Tobias - Roberto Menezes

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Há pessoas certas para as coisas (lugares, situações e objetos) certas. As fronteiras atrapalham que a felicidade se acomode junto às pessoas e coisas”. [email protected] MARIANA FERNANDES >> Tobias PARAÍBA 09 a 15 de agosto de 2013 B-3 & Modo de usar Modo de ser Roberto Menezes A plaudo o meu gato. Foi fiel aos seus ide- ais até o último mi- nuto. Espiral sem fim. Escreveria isso no seu epitáfio, se tivesse o meu gato para enterrar. Queria ser igual ao meu gato. Era prazeroso e reconfortante ver a sua língua lésbica lamber o leite gorduroso. Quan- do eu colocava açúcar, ele sentia um prazer que dava gosto ver. Depois, deitava para o lado, me desdenhando. Aquela al- tivez faceira era teatro. Ele queria meu carinho, meus dedos pendulares, arrodeantes. Eu nunca chegava onde ele que- ria. Ele se esticava todo, alongava o peito, me for- çando a chegar lá, mas eu não chegava. Na ver- dade, nunca cheguei. O meu gato sempre foi fiel a seus ideais. Es- piral sem fim. Sequer eu vi quando ele se foi (para longe dos meus olhos). Espiral sem fim. O meu gato Tobias era fiel aos seus ideais. Incorruptí- vel. Sereno, constante, previsível. Tobias por To- bias esse era o segredo. Tobias no meio do meio-dia estaria, por es- sas horas, brincando com uma das folhas de papel amassadas, que atiradas por mim ao li- xeiro passaram longe da meta. Tobias era um guerreiro brincando com poesias mal escritas, por mim desdenhadas. To- bias arranhava as folhas amassadas. Pulando de uma a uma. Bailarino. Com as patas diagonais, batia nelas e elas roda- vam, rodavam... Tobias nunca envelheceu como os outros gatos, sempre foi aquele garoto que vi quando o encontrei na porta de casa. Quem o deixou ali aleatoriamen- te me presenteou com uma dádiva que chamei de Tobias. Tobias, gato menino, tinha um quê de palhaço, tinha um quê de malabarista. Tobias era ser circense. Às vezes penso que Tobias fugiu na surdi- na (enquanto eu dormia) com alguma companhia circense. Algum dono de circo com um bom olho clínico viu o talento nato do meu gato. Talvez, nes- se exato momento, To- bias esteja concentrado, ensaiando algum núme- ro para apresentar logo à noite para uma plateia cheia. Se eu soubesse onde será o espetáculo, iria e assistiria de cama- rote (a meu gato). Fosse o que fosse. Tobias no alto do mastro. Bem perto da lona. Um salto imortal cá para baixo. Sereno. Silên- cio total. E para cá vem meu gato, Tobias espiral sem fim. E Tobias lambia meu leite com a gula da pri- meira vez. Tobias era incorruptível. Sei lá, às vezes eu penso que ele ti- nha algum tipo de esque- cimento ou amnésia. Por- que tudo para Tobias era como se fosse a primeira vez. Contente. Lambida a lambida, da frente ao ver- so. Fosse com o leite fos- se com a poesia. Deve ser por isso que nunca tive ple- na satisfação com as minhas poesias. Deve ser por isso que tanto errei os arremessos de bolinhas à lixeira. No fun- do, era só para ver Tobias, com a gula da vez primeira, trapezista, a rolar, como um novelo, bailarino, so- bre si mesmo, fazendo das minhas vãs palavras, presas a linhas retas e versos métricos, verda- deira e concreta poesia. Tobias por Tobias esse era o segredo. Trecho do meu segun- do romance O GOSTO AMARGO DE QUALQUER COISA Modo de ser Traços se transfor- mam em belas ilustra- ções e ideias não param de surgir em sua mente, fruto do trabalho publi- citário. Se cada mente é um mundo, a dele vale a pena tentar conhecer e decifrar. O ilustrador paraibano, Seu Lima, é destaque no “Modo de ser e Modo de usar” des- ta semana. Sobre o seu desper- tar para a ilustração, ele atribui aos rabiscos que fazia quando criança. “As escolas não enten- dem a individualidade do aluno; aquilo nunca fez sentido para mim. O tédio das aulas deve ter me feito rabiscar. O desinteresse pelo ensi- no formal me fez querer estudar outras coisas, e nada que era racional conseguia competir com as possibilidades que o desenho me dava. Acho que começou aí”, conta. O que antes era falta de interesse pelo que esta- va acontecendo dentro da sala de aula, virou arte e profissão em sua vida adulta. Ainda na adolescên- cia, aos 16 anos, a sua criatividade e sua habili- dade em “rabiscar” o le- vou para dentro de uma agência publicitária, fato que o levou a seguir carreira e vivenciar uma temporada na África do Sul. Ao ser indagado so- bre sua trajetória como publicitário e ilustra- dor, Seu Lima responde: “Não me vejo nem como um, nem como outro. Entrei numa agência de publicidade, ainda mui- to novo - com 16 anos -, sem muita consciên- cia do que queria. Essa procura pela razão de estar nisso e por qual cargo ocupar me fez mudar inúmeras vezes e perceber que delimi- tar funções piora muito o trabalho. Desde que comecei a realmente es- colher meus caminhos, procuro fazer uma co- municação que se pa- reça o mínimo possível com publicidade; as pessoas gostam de li- vros, revistas, músicas, filmes, não de comer- ciais. Insisto nisso. Pago por esta insistência com as dificuldades das mu- danças: trabalhei em Alagoas, Pernambuco, Paraíba e em Maputo; 19 agências no meio desse caminho”. Atualmente, Seu Lima ainda atua no mer- cado publicitário, mas, paralelo a este trabalho, ele tem se dedicado ao Camisa Florida, uma iniciativa dele e da es- posa, Rebeca Melo, em busca de liberdade cria- tiva e financeira. “Esta- mos estudando, criando e produzindo coisas que pretendemos vender por aí, pela web, para quem está longe, pessoalmen- te, para quem estiver perto de onde vivemos. Parte do projeto é que esse “onde vivemos” mude sempre”. Vale a pena descobrir o mundo criativo do Camisa Flo- rida e se encantar com cada detalhe, com a criatividade dos artistas e com o produto final oferecido por eles. Talento e criativida- de são traços de seu perfil. Qual o modo de ser de Seu Lima? “Tran- quilo e inquieto. Tran- quilo, porque não há razão para não ser; as coisas mudam de acor- do com o seu esforço e o que for maior que você, merece insistência e cal- ma. Inquieto, porque há muitos lugares e pes- soas distantes daqui, onde e com quem que- remos estar”. Modo de usar Quem trabalha usando a criatividade como ferramenta fundamental de produ- ção sabe o quanto é importante a liberdade. Usar um artista é, antes de tudo, dei- xá-lo livre para alçar seus voos, buscar inspirações para depois ter, no resultado final, uma verdadeira obra de arte. Ao ser questionado sobre qual seria o melhor modo de usá-lo, Seu Lima responde: “Com liberdade. A prisão do expediente mata a criatividade. Há lugares e momentos onde o esforço por um trabalho pode ser menor e qualquer tarefa pode ser mais prazerosa”. Sobre o melhor modo de usar o mundo, Seu Lima acredita que é não colocan- do barreiras e delimitando espaços nas relações, nas atitudes, enfim, na vida. “O melhor modo de usar o mundo é sem fronteiras. Há pessoas certas para as coisas (lugares, situações e objetos) certas. As fronteiras atrapalham que a felicidade se acomode junto às pessoas e coisas”. Seu Lima

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Mundo de Bolso

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Há pessoas certas para as coisas (lugares, situações e objetos) certas. As fronteiras atrapalham que a felicidade se acomode junto às pessoas e coisas”.

[email protected] FERNANDES>>

Tobias

PARAÍBA 09 a 15 de agosto de 2013 B-3

& & & Modo de usar& & Modo de ser

Roberto Menezes

Aplaudo o meu gato. Foi fi el aos seus ide-ais até o último mi-

nuto. Espiral sem fi m. Escreveria isso no seu epitáfi o, se tivesse o meu gato para enterrar.

Queria ser igual ao meu gato. Era prazeroso e reconfortante ver a sua língua lésbica lamber o leite gorduroso. Quan-do eu colocava açúcar, ele sentia um prazer que dava gosto ver. Depois, deitava para o lado, me desdenhando. Aquela al-tivez faceira era teatro.

Ele queria meu carinho, meus dedos pendulares, arrodeantes. Eu nunca chegava onde ele que-ria. Ele se esticava todo, alongava o peito, me for-çando a chegar lá, mas eu não chegava. Na ver-dade, nunca cheguei.

O meu gato sempre foi fi el a seus ideais. Es-piral sem fi m. Sequer eu vi quando ele se foi (para longe dos meus olhos). Espiral sem fi m. O meu gato Tobias era fi el aos seus ideais. Incorruptí-vel. Sereno, constante,

previsível. Tobias por To-bias esse era o segredo.

Tobias no meio do meio-dia estaria, por es-sas horas, brincando com uma das folhas de papel amassadas, que atiradas por mim ao li-xeiro passaram longe da meta. Tobias era um guerreiro brincando com poesias mal escritas, por mim desdenhadas. To-bias arranhava as folhas amassadas. Pulando de uma a uma. Bailarino. Com as patas diagonais, batia nelas e elas roda-vam, rodavam... Tobias nunca envelheceu como os outros gatos, sempre foi aquele garoto que vi quando o encontrei na porta de casa. Quem o deixou ali aleatoriamen-te me presenteou com uma dádiva que chamei de Tobias. Tobias, gato

menino, tinha um quê de palhaço, tinha um quê de malabarista. Tobias era ser circense.

Às vezes penso que Tobias fugiu na surdi-na (enquanto eu dormia) com alguma companhia circense. Algum dono de circo com um bom olho clínico viu o talento nato do meu gato. Talvez, nes-se exato momento, To-bias esteja concentrado, ensaiando algum núme-ro para apresentar logo à noite para uma plateia cheia. Se eu soubesse onde será o espetáculo, iria e assistiria de cama-rote (a meu gato). Fosse o que fosse. Tobias no alto do mastro. Bem perto da lona. Um salto imortal cá para baixo. Sereno. Silên-cio total. E para cá vem meu gato, Tobias espiral sem fi m.

E Tobias lambia meu leite com a gula da pri-meira vez. Tobias era incorruptível. Sei lá, às vezes eu penso que ele ti-nha algum tipo de esque-cimento ou amnésia. Por-que tudo para Tobias era como se fosse a primeira vez. Contente. Lambida a lambida, da frente ao ver-so. Fosse com o leite fos-se com a poesia. Deve ser

por isso que nunca tive ple-na satisfação com as minhas poesias. Deve ser por isso que tanto errei os arremessos de bolinhas à lixeira. No fun-do, era só para ver Tobias, com a gula da vez primeira, trapezista, a rolar, como

um novelo, bailarino, so-bre si mesmo, fazendo das minhas vãs palavras, presas a linhas retas e versos métricos, verda-deira e concreta poesia.

Tobias por Tobias esse era o segredo.

Trecho do meu segun-do romance O GOSTO AMARGO DE QUALQUER COISA

Modo de serTraços se transfor-

mam em belas ilustra-ções e ideias não param de surgir em sua mente, fruto do trabalho publi-citário. Se cada mente é um mundo, a dele vale a pena tentar conhecer e decifrar. O ilustrador paraibano, Seu Lima, é destaque no “Modo de ser e Modo de usar” des-ta semana.

Sobre o seu desper-tar para a ilustração, ele atribui aos rabiscos que fazia quando criança. “As escolas não enten-dem a individualidade do aluno; aquilo nunca fez sentido para mim. O tédio das aulas deve ter me feito rabiscar. O desinteresse pelo ensi-no formal me fez querer estudar outras coisas, e nada que era racional conseguia competir com as possibilidades que o desenho me dava. Acho que começou aí”, conta. O que antes era falta de interesse pelo que esta-va acontecendo dentro da sala de aula, virou arte e profi ssão em sua vida adulta.

Ainda na adolescên-cia, aos 16 anos, a sua criatividade e sua habili-dade em “rabiscar” o le-vou para dentro de uma agência publicitária, fato que o levou a seguir carreira e vivenciar uma temporada na África do Sul. Ao ser indagado so-bre sua trajetória como publicitário e ilustra-dor, Seu Lima responde: “Não me vejo nem como um, nem como outro. Entrei numa agência de publicidade, ainda mui-to novo - com 16 anos -, sem muita consciên-cia do que queria. Essa procura pela razão de estar nisso e por qual cargo ocupar me fez mudar inúmeras vezes e perceber que delimi-tar funções piora muito o trabalho. Desde que comecei a realmente es-colher meus caminhos, procuro fazer uma co-municação que se pa-reça o mínimo possível com publicidade; as pessoas gostam de li-vros, revistas, músicas, fi lmes, não de comer-ciais. Insisto nisso. Pago por esta insistência com

as difi culdades das mu-danças: trabalhei em Alagoas, Pernambuco, Paraíba e em Maputo; 19 agências no meio desse caminho”.

Atualmente, Seu Lima ainda atua no mer-cado publicitário, mas, paralelo a este trabalho, ele tem se dedicado ao Camisa Florida, uma iniciativa dele e da es-posa, Rebeca Melo, em busca de liberdade cria-tiva e fi nanceira. “Esta-mos estudando, criando e produzindo coisas que pretendemos vender por aí, pela web, para quem está longe, pessoalmen-te, para quem estiver perto de onde vivemos. Parte do projeto é que esse “onde vivemos” mude sempre”. Vale a pena descobrir o mundo criativo do Camisa Flo-rida e se encantar com cada detalhe, com a criatividade dos artistas e com o produto fi nal oferecido por eles.

Talento e criativida-de são traços de seu perfil. Qual o modo de ser de Seu Lima? “Tran-quilo e inquieto. Tran-quilo, porque não há razão para não ser; as coisas mudam de acor-do com o seu esforço e o que for maior que você, merece insistência e cal-ma. Inquieto, porque há muitos lugares e pes-soas distantes daqui, onde e com quem que-remos estar”.

Modo de usarQuem trabalha usando a criatividade como ferramenta fundamental de produ-

ção sabe o quanto é importante a liberdade. Usar um artista é, antes de tudo, dei-xá-lo livre para alçar seus voos, buscar inspirações para depois ter, no resultado fi nal, uma verdadeira obra de arte. Ao ser questionado sobre qual seria o melhor modo de usá-lo, Seu Lima responde: “Com liberdade. A prisão do expediente mata a criatividade. Há lugares e momentos onde o esforço por um trabalho pode ser menor e qualquer tarefa pode ser mais prazerosa”.

Sobre o melhor modo de usar o mundo, Seu Lima acredita que é não colocan-do barreiras e delimitando espaços nas relações, nas atitudes, enfi m, na vida. “O melhor modo de usar o mundo é sem fronteiras. Há pessoas certas para as coisas (lugares, situações e objetos) certas. As fronteiras atrapalham que a felicidade se acomode junto às pessoas e coisas”.

Seu Lima