticamente, para se compreender suas próprias contradições, a fim de melhorar a
comunicação entre a Razão e o Mito, a Racionalidade e a Irracionalidade, sem nos
ausentarmos do próprio movimento que os re-produz, ou os re-inventa, no Contexto
Contemporâneo.
As questões, as implicações, bem como as deduções e as possíveis conclusões,
aqui apresentadas e discutidas, não teriam sido viabilizadas de modo consistente, se não
tivéssemos mantido contato com o já produzido, na forma de idéias e resultados das
análises desenvolvidas por autores - citados neste estudo - que dedicaram e ainda
dedicam boa parte do seu tempo em aprofundar seus Conhecimentos das relações já
estabelecidas e daquelas que hoje são responsáveis pelo movimento histórico do existir
racional, ou não-racional, moderno, ou não-moderno.
Entre as déias que nos serviram de parâmetros interpretativos, para análise, as de Habermas, Axelos e Latour, deverão continuar a ser objeto dos nossos estudos e discussões. Habermas, por discutir em profundidade as questões da Racionalização, nos oferece suporte teórico-metodológico para repensarmos as Relações Comunicativas Contemporâneas, com ênfase na perspectiva Intersubjetiva. Axelos, por nos fazer ver a necessidade de pensarmos as mudanças contemporâneas, sob a ótica do jogo interativo do Mito e do Logos, na composição dos novos horizontes da Tecno-Ciência. E Latour, pela ousadia e preocupação com o resgate discursivo da Racionalidade Científica, não mais pautada na visão dicotômica sujeito-objeto, Mito-Razão, mas fundada na perspectiva de concebermos uma dimensão humana híbrida, constituída, ao mesmo tempo, de Cultura e Natureza. Assim, chegamos ao momento final da nossa análise, acreditando que o caminho à nossa frente é mais longo do que o percorrido. Após todo o percurso, estamos cônscios de que muitas idéias aqui desenvolvidas ainda deverão ser lapidadas e fundidas até o momento de serem consumidas como instrumento de modificação do que já está posto. Mas, dentro das perspectivas previstas para realização e desenvolvimento deste, acreditamos ter feito o melhor como contribuição para compreender e desconstruir a trama da Modernização Contemporânea.
Nesse sentido, nos somar-nos-emos a outros que também já afirmaram seu desejo de lutar para restringir os espaços da Trama Mito-Tecno-Lógica na nossa Sociedade. Buscamos, neste estudo, através dos várias interpretações analisadas e das ligações contextuais constituídas, fundamentos para reforçar nossa postura crítico-reflexiva na Racionalidade, e desse modo, pensar estratégias de desconstrução da trama que nos envolve cotidianamente.
Assim, acreditamos que o Contexto Contemporâneo não comporta mais uma simples
adequação interpretativa dos objetos, alojados apenas na dimensão da natureza, fora do
sujeito, ou uma compreensão do sujeito restrita aos limites do que a Sociedade lhe impõe
como normatização das relações. Ao nosso ver, “libertar” a Razão, a Ciência, a Técnica e o
próprio Mito, da Trama Mito-Tecno-Lógica, exige ousadia, coragem e esforço de muitos.
Por fim, reafirmamos a necessidade de continuar ampliando o contexto discursivo em torno
das questões aqui desenvolvidas, articulando novas idéias e estratégias de apreensão dos
processos inerentes as mudanças da Contemporaneidade. Desse modo, encontramo-nos,
neste momento, não fechando a discussão da Modernização e do Mito-Tecno-Lógico que a
representa hoje, mas, ao contrário, abrindo ainda mais o leque interpretativo para abstrair
possibilidades de novas leituras e novos caminhos discursivos, através dos quais
renovaremos os conhecimentos e as questões sobre a temática.
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i Marcuse citado por Habermas: 1997, p. 49.
CAPITULO 2
O Mito, a Técnica e a Ciência Contemporânea.
(...) o florescimento do mito não reflete mais que massivamente o
desenvolvimento da técnica, a técnica por sua vez, mais sofisticada, não leva em
conta elementos míticos que trabalhem sua ignorância. As conquistas técnicas mais
avançadas são, em uma certa maneira, prefigurada mitologicamente, mas, a
mitologia, ela mesma, é trabalhada no interior de forças e aspirações tecnicistas.
Mito e técnica se separam e se juntam à luz do logos e de suas "logias”.
.
(Kostas Axelos).
Segundo Capítulo O Mito, a Técnica e a Ciência Contemporânea.
A função do mito é a de revelar modelos e fornecer uma significação ao mundo e à
existência humana (Mircea Eliade)
1. A perspectiva mítica no Desenvolvimento Econômico e na Modernização
Ocidental.
O Mito suas mais controvertidas potencialidades pode nos oferecer ricos
referenciais para compreendermos a natureza humana ou o que dela se abstraiu nas relações
estabelecidas tanto no plano coletivo como no plano individual. Por outro lado, isso implica
caminhar por armadilhas que envolvem paradoxais conteúdos explicativos, em diferentes
estratégias para interpretar e apreender a realidade.
Eliade (1998)i, por exemplo, admite que conceituar ou definir o Mito é uma tarefa
extremamente difícil, tanto para especialistas quanto para não-especialistas, porque não
existe uma definição que possa dar conta de todas as funções do Mito. Nesse sentido,
captaremos informações em obras de autores como Mircea Eliade (1998), Kostas Axelos
(1991), Pierre Vernant (2002) e Roland Barthes (2001). A intenção é apreender, com estes,
manifestações do Mito com implicações significativas para o movimento de Racionalização
e Modernização implementado pelo Ocidente.
Através dos respectivos autores, ousaremos compreender algumas dimensões
Mitológicas modeladas pelo desenvolvimento da (ir) Racionalidade humana, que ocupa,
hoje, espaço no imaginário contemporâneo.i
Neste momento da abordagem contextual, nos arriscaremos a procurar pela
constituição interna e externa do Mito, dentro de alguns traços da História do
Desenvolvimento Ocidental. No que diz respeito à natureza interna, a referência inicial que
comumente se tem do Mito o toma como sinônimo de conteúdo simbólico e imaginário,
semelhante às fábulas e lendas, referindo-se a algo que se conta na forma de uma história,
constituída antes da História propriamente dita.
Desse modo, a constituição interna do Mito, ou seu conteúdo simbólico, à primeira
vista é identificada com uma natureza fantástica ou fantasiosa, geralmente de origem
coletiva e popular, distinta do discurso reflexivo. No entender de Axelos (1991), á natureza
simbólica dos Mitos corresponde fundamentalmente a narrativas que ressaltam o poder dos
deuses, na imagem dos heróis e dos homens, numa perspectiva sacro, para a qual a ação é
paradigmática e nós não podemos ter acesso ao que é secreto.
O ambiente no qual se organiza o conteúdo explicativo ou justificacionista do Mito,
na natureza simbólica, não abre espaço para categorias racionalizadas como, por exemplo,
as noções de espaço-tempo. Assim, acrônico e utópico nos seus conteúdos, o Mito se
resguarda das análises racionalistas, de cunho crítico reflexivo, em um conjunto de
elementos que se articulam entre si, combinando nostalgia e utopia, antigo e novo,
tradicional e futurista. Nessa articulação, repousam as bases de um paraíso perdido, que se
exprime por meio do espírito metafórico, tendo em vista um futuro fictício e quase
absolutamente reconfortante.
Axelos (1991) viu a necessidade de ampliar os horizontes interpretativos que
simplesmente tomam a discussão Mito-Razão, numa linha cronológica presa a um esquema
interpretativo linear, no qual o Logos sucede ao Mito. Na verdade, nesse autor, o Mito o
Logos participam da totalidade que comporta o jogo antagônico e complementar entre o
Logos e o Mito, como irmãos gêmeos.
Quando tomada na sua atualidade, a dimensão mítica pode ser aproximada da fusão
da Técnica com a Ciência, constituindo o que Axelos (1991) chamou de Tecno-Ciência,
para quem a Contemporaneidade participa de um novo jogo no qual se percebe o Mito a
Tecno-Ciência participando de um movimento de translação e transformação no qual se
engajam intensamente na direção da Tecnologia.i
Na esteira do que nos ofereceu Axelos (1991), somos levados a aceitar a idéia de
que mesmo com a afirmação e auto-afirmação da Racionalidade Técnica e Científica numa
perspectiva de superioridade frente a outras formas de Conhecimento, nos dias de hoje, o
Mito não foi suprimido de nossas vidas, como era o desejo dos Modernos.
A sua interferência nas Comunicações Contemporâneas, ao contrário do que
desejavam os Modernos, parece ter aumentado. Tal crescimento pode ter ocorrido
principalmente em função das inovações oferecidas pelos produtos e linguagens da
Tecnologia. O próprio Axelos (1991) chegou a apontar uma relação muito estreita entre o
Mito-Lógico e o Tecno-Lógico, captada através da linguagem e do agir, tanto de um quanto
de outro.
Para o autor em questão, as noções de Mito de Tecnologia participam de ações e
linguagens muito próximas uma da outra. E, mesmo que a manifestação entre eles não seja
muito clara, ou envolva um certo mistério, é possível perceber que o movimento do Mito,
assemelha-se à mesma dinâmica que rege a Técnica, quer seja teórica, prática ou científica.
Nesse sentido, quando afirmamos que o processo de Modernização, no qual estamos
envolvidos, equivale a um grande processo de dessacralização do Mundo, através do
reinado supremo da Razão, podemos estar revivendo também, mesmo que de forma
inconsciente, um novo ciclo mítico. Pois, como bem assinala Axelos (1991),
Todo trabalho de desmitologização, por mais rigoroso que possa parecer emprega sua
própria lógica de ‘Mito-logisante’. Ao longo da história do mundo, e não apenas do
pensamento, se revelara um logos que guarda caracteres míticos e um mito que guarda uma
relação com isso que se diz lógico. i
A relação Mito-Razão pode ser transladada para o plano da Modernização, no contexto
das questões que envolvem a discussão acerca do desenvolvimento e/ou
subdesenvolvimento entre países ditos ricos e paises difundidos como pobres. Desse
modo, podemos extrair da discussão a idéia da superioridade econômica, tecnológica e
militar, que reforçou o abismo entre os dois blocos de países - os ricos e desenvolvidos e
os países pobres e subdesenvolvidos.
Aprofundando um pouco a discussão, obteremos a mitificação da idéia de Superioridade,
objetivada numa série de ações que delineiam a Racionalização Ocidental,
principalmente no que diz respeito a interfaces da esfera econômica, com órgãos e
entidades geradoras dos Conhecimentos técnicos, científicos e tecnológicos.
Indicadores da relação acima revelam padrões de consumo predeterminados,
constituídos em função de marcas e símbolos que passaram a mediar e a normatizar um
conjunto de relações e comunicações. Encontramos evidências das relações de poder no
Modelo Ocidental de Desenvolvimento em Rubem Alves (1986)i, o qual abordou a
referida questão de modo claro e didático, adaptando uma analogia do mito do
desenvolvimento ocidental, aos limites e diferenças entre as lagartixas e os dinossauros.
Na analogia, o referido autor, além de brincar com a diferença visível de tamanho e
peso, entre as lagartixas e os dinossauros, trabalha com uma possível lógica subjacente
ao desejo das lagartixas em serem iguais aos seus primos dinossauros. Segundo Alves
(1986), essa forma de ver o mundo teria grande semelhança com a própria lógica que
permeia a relação entre os países ditos desenvolvidos e os não-desenvolvidos.
Para o autor em questão, os países ditos não-desenvolvidos assimilaram o Mito do
Desenvolvimento Econômico, criado como modelo de evolução progressiva da
Racionalidade Humana. Essa absorção mítica fez surgir entre os países não-
desenvolvidos ou em desenvolvimento uma pseudonecessidade, ou falso desejo de
também se desenvolverem economicamente, no mesmo ritmo e padrão adotados pelos
países desenvolvidos.
O conteúdo da analogia criado por Alves (1986) nos oferece uma atmosfera Mitológica,
para uma discussão contemporânea do Mito. É uma construção lógica com ênfase no
irracional, tecido na fantasia e no imaginário do autor, para focalizar uma dimensão
“exagerada” do modelo de Racionalização que visa a aplicar o sentido de Moderno à
existência do Homem Contemporâneo.
Pedimos licença para, em breves palavras, apresentar a analogia, estabelecendo
articulação, envolvendo questões de poder e desenvolvimento, como reorientação da
Racionalidade Moderna na perspectiva Mito-Razão. Tomaremos, pois, a analogia
desenvolvida por Alves (1986)i, ao mesmo tempo tornando-a objeto de análise, adaptação e
atualização do texto produzido por esse autor. Através de comentários ilustrativos,
estabeleceremos pontes entre o pensar alegórico e fantasioso do Mito e a Racionalização na
Modernização Ocidental, como perspectiva de atualização do mito da Superioridade.
O autor citado contextualizou o período da narrativa e armou o cenário discursivo
em torno de uma clareira na floresta, na qual os animais se reuniam para discutir e analisar
os principais problemas da espécie. O tema principal da pauta eram as grandes
transformações estruturais ocorridas no Reino Animal. A discussão esteve direcionada,
fundamentalmente, para a reorganização da cadeia alimentar.
O redirecionamento envolvendo a cadeia alimentar colocava em xeque a
convivência harmoniosa entre as espécies. Os animais buscavam minimizar as distorções
criadas pelo abismo entre os Grandes e os Pequenos animais. Para explorar melhor as
distorções, Alves (1986) tomou por referência as lagartixas e seus primos fortes, os
dinossauros.
O autor supracitado partiu da tese predominante entre os mais fortes, segundo a
qual, os dinossauros, pelo porte, poderiam consumir em abundância e até extrapolar as suas
necessidades básicas de sobrevivência. Essa tese foi disseminada por todo o Reino.
Ninguém a entendia, mas como era de costume, aceitaram-na como “natural”.
A situação acima descrita, abstraída a fantasia que a envolve, assemelha-se ao que
ocorre entre os paises desenvolvidos e os paises em desenvolvimento, posto que os
direcionamentos e as determinações seguem as regras dos mais fortes, ainda que delas
dependa a sobrevivência da maioria.
A outra ponte que o autor faz e que nos parece interessante diz respeito ao processo
de “naturalização” do que não se conhece ou do que não se questiona, por medo ou por
acomodação, no nível da ignorância. Neste contexto - no nível da ignorância - abre-se um
espaço que é predominantemente ocupado pelo Mito, nas suas mais diferentes
manifestações.
Voltando ao Reino Animal, especificamente à discussão envolvendo lagartixas e
dinossauros, o autor brinca com as interpretações atribuídas aos fatos. Algumas lagartixas
chegavam a dizer que sua condição animal teria sido um “capricho da natureza”; outras,
que teria sido “castigo”. Mas o autor deixou claro que, para as lagartixas, sua situação na
cadeia alimentar vinha sendo motivo de vergonha e constrangimento. Elas não aceitavam a
idéia de serem “atrasadas” ou de pertencerem à cultura dos subdesenvolvidos, como eram
chamadas na floresta as espécies de pequeno porte.
As idéias de “atrasado” e “cultura dos subdesenvolvidos” parecem não fazer parte
apenas do Reino Animal. Estão presentes na nossa cultura, reforçando estruturas
ideológicas que herdamos ao longo do Processo Civilizatório. Encontramos tais idéias
mitificadas e incorporadas a atitudes que visam a imprimir sentimentos negativos ou de
inferioridade, em diferentes graus. No caso das lagartixas, segundo o autor, chegou a
originar um complexo de inferioridade coletiva. Fator que pode não ser muito diferente se
aplicado a um Povo, ou a uma Nação.
Alves (1986) centralizou a aflição das lagartixas na seguinte questão: “Por que
ficamos tão pequenas e fracas e nossos primos não?” O que dá direito a um Povo ou
Nação, sobressair-se em relação aos outros? Não cabe, no momento, saber em detalhes
sobre o esforço para responder à questão. Fiquemos, pois, por um momento, apenas com os
resultados das longas discussões realizadas pela cúpula dos especialistas consultados pelas
lagartixas: o contexto exigiu uma grande corrida alimentar na perspectiva de gerar um
crescimento auto-sustentável.i
No caso das pequenas e fracas lagartixas, a auto-sustentabilidade era pensada e
buscada em função dos fortes dinossauros, ou seja, deveriam elas também buscar o
crescimento a todo o custo. Benditas palavras de ordens e slogans que ainda hoje ressoam
nos Meios de Comunicação como o caminho mais viável para assegurarmos lugar entre os
mais fortes.
No caso das lagartixas, a receita era comer em abundância, sem medir as
conseqüências, de modo a poder compensar a pouca e má alimentação que vinham
recebendo ao longo do tempo. Segundo o autor, a obesidade, a partir daquele momento,
passou a ser considerada meta social para esses répteis.
O lema adotado na campanha empreendida por elas era “Quanto maior melhor”.
No nosso caso o lema mudou um pouco, ele fica entre “Quanto menor melhor” e “Quanto
mais rápido melhor”. O autor nos faz ver, que, no aspecto político, o comportamento das
pequeninas lagartixas parece atual e próximo de nós.
Alves (1986) refere-se ao lema acima, o qual passou a ser adotado tanto pelos que
se diziam de direita, quanto pelos que se diziam de esquerda.A divergência se dava apenas
quanto à receita adotada, ou o modo como chegar lá... Mas no fundo, todos concordavam
que o crescimento progressivo seria a única alternativa para sair do subdesenvolvimento.
Todo o reino passou a acompanhar a luta das lagartixas para se tornarem grandes e
poderosas. Alguns chegaram a questionar se valia a pena todo aquele esforço, só para serem
iguais aos seus primos grandes. Outros ainda indagavam quando elas iriam parar de crescer.
E, se quando descobrissem que já haviam crescido bastante, iriam conseguir permanecer
estáveis no seu crescimento? Sem estarem preocupadas com as conseqüências, as lagartixas
continuaram pondo em prática seus planos de desenvolvimento, devorando tudo que
encontravam pela frente, sem medir esforços para atingir a meta desejada.i
Sobre o que motiva o “investimento” progressivo e compulsivo nas metas da
(Ir)Racionalização e Modernização, até já temos uma idéia, mas fazer o processo inverso, o
desaceleramento ou reflexão sobre as conseqüências ambientais, sociais e culturais em
grandes proporções, parece meta bem mais difícil de ser alcançada.
No mundo animal, os reflexos já começavam a aparecer sob a forma de preocupação
com o rastro de devastação que ficava por onde as lagartixas passavam. O Conselho dos
Grandes, como era conhecido o grupo das sete maiores espécies desenvolvidas da floresta,
reuniu-se e chegou à conclusão de que deveriam controlar mais de perto o crescimento das
lagartixas. Era público e notório que o rápido crescimento destas interferia nas leis da
Natureza e causaria grandes transtornos à cadeia alimentar.
Convocaram, então, os especialistas do reino para encontrarem rapidamente uma
forma de deter o crescimento dos pequenos répteis. Eles descobriram que os desejos,
quando bem canalizados e bem estimulados, passavam a ser revestidos de uma força capaz
de gerar grandes transformações. Começaram, então, a construir grandes redes de
comunicação para toda a floresta, divulgando as novas medidas para a sobrevivência das
espécies, ao mesmo tempo que mudaram o tratamento para com as lagartixas. A alternativa
foi diminuir o complexo de inferioridade que teria desencadeado todo o desejo de
crescimento daqueles indefesos animais.
Os desejos destas passaram a ser determinados pela cúpula do Reino, de quem
vinham a ordem e as determinações de quanto e onde as lagartixas deveriam investir no seu
desenvolvimento. A obediência delas rendeu-lhes um novo tratamento. De “atrasadas” e
“subdesenvolvidas”, passaram a ser tratadas como menos desenvolvidas ou em vias de
desenvolvimento.i
Com os resultados advindos do controle dos desejos e do crescimento das
lagartixas, os especialistas ganharam respeito e prestígio no Reino e passaram a ser alvo de
grandes investimentos para construir objetos que fossem capazes de controlar e ao mesmo
canalizar os desejos para fins específicos.
Começava uma nova era i no Reino Animal. A era do poder e do controle dos
desejos. Os animais aos poucos foram perdendo suas práticas de articulação e discussão em
assembléias e os problemas de cada espécie passaram a ser direcionados para um
especialista específico.
Pode até parecer mera coincidência com nosso processo de desenvolvimento, mas
não o é. O que oferecemos sob a forma de simples analogia é reflexo dos espaços e das
relações que estão sendo objetos de estímulos, intenções e interesses que se organizam e se
estruturam em torno das rápidas transformações em nome da “nova era”, “nova onda”,
“novo estilo”, ou, simplesmente o “novo”, o qual se convencionou chamar de
Modernização, resultado de uma ampla (Ir) Racionalização, principalmente nos níveis
econômico, social e cultural.
Programas de intenções e produções para resguardar interesses dos grupos
econômicos que se destacam na empreitada da Modernização são intencionalmente
projetados e veiculados como sugestivos apelos para o consumo, devidamente respaldados
pelos especialistas. De um modo geral, tanto no Reino Animal como no Reino Humano,
objetivou-se superar o antigo modo de socialização, por se apresentar inseguro e
ultrapassado em suas metas, apelando-se para os “novos” instrumentos, que ofereciam
praticidade, segurança, eficiência, rapidez e comodidade.
Homens e animais, rapidamente foram perdendo seus modos “primitivos” e
“selvagens” de comunicação e, hoje, se relacionam e se comunicam por breves, rápidas e
complexas redes de símbolos e significações. Mal saindo de suas tocas ou residências para
satisfazerem suas “modernas” necessidades.
Concluímos a caracterização mítica da (Ir)Racionalização Ocidental, acreditando
que essa perspectiva encontra-se, atualmente, em pleno desenvolvimento, sendo
permanentemente reinventada para se adequar às regras e normas constituídas pelos “mais
fortes” na Economia, no mercado financeiro, nos avanços bélicos e tecnológicos. Recursos
com os quais, representantes de países que se intitulam desenvolvidos acham-se no direito
de interferir no projeto cultural de outros países.
A Ciência e a Tecnologia ocupam, hoje, papel predominante no movimento das
transformações que se efetivam na direção da Modernização, ou mesmo no
redirecionamento das políticas de desenvolvimento, que visam a formas de pensar, viver e
conviver com idéias, produtos e valores re-configurados, para atenderem a “exigências”
além dos limites da Modernização, rumo à geração “pós-moderna”.i
Entendemos que os conhecimentos técnicos, científicos e tecnológicos são
assimilados pela Contemporaneidade e conduzidos por uma perspectiva mítica que atua
como suporte no Desenvolvimento Econômico. Este, por sua vez, é subsidiado por
financiamentos para pesquisas específicas, em sua grande maioria com resultados
manipulados e dirigidos para o enriquecimento de um pequeno grupo de investidores.
Concordamos mais uma vez com Castoriadis (1987), quando afirma que
(...) Foi assim, finalmente, que o desenvolvimento chegou a significar um crescimento
indefinido e a maturidade, a capacidade de crescer sem fim. Assim concebida, enquanto
ideologias, mas também, a um nível mais profundo, enquanto significações imaginárias
sociais, eles eram e continuam a ser consubstanciais a um grupo de ‘postulados’ (teóricos e
práticos) dos quais os mais importantes parecem ser: a) a ‘onipotência’ virtual da Técnica;
b) a ‘ilusão assintótica’ relativa ao conhecimento científico; c) a ‘racionalidade’ dos
mecanismos econômicos; d) diversos lemas sobre o homem e a sociedade, que se
modificaram no correr do tempo, mas que implicam, todos, que o homem e a sociedade
estão ‘naturalmente’ predestinado ao progresso, ao crescimento.i
Desse modo, convivemos com idéias como as de “separabilidade”, “bons” e “maus”,
“mais avançados” e “menos avançados”, “mais rápidos” e “mais lentos”, “mais
Modernos” e “mais atrasados”, decorrentes, em sua grande maioria, da má
administração dos resultados produzidos pela Ciência e pela Tecnologia.
Contrapondo-se à idéia dicotômica do Conhecimento, buscaremos caracterizar e
contextualizar a evolução do Mito-Tecno-Lógico, evidenciando aspectos convergentes
entre as perspectivas racionais e irracionais, seja como justificativa, seja como
redirecionamento de ações econômicas, para provocar reações culturais e sociais,
intrínsecas às políticas de desenvolvimento.
Nesse sentido, para nós fica evidente que, com o aparato tecnológico de que dispomos
hoje, sendo usado em nome da Modernização Social, mas a serviço da Racionalização
econômica, apenas caminharemos para aprofundar a fenda construída para separar os
povos. Fato que reforça a visão dicotômica, principalmente no que diz respeito às
diferenças entre pobres e ricos, desenvolvidos e não-desenvolvidos, ou emergentes.
Para uns, o caminho acima proposto, é inevitável, mesmo com a re-volução da raça
humana, pela Tecnologia. Para outros, o caminho requer mais esforço e persistência para
empreender uma abertura e acesso aos resultados e benefícios da Racionalidade
Científica e Tecnológica. Para Castoriadis (1987), o momento talvez seja propicio para
reconhecermos que...
(...) o homem é um animal louco que, por meio de sua loucura, inventou a razão. Sendo um
animal louco, ele naturalmente fez dessa sua invenção – a Razão – o instrumento e a
expressão metódica de sua loucura. Isso nós podemos saber agora, mas apenas porque ela
foi inventada (Castoriadis: 1987, p.157-8).
O fato é que as evidências configuradas nas transformações contemporâneas são
indicadores da fusão Mito-Razão. Esta gera uma confusão nas decisões políticas, sociais,
culturais e, principalmente, econômicas, alterando os rumos do Processo Civilizatório. Com
isso, as mudanças ambientais, sociais e culturais nos levam a crer que transitamos
aparentemente sem consciência do objetivo a ser alcançado. Para Castoriadis (1987),
seguimos...
(...) rumo a um ponto no qual, ou seremos confrontados com uma catástrofe natural ou
social, ou então, antes ou depois disso, os homens reagirão de uma maneira ou de outra e
tentarão estabelecer novas formas de vida social que tenham sentido para eles. (...) o que
podemos fazer é destruir os mitos, os quais, mais que o dinheiro e as armas constituem o
mais formidável obstáculo no caminho de uma reconstrução da sociedade humana
(Castoriadis: 1987, p.158).
Por outro lado, estamos cientes de que o Mito se projeta e se constitui em forma e
conteúdo e não admite ser questionado. Isto o faz parecer, e aparecer, como forte e
onipotente dentro do modelo de interpretação e explicação da realidade. Para os próximos
tópicos, conduziremos nossa reflexão para aprofundar a perspectiva da Modernização, que
se encontra intrinsecamente vinculada à dimensão mítica, mas ampliando a discussão para
o plano da sustentabilidade do paradigma “moderno”, pelo qual se pautam as relações e
interpretações dicotômicas entre sujeito e objeto, racionalidade e irracionalidade, mito e
razão.
2. Articulações da Racionalização Econômica para assegurar o ter.
Na esteira do envolvimento do Mito com o Conhecimento Técnico-Científico,
buscaremos identificar o lugar do Racional, como principio organizativo, em conflito
com as interfaces apelativas do Irracional Mítico, configuradas nos discursos que
medeiam as relações comunicativas contemporâneas. Desse modo, mesmo correndo o
risco de amputar o movimento dialético de compreensão da realidade, insistimos em
focalizar a análise no Mito na Técnica, como fontes de modelação do Pensamento
Contemporâneo.
O Mito, em destaque na organização da sociedade contemporânea, assume
configurações autônomas e distintas dos princípios que lhe deram origem, nas grandes
narrativas homéricas e nas cosmologias greco-romanas. Para efeitos de análise, no que
diz respeito às implicações míticas nos processos comunicativos contemporâneos,
tomaremos o Mito como participante da mesma lógica que conduz o desenvolvimento
e a aplicação da Racionalidade Técnica e Tecnológica que respalda o que se
convencionou chamar de “Modernização”.
A primeira referência que adotaremos terá como indicador o estudo de Cruz
(1998).i Essa autora abordou a implicação dos instrumentos técnicos e tecnológicos
nas condições atuais de produção, destacando como aspecto relevante da questão o
papel político e social desses instrumentos, os quais, segundo a autora, não devem ser
vistos como meros auxiliares do trabalho humano, mas fundamentalmente, como
resultado do Movimento de Racionalização no mundo do trabalho.i
(...) O caráter revolucionário dos processos de produção industrial na era moderna, é sem dúvida o sucesso e a mediação exercida pelas máquinas, pelos instrumentos que na sua lógica não são somente auxiliares do trabalho humano, mas são resultados do movimento de racionalização do mundo do trabalho que no processo, descobre que a racionalidade dos processos operatórios ou técnicos, realiza de maneira integrada a organização do trabalho. (Cruz 1998, p.59).
A autora acima referida discutiu os impactos da Racionalidade Tecnológica na Contemporaneidade, apontando como fator significativo das mudanças no mundo do trabalho a formação das Redes e a descoberta dos métodos de Racionalização da Comunicação.
A ênfase dada pela autora encontra-se dirigida para a influência das descobertas da Ciência e da Tecnologia nos processos produtivos, dentro de um contexto de importância discutível, no qual as atuais transformações nas relações de produção provocaram não apenas a revolução dos métodos de trabalho, mas sobretudo, o modo de pensar o trabalho.
No que diz respeito às implicações dos conhecimentos da Ciência, da Técnica e da
Tecnologia, configurados como imprescindíveis no contexto da Modernização, as análises
de Cruz (1998) nos oferecem indicativos de que os “avanços tecnológicos” provocaram um
amplo panorama de deterioração no que se refere à capacidade de trabalho e ao
desenvolvimento das forças produtivas. Como exemplo, a autora cita a relação entre a
diminuição da jornada de trabalho e o aumento da exploração dos trabalhadores.
No contexto da reorganização dos processos produtivos, a autora ressalta, como
mudanças, a necessidade de mão-de-obra especializada, antes direcionada para realizar as
atividades mecânicas e repetitivas condicionadas a movimentos das máquinas, e, hoje,
reorganizada em torno de informações e ações que se encontram interligadas aos sistemas
por redes de comunicação. Desse modo, os sistemas passaram a unificar as vias de acesso
aos diferentes níveis do trabalho e da organização social, em uma única direção (Cf.Cruz:
1998, p.59-60).
Além disso, Cruz (1998) procurou evidenciar em suas análises os impactos da
Racionalidade Tecnológica na Contemporaneidade. No seu estudo, encontramos traços do
Movimento de Racionalização Econômica, o qual se desenvolveu articulado com os
Conhecimentos técnicos, científicos e tecnológicos, apresentados ao conjunto da sociedade
como fenômeno de dimensões revolucionárias.
Nesse contexto, a perspectiva revolucionária foi difundida pelos processos
técnicos e tecnológicos. Estes, além de gerar grandes contradições no contexto de
reorganização do social e do cultural, imprimiram um forte ritmo para a implementação da
Modernização Econômica, transformando ambientes e cenários que não foram pensados e
preparados para tal.
Como a dinâmica principal é definida por estratégias respaldadas em interesses
econômicos e financeiros, o jogo projetado como “Revolução” Técnica e Tecnológica
tornou-se vital para a sobrevivência dos sistemas nas Sociedades Contemporâneas. Desse
modo, sólidos e tradicionais sistemas, para não serem totalmente descartados, se esforçam
para redefinir suas estratégias de produção e comunicação, a fim de adequar-se às novas
exigências do mercado.
Vê-se, portanto, que a lógica da Modernização assume, como primeira
necessidade, a reorganização dos sistemas que compõem o cenário econômico, para depois
projetar a reestruturação dos sistemas responsáveis pelas funções básicas na sociedade.
Assim, a lógica que redefine os parâmetros normativos para dinamizar o mundo social tem
seus princípios previamente definidos no mundo do trabalho.
(...) a revolução dos processos produtivos se realiza de modo integrado porque ela religa
estruturalmente todas as instituições do mundo do trabalho a sociedade em geral, embora
nós reconheçamos que eles guardam uma autonomia na sua ação e no seu funcionamento.
Esta ligação é vital para a sobrevivência do sistema, o que já dizemos que isso exige dar
uma direção única tanto ao nível do trabalho, como da organização da vida em sociedade.i
Cruz (1998) estendeu suas análises para apreender e compreender impactos da
Racionalidade Tecnológica na Educação, em específico, a brasileira. A autora abordou a
questão demonstrando que foi, e ainda o é, através das orientações políticas, sociais,
culturais e educacionais que a sociedade brasileira contemporânea assimilou, e continua
assimilando, o discurso da Modernização Social. Para ela, tal discurso é organizado e
apresentado ao coletivo social, muito próximo da lógica do Capital Financeiro
Internacional.
A referida autora trabalhou com a idéia de que a dinâmica e os instrumentos que
movem o processo de elaboração e execução das políticas sociais, culturais e educacionais
brasileiras, estão em sintonia com o Modelo de Desenvolvimento Econômico, posto em
prática pelas elites financeiras internacionais, através do discurso da necessidade de
Modernização. i
O estudo acima citado torna-se relevante, hoje, por contextualizar o modelo de
educação atualmente adotado pela sociedade brasileira, visando a inserção na
Modernização. Em sua abordagem, Cruz (1998) focalizou o perigo do discurso técnico-
científico, usado como instrumento ideológico, para justificar e legitimar ações políticas
que não atendem às necessidades da maioria.
Para a referida autora a questão do poder político perpassa todas as instâncias
responsáveis pela sistematização do saber formal. No entender da autora,
(...) não concerne aos meios e as formas de utilização dos instrumentos e/ou equipamentos e
máquinas, ensinar, mas o funcionamento e a alimentação das redes de comunicação que se
operam sistematicamente de modo diferenciado, autônomo, mas articuladas como sistemas
que guardam em si a mesma matriz.(...) [esta] matriz é, para nós, semelhante a matriz do
macro-sistema econômico, que procura formas de reprodução em todos os setores da vida
ativa, como a política, a cultura, a educação, usando ideologias como relações dotadas de
signos e símbolos comunicacionais. O debate deverá se concentrar no modo como cada
sociedade absorve os modelos de desenvolvimento e responde as necessidades da população
face as exigências deste mesmo modelo (Cruz1: 998, p. 62)
Desse modo, tomando por base a importância da Educação brasileira, no papel de
reguladora da ascensão social dos indivíduos ao mundo do trabalho, surge a preocupação de
que, o sistema de caráter harmonizador – como é o caso da Educação – poderá desenvolver-
se em desarmonia com o social, caso limite-se a seguir apenas as determinações e
exigências da lógica da Modernização pré-definidas pelo Sistema Econômico.
Nessa direção, Cruz (1998) nos recorda que os representantes dos sistemas de um
modo geral, ficam entre as exigências internas da população e as exigências externas das
agências financiadoras. A autora deixa claro que a ação articulada e integrada dos sistemas
de produção obriga os trabalhadores a submeterem-se a regras que favorecem o acúmulo do
capital nas mãos de poucos investidores, provocando a exploração da maioria da população
(Cf. Cruz 1998, p.63).
No entender dessa autora, a assimilação da lógica da Racionalização Econômica,
inserida na Modernização, faz com que a população ativa reaja de modo organizado, ou
não, aos métodos e mecanismos políticos do poder que representam e se colocam como
garantias de implantação dos planos dos investidores.
Nesse sentido, os direcionamentos oferecidos pela autora nos possibilitam fazer
uma inferência, em que o processo modernizador – agindo através da Racionalização das
esferas políticas e econômicas – é visto como parte de numa cadeia de relações com as
esferas, econômica, política, social e cultural e, conseqüentemente, com o sistema
educacional, por encontrar-se interligado aos outros sistemas.
Dito de outro modo, o contexto no qual ocorrem as mudanças sociais, em níveis
do saber (da Ciência) e do saber-fazer (da Técnica), está relacionado a decisões que são
tomadas na esfera do poder (político e econômico) e comunicadas (pelo discurso
ideológico) a fim de legitimar o ter (bens de consumo e supérfluos, geradores de satisfação
pessoal). i
A autora supracitada nos lembra ainda que a Ciência e a Técnica são
consideradas, pelo mercado de trabalho, como mercadoria, uma dimensão valorativa que
demonstra o papel e a importância que essas esferas do conhecimento assumiram nas
relações econômicas contemporâneas. O fator preocupante dessa dimensão está na sua
composição mítica, repassando para as relações culturais e sociais a Técnica e a Ciência
como detentoras de um valor especial: o de um trabalho mágico (Cruz: 1998, p.65).
(...) O trabalho especializado assume característica importante, não só porque contribui para
uma melhor realização do trabalho, por ganhar tempo, aumentar a produção e os lucro, mas
também, porque serve para distinguir e classificar os quadros nas diferentes esferas e/ou
fases da produção, divisão do trabalho, que é reproduzida na sociedade de um modo geral.
Portanto, a mercadoria, que aparece no mercado, é resultado do trabalho do cérebro humano
que realiza, através de interações coletivas, e se materializa para se tornar coisa. A forma
encontrada para esconder a verdade objetiva do mundo do trabalho, que é primeiro o
trabalho humano realizado ao mesmo tempo por vários trabalhadores espalhados no mundo,
é através da educação, a qual realiza um trabalho fundamental tendo em vista a reprodução
dessa estrutura (Cruz: 1998, p.66).
Complementando a interpretação de Cruz (1998), encontramos Axelos
(1991)i, o qual, através de sua obra, Metamorfoses, afirma que é possível identificar a
Técnica Científica como a maior força de nossa época. Isto a torna responsável pelo
constante processo de transformação e evolução do mundo, do homem e das coisas.
Para o autor, é pela participação efetiva da Tecno-Ciência que ocorre o amplo
processo produtivo, e, ao mesmo tempo, destrutivo, dos seres e das coisas.
Axelos (1991) põe em xeque a cômoda visão unilateral da Técnica Científica
como potência transformadora, deslocando-a do eixo do puro saber, onde se apresenta
como uma “desinteressada” busca teórica, pautada na “ingênua” manipulação dos
resultados, para fins úteis e práticos. O esforço de Axelos (1991) encontra-se
direcionado para o profundo envolvimento teórico-prático da Racionalidade Técnica e
Científica, vinculado a um saber-fazer capaz de penetrar e confundir-se com o mais
íntimo das fantasias no imaginário dos indivíduos.
A perspectiva acima descrita levou o referido autor a tomar,
conceitualmente, Tecnologia como um modo de sentir, apreender, dizer e fazer, sob a
influência direta da Ciência, através da técnica metódica e de suas espetaculares
descobertas. Na visão de Axelos (1991), a Técnica Científica não se reduz ao
calculável, ao manipulável, por isso ele a colocou inscrita no próprio movimento do
Mito no mundo.
(...) Nós temos o mito a técnica como duas forças, dois canais de entrada e saída que apesar
de manterem uma relação íntima entre si, essa relação não se dá de forma inversamente
proporcional: o florescimento do mito não reflete mais que massivamente o
desenvolvimento da técnica, a técnica por sua vez, mais sofisticada, não leva em conta
elementos míticos que trabalhem sua ignorância. As conquistas técnicas mais avançadas
são, em uma certa maneira, prefigurada mitologicamente, mas a mitologia, ela mesma, é
trabalhada no interior de forças e aspirações tecnicistas. Mito e técnica se separam e se
juntam à luz do logos e de suas "logias” i
O movimento pretendido por Axelos (1991) atende a uma configuração cíclica,
fundada na noção de tempo contínuo, de natureza construtiva e destrutiva, que renova,
constantemente, a face moderna e contemporânea do que lhe dá suporte e aceitabilidade, ou
seja, o Mito o Logos.
Noutra linha de raciocínio, mas também próximo a Axelos (1991) e a Cruz
(1998), encontramos Barthes (2001) preocupado com os detalhes que configuram a
linguagem e a comunicação do Mito. Para ele, este é um sistema de comunicação, uma
mensagem, uma fala que exige condições especiais para que, enquanto linguagem, se
transforme em Mito. i
Segundo o referido autor, a fala, em específico a fala mítica, sendo uma
mensagem, como tal, pode não ser somente oral, podendo assumir formatos os mais
diversos, seja por meio de escritas, seja por meio de representações. Na interpretação de
Barthes (2001), o discurso escrito, a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os
espetáculos, a publicidade, tudo pode servir de suporte à fala mítica. Por outro lado, o autor
deixa claro que o Mito não pode definir-se nem pelo seu objeto, nem pela sua matéria. (Cf.
Barthes 2001, p.131).
A partir do pressuposto acima apresentado, podemos entender, com Barthes
(2001), que o objeto do Mito assumiu uma dimensão ampla e extensiva. Nesse sentido, as
informações desse autor, tomadas como subsídio interpretativo da linguagem mítica, nos
remetem ao entendimento de que qualquer coisa pode constituir-se em Mito, desde que
participe de um discurso e esteja suscetível a julgamentoi, o que dá sustentação para outra
tese de Barthes (2001): a de que o Mito pode ser apreendido através de sua fala.
Neste momento da abordagem, assumimos nossas lacunas de informação e
(de)formação, e pedimos licença aos estudiosos da Semiologia, para seguir com as idéias de
Barthes (2001), e fazer uma breve imersão conceitual nos intrincados caminhos da
Semiologia. Temos claro que tal imersão não se dará na perspectiva de aprofundamento,
mas apenas em nível circunstancial, ou seja, como tentativa de aproximação teórica aos
aspectos formais do Mito enquanto fala.
À guisa de informações complementares, seguiremos adotando as estratégias de
Barthes (2001), para apreender as inserções do Mito nas relações de comunicação do
Homem no mundo. i Pois, segundo esse autor, o Mito participa do esquema semiológico
que integra as dimensões do significante, do significado e do signo, mas assume
características de um sistema semiológico secundário.
A justificativa que o referido autor nos oferece com suas análises é a de que a
construção do Mito ocorre a partir de uma cadeia semiológica já existente. Ou seja, as
matérias-primas da fala mítica (língua propriamente dita, fotografia, pintura, cartaz, rito,
objeto etc.), por mais diferentes que sejam, desde o momento em que são captadas pelo
Mito, reduzem-se à pura função de significante. O Mito vê nelas apenas uma mesma
matéria-prima. A sua unidade provém do fato de serem todas reduzidas ao simples estatuto
de linguagem (Cf. Barthes: 2001, p.136).
Na verdade, ao que nos parece, Barthes (2001) quer nos chamar a atenção para o
fato de que, no Mito, existem dois sistemas semiológicos, um deles deslocado em relação
ao outro: um sistema 1ingüístico - a língua (ou os modos de representação que lhe são
assimilados) -, ao qual denominou de linguagem-objeto, i e outro, representando o próprio
Mito, para o qual o autor atribui a função de metalinguagem.i
Desse modo, Barthes (2001) reforçou sua divisão semiológica do Mito, afirmando
que o significante é o termo que sofre alterações no sistema e pode ser encarado, no Mito,
sob dois pontos de vista: como termo final do sistema lingüístico (no plano da língua), ou
como termo inicial do sistema mítico (o próprio Mito). Para o autor, os outros dois termos -
o significado e o signo - continuam sem sofrer ambigüidades: aquele seria o conceito e este,
a correlação dos dois primeiros.
As informações acima nos levam a acreditar que estamos diante de uma
configuração interpretativa da linguagem mítica, cujo significante apresenta-se de maneira
ambígua: é, simultaneamente, sentido e forma, pleno de um lado, vazio do outro. Enquanto
sentido, o significante postula uma leitura prévia: apreende-se pelos olhos, identifica-se
com uma realidade sensorial (ao contrário do significante lingüístico, que é de ordem
puramente psíquica).
Como signo lingüístico, o sentido do Mito tem um valor próprio, faz parte de uma
História: no sentido, já está constituída uma significação, que pode facilmente bastar-se a si
própria, se o Mito não a tomasse e não a transformasse subitamente numa forma vazia,
parasita. Na interpretação de Barthes (2001), o sentido mítico já está completo, postula um
saber, um passado, uma memória, uma ordem comparativa de fatos, de idéias, de decisões
(Cf. Barthes 2001, p. 139).
Aos olhos desse autor, parece não haver lugar para se pensar a irracionalidade
mítica. Onde e como ela aparece e se realiza no mito. Nessa perspectiva, Barthes (2001),
afirma que, quando reduzido o sentido mítico à sua forma, o Mito esvazia-se, empobrece-
se, a história evapora-se e permanece apenas a letra.
Com isso, na dimensão semiológica do discurso, efetua-se uma permutação
paradoxal das operações de leitura, uma regressão anormal do sentido à forma, do signo
lingüístico ao significante mítico. Para Barthes (2001), a forma não suprime o sentido,
empobrece-o apenas, afasta-o, conservando-o à sua disposição. Desse modo, o sentido
perde o seu valor, mas conserva a vida, que alimenta a forma do Mito.
(...) O sentido passa a ser para a forma como uma reserva instantânea de história, como uma
riqueza submissa, que é possível aproximar e afastar numa espécie de alternância rápida: é
necessário que a cada momento a forma possa reencontrar raízes no sentido, e aí se
alimentar; e, sobretudo, é necessário que ela possa se esconder nele. É este interessante jogo
de esconde-esconde entre o sentido e a forma que define o mito. A forma do mito não é um
símbolo. i
Por fim, Barthes (2001) ressalta a função da história como subsídio ao significado
que dá forma conceitual à linguagem mítica. Para ele, a história se funda enquanto forma, e
se constitui como conceito. Conceito, que, por sua vez, comporta a dupla função de ser
histórico e intencional na narrativa mítica. Nas palavras do autor, o conceito restabelece a
cadeia de causas e efeitos, de motivações e de intenções. Ao contrário da forma, que o
esvazia de significado, o conceito, nas narrativas míticas, não é absolutamente abstrato, mas
está repleto de situações concretas. Assim, através do conceito, toda uma história nova é
implantada no Mito. (Cf. Barthes 2001, p.140)
Na possibilidade de desvio da Racionalidade, que fundamenta o projeto
comunicativo Mito-Homem-Mundo, visando a uma significação lógico-interpretativa
do mundo, o referido autor não esquece de ressaltar que, ao passar do sentido à
forma, a imagem mítica perde parte do seu saber: torna-se disponível para o saber
conceitual. Daí que o saber contido no conceito mítico pode ser tomado como um
saber confuso, constituído por associações moles e ilimitadas.
O autor em questão reforçou a necessidade de abordarmos o Mito levando
em conta o caráter aberto do seu conteúdo explicativo. Abertura que o faz constituído
de uma essência que não é pura abstração purificada, mas resultado de uma
condensação informal, instável, nebulosa, cuja unidade e coerência provêm,
sobretudo, da sua função histórica.
Vimos, pois, em breves recortes, Cruz (1998), Axelos (1991) e Barthes (2001) nos
darem mostras da intrincada teia que recobre e compõe o Pensamento Contemporâneo,
tendo como principais recursos o Mito a Técnica. Ao que nos parece, hoje, a Técnica, a
Ciência e o Mito representam o modo predominante do pensar contemporâneo, em forma e
conteúdo intrinsecamente articulados com os processos e produtos da Tecnologia,
constituindo-se em categorias, onipresente e onipotente, de um modelo de interpretação da
realidade.
Assim, o atual processo de Modernização, longe de representar simplesmente uma
via unilateral do processo efetivo de criticidade e dessacralização do mundo, apresenta-se
como via de composição e assimilação de um conteúdo ideológico dentro de um cenário
psicologicamente acomodado a uma Racionalidade Instrumental. Isso nos leva a pensar na
hipótese de estarmos participando de um contexto histórico no qual predomina a reinvenção
do Mito-Tecno-Lógico, com a participação efetiva da Técnica e da Ciência no dinâmico
fluxo do ciclo Mito-Logos.
Voltando a Axelos (1991), é ele quem nos oferece pistas que poderão nos ajudar
a refletir melhor sobre as bases que fundamentam a reinvenção do Mito-Tecno-Lógico na
Contemporaneidade.
(...) se um certo logos funda e comporta toda a técnica e, se toda técnica engendra do logos,
que por sua vez responde nela, nenhuma atividade contemplativa ou teórica vem antes que
uma atividade poética e prática. Nenhum logos e nenhuma práxis são primeiros ou
absolutamente fundadores. É necessário procurar de onde vem ou procede cada um deles. E
nesse instante o logos entra em cena, estabelecendo uma estreita relação com a técnica. Nós
confrontamos um "dizer" e um "fazer" que colocam ordem no caos e produzem o mundo
que os produziu.i
Direcionando nossa ação interpretativa para melhor esclarecer os fundamentos
do que estamos admitindo com Axelos (1991), como movimento organizativo articulado
na unidade Mito-Logos, entraremos em conflito com o movimento dicotômico dos
Modernos, que investiu na separação dos pólos que fundamentam a Ação-
Transformação, Razão-Emoção, Homem-Natureza.
Ao que nos parece, a perspectiva dicotômica na qual o homem moderno
embarcou, elevou em demasia sua auto-estima de sujeito pensante, para a qual sentiu-se
estimulado a exaltar a Razão como forma de diferenciar-se dos outros homens e dos
animais. Nessa direção, o Racional foi colocado acima do Natural.
A ênfase demasiada na Racionalidade Humana desenvolveu-se historicamente
justificada pelo Logosi, herdado dos gregos antigos, como elemento encarnado na Razão,
servindo de princípio básico de organização, tanto da vida pessoal quanto coletiva. É
Axelos (1991) quem nos impulsiona para uma interpretação da relação Mito–Logos, que
transpõe a dimensão dual de Bom-Mau, Homem-Natureza, Racional-Irracional.
O referido autor nos oferece elementos para assumir o “Logos”, como alma
gêmea do Mito, apreendido como algo que ultrapassa os limites do esquema pautado na
simples ação cronológico-temporal, de sucessão do Mito pela Razão, ou do esquema que
postula um Logos como verdade absoluta, preexistindo a tudo e a todos e se movendo
dialeticamente na transformação do Ser. i
Nos escritos em que discute os “Horizontes do Mundo” i, Axelos (1983) nos
incumbe de compreender o Logos implicado diretamente como necessidade que possui o
Homem de sair de si, falar e agir. Para satisfazer tal necessidade, o autor reconhece, como
alternativa, a Racionalidade como potencialidade humana, associada à Criatividade, numa
incessante articulação da linguagem para se juntar ao Mundo e dele poder falar. Talvez
estes sejam os princípios básicos que unem e separam o Mito-Lógico e o Tecno-Lógico.
(...) Nenhuma perspectiva de conjunto pode evitar a alternância e o movimento pendular:
ora é a dimensão mítica que aparece mais, ora é a dimensão lógica. No entanto, estas duas
dimensões fazem parte de um horizonte único: do horizonte mito-lógico. Tanto a obsessão
do efêmero, da novidade, da diversidade, do passageiro quanto a necessidade do durável, do
tradicional, do habitual, do permanente mergulham numa nuvem Mitológica de onde se
separam as lendas que nos fazem andar ou descansar. (...) Parece mesmo que uma mitologia
tecnológica – largamente inconsciente – põe nosso mundo em movimento. O que esta época
tem de indizível, de emaranhado e de enigmático se prende a uma constelação
mitologicamente tecnológica que não pode ser decifrada sem uma interpretação forte e
insistente do jogo da errância (Axelos: 1983 p. 16-20).
Na verdade, a nova configuração da Sociedade Contemporânea, vista sob o jogo da
errância, como propõe Axelos (1983), parece fugir aos limites e princípios da
Racionalidade e tender mais ao jogo de interpretações enigmáticas e misteriosas, típicas do
Mito. Por outro lado, o apelo desse autor é claro, no sentido de não abandonarmos o barco
das mudanças e não nos entregarmos aos encantos sedutores dos mitos. O momento atual,
por ser de transição, exige tomarmos as mesmas precauções tomadas por Ulisses, o qual,
para não ser seduzido pelo canto das sereias, se deixou amarrar ao mastro da sua
embarcação.
Retornamos a Axelos (1983), para tornar nossa a questão levantada por esse autor:
se a própria Racionalização é uma das formas da Mitologização e se a Tecnologia tem uma
parte ligada com a Mitologia – quando o horizonte Onto-Mito-Tecno-Lógico se confunde
com o horizonte do Mundo – então, o que é que não é Mitológico?i
A busca por respostas para a pergunta acima motivou-nos a continuar a empreitada
teórico-descritiva, visando a identificar estratégias e articulações da Racionalização
Econômica, para garantir a eficiência do Mito. Um dos caminhos interpretativos que
desenvolvemos, neste estudo, admite a existência de uma fusão (para usar uma palavra
típica dos mitos atuais, comunicados pelos desenhos animados japoneses) envolvendo a
esfera da Economia com perspectiva da Tecno-Ciência.
A fusão, acima sugerida, criou o ambiente propício para a invenção e a re-invenção
do Mito-Tecno-Lógico. Este passou ativamente a ocupar destacado espaço na dinâmica da
Modernização. Hoje, ao que nos parece, atua inclusive, nos diversos Meios de
Comunicação, objetivando camuflar e, dessa forma, tornar “menos visíveis”, aspectos
negativos do atual processo de Modernização. Desse modo, o Mito-Tecno-Lógico ajuda a
esconder a exploração, ao mesmo tempo que reorganiza a Comunicação na Sociedade
Contemporânea.
Além do mais, antes visível e exaltado no papel social educativo das
Sociedades Antigas, o Mito encontra-se, atualmente, camuflado e sutilmente vinculado à
trama Racional-Irracional. Por outro lado, participa ativamente do amplo movimento da
Racionalização Técnica e Tecnológica que a Modernização Econômica propaga pela
mídia e hipermídia da Informação. Nesse contexto, o Mito é inventado e reinventado
hoje, embora a própria perspectiva mítica possa estar sendo desviada do seu sentido
mais profundo: o sentido de ligação entre o Ser e o Mundo.
Encontramos ecos da preocupação acima em Constança (1988)i, quando afirma
que o Homem Contemporâneo vive, na Civilização Técnica, a crise, a cisão e perda da
dimensão mítica: uma radical demitização. Esse entendimento indica e pressupõe a
perda de uma “verdadeira” dimensão mítica, que ocorre em função de uma dimensão
superficial, de natureza descartável. Desse modo, o Mito, assim como a Ciência e a
Técnica, pode estar sendo reinventado na Contemporaneidade para ser assimilado como
“mercadoria” e atender aos interesses do Mercado Financeiro.
A preocupação da autora nos serviu de alerta para uma possível ação, aplicada
contra o Mito, que o esteja desviando de sua “retitude”. Algo semelhante ao que aconteceu
aos Modernos, quando investiram contra as sensações, as impressões dos sentidos e dos
Mitos, considerados conteúdos maléficos e danosos ao bom desenvolvimento da Razão.
Isto porque o Mito comporta uma Racionalidade no próprio conteúdo explicativo, inerente
à visão que o justifica como narrativa.
Caminhar, pois, pela via de interpretação que a referida autora nos propõe – uma
busca pela dimensão perdida do Mito - exige olhar para os fenômenos comunicativos da
Contemporaneidade como algo que cerceia o movimento “verdadeiro” tanto da Razão
quanto do Mito. Desse modo, além de manter uma forte relação de cumplicidade, o Mito a
Razão poderão estar, hoje, sendo alvos de tramas da sua contra-parte: a Irracionalidade.
Esta utiliza todas as artimanhas e instrumentos disponíveis no contexto contemporâneo,
para desviar os caminhos “retos” – tanto da Razão, quanto do Mito.
Ora, sabemos que os conteúdos intrínsecos aos processos comunicativos
compõem-se de uma complexa teia de informações e interesses, que recobre a dinâmica das
relações contemporâneas. Temos claro, também, que a análise que estamos fazendo não dá
conta de identificar e explicar, nem na forma nem no conteúdo, o conjunto dos fatores que
agregam os processos comunicativos, posto que apenas juntamos elementos,
aparentemente, soltos e distantes, para compor um referencial interpretativo conceitual e
contextual.
Nesse sentido, a abstração que estamos sugerindo de “desvio da Racionalidade”,
intrínseca ao conteúdo mítico, deverá ser entendida apenas como uma caracterização
complementar ao conjunto dos elementos teóricos que utilizamos para a composição do
Mito-Tecno-Lógico. No nosso entender, é isto que nos faz conviver com a idéia de mais, ou
menos, avançado; mais, ou menos, rápido; modernos ou atrasados, racionais ou irracionais.
Isto em parte se justifica porque a visão de mundo contemporânea parece organizada em
função dos resultados proporcionados pelos produtos tecnológicos.
De toda forma, tudo nos leva a crer que o Mito-Tecno-Lógico ocupa, atualmente,
espaço de destaque no turbilhão dos acontecimentos e das transformações. Tenha ele sido
conseqüência, ou não, das orientações distorcidas pelo Desenvolvimento Ocidental.
Responsável, ou não, pelo desvio dos princípios da Modernidade (Igualdade, Fraternidade e
Liberdade). Difundido, ou não, pela Racionalização Instrumental como recurso da
Modernização Econômica.
O fato é que, no alinhamento da Racionalização Ocidental, projetou-se a
reinvenção do Mito, pelos saberes técnico e científico, a serviço da elite econômica e
financeira, para justificar o ter, como condição de adequação dos indivíduos à
Modernização. Assim, a Racionalidade Tecnológica apareceu no contexto da Modernização
como fonte e subsídio para o Mito da Superioridade Ocidental. Este foi assumido e
desenvolvido pela Racionalização Econômica, para respaldar a distância entre pobres e
ricos, desenvolvidos e não-desenvolvidos.
Assim, na tentativa de compreender o que impulsiona a Modernização,
acreditamos na Esperança que ficou retida na caixa de Pandorai, com o nítido propósito de
reforçar a hipótese de que ainda poderemos nos beneficiar do Conhecimento científico e
tecnológico que já temos, e canalizá-lo para uma r(e)voluçãoi, com bases e diretrizes
voltadas para o resgate da dignidade humana.
Essa r(e)volução poderá significar não apenas a dimensão utópica do moderno, no
melhor dos seus sentidos, mas a valorização do Ser no mundo, traduzida em esforços
concretos, para melhor aproveitar todos os níveis de Conhecimento em relações nas quais
se encontra posta a dicotomia Homem-Natureza. Quiçá essa perspectiva possibilite a
consolidação do respeito cultural entre os povos, diminuindo ou mesmo eliminando o que
divide ricos e pobres, desenvolvidos e não-desenvolvidos e reforce, em nós, um modo de
existir dignamente, enquanto Ser Social e Cultural, Mítico e Racional que somos.
3. Marcas do Mito-Tecno-Lógico na projeção do “Novo”: a acomodação
comunicativa aos apelos da Modernização.
Nos tópicos anteriores, vimos como ocorre a composição e decomposição dos
saberes do Mito, da Técnica e da Ciência, na forma e no conteúdo conceitual que
constituem o Mito-Tecno-Lógico. Este, sob a orientação da Racionalização Econômica, se
projetou na Contemporaneidade como obsessão pelo consumo, resultando no que se
convencionou chamar por Modernização. O papel que o Mito-Tecno-Lógico conquistou,
como protagonista dos destinos dos homens e do mundo, é constantemente reinventado
pelos recursos audiovisuais da mídia, estimulando e fazendo crescer o desejo de consumo.
Ou seja, o discurso mitológico visa, dentre outras coisas, incorporar, justificar e acomodar o
objeto ao desejo, não se preocupando com os riscos ou as conseqüências. Na assimilação
acrítica do conteúdo, pode estar contido o alto preço que se paga por confiarmos mais no
poder de sedução dos discursos mítico, do que na clareza perseguida pela reflexão criteriosa
da Razão.
Não podemos esquecer que os riscos acima apontados também podem ser
atribuídos à Razão, quando reforçamos seus princípios ou resultados com poderes
proporcionais aos dos Mitos, e não com o rigor e a criticidade que a questão suscita. Assim,
para identificar marcas do que de fato compõem as tramas e articulações contemporâneas
do Mito-Tecno-Lógico, precisamos compreender suas ligações historicamente constituídas.
Outrossim, entre os vários caminhos nos quais se bifurcam as complexas relações
do Mito da Razão, a via ideológica, ao que nos parece, sempre acompanhou e reforçou as
idéias de Progresso e de Desenvolvimento, o que as tornam importantes componentes na
trama da Modernização. Por elas, pois, deveremos chegar aos atributos instrutivos da
Razão, como destaque cumulativo e progressivo no processo de união e ruptura com o
Mito.
Em breves lances, podemos dizer que o discurso ideológico foi responsável por
difundir essas idéias de Progresso e Desenvolvimento, numa perspectiva mais econômica
do que social. Através desse tipo de discurso, dele, propagou-se a Modernização em vários
períodos da História das relações humanas, repensando e renovando conteúdos ideológicos,
de acordo com as necessidades e exigências do mercado financeiro, em cada época.
Esse mercado, em sintonia com o que se apresentava de “mais moderno” ou
inovador em termos de Conhecimento Técnico e Científico, rearticulava suas estratégias de
exploração dos processos produtivos e de acumulação de riquezas materiais. Para isso,
investia em discursos sedutores, vinculados à mídia disponível da época ou período
historicamente constituído. i
Ao longo dos anos, formou-se uma ampla parceria entre as esferas econômicas e
as instâncias diretamente ligadas aos processos de aprendizagem e formação, como
instrumentos de Comunicação, Educação e Cultura, mediados pela ideologia incorporada
aos processos de Racionalização e Modernização.
Nesse sentido, arriscamo-nos a dizer que as idéias de “Progresso” e
“Desenvolvimento” encarregaram-se de propagar, visual e oralmente, até os dias atuais, os
formatos da Modernização que ora concebemos como sendo o Tecnológico.
Além disso, podemos dizer que foi pela via dos instrumentos midiáticos que se
criaram e se recriaram os discursos mitificados e mitificadores, direcionados para a
formação cultural e social dos indivíduos desejosos de emergir para o “novo” Processo
Civilizatório.
Essa perspectiva assumiu conotações de “natural” na Contemporaneidade, por não
se dar maior atenção reflexiva e questionadora aos apelos sistemáticos dos Meios de
Comunicação. Tais apelos, como se sabe, estão dirigidos ao consumo compulsivo e
irreflexivo dos bens materiais, destacados pelo status de moderno, por estarem inseridos nas
categorias de “novos”, “rápidos” e mais “eficientes” produtos tecnológicos. Trata-se da
mesma lógica que interfere no movimento das transformações culturais, sociais, políticas
ou econômicas, em todo o mundo.
Esse movimento, impulsionado pelo Modelo Ocidental de Desenvolvimento, no
nível social, político e econômico, esteve respaldado pelos princípios da Racionalidade
Econômica e Financeira, que estimula a criação e a recriação da cultura de mercado,
dirigida ao consumo irracional dos produtos eletroeletrônicos.i
Assim, podemos dizer que o ritmo das mudanças contemporâneas ganhou impulso
mais forte, com a Racionalização das relações de produção, o que determinou a redefinição
dos níveis e dos padrões no mundo do trabalho, e a reorientação dos valores e dos desejos
do consumidor, induzindo-o a consumir produtos e instrumentos tecnológicos, os quais
passaram a regular a imagem dos indivíduos em determinado “nível” social.
O impulso para esse ritmo das mudanças, ao que parece, veio principalmente da
linguagem midiática. Esta, mitificada na sua essência comunicativa, foi ampliada
visualmente na sua forma e reduzida significativamente no seu conteúdo.
Desse modo, no “novo” panorama sociocultural, o homem parece desejar manifestar
seu lado mais desprezível, quando ergue um cartaz astronômico, poluindo belas paisagens
naturais em nome da riqueza e da influência cultural das corporações, nacionais e
multinacionais. Mas tudo isso, está no “script” das mudanças físico-cultural-sociais, como
exigência da Modernização. Ao social cabe a convivência forçada com uma linguagem que
não mais comunica cultura e saber popular, mas apenas, marcas.
Marcas, pensadas, criadas e produzidas para servirem de referências no mundo
corporativo, ganham “status” de mercadorias e alto valor simbólico e material. Simbólico
porque atende às novas orientações valorativas do Mito, posto que reinventa sentimentos e
desejos cotidianos para dar forma e conteúdo aos mitos, e, através deles, justificar o
“status” social e a acumulação de riquezas de poucos.
O jogo de reinvenção do Mito, sob o domínio das marcas, parece-nos diretamente
proporcional ao seu valor material, ou seja, quanto maior a aceitabilidade cultural do Mito,
ou da marca, mais cotação econômica esta terá para o mercado financeiro e mais “status”
social terá quem a comprar ou usar.
Destarte, vemos ocorrer, na Sociedade Contemporânea, significativa mudança no
que diz respeito aos Processos Comunicativos e Interpretativos, que figuram o universo
cultural dos indivíduos. A marca incorpora a necessidade do Mercado Financeiro e
Econômico, alterando a dinâmica da produção dos bens materiais, em função de sua
aceitação social e cultural. Desse modo, ela interfere radicalmente nos Canais de
Comunicação e, conseqüentemente, nos próprios Processos Educativos.
Por sua vez, o realinhamento político e econômico proposto pelas potências ditas
desenvolvidas, para implementar a racionalização da produção, definir e assegurar a lógica
do Mercado Internacional, econômico e financeiro, revela o valor atribuído, hoje, a idéias
que ganham “vida” e “dinâmicas próprias”, indo além da própria produção dos bens
materiais, característico da Economia Industrializada.
Esse tipo de Economia vem, pelo menos desde a década de 80, diminuindo
gradativamente os custos com pessoal, terceirizando as atividades mais “pesadas”, no que
diz respeito a máquinas e processos de produção, para restringir as preocupações com o
gerenciamento da marca, à qual a empresa encontra-se vinculada.
Nesse sentido, Klein (2002)i nos mostrou de forma clara e inteligente, como
empresas como a Nike e a Microsoft, representantes da nova dinâmica do Mercado,
passaram a disputar com fabricantes americanos mais tradicionais. Segundo a autora,
(...) Esses pioneiros declararam audaciosamente que produzir bens era apenas um aspecto
incidental de suas operações e que, graças às recentes vitórias na liberalização do comércio
e na reforma das leis trabalhistas, seus produtos podiam ser feitos para eles por terceiros,
muitos no exterior. O que essas empresas produziam principalmente não eram coisas,
diziam eles, mas imagens de suas marcas. Seu verdadeiro trabalho não estava na fabricação,
mas no marketing. Essa fórmula, desnecessário dizer, mostrou-se imensamente lucrativa, e
seu sucesso levou as empresas a uma corrida pela ausência de peso: quem possuísse menos,
tivesse o menor número de empregados na folha de pagamentos e produzisse as mais
poderosas imagens, em vez de produtos, ganharia a corrida. i
A dinâmica que respaldou os novos investidores provocou uma onda de fusões no
mundo corporativo. Interessante observar que fundir grandes empresas não é,
necessariamente, sinônimo de passar de um pequeno para um grande conglomerado de
numerosos trabalhadores.
A mudança diz respeito mais ao reforço que a marca passará a ter, em termos dos
lucros, do que ao aumento no sentido extensivo do termo, significando ampliação das
instalações físicas. Ao contrário do que se pensa, a empresa pós-fusão encolhe na sua
estrutura física e redefine a idéia de grandeza visível, associada a “tamanho”, “quantidade”
- de máquinas e funcionários. O caminho mais eficaz para alcançar a “verdadeira
grandeza”, no universo econômico, tem como meta principal livrar-se do mundo das coisas
(Klein: 2002, p.28).
Os fabricantes que conseguem manter viva e em alta sua marca, deixam de
preocupar-se com a produção dos produtos. O interesse está voltado para acumular lucros
simplesmente distribuindo sua marca, ou emprestando-a para produtos terceirizados. Parte
dos lucros, por sua vez, é canalizada para os responsáveis pela criação, manutenção e
reinvenção do Mito - os profissionais do marketing -, que, acima de tudo, ganham para
gerenciar e disseminar o conceito da marca. i
Para melhor compreender o sentido e o significado que as marcas adquiriram na
Sociedade Contemporânea, faz-se necessário, mais uma vez, captar a importância das
palavras de Klein (2002). Essa autora, numa síntese da evolução da Publicidade e da
Marca, nos revelou traços do que hoje podemos identificar como processo de reinvenção
do Mito-Tecno-Lógico.
(...) As primeiras campanhas de marketing de massa começaram na segunda metade do
século X1X, trabalharam mais com a publicidade do que com a marca como a
compreendemos hoje. Diante de um leque de produtos recentemente inventados - rádio,
fonógrafo, carro, lâmpada elétrica e assim por diante - os publicitários tinham tarefas mais
prementes do que criar uma identidade de marca para qualquer corporação; primeiro tinham
de mudar o modo como as pessoas viviam. A publicidade devia informar os consumidores
da existência de algumas novas invenções, depois convencê-los de que sua vida seria melhor
se usassem, por exemplo, carros em vez de bondes, telefones em lugar de cartas e luz
elétrica em vez de lampiões a óleo. (...) O que tornou os esforços iniciais diferentes da arte
de venda mais direta foi que o mercado estava agora sendo inundado por produtos
uniformes produzidos em massa, quase indistinguíveis uns dos outros. A marca competitiva
tornou-se uma necessidade da era da máquina - no contexto da uniformidade manufaturada,
a diferença baseada na imagem tinha de ser fabricada junto com o produto.i
O esforço de Klein (2002) concentrou-se em demonstrar que a Publicidade ganhou
destaque quando se percebeu que seu papel, nas Sociedades Contemporâneas, era oferecer
às empresas uma alternativa para que elas encontrassem sua identidade, ou o que para
alguns se apresenta como alma. A frieza, atribuída à Ciência e à Técnica - responsáveis
diretas pelo novo cenário – foi transformada, pelo jogo de marketing, em calor humano, e,
estrategicamente, oferecida à sociedade como “novo modo de vida”.i
Entretanto, o mercado, para sustentar uma marca ou mesmo suas estratégias de
renovação e inovação, exige um ambiente receptivo. Os Meios de Comunicação já se
apresentam claramente como essenciais nessa ambientação, embora o mercado busque
sempre ampliar as bases de sustentação para suas tendências.
Nesse sentido, o apelo do mercado, pautado na Racionalidade Instrumental,
encontra-se voltado para o consumo e a utilização dos instrumentos técnicos e tecnológicos.
Em função disto, ressaltam-se as vantagens oferecidas por esses instrumentos, tais como:
precisão, versatilidade, flexibilidade, eficiência, velocidade e aplicabilidade.
Por outro lado, a Irracionalidade Mítica, difundida no discurso sedutor da mídia,
ressalta o passional em detrimento do racional, para esconder o conflito ao qual está
submetido o indivíduo contemporâneo: não ter como adquirir ou consumir produtos eletro-
eletrônicos. Mas, uma vez assimilado o discurso mítico da Modernização, pesa muito mais
a representação simbólica do “status quo”, vinculada ao “Ter” o instrumento, do que o
conteúdo crítico-reflexivo necessário ao “Ser” de fato moderno. i
O fato de nos movermos no mundo - moderno ou não-moderno -, impulsionados
pelo desejo e pela vontade de incorporar o que nos rodeia, e sendo esse movimento o que
caracteriza fundamentalmente o ser (moderno ou não) no mundo, então, podemos inferir
que o nosso pensar pode ser resultado de uma híbrida relação envolvendo elementos da
nossa sensibilidade e elementos da nossa Racionalidade, em sintonia com a natureza que os
alimenta.
Desse modo, fica visível a insustentável busca do indivíduo contemporâneo, pelo
moderno, na difícil tarefa de apreender e organizar o conteúdo de natureza simbólica,
audiovisual, impressa, etc, pelo próprio poder sedutor que perpassam as linguagens
inseridas nos processos midiáticos de Informação e Comunicação, aos quais se misturam
sensibilidade, eroticidade, criatividade, racionalidade e conhecimento.
Todo o movimento das mudanças que paira sobre a Sociedade Contemporânea nos
leva a comungar com Machado (2001)i, quando este afirma que...
(...) Quanto mais a máquina se desenvolve, mais ela nos obriga a nos deslocar e a nos
provar que sempre haverá tarefas que ela não poderá cumprir. ‘Somos lançados assim numa
perpétua fuga para adiante – o progresso – e condenados a reinventar indefinidamente nossa
humanidade. O estado do homem jamais é, portanto, conquistado (Machado 2001, p.10).
Por outro lado, é perceptível a euforia do mercado em relação às constantes
inovações tecnológicas. Euforia essa materializada pelo sobe-desce nas Bolsas de Valores,
os discursos de líderes políticos em defesa do urgente e universal Projeto de Modernização,
bem como a extensão e a difusão do atual Processo Civilizatório, através dos novos
instrumentos de Comunicação. Isso deverá nos servir como indicador para identificar o
nível de apelação que é feito à Racionalidade Técnico-Científica, para justificar ações
realizadas em níveis de intervenção política, com o intuito de forjar uma aceitação social ao
movimento sutil do capital financeiro.
Por outro lado, assusta-nos o alto grau de Irracionalidade que acompanha o processo
e os resultado dessas ações. Nossa intervenção está sendo adequada ao espírito, através do
discurso da mídia sensacionalista. Com ela, aprendemos a acompanhar passivamente as
constantes redefinições das noções conceituais e valorativas de espaço e tempo, ser e não-
ser, pensar e conhecer, viver e morrer, com a mesma postura ou naturalidade de quem vê
ou pratica um ato de barbárie, resultante de mentes insanas em defesa de falsos direitos
humanitários.
(...) Por trás da idéia de poder jaz a aspiração ao controle total, a subordinação de todos os
objetos e de todas as circunstâncias à vontade e ao desejo (...) é a idéia de dominação total
que constitui o motor oculto do desenvolvimento tecnológico moderno (..) a humanidade
ocidental vive há séculos apoiadas no postulado implícito de que sempre é possível e
realizável a consecução de mais poder.(Castoriadis 1987, p.153).
À guisa de informações complementares, sobre a Irracionalidade, achamos
necessário fazer uma breve referência ao que disse Granger (2002) i sobre o termo. A
intenção se justifica, pelo paradoxo que se forma em torno do tema: uma ampla aplicação
do termo e uma ínfima discussão filosófica sobre sua natureza e extensão.
Nesse sentido, o referido autor discute o tema procurando por aspectos positivos,
mesmo tendo claro que a palavra traz, na sua forma lingüística, conotações negativas.
Granger (2002) aponta três aspectos significativos de manifestação do irracional: o
irracional como obstáculo, como recurso e como renúncia ou abandono.
No que se refere ao irracional como obstáculo, o autor admite que ele pode ser visto
ocorrendo sob o prisma da relação sujeito – objeto, onde o sujeito, durante o processo de
Conhecimento ou no momento de apreensão do objeto, encontra resistência por parte deste,
a qual ocorre em função da aplicação ou normatização das regras, pensadas pelo sujeito.
Como conseqüência, o sujeito, para dar continuidade à sua obra, vê-se obrigado a aplicar
estratégias diferentes ou contrárias a outras pensadas previamente. i
Desse modo, o irracional surge por estar fora dos parâmetros racionalizados,
pensados e estabelecidos previamente. O exemplo que o autor sugere é o do cientista que
não se abate diante dos fracassos que lhe ocorrem, e continua seu trabalho tomando o
acontecimento, no caso o fracasso da experiência, como “encontro com o irracional”. Com
isso, o próprio erro passa a ser considerado o novo ponto de partida para o re-encontro com
o caminho racional de sua investigação.
A segunda identificação proposta por Granger (2002) - o irracional como recurso -
está relacionada com o processo de criação, particularmente o da criação artística. Na
interpretação do autor, o recurso ao irracional pode acontecer quando as regras
racionalmente estabelecidas para a criação, ou produção, de um objeto qualquer, forem
deliberadamente violadas ou abandonadas pelo sujeito da criação, tendo em vista este
atingir resultados novos, inesperados na seqüência de seu trabalho.
(...) o recurso ao irracional aparece como um desvio considerado, provisoriamente,
inelutável mas aceito freqüentemente a contragosto como uma renúncia e um escândalo da
Razão. No domínio da criação Científica, essa aceitação raramente é separada, no espírito
dos cientistas, da esperança de que um progresso da teoria fará compreender e desaparecer a
incongruência dos resultados assim obtidos; em alguns casos ela é até positivamente
acompanhada de tentativas teimosamente renovadas para obter os mesmos resultados sem
suposições irracionais. (Granger: 2002, p.111).
Por fim, Granger (2002) considerou como recusa ao racional o fato do sujeito
renegar o próprio sistema teórico no qual conduziu sua atividade, sua experiência, sua
criação ou produção, em nome da livre manifestação das suas fantasias. Para o autor, a
Irracionalidade na produção do Conhecimento Científico pode se manifestar quando o
indivíduo abandona a teoria, com a qual desenvolveu sua atividade, para ficar liberto de
qualquer forma de controle. Desse modo, ele pode forçar a obtenção de resultados que
contradizem a racionalidade e a eficiência do seu trabalho.i
Mais adiante, tentaremos identificar uma possível relação conceitual do que Granger
(2002) entendeu como manifestação do irracional, com aspectos significativos da formação
do Mito. Por enquanto, nos limitaremos a trabalhar com a idéia de que, ao longo do
Desenvolvimento Ocidental e da Modernização, houve uma disposição do Homem
Moderno para investir no devir, reforçando o contínuo movimento das mudanças. Nesse
movimento, ficam caracterizados a diversidade das expressões e o caráter inovador da
relação Homem-Natureza.
Outrossim, a perspectiva da Irracionalidade nos leva a acreditar que estamos
cultivando um estranho e perigoso modo de ver e sentir o mundo nas suas manifestações
mais extremas pautado na aceitação “natural” da fusão estabelecida entre a onipotência do
Mercado e a onisciência do Refinamento Técnico. Tudo isso em perfeita sintonia com a
onipresença da Mídia Eletroeletrônica. Quando canalizarmos essas manifestações para o
nível do discurso e o formato da Modernização, poderemos talvez compreender algumas
implicações recorrentes à estrutura lógica de pensar.
Para alguns, as mudanças demonstram o pleno exercício da Racionalidade humana,
gerada pelo Saber da Ciência e no Saber-Fazer da Técnica. Com isso, a Sociedade
Contemporânea, na escala de evolução da espécie humana, representa o alto grau de
compreensão e discernimento. Portanto, as mudanças ocorridas, principalmente nas esferas
social e cultural deverão seguir o fluxo natural das transformações.
A argumentação acima, tomada isoladamente, poderá não apresentar desvio de
interpretação da estrutura formal do pensamento, porque não exige coerência histórica.
Entretanto, o mesmo argumento visto sob a análise crítico-reflexiva revela um conteúdo
sociocultural associado aos princípios modeladores da Sociedade Contemporânea, com
forte consistência ideológica, a serviço da assimilação e difusão dos valores que
representam os interesses e o modo de pensar, contrários aos princípios iluministas.
Encontraremos esse mesmo argumento como justificativa para ações e extensões da
Racionalidade humana, na qual predomina a lógica de exclusão social, em prol da captação
dos lucros individuais. Em Sader (2000), por exemplo, encontramos uma referência
descritiva dessa postura. Segundo esse autor,
(...) Se o mundo fosse uma aldeia com mil habitantes, a metade da riqueza estaria nas mãos
de apenas 60 pessoas, todas de nacionalidade norte-americana. Oitocentas pessoas da aldeia
viveriam em casas de má qualidade, 670 seriam analfabetas e apenas uma pessoa teria
educação universitária. (...) A metade da população do mundo – cerca de 3 bilhões de
pessoas – vive subalimentada, enquanto outros 10% sofrem graves deficiências
alimentícias, totalizando 60% dos habitantes do planeta com algum tipo de nutrição. De
outro lado, 15 % das pessoas do mundo estão superalimentadas. Alimentos não faltam, há
excedentes agrícolas – conforme os critérios de mercado, não das necessidades humanas –
de 15 %. (...) A desigualdade aumentou conforme avançou o século, apesar das inovações
tecnológicas e do aumento da produção. Em 1960, os 20% da população mundial, que
vivem nos países ricos, tinham 30 vezes a renda dos 20% mais pobres no mundo. Dez anos
depois, em 1970, essa relação aumentou para 32 vezes. Uma década depois, 1980, foi para
45 vezes. Em 1989, chegou a 59 vezes e em 1995 havia passado para 82.i
A evidência na aplicação da lógica acima sugerida poderá ser confirmada
confrontando-se dados empíricos das condições de existência humana no Planeta com a
tese de que as atuais mudanças representam o melhor estágio da Racionalidade humana. Ou
ainda, quando percebermos que as mesmas premissas que servem de pressupostos para
justificar o alto grau da Racionalidade humana servem também para contrariar o conteúdo
de sua essência formadora: o saber pensado, individual ou coletivamente, dirigido para
construir o social.
Destarte, ao mesmo tempo em que nos surpreendemos diariamente com os produtos
da Tecnologia e das pesquisas realizadas pelas Ciências, ficamos perplexos com o poder
resultante da manipulação dos saberes, vinculado ao crescimento da miserabilidade no
mundo. Isso só reforça nossa hipótese de que a falsa sensação de “plenitude racional”
projeta uma imagem mítica da excelência do Saber Científico e do saber-fazer da Técnica,
que favorece um pensar desvinculado de uma reflexão mais consistente, com conteúdo não
apenas da experiência individual, mas com referências que levem em conta a própria
História humana.
Além do mais, a própria concepção e gestação do ser moderno em questão, poderão
estar ligadas a valores “divinos” e “soberanos”, mesclando e definindo traços marcantes na
sociedade atual. Para nós, isso reforça a hipótese de uma interface entre o Mito e a Técnica.
A interface sugerida estaria submetida à Racionalidade Instrumental da Tecno-Ciência,
fundida nos interesses subjacentes ao sistema capitalista que, numa dimensão social ampla,
assume a configuração do Mito-Tecno-Lógico.
É possível encontrar pistas dessa fusão envolvendo Mito, Técnica e Ciência, em
Zuin (1999)i. Este autor destaca a relação entre as racionalizações míticas e as práticas
sociais.
(...) desde a aurora da humanidade já se observa a necessidade de repetição dos fatos sociais
através da prática ritualísticas fixas de modo a permitir o controle das etapas e,
principalmente, a explicação do desconhecido. (...) a repetição do significado e o controle
obtido não são características exclusivas do mito, mas também estão presentes numa
sociedade regida pelo princípio do equivalente, cujo cálculo matemático espraia-se de tal
forma que alcança o status de espírito absoluto. A própria origem da chamada teoria
tradicional encontra-se vinculada com as racionalizações mitológicas. Conseqüentemente, o
conceito do que é verdadeiro e real se transforma em sinônimo de lógica matemática. (p.11)
Admitir a interface entre os fenômenos nos remete à idéia de que estamos envoltos
em uma intrincada teia de relações, a qual articula e modela o modo de pensar e comunicar
contemporâneo. Essa articulação vincula, como um cordão umbilical, o projeto de
Modernização ao Mito-Tecno-Lógico. E mais: a própria modelação do pensar
contemporâneo traz consigo a falsa idéia de democratização da cultura, que, dentre outras
coisas, camufla o poder de monopólio da riqueza através da acumulação do capital.
Para nós, o que torna interessante e ao mesmo tempo assustador é perceber que o
mesmo contexto que serve de fio condutor para a compreensão do novo cenário mundial,
construído pelo capital financeiro, serve também de palco principal para a extensão da
Modernização na Educação.
A encenação acima sugerida serve para destacar a magnífica fusão da tríade Mito,
Técnica e Razão. Desse modo, como protagonistas das principais mudanças no formato do
mundo, os três níveis de Conhecimento articulam-se entre si apoiados na Racionalização
Econômica, para configurarem o que denominamos de trama Mito-Tecno-Lógico.
Por outro lado, encontramos em Habermas (1999)i um alerta para as armadilhas que
o Mito-Tecno-Lógico poderá nos apresentar. Segundo esse autor, o Mito não permite a
clara distinção entre coisas e pessoas, entre objetos que podem ser manipulados e agentes,
sujeitos capazes de linguagem e a ação, aos quais imputamos ações e manifestações
lingüística.i.
No alerta que nos faz, Habermas (1999) demonstra sua preocupação com o
entrelaçamento entre as imagens míticas e lingüísticas do mundo, as quais usamos para
apreender, compreender e nos comunicarmos. Para esse autor,
(...) as imagens míticas do mundo impedem a desconexão categorial de natureza e cultura,
não somente no sentido de uma mescla conceitual de mundo social e mundo objetivo, como
também no sentido de uma reificação da imagem lingüística do mundo. O qual tem como
conseqüência o conceito de mundo que, investido dogmaticamente de determinados
conteúdos, escapam a uma postura racional e, com isso, a crítica (Habermas 1999, p. 80).
Para o autor acima referido, são diversos os obstáculos que a sociedade terá que
superar, caso deseje efetivar sua emancipação. Um desses obstáculos - a desmitologização
da imagem do mundo - significa a dessocialização da Natureza e a desnaturalização da
Sociedade. A preocupação de Habermas (1999) está diretamente ligada ao processo que
desvincula o conteúdo mítico da própria ordem do mundo. Isto porque esse conteúdo sobre
o mundo, sendo de caráter dogmático, foge à postura racional e, portanto, também a
qualquer possibilidade de críticas.
Desse modo, a perfeita harmonia instrumental do Mito, da Técnica, da Ciência e da
Tecnologia parece esconder elementos que dão suporte e sentido à comunicação do Mito.
Ou seja, o discurso da nova flexibilização econômica e da política de exploração do capital
financeiro, fornece parâmetros de apoio estratégico, como um trampolim para a reinvenção
do Mito. A despeito de tais parâmetros e perspectiva, Duarte (2000)i nos oferece
significativos detalhes.
(...) Os tempos contemporâneos são de euforia, mobilidade e profusão. Vive-se a era da
desregulamentação, da ausência de regras. Presidida pelo princípio do prazer, a renúncia
forçada que caracterizou a modernidade converteu-se no reino de uma liberdade que chega à
beira da selvageria, tornando-se a referência pela qual todas as normas e resoluções
passaram a ser medidas. (...) Se os tempos contemporâneos são de euforia, mobilidade e
profusão que aturdem os mais favorecidos, eles flagelam como um insulto os mais
desprovidos de bens, avivando suas frustrações. Por isso, é preciso que se diga, a antiga
norma se mantém - o princípio da troca. Os ganhos e perdas apenas mudaram de lugar.
Beneficiar-se do progresso técnico é também dobrar-se às suas normas e prescrições, é
submeter-se aos riscos da insegurança, ao controle policial, ao poder constrangedor do
dinheiro (Duarte: 2000.p.16-18).
Já dissemos anteriormente que nos movemos, neste estudo, com o interesse em
compreender a intrincada teia na qual se move o Mito-Tecno-Lógico no sentido de
participar, orientar e justificar a Modernização. Assim, interessa-nos saber até onde o
movimento de reordenação e acomodação das políticas do mercado econômico e financeiro
interfere na formação e aplicação do Mito-Tecno-Lógico contemporâneo. E na mesma
discussão, cabe, por exemplo, compreender como as marcas e o discurso que as justifica
são assimilados e decodificados pelo Sistema Educacional, e depois transformados em
conteúdos de formação.
Objetivando identificar fatores implicativos, no contexto acima descrito
apresentaremos no próximo Capítulo, sob a forma de preocupação, alguns sinais que
parecem revelar ligações muito fortes da lógica que implementa mudanças na esfera
econômica e a Racionalidade que orienta o caminho da Modernização da Educação
brasileira.
Alguns indicadores já foram apresentados anteriormente e serão apenas reforçados.
Dentre eles, a Racionalização da Produção, fixada pelas políticas neoliberais, que exigem
redução dos gastos, principalmente com Pessoal. Outros serão encaixados como elo de
ligação das cadeias de perspectivas que configuram o Mito-Tecno-Lógico.
CAPITULO 3
Impactos do Mito-Tecno-Lógico na Educação Brasileira:
negociando com as incertezas.
(...) A publicidade e o patrocínio sempre se voltaram para o uso da imagem
para equiparar produtos a experiências culturais e sociais positivas. O que torna
diferente o branding dos anos 90 é que ele cada vez mais procura retirar essas
associações do reino da representação e transformá-las em uma realidade da vida.
Assim, a meta não é apenas ter atores mirins bebendo Coca-Cola em um comercial
de TV, mas que estudantes debatam conceitos para a próxima campanha
publicitária.
(...) o efeito do branding avançado é empurrar a cultura que a hospeda para o
fundo do palco e fazer da marca a estrela. Isso não é patrocinar cultura, é ser
cultura.
(Naomi Klein).
.
Terceiro Capítulo Impactos do Mito-Tecno-Lógico na Educação Brasileira:
negociando com as incertezas.
1. A Institucionalização do Saber e do Saber-Fazer na Modernização da
Educação.
Apesar de estar associada ao “novo”, a Modernização está ligada a momentos em
que o impacto dos novos instrumentos sobre o Mundo ainda era insignificante, em que se
tinha uma textura sociocultural mais compacta e consistente e a dinâmica política e
Econômica aparentava ser mais estável e duradoura. i Nas origens da formação do
Pensamento Moderno, encontramos a dimensão crítico-criativa vinculada ao processo de
institucionalização do Modelo Educativo e à difusão da instrução intelectual.
Nesse sentido, se buscarmos nas origens da institucionalização do Saber e do Saber-
Fazer organizados e desenvolvidos como Racionalização e Modernização, então, talvez
possamos encontrar pressupostos básicos da forma de institucionalização do Ensino. Esta,
ao que nos parece, ocorreu a partir do aspecto formal-instrumental do ato de ler, escrever e
contar, articulados como Conhecimento, e da aprendizagem do trabalho derivado nos
ofícios desenvolvidos, como forma específica de aprendizagem.i
Desse modo, considerando os aspectos acima sugeridos, refletiremos acerca da
evolução contextual apresentada por Manacorda (1997), para chegar a uma caracterização
do ambiente no qual germinaram as principais idéias pedagógicas que impulsionaram o
processo de Modernização da Educação. i
O autor em questão, em seu levantamento histórico-evolutivo da Educação, nos
oferece aspectos da Racionalização Técnica e Científica no campo social e político, com
impacto também no processo educativo. Segundo esse autor, as mudanças geradas pela
mecanização do novo modo de produção provocaram o deslocamento da população, das
oficinas artesanais para as fábricas.
Nesse mesmo sentido, e reforçando as mudanças que já se evidenciavam na direção
da Modernização, o autor demonstrou que ocorrera o esvaziamento das oficinas, somado ao
deslocamento da população. A saída desta do campo para a cidade resultou em
transformações culturais e revoluções morais significativas, que mudaram as condições e as
exigências da formação humana (Manacorda: 1997 p. 270).
(...) assiste-se ao desenvolvimento da fábrica e, contextualmente, à supressão de fato e de
direito, das corporações de artes e ofícios, e também da aprendizagem artesanal como única
forma popular de instrução. Este duplo processo, de morte da antiga produção artesanal e de
renascimento da nova produção de fábrica, gera o espaço para o surgimento da moderna
instituição Escolar pública. Fábrica e Escola nascem juntas: as leis que criam a Escola de
Estado, vêm juntas com as leis que suprimem a aprendizagem corporativa. i
Ao analisar os impactos das mudanças políticas e Econômicas, nas relações de
produção e no processo de formação dos indivíduos, Manacorda (1997) concluiu que havia
elementos comuns às várias sociedades, desenvolvidos ao longo da história da Educação.
Tais elementos, em alguns momentos, até poderiam aparecer camuflados ou assumindo
outras tipologias, mas na base do que lhes dava origem e sentido, conservavam as mesmas
características: a Inculturação e/ou Aculturação.i
Nesse contexto, a Educação, segundo Manacorda (1997), ganhou impulso para a
Modernizaçãoi, no início dos anos setecentos. Período no qual a Educação esteve voltada
para uma dimensão materialista, pautada no saber-fazer da Técnica como base da formação
dos jovens que desejavam aprender um ofício. Assim, como o autor em questão,
acreditamos que a Modernização da Educação tem suas origens no aprendizado das
Técnicas artesanais e mercantis. i
A partir do momento em que nasce e se define a ciência moderna, é criticado o humanismo
livresco, gramatical e escolástico da cultura. A preocupação da educação moderna passa a
ser com as várias maneiras e as diferentes iniciativas que deveriam fazer parte do processo
de educar humanamente todos os homens. (...) A educação estava na moda: dela se
ocupavam os soberanos, os filósofos, os utopistas e os romancistas. i
Nesse sentido, deixar-nos-emos guiar pelos caminhos trilhados por Manacorda
(1997), visando a compreender o processo de institucionalização da Educação. Um pouco
antes, mas ainda no mesmo caminho, nos deparamos com os Enciclopedistas, os quais,
como incentivo à Modernização da Educação, sugeriram para a Escola um amplo programa
de conteúdos das Ciências e das Artes, sem esquecer a preocupação com o ensino dos
ofícios que o desenvolvimento do Capitalismo Moderno exigia.
Os interesses e os ideais que operavam as mudanças e a divisão social rumo à
institucionalização do Saber e da modernização da Educação ficarão mais evidentes quando
vistos sob a ótica dos modelos nos quais foram Sistematizados os princípios da formação
individual: o artesão, voltado para a mão-de-obra, o acadêmico, para cultivar e definir o
rumo das luzes, e o homem rico, para cuidar do custeio das maquinarias e dirigir seus
lucros (Cf. Manacorda: 1997, p.241).
Outrossim, aprendemos com Manacorda (1997) que a modernização da Educação
enquanto instituição pública, desenvolveu-se junto com a evolução das fábricas. Por sua
vez, a lógica da Racionalização Econômica proporciona a expansão destas e, como
conseqüência, a supressão dos espaços coletivos de Aprendizagem nas Corporações de
Artes e Ofícios e a Aprendizagem Artesanal. Esta passou a ser assumida como única forma
popular de instrução.i
Na seqüência da abordagem, o citado autor deixou claro que ao lado da burguesia,
até então protagonista da História Moderna surgiu, uma força antagônica, que a própria
burguesia suscitou e sem a qual não poderia subsistir: o Moderno Proletário Industrial.
Nesse contexto, o Ensino Público, principal instrumento de formação da conduta da classe
popular, foi organizado e assumido pelo Estado, para desviar a atenção dos jovens e leva-
los para longe dos caminhos íngremes da conscientização, para não perturbar o trabalho dos
administradores e governantes (Cf. Manacorda:1997, p.270).
No que se refere aos processos da aprendizagem, o autor focalizou a questão do
ensino mostrando que este foi assumido por monitores – jovens adolescentes, instruídos
diretamente pelo mestre -, que atuavam nas Escolas ensinando a outros adolescentes e, por
vezes, supervisionando a própria conduta dos colegas. Segundo Manacorda (1997), foi o
momento em que a Pedagogia se tornou social, pelo seu papel na sistematização teórica e
na transferência, para a prática, das instâncias ideais.
Delimitada, pois, a perspectiva de Modernização para a Educação, Manacorda
(1997) afirmou que a Pedagogia Moderna passou a trabalhar com o tema das relações
Instrução-Trabalho ou Instrução Técnico-Profissional (Cf. Manacorda: 1997 p.269-272).
Desse modo, fica claro que a Sistematização do Ensino seguiu na esteira do
Conhecimento Técnico-Científico, com uma nova orientação que pressupunha
planejamento e estratégias para alcançar resultados mais consistentes. Daí justificarem-se
as preocupações com o Método. A referência da Educação nesse contexto foi a Escola
Nova, para a qual o critério metodológico estava centrado no aprender fazendo.
No que se refere à formação acadêmica do indivíduo moderno, faremos uma breve
referencia aos acontecimentos da Europa Moderna, principalmente depois da invenção da
prensa tipográfica. A ênfase será no sentido da caracterização dos Processos de Produção e
aplicação do Conhecimento ao Ensino.
Nesse sentido, a História e a Sociologia do Conhecimento nos mostraram que o
saber acadêmico esteve fortemente vinculado às formas de pensar das elites dominantes. As
Universidades, configuradas como espaço formal de produção e difusão dos saberes
acadêmicos, estiveram durante séculos organizadas em torno das diretrizes religiosas.
Em Burke (2003), encontraremos informações da grande efervescência na discussão
dos saberes, nos períodos que vão do Renascimento ao Iluminismo. As idéias postas em
debate geravam conflitos entre grupos de pensadores organizados por instituições ou
corporações. Por outro lado, os debates também ocorriam fora das Universidades, onde os
“Humanistas” i divergiam dos grupos que se organizavam e se estabilizavam nas
instituições como formadores de opinião. De uma forma ou de outra, o que estava em jogo
era o nascimento da institucionalização do Saber.
A tendência dos Humanistas de irem contra a organização formal do Saber regulada
pelos currículos oficiais das Universidades possibilitou o surgimento de uma nova
tendência filosófica que começou a ganhar espaço e a se constituir enquanto saber
alternativo no século XVII. Estamos nos referindo à Filosofia Natural, ou Filosofia
Mecânica.
Nas palavras de Burke (2003), essa nova tendência ou movimento foi mais
intelectual e autoconsciente do que o próprio Renascimento. Eles rejeitavam tanto a
tradição clássica, quanto a medieval.i Ainda segundo esse autor,
(...) De um ponto de vista institucional, o século XVII marca um ponto de inflexão na
história do Conhecimento europeu em diversos aspectos. Em primeiro lugar, o monopólio
virtual da educação superior desfrutado pelas universidades foi posto à prova nesse
momento. Em segundo lugar, assistimos ao surgimento do instituto de pesquisas, do
pesquisador profissional e, de fato, da própria idéia de “pesquisa”. Em terceiro lugar, os
letrados, especialmente na França, estavam mais profundamente envolvidos com projetos de
reforma econômica, social e política, em outras palavras, com o Iluminismo. (...) Esse
conjunto de termos sugere uma consciência crescente, em certos círculos, da necessidade de
buscas para que o Conhecimento fosse sistemático, profissional, útil e cooperativo.(...) Por
essas razões podemos falar de um deslocamento, em torno do ano 1700, da “curiosidade”
para a “pesquisa” (p.47-49).i
A breve caracterização da produção intelectual do Conhecimento, feita
anteriormente, contrasta com os impactos sociais causados pela distorção política e
econômica do Desenvolvimento Técnico e Científico. Entre os processos educativos
identificamos um fosso. De um lado, os que se apropriam dos fundamentos técnico-
científicos visando ao lucro e à acumulação de riquezas; do outro os que se apropriam da
linguagem e dos instrumentos técnicos, com a finalidade burocrática de acompanhar a
evolução tecnológica e instrumentalizar o pensamento em favor da Modernização Social.
Nesse contexto, acreditamos que atualmente existe uma ponte que liga os estreitos
caminhos da Educação, entre passado-presente, embora essa ponte encontre-se corrompida
na sua essência (interpretativa) e comprometida no seu conteúdo (criticidade), não
oferecendo, portanto, segurança no que seria o papel principal da instituição Escola:
propiciar o ritual de passagem do teórico-instrutivo, para a prática crítico-criativa.
O fosso, ao qual nos referimos anteriormente, quando visto sob as contradições
econômico-social, indústria-Escola, trabalho-instrução, reforça a importância da Educação
na compreensão das transformações atuais, implícita nas relações do saber-fazer e saber
quê. Ambas trazem intrínseco o cultivo da criticidade, assumido como estratégia de
discernimento dos conteúdos educativos difundidos por um estreito canal de ligação entre a
Ideologia e a Pedagogia.
Voltando a Manacorda (1997)i, encontramos uma boa descrição do ambiente em
que ocorrem essas relações, nos séculos XVII e XVIII, em que a assimilação do moderno
na Educação, ocorreu por força do Desenvolvimento Industrial e Econômico impulsionado
pelo acúmulo dos grandes capitais, constituídos, principalmente, com a exploração dos
novos Continentes. Foi o contexto de saída da fase técnica para a fase tecnológica com a
modernização das fábricas.
(...) Ao entrar na fábrica, que tem na ciência moderna sua maior força produtiva, ele [o ex-
artesão] fica expropriado também de sua pequena ciência, inerente ao seu trabalho; esta
pertence a outros e não lhe serve para mais nada e com ela perdeu, apesar de tê-lo defendido
até o fim, aquele treinamento teórico-prático que, anteriormente, o levava ao domínio de
todas as suas capacidades produtivas: o aprendizado.(...) os trabalhadores perdem sua antiga
instrução e na fábrica só adquirem ignorância. Em seguida, a evolução da "moderníssima
ciência da tecnologia" leva a uma substituição cada vez mais rápida dos instrumentos e dos
processos produtivos e, portanto, impõe-se o problema de que as massas operárias não se
fossilizem nas operações repetitivas das máquinas obsoletas, mas que estejam disponíveis às
mudanças tecnológicas (...) Em vista disso, filantropos, utopistas e até os próprios
industriais são obrigados, pela realidade, a se colocarem o problema da instrução das massas
operárias para atender às novas necessidades da moderna produção de fábrica: em outros
termos, o problema das relações instrução-trabalho ou da instrução técnico-profissional,
será o tema dominante da pedagogia moderna.i
As informações oferecidas pelo citado autor demonstram o papel que a Escola em
parte desempenhou, através do conjunto dos processos educativos, para acomodar as
mudanças ocorridas no âmbito das políticas Econômicas, assumidas como exigências
sociais.
Essa Escola, procurando acompanhar historicamente as transformações sociais,
incorpora, ainda hoje, os fundamentos ideológicos da política econômica e das elites
dominantes, a fim de se tornar importante instrumento teórico e prático na adequação das
mudanças sociais aos novos apelos do mercado financeiro internacional.
A incursão feita, no contexto dos séculos XVII e XVIII, revelou-nos um
desenvolvimento cultural idealizado em nome da Modernidade e conduzido pelas
inovações Técnicas, o que exigiu uma organização política e social, para gerar, decodificar,
assimilar e consumir novas necessidades. Na verdade, as mudanças econômicas passaram a
ocorrer em ritmo forte e rápido e a formação social e cultural em um ritmo frágil e lento.
A pergunta, aparentemente boba e ingênua, do tipo: O que alimenta tal disfunção?
ou, Por quê ignoramos o movimento corrosivo que alimenta o descompasso entre o
Econômico e o Social? Tais questões exigem resposta e fundamentação muito mais
complexas do que se possa imaginar. A herança sociocultural que a Sociedade
Contemporânea recebeu, para assumir o símbolo de Geração Moderna, ou Pós-Moderna,
traduz-se nas contraditórias relações envolvendo as várias faces do que se toma por
Moderno.
As mudanças estruturais pretendidas como desenvolvimento das Sociedades,
quando tomadas em seus contextos históricos específicos, no sentido de adequação do
Social ao que se convencionou por Moderno, revelam o movimento no qual ocorrem
interposições valorativas de interesses, necessidades, conhecimento e desejos
determinantes, no conjunto da organização e da formação dos indivíduos. Movimento
este que refletiu o jogo de conflitos e contradições inerentes aos elementos envolvidos.
A lógica de aplicação do movimento acima referido, sob a ótica do
Desenvolvimento Técnico-Científico, revelou a distorção entre o que se oferecia como
mudança social e o que se exigia como formação cultural. O Progresso Técnico-
Científico e a Modernização das indústrias provocaram o êxodo rural. Como
conseqüência, a superpopulação nas cidades agregou a pobreza material e intelectual,
forçando a aplicação de medidas de controle no Social.i
(...) Para as autoridades, a delinqüência cada vez maior entre os jovens desempregados
mostrava uma clara necessidade de mais supervisão e disciplina. Por isso foram
criadas novas Escolas monitoriais,i declaradamente destinadas à Educação mas na
prática apenas ao treinamento das crianças na disciplina fabril. (...) Desse modo o
processo de Educação foi reduzido a uma espécie de linha de produção. (...) Não era
considerado socialmente seguro que os meninos da classe operária se envolvessem com
teoria matemática, por isso somente as tabuadas eram ensinadas.(...) Era de particular
importância para as autoridades que a escrita não fosse ensinada a crianças pequenas:
podia incitar pensamentos radicais. Sem a escrita, eles não podiam ser expresso
adequadamente. i
Seguiu-se, portanto, ao longo dos séculos, o processo de Institucionalização da
Ideologia como instrumento de controle social. Ampliou-se o fosso que separava as
classes que dominavam das classes que são dominadas. E, como foi visto
anteriormente, o espaço estratégico para a utilização mais eficaz desse Instrumento
encontrava-se na Educação, pois, ao mesmo tempo em que ela institucionalizou o
saber no campo pedagógico, o fez também no campo ideológico.
A Educação passou, portanto, a servir de ponte, ligando as duas margens: a do
saber e a do saber-fazer; a do ser com a do ter. Ponte esta, que, hoje, encontra-se em
estado precário e não oferece segurança para que se efetive, de modo consistente, o
rito de passagem de uma margem para a outra. Escolas, configuradas como centros de
formação do caráter, institutos de difusão do Conhecimento, e outras entidades
normativas, controladoras do comportamento social e dos conteúdos formadores,
apoiaram as mudanças estruturais nas Sociedades.
Ao mesmo tempo em que atendiam à demanda das classes empobrecidas,
oferecendo conhecimento moral, pragmático e isento de criticidade - requisitos
essenciais para formação de mão-de-obra barata -, montavam estratégias de seleção e
controle dos indivíduos capacitados para seguirem na evolução “natural” da espécie.
(...) As autoridades vitorianas criaram também um mito para reforçar ainda mais a aspiração
à conformidade e obediência, instilando na classe média o medo do “resíduo”, uma vasta,
informe e inidentificável classe de pobres, enfermiça e perigosa. O darwinismo social deu
suporte pseudocientífico à idéia de que o resíduo era algo inatural, ensinando que somente
os mais bem adaptados podiam sobreviver e que nada devia ser feito pelo inadaptado. (...)
No final do século XIX, a filosofia do corte-e-controle já havia modelado o mundo
moderno. O trabalho já estava retalhado e disposto em uma ordem seqüencial, dominado
pela necessidade de conformidade com a máquina. A Educação da Igreja, bem como a do
Estado, serviam principalmente para assegurar o controle social por meio da doutrinação das
virtudes da obediência e da uniformidade (Burke1998, p.220-225)
Assumimos, pois, a idéia de que o movimento basilar de organização e difusão do
Pensamento Moderno projetou-se de início em torno do espírito crítico-criativo do
Indivíduo Renascentista e Iluminista, acompanhado de perto pelo desenvolvimento do
espírito capitalista. Este, adotando os processos técnicos e científicos de exploração da
Natureza, como parâmetros inevitáveis para a Modernização, buscou aprimoramento
técnico e metodológico, para mudar os modos de produção e estilizar o processo de
acumulação material.
A Educação desenvolveu-se em função da idéia de institucionalização do Saber,
pautando-se na tentativa de acomodar o indivíduo às mudanças sociais e assumindo,
ideologicamente, o papel de detentora das letras e das luzes. Em parte, alimentando-se dos
desejos de superação do indivíduo, no campo teórico-especulivo. De outra parte, projetando
os interesses coletivos, adequou-se a estratégias de exploração e acumulação de riquezas,
pelas elites dominantes, ao traduzir impulsos e desejos individuais em modelos de crença e
consumo coletivos, orientados para uma ascensão social.
2. Educação e Modernização: exigência da Racionalidade Tecnológica para
efetivar o rito de passagem.
Tomando o processo de institucionalização do Saber e do Saber-Fazer,
desenvolvido no tópico anterior, e atualizando-o no contexto da Modernização, veremos
uma certa cumplicidade de movimentos.
A implementação da Racionalização Econômica, a Capitalização e a gestação da
Modernização não poderiam deixar de fora o espaço institucional da Educação Formal.
Nesse contexto, o espaço institucional da Escola se constituiu em ambiente ideal para a
fertilização e crescimento das idéias e dos ideais que iriam dar suporte, lógico, ideológico e
mitológico, para a Modernização.
O ambiente acima sugerido já vem sendo constituído ao longo dos anos. Basta ver o
descredenciamento atual da instituição Escolar para a formação integral do indivíduo e o
direcionamento das ações educativas voltadas para atender às exigências das políticas
externas que amparam o Desenvolvimento Econômico. Com isso aprofunda-se a
descaracterização e o desprestigio das Instituições Públicas de Ensino, em nome das
políticas de incentivo à privatização da Educação em seus vários níveis e áreas de
Conhecimento.
Some-se a esse contexto o aumento do déficit com pessoal qualificado, os baixos
salários e o não-compromisso com a reposição do material básico para garantir condições
mínimas à boa aprendizagem. Todos esses pontos tornaram-se apelos rotineiros por parte
dos profissionais da Educação aos governos eleitos.
Desse modo, associou-se principalmente à Escola Pública, a imagem de um
ambiente desfavorável ao Ensino-Aprendizagem com amplo significado. Esses elementos,
somados a outros fatores contextuais geraram baixa credibilidade social para motivar e
imprimir uma formação consistente ao indivíduo. Algo que possibilitasse ao mesmo tempo
desenvolver o potencial crítico-reflexivo, o crescimento intelectual e profissional, para
inserir-se formalmente nos vários campos do Saber.
Ao nosso ver, as condições caóticas que se evidenciam nas Instituições de Ensino,
em específico as Públicas e brasileiras, são evidências do contexto da Racionalização
Econômica e do esforço para cumprir as exigências do rito de passagem “da Barbárie à
Modernização”, dentro das expectativas geradas pelo Mito-Tecno-Lógico. A aura dessa
passagem nas instituições educativas brasileiras pode ser captada em pelo menos dois
direcionamentos: um de natureza política e outro de natureza econômica.
Os direcionamentos acima sugeridos podem ser percebidos na abertura que as
Instituições de Educação brasileiras oferecem ao setor privado e as parcerias e convênios
efetivados com os setores mais diversificados da Sociedade, indo desde a associação de
bairros, voluntariados, Ongs, até grandes grupos corporativos que encontram, na Escola, o
espaço ideal para aproximar suas marcas, dos jovens consumidores.
Nestas direções, o contexto da Escola parece constituir-se espaço ideal para a
apresentação e assimilação das marcas. Um ambiente desacreditado, atrasado,
convencional, tradicional e conservador nas suas regras comunicativas, o qual precisa
urgentemente ser redescoberto, ou reinventado, como moderna alternativa de projeção
individual e coletiva no universo “descompromissado” da Modernização. Assim, as marcas
chegam às Escolas como parceiras sociais, no amplo projeto de formação do jovem para o
“Novo”, para o “Moderno”.
Essa referência contextual de inserção das marcas no processo educativo é uma
demonstração dos espaços que se oferecem para a reinvenção do Mito-Tecno-Lógico. Isto
em parte se justifica porque a Educação - pode até não parecer - mas ainda é uma
instituição de base sólida, capaz de preparar a transição do indivíduo, no plano social, do
não-Moderno para o Moderno. Klein (2002) nos oferece indicadores da influência das
marcas nos processos educativos. Segundo essa autora,
Em todo o mundo, campi universitários estão oferecendo suas instalações de pesquisa, e
inestimável credibilidade acadêmica, para as marcas usarem a seu agrado. E na América do
Norte de hoje, as parcerias de pesquisa corporativa com as universidades são utilizadas para
tudo: projetar novos patins Nike, desenvolver técnicas de extração de petróleo mais eficiente
para a Shell, avaliar a estabilidade do mercado asiático para a Disney, testar a demanda por
banda larga para Bell ou medir os méritos relativos de um medicamento de marca, com um
genérico.i
Não podemos esquecer o que já tratamos em tópicos anteriores, do fato de que a
dinâmica de desenvolvimento da cultura de mercado está vinculada a conceitos, valores e
padrões de Civilizaçãoi que o Ocidente ao longo dos anos configurou, ampliou e apresentou
ao Mundo como princípios universais para serem adotados e assumidos como garantia do
Desenvolvimento, do Progresso e da Racionalidade da Raça Humana.
Como no estudo em questão nos movemos, até o momento, por teorias e idéias
gerais sobre Política, Economia, Cultura e Sociedade, visando a compreender as
implicações da Modernização para a formação do Pensamento Contemporâneo,
canalizaremos agora nosso esforço para captar as implicações da Modernização,
principalmente no que diz respeito à reinvenção e manifestação do Mito-Tecno-Lógico no
modelo brasileiro de Educação.
Partiremos do pressuposto de que, no Brasil, estamos inseridos em uma Sociedade
democrática, ou em pleno curso do seu delineamento, da qual podemos assumir como base
investigativa a hipótese de que o Sistema Educacional brasileiro atua nas esferas social e
cultural através de instrumentos democráticos.
Dito isso, talvez possamos inferir das entrelinhas do conteúdo de tal hipótese a idéia
de que o governo que ganha as eleições, para desenvolver seu Programa de Intenções, tem
que reorganizar as bases institucionais nas quais o Sistema irá mostrar sua eficiência
através das políticas de resultados. Por sua vez, essas políticas com seus resultados irão
atuar como instrumentos do Sistema, na modelação do conjunto da Sociedade.
O impacto positivo ou negativo, frente ao controle das ações aplicadas, poderá
significar tanto uma simples acomodação dos conflitos mais evidentes, como uma
transformação do constituído, que passa a ser contabilizado pelos Meios de Comunicação,
ao traduzir a reação da população, como aceitação e/ou como rejeição, em dados e gráficos
com valores e símbolos que referendam, ou não, o novo Sistema.
Sendo mais específico no tratamento da questão social, podemos dizer que, no
conjunto da Sociedade, as ações do Sistema Educacional costumam ganhar destaques nos
Programas Eleitorais, seja porque estes oferecem condições ideais para acomodar novas
idéias a velhos Sistemas ou velhas idéias a novos sistemas, seja porque contribuem como
instrumento, político e ideológico, para executar as transformações prometidas.
De um modo ou de outro, o Sistema Educacional, em específico o brasileiro, deixa
de atuar na perspectiva autônoma e crítica, em relação à formação social do indivíduo para
o exercício da cidadania, para a atuar junto aos interesses particulares. No que diz respeito a
transição e adequações dos Sistemas de governos, a Educação apresenta-se como o Sistema
mais afetado. Estas, com conjunto de suas ações, tem sido vista como base de apoio
estratégico, para acomodar interesses políticos ideológicos, da elite dominante.
Desse modo, a Escola, espaço formal de institucionalização do Saber, ao longo dos
anos tem abdicado das suas prerrogativas de autonomia e criticidade, em nome da isonomia
regulada pela lógica da Economia de Mercado, que os governos assumem em suas
propostas eleitorais.
Outrossim, o Sistema Educacional, sob o jugo dos interesses capitalizados pelas
forças políticas e econômicas, apresenta-se, permanentemente, na encruzilhada de
informações, teóricas e práticas, sem saber ao certo o caminho a seguir: a forma ou o
conteúdo; os métodos ou as teorias; a essência ou as aparências.
A confusão na identidade, política, social e cultural, refletida no Sistema
Educacional, é reforçada por ações que não oferecem transformações em profundidade,
mas apenas mudanças superficiais, visando resultados quantitativos utilizados como
categorias legitimadoras dos processos instituídos e do sistema adotado.
Nesse sentido, podem ser concebidas, para a Educação, políticas implementadas em
prol da Racionalidade Instrumental, visando a adequar a formação dos indivíduos aos
interesses políticos e econômicos. Estas podem chegar às escolas camufladas sob o disfarce
de “inovadoras” propostas sociais, fixando diretrizes, como urgentes e necessárias, aos
novos parâmetros civilizatórios. Em Gómez (2001)i, por exemplo, encontramos uma
descrição dos impactos possíveis para tal situação.
(...) Um dos sentimentos mais constantes do professorado na atualidade é sua sensação de
sufocação, de saturação de tarefas e responsabilidades, para fazer frente às novas exigências
curriculares e sociais que pressionam a vida diária da escola. A integração de crianças com
necessidades educativas especiais no desenvolvimento normal da aula; a introdução de
novas áreas e orientações curriculares; educação sexual, novas tecnologias, educação moral,
que atravessam horizontalmente a estrutura disciplinar do currículo; os contínuos projetos
de reforma e mudança impostos pela Administração, nos quais se modificam não apenas os
conteúdos do currículo, como também os métodos didáticos e os papéis profissionais dos
docentes, que agora são pressionados a assumir a responsabilidade de uma certa autonomia
na configuração de seu trabalho; as exigências sociais de eficiência observável e a curto
prazo para satisfazer as exigências do mercado; os projetos de avaliação do rendimento das
escolas e dos docentes para facilitar a livre escolha de escola por parte das famílias etc
(Gómez: 2001, p.175).
Queremos deixar claro que não estamos, aqui, defendendo um sistema educacional
que aplique e siga políticas uniformes e imutáveis, traçadas para justificar social e
culturalmente um desenvolvimento linear e inalterável. Por outro lado, não podemos deixar
de ressaltar a distorção que se apresenta entre os conteúdos desenvolvidos nas escolas e o
processo assumido como necessário e urgente às rápidas mudanças que ocorrem na esfera
econômica.
Por isso, iremos buscar nas articulações da política e da ideologia brasileira
elementos para a composição e aplicação do Mito-Tecno-Lógico na Educação. Para tal,
invocaremos Cano (1995)i. Este autor nos oferece reflexões sobre as políticas de
desenvolvimento brasileiro, principalmente a partir da década de 70, e indicadores do atraso
social e produtivo do nosso País nesse período, com reflexo negativo para nós ainda hoje.
Do contexto acima sugerido, Cano (1995) apresenta-nos um quadro significativo de
fatores que estão diretamente associados ao descompasso brasileiro, no que diz respeito à
sua inserção no contexto das Revoluções Industriais que ocorreram nos países
desenvolvidos.i Segundo este autor, o Brasil arrastou-se em média 50 anos para inserir-se
em cada uma das três Revoluções Industriais.
Ora, se contarmos a primeira Revolução, ocorrida na Europa, em 1820, veremos que
o Brasil só despertou para tal 50 anos depois, como entende Cano (1995), ou seja, em 1870,
período em que já estava sendo iniciada a Segunda Revolução Industrial, pelo bloco dos
países que disputavam a hegemonia do Capital Internacional. Esta, por sua vez, só estaria
ocorrendo no Brasil por volta do ano de 1930. Tempo suficiente para os Estados Unidos
prepararem a Terceira Revolução, ocorrida entre os anos de 1950 e 1970. i
É importante lembrar que o contexto e o conteúdo das políticas educacionais
brasileiras da segunda metade da década de 80 apontavam para uma Sociedade democrática
que se organizava em torno de Movimentos Sociais que, bem ou mal, punham em
discussão o papel do Estado e o processo de socialização que começava a ganhar corpo.
Em Neves (1995)i, por exemplo, é possível encontrar referências de que os
empresários da Indústria Brasileira, motivados pelo desenvolvimento tecnológico no País,
sugeriam às escolas uma formação fundamentalmente dirigida para a produção industrial,
capaz de assegurar o processo de automação o qual as empresas se empenhavam em
realizar de modo rápido e eficiente. Segundo a autora,
(...) Aos empresários interessava a execução de uma política educacional que passasse a
“atuar na formação de mão-de-obra de nível superior”, proporcionando uma maior
integração entre universidade-empresa, na perspectiva de obtenção de um maior inter-
relacionamento entre treinamento de mão-de-obra e demandas operacionais da empresa. Os
objetivos e as estratégias educacionais apresentadas pelo empresariado industrial ao
Governo e à sociedade se constituem em evidência de que, para o capital, o sistema
educacional deve ter, como finalidade essencial, a formação de técnicos especialistas
capazes de acompanhar as mudanças qualitativas do processo de racionalização da
produção pela introdução de novas tecnologias. i
Percebemos, pois, que os interesses da elite empresarial encontram-se canalizados
para o Sistema Educacional, como estratégia política para assegurar o processo de
Modernização Tecnológica que o País começou a modelar principalmente nos anos 60.
Desse modo, a sistematização do Conhecimento, solicitado à Escola, poderá estar
simplesmente assumindo o papel de instrumento auxiliar dos interesses políticos e
econômicos de uma elite que buscou e ainda hoje busca sua sustentação e legitimação,
através da aplicação de um modelo nacional de Desenvolvimento Econômico, atrelado aos
grandes investidores internacionais.
Em Neves (1995), podemos encontrar ainda, uma ressalva ao Sistema Educacional
dos anos 80, o qual se organizava em torno de propostas voltadas para a Alfabetização, pois
a Modernização Econômica exigia um quadro social melhor instruído. O Ensino então
passou a ser fundamental na preservação da divisão de trabalho.
Segundo a autora, os empresários e a Igreja, se somaram ao Estado na ampliação
dos Projetos de Formação, de modo que a formação do pessoal qualificado para o setor
moderno da Economia ficou a cargo da Igreja, enquanto a qualificação para os setores
tradicionais da Produção ficou a cargo da Iniciativa Privada (Neves:1995, p.16).
Nessa mesma década, o Brasil definia, internamente, seus rumos para acompanhar o
processo externo de Modernização, através do Programa Estratégico de Desenvolvimento -
PED. Este articulava política de Ciência e Tecnologia, através de Planos e Ações, com o
objetivo de assegurar o Desenvolvimento Científico e Tecnológico do País. O PED,
segundo Moraes (2000)i,
(...) estabeleceu, pela primeira vez, um marco normativo para a área de Ciência e
Tecnologia, definindo, explicitamente, o desenvolvimento científico e tecnológico como
objeto da política governamental, caracterizado pelo binômio “segurança e
desenvolvimento”.(...) Foi enfatizado o desenvolvimento de tecnologias ajustadas à dotação
de fatores de produção do país, visando a absorver mão-de-obra e garantir mercado em
grande escala para gerar um crescimento auto-sustentável. (Moraes 2000, p.24).
No entanto, apesar do esforço da Sociedade Civil na conjugação de forças para assegurar
a eficácia das propostas de Educação para uma Sociedade Democrática, segundo Neves
(1995), isto não resultou numa boa articulação entre Industrialismo e Democracia. Para
essa autora, o saber escolar de boa qualidade que se esperava para todos os cidadãos se
caracterizou apenas como resposta democrática ao Autoritarismo vigente.i
Da aplicação das políticas educacionais, no período em questão, restou o esforço dos
Educadores e da Sociedade Civil organizada, no sentido de melhorar as condições
materiais da educação da grande massa de indivíduos analfabetos à margem do
Desenvolvimento Econômico e Social. Segundo Neves (1995), a ênfase atribuída aos
conteúdos de Ensino e à aplicação das pedagogias críticas ficou restrita, mais ao aspecto
político da transformação social do que à leitura dos códigos da Civilização Urbano-
Industrial. i
Seguindo o rastro do processo de Modernização do País, nos planos econômico e
político, a Educação passou a ser pensada e exigida, tanto na forma quanto no conteúdo,
dentro de um conjunto de medidas conduzidas para um processo de formação voltado para
mudanças nas relações de produção. No plano teórico, as políticas educacionais apontavam
para a necessidade da atualização dos conteúdos, por um lado organizados com base nas
leituras e interpretações vivenciadas pelos Movimentos Sociais e, por outro, a partir das
necessidades imediatas dos empresários, para se adequarem às novas exigências dos anos
90.
Nesse contexto, Neves (1995) nos mostra que os anos 90 surgem em meio a uma
profunda mutação mundial - Econômica, política, social, cultural, ética e moral –, não
oferecendo bases seguras nas quais fosse possível apoiar os desejos e anseios, com o século
XXI que começava a dar sinais de chegada.
A autora apontou alguns indicadores que poderão nos ajudar a compreender o
contexto que se delineou para os anos 90, a partir de acontecimentos do final dos anos 80,
dentre os quais está a derrubada do Muro de Berlim, o colapso do Mundo Socialista e o
estabelecimento de Estratégias, política e econômica, Neoliberais (Neves: 1995, p. 19).
Para Neves (1995) o contexto acima descrito, somado à chamada Revolução
Científico-Tecnológica, que conquistou o espaço (literalmente falando), especialmente pelo
uso intenso dos produtos da Microeletrônica e da Informática na produção, exigiu uma
reorganização da divisão internacional do Trabalho.
Nesse sentido, a autora destacou três pólos econômicos em disputa pela hegemonia
do Capitalismo no mundo: um sob o comando do Japão e dos Tigres Asiáticos; outro
formado pela Comunidade Européia; e um terceiro constituído pelos Estados Unidos, o
Canadá e o México (Neves: 1995, p. 19).
Para uma breve referência aos anos 90, podemos dizer que, em seu conjunto, essa
década revelou um quadro desproporcional de desenvolvimento e miséria. Enquanto o país
adequava as políticas de desenvolvimento interno às exigências dos países que disputavam
a hegemonia do Capital Internacional, mais precisamente ao pólo que estava sob o
comando dos Estados Unidos, ocorria um profundo empobrecimento da população.
Sob o auspício do governo Collor, o país aprofundou sua crise e impôs um
lastimável quadro recessivo à população brasileira, em nome de uma Economia que deveria
seguir rumo à Modernização.
O impeachment do Presidente em 30/09/1992 ofereceu estímulo e uma abertura
política para a implementação de mudanças. Entretanto o esforço e o estímulo para mudar
pouco poderiam fazer em relação ao histórico déficit social que o país havia acumulado.
Cano (1995) enumera uma série desses problemas:
(...) A inflação crônica; o fardo da dívida externa, impossível de carregar; o desastre em que
se encontram as finanças públicas (em todos os níveis); a ausência de mecanismos
adequados para o financiamento do desenvolvimento; a profunda deterioração de nossa
infra-estrutura econômica e o atraso de vários setores produtivos, causados, em grande
parte, pela sensível queda da taxa de investimento; o assustador nível em que se encontra a
questão social brasileira, quer em termos setoriais (saúde, educação, habitação, etc.), quer
nos tristes termos em que se pode ver a crescente miséria de grande parte da população.i
Por outro lado, as políticas neoliberais continuaram sua dinâmica e frenética busca
pelo aumento da produção industrial. A Ciência e a Tecnologia ofereceram os instrumentos
e as condições materiais necessárias para a difusão e condução do processo de
modernização econômica. Com isso, o novo modelo de Desenvolvimento Econômico
ganhou respaldo e prestígio internacional, para reorganizar os processos de produção, de
modo que venham a estar pautados em estratégias de redução do tempo e dos custos. Essa
reorganização, fundada na Racionalidade Tecnológica, exigiu, por sua vez, a qualificação
da força de trabalho.
Nesse sentido, a Educação foi solicitada a processar o rito de passagem do
Desenvolvimento e Ocidentalização do Mundo, nos dias atuais. A reorganização dos
processos produtivos, e a qualificação da mão-de-obra deveriam estar em harmonia com
o discurso sedutor da Tecno-Ciência. Essa harmonia, no mínimo ao nível do discurso, é
assegurada pela Modernização da Educação Formal, como ponte entre o Mercado
Financeiro e a Sociedade de Consumo.
Na perspectiva acima evidenciada, o discurso midiático, associado aos avanços
proporcionados pela Ciência e pela Tecnologia, passou a difundir e incentivar a inserção
e a aplicação dos instrumentos eletrônicos e tecnológicos em todos os níveis de
elaboração e produção do Conhecimento, em sintonia com os interesses do Mercado
Econômico e Financeiro Internacional. Na Educação Brasileira, por exemplo, em
específico na da Escola Pública, instrumentos como TV, vídeo, filmadora, computador
passaram a ocupar lugar de destaque no Processo de Ensino-Aprendizagem.
Passaremos, assim, a buscar compreender o processo atual de redimensionamento
da Educação, procurando escavar o terreno no qual germina e cresce a árvore do
Conhecimento Tecnológico e suas respectivas ramificações. Paralelamente, tentaremos
identificar a angústia dos educadores que se vêem com a dupla tarefa de compreender o que
é produzido pela maioria dos pesquisadores e de adequar o conteúdo assimilado e
processado, de modo acessível e estimulante, para atender às exigências institucionais e
sociais que lhes são apresentadas.
A dificuldade começa quando a dinâmica das transformações leva para as Escolas
formatos e linguagens técnicas que fogem à compreensão da maioria dos educadores. Tais
linguagens constituem a Racionalidade Técnica e Instrumental, que alimenta os produtos
tecnológicos nos quais apenas uns poucos são iniciados: geralmente Programadores,
Engenheiros, Técnicos, Analistas de Sistemas, Pesquisadores, etc.
Em meio ao crescente acumulo de informações, resultado do saber da Ciência e
do saber-fazer da Técnica, bem como das visíveis implicações desse conteúdo no contexto
histórico e sociocultural no qual se insere a Educação brasileira, encontramos o indivíduo-
educador, ser social, movendo-se entre certezas e incertezas, através dos impulsos
sensitivos e racionais, procurando elucidar os caminhos de sua inserção no Mundo
Contemporâneo.
Sua ação reflexiva (re=voltar atrás) - ação da consciência sobre si mesma somada
ao desejo de incorporar o Mundo (In = ação de trazer para dentro + Corpo) - evidencia com
maior intensidade a perspectiva da incerteza referenciada anteriormente.
Na Educação, a incorporação das idéias de Progresso, Desenvolvimento,
Modernização vai além de uma simples adequação valorativa dos instrumentos eletrônicos
ou da lógica Econômica e social. A Escola aparece com a missão de romper com as
estruturas de pensamento e valores tradicionais do passado em prol de um Conhecimento
pautado na Razão e, por isso mesmo, científico, visando à construção de uma Sociedade
fundada nos princípios racionais.
Ainda numa breve referência às implicações da Racionalização com caráter de
Modernização nacional, implementadas pelo rápido e didático governo Collor (no sentido
negativo de administrar), nossa base de apoio será o estudo de Neves (1995).i Segundo essa
autora, o Projeto de Reconstrução Nacional, no Governo Collor, previsto para o período
1991/1995, apresentava uma proposta nitidamente conservadora e neoliberal.
Esse projeto, pautado no discurso da necessidade de Modernização, apresentava-se
como a alternativa para sair da falência causada pelo modelo de desenvolvimento brasileiro
das últimas décadas. O caminho, defendido pelo presidente Collor, era o da
redemocratização política no Brasil, através de uma democratização da Economia, para
trazer o equilíbrio produtivo modernizante.
A Educação, como já dissemos anteriormente, é chamada a oferecer aos iniciados o
conjunto de atributos necessários ao efetivo desenvolvimento econômico, exigidos pelas
elites financeiras, internacional e nacional, para melhor inserir o País no processo da
Modernização.
A requalificação científica e tecnológica da força de trabalho é um dos pontos
exigidos. Para tal, o Sistema Educacional assume o discurso da Modernização e atualiza o
Modelo de Ensino, para uma formação Técnica dos indivíduos. Desse modo, a Educação
cumpre seu papel social, no rito de passagem da Modernização, colocando o texto do
Projeto de Reestruturação do País, em sintonia com o contexto do mercado mundial.
Na interpretação de Neves (1995), o Projeto de Reconstrução Nacional (PRN), para
assumir o discurso de resgate da dívida social e da modernização competitiva do País,
promoveu indiscriminadamente uma política de corte nas despesas públicas, através de
contenção dos salários e redução dos gastos necessários à execução de políticas sociais.i
Na base das ações executadas em nome do P.R.N., estava a perspectiva neoliberal
propagada no enxugamento da máquina do Estado e na Racionalização do setor público. A
prioridade era ressaltar a importância da iniciativa privada na reestruturação da Economia
nacional e deixar o Estado com o reduzido papel de articulador do processo.
Nessa direção, a autora supracitada nos mostra em sua análise que o discurso do
referido Projeto revelou de fato sua verdadeira face: a dependência do País ao capital
internacional. Para a referida autora,
(...) o Projeto de Reconstrução Nacional, que parecia realmente querer indicar passos para a 'reconstrução' de uma
autonomia nacional visivelmente em crise, nos últimos anos, termina por assumir, cada vez mais claramente, uma
postura de valorização do capital, no sentido de ampliar as condições de inserção do País num mercado
internacional, de uma forma dependente, utilizando como estratégias básicas tanto a conservação de uma forma
tutelada de exclusão das massas populares, quanto políticas de arrocho salarial. i
O evidente caráter ideológico do discurso de modernização apresentado nas ações
do Projeto de Reestruturação Nacional, dos anos 90, pode ser facilmente identificado na
contraditória relação entre o apelo ao desenvolvimento científico e tecnológico, exigido
para a Modernização do País, e os investimentos nos setores responsáveis por esses
conteúdos.
Neves (1995) nos mostrou que nesse período o Estado não investiu em setores de
tecnologia de ponta, como deveria ser a lógica de quem tem a pretensão de solidificar uma
base produtiva mais próxima dos padrões da Modernização. Mesmo que isso signifique um
trabalho de médio e longo prazo, por exigir investimentos em setores como Universidades e
Pesquisas.
Ao contrário da lógica do Desenvolvimento Consistente, mas muito bem ancorado
na lógica da Racionalidade Instrumental, prefixada nas políticas neoliberais de
Desenvolvimento, o Governo brasileiro, como nos mostra Neves (1995), preferiu importar
produtos, máquinas e softwares de países que desenvolvem tecnologia mais avançada.
O modo brasileiro de conduzir a Modernização do País se revelou um grande
retrocesso político e econômico, visto que apenas reforçava nossa dependência aos países
ditos desenvolvidos, principalmente aos Estados Unidos, que mantiveram, aqui no Brasil,
estreitos laços com os interesses da elite financeira brasileira (Cf. Neves1995, p.55).
Ora, se o texto do processo de reestruturação da Economia brasileira, rumo à
Modernização, deveria estar em sintonia com o contexto das exigências internacionais, e se
para isso o Estado deveria fazer redução dos gastos, principalmente nos Setores Sociais, o
que esperar da Educação senão um grande sucateamento? Nessa situação, ficou a maioria
das instituições públicas brasileiras. Com isso, a Educação não se encontrava em situação
confortável para revigorar seu espírito idealizador e assumir as transformações, do
econômico para o social.
Vê-se, portanto, que o Sistema Educacional brasileiro, para acompanhar a
Modernização, teria, ele próprio, que se modernizar. Neves (1995) nos lembrou que a
Educação, pensada com um fim dirigido à Modernização já estava contida na Constituição
de 1988. O que faltava era uma política nacional reiterando a responsabilidade do Estado
A autora destacou também a orientação que o Programa oferecia para o Ensino
Superior - incluindo a Pós-Graduação – no sentido de uma 'racionalização', com prioridades
de investimentos e pesquisa científica no País.i
com o Ensino Básico, acabar com o Analfabetismo e formar os Recursos Humanos
exigidos para as mudanças (Cf. Neves:1995, p.56).
O governo então lançou mão do Programa Setorial de Educação, cujo foco
principal, segundo a autora, foi o fortalecimento do caráter privatista da Educação. Para
Neves (1995), o Programa Setorial de Educação do governo Collor continha nas suas
entrelinhas o mesmo caráter conservador dos planos anteriores. Incorporava o texto a
necessidade da Educação assumir a qualificação científica e tecnológica dos indivíduos
para o trabalho.
Nesse programa, a preocupação com a redução das desigualdades sociais - que é expressa
no conceito de "equidade" - é também uma preocupação com a questão da eficiência
produtiva, de forma que o retorno financeiro dos subsídios que fossem aplicados na área da
educação se traduzisse na preconizada revolução científica e tecnológica; com o
conseqüente aumento da capacidade produtiva do País, tendo como pano de fundo: "a
competitividade, eficiência e a criatividade da população como um todo", onde se lutaria
para ultrapassar o modelo de superexploração do trabalho, com a sua crescente qualificação
e participação nos processos democráticos da nação.i
O destaque dado para as políticas do Governo Collor era no sentido de uma
demonstração, mais didática, da visível distorção entre o discurso profetizado em prol da
Modernização, especificamente dirigida à Educação, e as ações que se aplicam a essa
determinação. Ou seja, em nome da Racionalidade Instrumental, dirigida para atender aos
objetivos do capital financeiro internacional, implementavam-se ações que desrespeitavam
os direitos e os deveres do digno exercício da Cidadania.
As condições geralmente eram criadas em torno de um discurso que mitificava a
necessidade da transformação social, a partir da realidade dada. Nesse sentido, eram
elaborados e executados planos e programas, que, na sua grande maioria, escondiam sua
essência em função de uma política de resultados, que focalizava uma dimensão específica
da realidade sem esperar para avaliar e computar as conseqüências que viriam juntas. Desse
modo, a grande parcela da população continua ainda hoje sendo convocada, através do
discurso político ideológico, a esconder, de si e dos outros, a própria realidade.
Os Programas e Projetos i, visando a adequar as políticas educacionais locais às
exigências da Política Econômica mundial, chegam às escolas brasileiras articulados em
propostas de trabalho que incentivam mudanças rápidas e eficazes, pretendendo com isso
dar conta não apenas de mudanças de estruturas técnicas e estéticas, mas também de
posturas de comportamento e hábitos sócio-culturais, que se consolidam através de um
amplo e complexo processo de formação histórico-cultural.
A Educação, em específico a brasileira, se encontra hoje em descrédito para a
maioria da população no que diz respeito a ações e intenções políticas governamentais
dirigidas para um apoio concreto e consistente, frente aos rumos pedagógicos a serem
tomados. A insegurança reflete-se na escolha do conteúdo que projetará o cidadão no
atual contexto de mudanças sócio-culturais.
Por sua vez, os educadores, mesmo desconfiados e inseguros, sentem a
necessidade de investir em capacitação e leituras, a fim de compreender o que faz a
escola viver nos dias atuais um difícil processo de transição no qual evidencia-se um
movimento modelador de princípios pedagógicos, constituído de um misto de práticas
tradicionais, pautadas em velhos valores que ainda não foram transformados, e a
inclusão ou invasão de novos conceitos ainda não digeridos pela ampla maioria da
população.
A desconfiança, a insegurança, os interesses, as cobranças e as expectativas
com as mudanças, na Educação brasileira, são reflexos diretos do impulso das
transformações em todo o mundo.
(...) Assistimos, na verdade, a um processo de acomodamento, em que as inovações
tecnológicas, potencialmente desestabilizadoras, se adaptam a velhos sistemas de
gerenciamento e controle, ou a modos de produção mumificados pelo tempo. No universo
das poéticas tecnológicas, particularmente, duas forças contraditórias encontram-se
permanentemente em choque: há uma energia de ruptura, que está sempre colocando em
crise os modos estabelecidos de produzir e perceber, mas há também uma tendência
conformista, que consiste em praticar a inovação a partir das bases institucionais ou
culturais já existentes (Cf. Machado, 2001: p.19).i
Os projetos de mudanças para a Educação brasileira, de modo geral, podem até
constituir-se de propostas com alto teor democrático figuradas em pacotes de boas
intenções, destinadas a oferecer espaços para a realização de experiências em sintonia com
a diversidade cultural local, regional, nacional e até mesmo internacional.
No entanto, a aplicabilidade dos recursos e o efetivo processo de implantação, se
não levarem em conta necessidades específicas, previamente discutidas e sugeridas como
Projeto Pedagógico para a Escola, poderão apenas significar o conjunto de exigências de
um modelo que não atenderá ao apelo dos que fazem o dia-a-dia da Educação, e que
esperam respostas diretas e consistentes para resolver os problemas para os quais foram
solicitadas providências.
De outro modo, ainda que o Projeto Pedagógico contemple necessidades básicas
da Educação local, ou mesmo nacional, mas não ofereça uma visão crítico-reflexiva das
mudanças na formação dos indivíduos, estará apenas referendando um modelo de formação
instrumental com ênfase pragmática nas habilidades competitivas, mas fora das
competências comunicativas que permitam participações mais críticas e reflexivas na
Sociedade.
Desse modo, a Escola, que ao longo dos anos lutou para não perder sua
capacidade de provocar o espanto diante do Universo e de incitar os jovens ao exercício da
curiosidade, está correndo o risco de perder sua sensibilidade em apreender e compreender
o que lhe é oferecido pelo mundo e o que ela, a Escola, através do conjunto dos seus
professores e dirigentes, poderá oferecer aos alunos como perspectivas crítico-reflexivas
diante das rápidas mudanças.
As exigências das políticas educacionais contrastam com as efetivas condições
materiais e humanas para consolidar formas consistentes de elaboração e produção do
Saber. Esse contraste fica visível e por vezes assume a forma de conflito, quando aos
educadores é exigido o domínio de conteúdos e linguagens construídas com base na lógica
da Racionalidade Técnica, redimensionada para a Educação, visando a adaptar o velho
sistema educacional ao novo formato do ser social, solicitado pela reestruturação do
Mercado Econômico e Financeiro local em sintonia com o internacional.
A reorientação atual para a Sociedade e, em específico, para a Escola, não se
pauta numa dinâmica regulada pelo tempo cronológico, do devagar e sempre, mas numa
dinâmica regulada pelo tempo tecnológico, configurado pelo ritmo rápido e efêmero do
funcionamento dos objetos. Além disso, trata-se do momento em que ainda tateamos em
busca de uma compreensão plausível para o rumo cultural delineado por esse movimento.
Machado (2001), ao discutir as dificuldades da classe intelectual contemporânea
em apontar perspectivas consistentes para o futuro, ressalta o nosso papel em não se manter
apático nesse contexto. Para ele,
(..) Qualquer reflexão sobre o impacto cultural das novas tecnologias deve levar em
consideração a premissa de que as inovações técnicas estão, muitas vezes, inseridas em
práticas culturais estabelecidas que obscurecem ou neutralizam seus efeitos
desestabilizadores. Esse fato, todavia, não nos deve autorizar um retorno comodista aos
modelos de ruptura do passado, mas nos ajudar a forjar os instrumentos conceituais
adequados para entender e avaliar a produção cultural de nosso tempo (p.20).
Essa perspectiva, dos instrumentos eletro-eletrônicos e as linguagens técnicas que
a eles são incorporadas, atende fundamentalmente à lógica de mercado, a qual estimula
para o consumo mesmo aqueles que conhecem seu funcionamento. E os educadores,
enquanto consumidores, também se movem seduzidos pelo discurso do “moderno”,
imaginando que, ao incorporar as facilidades inseridas nos produtos tecnológicos, poderão
facilmente atingir metas tanto quantitativas, quanto qualitativas.
Na Educação, os parâmetros usados são os recursos disponíveis nos produtos
tecnológicos, assimilados como saber sistematizado. Tudo isso pode ocorrer ao nos darmos
conta de que o saber intrínseco aos instrumentos e produtos da Tecnologia apenas
manifesta os comandos e recursos pré-definidos pelo seu criador.
Encontramos na Educação contemporânea, em específico a brasileira, sinais da
assimilação da lógica instrumental que é difundida universalmente, embora o discurso de
mudanças, para a Escola, em sua maioria encontre-se distante das reais condições para sua
efetiva implantação. Os méritos estão vinculados à lógica dos instrumentos e dos recursos
da Informatização.
Assim, o Ensino e a Aprendizagem, sob a ótica da Modernização e da
Informatização dos conhecimentos, são possíveis e viáveis porque os instrumentos
tecnológicos planificam as informações, traduzindo-as em conteúdos de perspectivas
universais, apesar de não levar em conta as especificidades de cada região ou escola.
Como conseqüência, o aspecto enfático e ideológico do discurso reduz diferenças
nas relações professor-aluno, ensino-aprendizagem, em nome de uma falsa unidade, apenas
usando a lógica do computador. Desse modo, administradores, professores e alunos, ficam
à mercê da criatividade pessoal para assimilar e difundir saberes já dados, elaborados e
Sistematizados por alguém cuja formação desconhecemos.
Por outro lado, a Escola, ao se perceber no ambiente da Modernização, sente-se
resgatando sua identidade social, qual seja, a de oferecer à sociedade o suporte teórico e
prático para o Desenvolvimento, embora, o discurso da Modernização para a Educação,
procure esconder as razões que alimentam a falsa idéia de que o resgate da identidade
social, pela Escola, virá apenas com uma simples re-modelação da estrutura física e
curricular, voltados para uma formação pautada na Racionalidade Instrumental. Ou seja,
para se modernizar, a Escola bastaria apenas oferecer o ambiente, o resto ficaria por conta
da Tecnologia.
Desse modo, o conteúdo, previamente definido na linguagem dos instrumentos
tecnológicos, virá na forma de símbolos e valores, que servem de base e orientação para
redefinir o modo de pensar as relações e as necessidades dos indivíduos. As ditas “novas
linguagens” e os “novos instrumentos” técnicos que chegam às escolas proporcionam uma
confusão no processo formal de desconstrução do “velho” e a construção de um “novo”
conhecimento.
O indivíduo, ao se perceber interagindo com os mesmos instrumentos utilizados
por importantes figuras da comunidade científica, ao se perceber incorporando a lógica
circunscrita aos programas e aplicativos desses instrumentos, poderá sentir a sensação de
falsa plenitude racional, a que nos referimos anteriormente.
O efeito mais danoso causado por uma sensação dessa natureza poderá ocorrer se
essa perspectiva for tomada como resposta aos visíveis problemas sociais que estão
expressos nos altos índices de marginalidade, desemprego e mortalidade. Estes, ao
contrário da primeira sensação - a de falsa plenitude racional - fazem surgir uma sensação
de “vazio-ético moral”, que gera e/ou é gerada de uma “deformação” dos princípios sociais.
O contexto gerado nos padrões da falsa plenitude racional e do vazio-ético-moral
elevou o grau de expectativa em torno do movimento das mudanças que estão ocorrendo
em todo o mundo. A Educação deverá assumir-se como formadora da identidade do
“novo”, ou “moderno” ser social, embora o alto teor de complexidade que vivenciamos em
todas as esferas do Conhecimento estimule e ao mesmo tempo dificulte o espaço de
elaboração e construção dos fundamentos essenciais para a formação do indivíduo
contemporâneo.
O Conhecimento Científico e Tecnológico que representa, hoje, o mais alto
estágio atingido pela Racionalidade Humana, pode favorecer uma abertura de horizonte, em
que o Conhecimento apreendido na Escola vem acompanhado de valores construídos na
diversidade dos elementos históricos e culturais da raça humana, até bem pouco tempo
desconhecidos, ou isolados, do debate e da discussão crítica.
Por outro lado, como conseqüência, poderemos ver crescerem as dificuldades no
modo como tratamos, criticamente, a diversidade das informações, dificultando uma
Racionalização que extrapola os limites da Racionalidade Instrumental, a fim de re-
elaborar, de modo mais consistente, os princípios da formação do novo Ser Social. Desse
modo, o campo das incertezas passou a ser o espaço por excelência, no qual teremos que
rastrear pontos estratégicos para construir nossos referenciais de existência.
Nesse sentido, no próximo capítulo tentaremos condensar preocupações e
expectativas originada dos apelos contemporâneos à (Ir)Racionalidade Instrumental, na
perspectiva de configurar ações que tecem a Trama Mito-Técno-Lógica. Esta, gerada em
diversos campos do conhecimento, ao mesmo tempo em que se propõe diminuir o campo
das incertezas existenciais, dá origem a outros vínculos e articulações comunicacionais que
abrem infindáveis horizontes interpretativos.