TJSP - MS Gêmeos Xifópagos 2009
-
Upload
alexandre-matzenbacher -
Category
Travel
-
view
1.198 -
download
8
Transcript of TJSP - MS Gêmeos Xifópagos 2009
^
*
P fef
^ 3?
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SAO PATTT.n
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO ACÓRDÃO/DECISÃO MONOCRATICA
REGISTRADO(A) SOB N°
A C Ó R D Ã O i iiiiii um IIIII uni um mil mil lllll llll III'
Vistos, relatados e discutidos estes autos de
Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9, da Comarca de
Santos, em que são impetrantes FÁBIO DA SILVA RODRIGUES e
BEATRIZ DA MOTA SIMÕES sendo impetrado MM. JUIZ(A) DE
DIREITO DA VARA DO JÚRI DA COMARCA DE SANTOS.
ACORDAM, em 6a Câmara de Direito Criminal do
Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte
decisão: "CONCEDERAM A SEGURANÇA, NOS TEMOS DO V. ACÓRDÃO,
DETERMINANDO-SE A IMEDIATA EXPEDIÇÃO DO ALVARÁ E DEMAIS
OFÍCIOS QUE SE FIGUREM NECESSÁRIOS. V.U.", de conformidade
com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos
Desembargadores MARCO ANTÔNIO (Presidente), RUY ALBERTO
LEME CAVALHEIRO E RICARDO TUCUNDUVA.
aulo, 21 de maio
MARCO ANTONI PRESIDENTE E RE
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
MANDADO DE SEGURANÇA n° 990.09.100287-9
6 a Câmara Criminal
Imptes: FÁBIO DA SILVA RODRIGUES e BEATRIZ DA MOTA
SIMÕES
Autoridade Coatora: JUIZ DE DIREITO DA VARA DO JÚRI DA
COMARCA DE SANTOS - SP
Voto n° 8693
FÁBIO DA SILVA RODRIGUES e
BEATRIZ DA MOTA SIMÕES, por sua advogada Rosy
Natario Neves, impetram Mandado de Segurança com
pedido liminar, contra ato do MM. Juiz de Direito da
Vara do Júri da Comarca de Santos - SP, que indeferiu
pedido de interrupção da gestação.
Argumentam os impetrantes, em
síntese, que em se tratando de gestação de gêmeos
xifópagos e comprovada a inviabilidade de vida
extrauterina dos fetos ligados pelo abdômen, o
prosseguimento da gestação pode colocar em risco a
vida da gestante, além do grave abalo emocional e
psíquico a que estão sujeitos.
= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos /
/
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
A liminar foi indeferida (fls.
106/107) e a autoridade apontada como coatora
prestou as informações (fls. 109/110), juntando cópia
dos documentos pertinentes (fls. 121/160).
A Procuradoria Geral de Justiça
opinou pela concessão do mandamus (fls. 113/119).
É o relatório.
A segurança deve ser concedida.
Trata-se de gestação de gêmeos
xifópagos, ligados pelo abdômen, compartilhando
mesmo coração e fígado, cordão umbilical único, sem
possibilidade de futura correção cirúrgica e
comprovada a inviabilidade de vida extrauterina dos
fetos.
Os impetrantes Fábio da Silva
Rodrigues e Beatriz da Mota Simões, ao que consta dos
autos, são casados há aproximadamente nove anos (fls.
29) e têm uma filha, Sarah, que conta com quatro anos
de idade (fls. 30).
= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Beatriz, em dezembro de 2008,
descobriu que estava grávida e, através de exame de
ultrassom, realizado em janeiro do corrente, constatou-
se a gestação de gêmeos ligados pelo abdômen (fls.
31/37). No mês seguinte, fevereiro de 2009, por exame
de ultrassom morfológico gemelar com
dopplerfluxometria, apurou-se a gemelaridade
imperfeita, estando os fetos unidos pelo tórax e
abdômen, compartilhando a área cardíaca e do fígado,
tendo cordão umbilical único (fls. 39/50). Resultado
confirmado por novo exame feito em março deste ano
(fls. 51/61).
Na seqüência, a impetrante
submeteu-se a uma ressonância magnética fetal onde,
apontando a existência de único coração, consignou-se
que a possibilidade de separação dependia de avaliação
cardíaca (fls. 63/65), o que foi feito, através de
ecocardiografia fetal. Nesse novo exame, apontando
malformação complexa, concluiu-se pela
impossibilidade de correção cirúrgica para separação
das massas cardíacas (fls. 66).
= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Buscando confirmar o diagnóstico,
submeteram os exames à análise de equipe médica,
composta por três médicos do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da USP, que confirmaram a
impossibilidade de separação dos gêmeos, bem como
que as diversas anomalias presentes eram
incompatíveis com a vida extrauterína. Informaram,
ainda, que todos os dados da literatura médica,
apontam para a morte dos recém-nascidos após o
parto. Consignaram que Beatriz encontrava-se
extremamente angustiada face a essa situação sem
solução (fls. 67).
Por fim, no mês de abril de 2009, o
Médico Chefe do Serviço de Patologia Clínica do
Hospital Beneficência Portuguesa de Santos e Membro
da Comissão de Ética Médica desse hospital, atestou
que as malformações diagnosticadas não permitiam
tratamento intra ou extrauterino, sendo incompatíveis
com a vida pós-parto. Registrou que as alterações
fetais, anatômicas, fisiológicas e funcionais se
traduziam em gestação de alto risco. Além disso, que a
evolução do quadro representava grave risco à saúde
= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
física e mental da gestante, indicando a interrupção da
gestação como peremptória e urgente (fls. 72).
Por solicitação do representante do
Ministério Público, todos os exames realizados foram
submetidos aos peritos do IML, concluindo os experts
que o quadro de anomalia dos fetos não possibilitaria a
vida de um só deles, quanto mais de dois. Observaram
que, independentemente do período da resolução da
gestação, o resultado morte para eles já é definido.
Anotaram, ainda, que a retirada dos fetos antes do
termo final da gravidez implicaria menor risco à
gestante, que estará menos debilitada, no todo de seu
organismo (fls. 92/96).
O aborto tem como foco questões
jurídicas, éticas, morais, religiosas, com repercussão
na sociedade e no seu sistema de valores.
Ao Direito cumpre o papel de gerir
todos os acontecimentos que se refletem na vida do
homem, para manutenção de seu equilíbrio.
= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Para Jean Jacques Rosseau1,
todo homem nasce livre e muda essa condição,
transferindo a totalidade de seus direitos naturais ao
Estado, com a finalidade de desenvolvê-los,
transformá-los em direitos civis, garanti-los e protegê-
los pelas leis, de acordo com os pactos sociais que
aderiram.
Por outro lado, cabe ao Juiz, no
desempenho de seu mister, a conformação do Direito à
realidade humana, constantemente modificada pelo
avanço social, o que faz emergir novas necessidades,
novos embates.
José Renato Nalini2, acerca da
função do julgador frente aos problemas e evolução da
sociedade e da cidadania, assim ponderou:
"De acordo com essa premissa,
temos que a Junção do julgador é compatibilizar os
direitos e princípios consolidados com as novas
perspectivas que se apresentam à realidade humana,
Rosseau, Jean Jacques O Contrato Social São Paulo Cultnx, 1999, pág 21. " Nalini, José Renato, A Humanidade do Juiz, ín Temas Atuais de Direito , São Paulo: LTR, 1998, p 279.
= Mandado de Segurança n° 990 09.100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
visando à preservação e o respeito da vida e da
dignidade.
O ser humano chamado a julgar
não é diferente dos demais. Apenas assina sob seus
julgamentos, o que não ocorre com a totalidade do
gênero. Todas as pessoas estão continuamente a
proferir julgamentos. Escolhendo entre o certo e o errado,
definindo o que é bom e o que é mau, dizendo o que é
feio e o que é bonito."
E prossegue:
"Numa sociedade que convive com
extremos paradoxos, mas que tem a pretensão de
construir uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, o Juiz não tem o direito a permanecer
isolado. Em cidadania não há neutralidade. E quem não
estiver construindo essa sociedade nova, está
preservando a sociedade velha e iníqua. Em termos de
reforma da sociedade, quem não é parte da solução é
parte do problema.3"
1 Nalini, José Renato. A Humanidade do Juiz, ín Temas Atuais de Direito , São Paulo LTR, 1998,p 279
= Mandado de Segurança n° 990 09.100287-9 - Santos
/
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Mário Guimarães ponderava que
a função do julgador é tão antiga quanto à própria vida
em sociedade, haja vista os inevitáveis conflitos de
interesses que surgem quando se convive, seja no
restrito âmbito familiar, seja na coletividade. De início,
a função de apaziguar as desavenças e resolver as
contendas era cometida ao Rei, que concentrava todos
os poderes. Entretanto, com o aumento do número de
súditos e, consequentemente, quantidade maior de
demandas, o governante se viu obrigado a nomear
preposto para desempenhar esse papel em seu nome -
o juiz:
"Quando se torna a grei mais
numerosa, crescem e se complicam as relações
humanas. O rei, absorvido por outras atividades, não
terá tempo de prover todos os dissídios de seu povo,
cometendo tais funções a um preposto, o juiz. Este, mero
auxiliar do monarca, em cujo nome e por delegação se
distribui a justiça. Nas mais antigas civilizações, seja no
Egito, na Assíria, na Pérsia, na índia, seja mesmo em
Jerusalém afigura do juiz, distribuía a justiça, muita vez
= Mandado de Segurança n° 990.09 100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
orientada por um juízo divino e isonômico.4"
Por sua vez, Rogério Lauria
Tucci5 anota que a jurisdição é a função estatal
inerente ao poder-dever de realização da justiça,
mediante atividade substitutiva de agentes do poder
judiciário - juizes e tribunais - concretizada na
aplicação do direito objetivo a uma relação jurídica,
com a respectiva declaração, e o conseqüente
reconhecimento, satisfação ou assecuração do direito
subjetivo material de um dos titulares das situações
(ativa e passiva) que a compõem.
Mauro Capelletti6, da mesma
forma, aponta o crescimento extraordinário do Poder
Judiciário como uma das características da sociedade
moderna. Esse fenômeno é paralelo a outro
crescimento, pelo qual o primeiro foi em muitos modos
estimulado ou verdadeiramente causado: o crescimento
- em dimensões sem precedentes - dos "poderes
políticos" no moderno estado "social" ou promocional,
4 Guimarães, Mário O Juiz e a Função Junsdicional Rio de Janeiro Forense, Ia Ed , 1958, pag 19 5 Tucci, Rogério Launa Teoria do Dueilo Processual Penal São Paulo Revista dos Tribunais, 2002, p. 21. 6 Capelletti, Mauro. Juizes irresponsáveis? Porto Alegre Sérgio Antônio Fabris Editor, 1989, pág 19/21.
= Mandado de Segurança n° 990 09 100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
tanto nas suas formas mais modernas ocidentais,
quanto, obviamente, nas versões prevalentes na família
jurídica socialista.
Feitas as considerações que se
faziam necessárias, retomamos o objeto do
mandamus.
A criminalização de práticas
abortivas tem por escopo proteger a vida desde a
concepção.
Em nosso ordenamento jurídico, a
interrupção da gravidez (aborto) é admitida como
medida de exceção, nos termos do artigo 128, do
Código Penal, se não houver outro meio de salvar a
vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro,
dependendo, neste caso, de consentimento da gestante
ou, quando incapaz, de seu representante legal.
O chamado aborto humanitário ou
sentimental, resultante de estupro, fundamenta-se na
preservação dos sentimentos da gestante que, além da
agressão sofrida, teria que suportar a gravidez, com
= Mandado de Segurança n° 990 09.100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
todas suas conseqüências morais, familiares e sociais.
O aborto necessário ou
terapêutico, admitido quando não há outra forma de
salvar a vida da mãe, encontra justificativa na solução
dada ao eventual conflito entre direitos fundamentais -
direito à vida do nascituro e da gestante -,
prevalecendo o desta, como mais viável, inclusive
socialmente.
Na presente hipótese, a despeito
da gestante, em tese, não correr risco maior do que
outra mulher com gravidez múltipla, devemos
considerar a peculiaridade do caso e as conseqüências
que o prosseguimento dessa gestação, levada a termo
por parto, pode causar.
Os impetrantes, antes de chegar a
esta via, submeteram o caso a análise de vários
médicos, buscando, certamente, solução diversa, que
pudesse afastar o prognóstico.
Todavia, inexiste probabilidade de
sobrevida aos fetos, o que foi unanimemente apontado
= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos /
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
pelos médicos consultados, como também pela
doutrina médica, em estudos de casos semelhantes.
Dessa forma, a princípio, não
haveria que se falar em sacrifício da vida dos gêmeos,
que só se mantêm vivos por conta do organismo
materno que os sustentam. Além disso, considerando a
sobrevivência ao parto, não ficariam vivos mais do que
poucos instantes, afastando a incidência da norma
penal, que busca proteger da vida humana e não sua
falsa existência7.
Nesse sentido se manifestou o
Ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal
Federal, decidindo, em Io de julho de 2004, Medida
Cautelar na Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental n° 54, arguida pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores da Saúde - CNTS:
"a gestante convive diuturnamente com
a triste realidade e a lembrança
ininterrupta do feto, dentro de si, que
nunca poderá se tornar um ser vivo. Se
7 Posição idêntica- Mandado de Segurança n° 418.592-3/4 - 5a Câmara Criminal - TJ/SP - Rei Barbosa Pereira, 12/03/2003 - V I I
= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos
/
PODER JUDICIÁRIO 3
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
assim é - e ninguém ousa contestar -,
trata-se de situação concreta que foge à
glosa própria ao aborto - que conflita
com a dignidade humana, a legalidade,
a liberdade e a autonomia da vontade.^
Por outro lado, se o aborto
humanitário tem como fundamento a preocupação com
os sentimentos da mãe, porque não admitir esse
cuidado no caso de feto com anomalia sem
possibilidade de vida extrauterina, mantendo a
gestante subjugada a tamanho dissabor?
A resposta não é fácil. A questão
envolve o aparente confronto de vários direitos
fundamentais, como à saúde, à liberdade em seu
sentido maior, à autonomia da vontade, à legalidade,
mas, acima de tudo, à dignidade humana.
Como solução, devemos buscar o
equilíbrio entre o direito e a realidade, de forma que
não se absolutize um e aniquile outro.
Como aponta Andreia Sofia
= Mandado de Segurança n° 990.09 100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Esteves Gomes8: "Enquanto e onde não existe direito
constituído, o princípio da dignidade da pessoa humana
pode ser mobilizado para resolver os problemas, de
forma autônoma; estará, depois, necessariamente, na
base da constituição do direito e, assim, passará a
resolver os problemas indirectamente ou por seu
intermédio."
O direito à vida, consagrado pela
Constituição Federal Brasileira é muito mais amplo do
que assegurar apenas "o estar vivo"; compreende o
direito à "vida digna".
A dignidade da pessoa humana,
por sua vez, erigida a fundamento de nossa República9,
está diretamente ligada ao sistema de direitos
fundamentais, na medida em que não é possível
conceber dignidade sem o mínimo imprescindível ao
pleno desenvolvimento da personalidade humana1 0 .
8 Gomes, Andreia Sofia Esteves. A Dignidade da Pessoa Humana e o seu valor jurídico partido da experiência constitucional portuguesa. ín Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, Ia Ed São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 35. 0 Constituição Federal de 1988, Artigo 1°. inciso III 10 Silva, Marco Antônio Marques, Cidadania e Democracia Instrumentos paia a efetivação da Dignidade Humana, ín Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. Ia Ed São Paulo Quartier Latin, 2008, p. 224
= Mandado de Segurança n° 990.09 100287-9 - Santos / /
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Antônio Luis Chaves Camargo
afirmava que "inexiste uma específica definição para a
dignidade humana, porém, ela se manifesta em todas as
pessoas, já que cada um, ao respeitar o outro, tem a
visão do outro. A dignidade humana existe em todos os
indivíduos e impõe o respeito mútuo entre as pessoas,
no ato da comunicação, e que se opõe a uma
interferência indevida na vida privada pelo Estado. Tais
direitos são inerentes, porque conhecidos pelas pessoas,
não podendo, portanto, o Estado desconhecê-los. A este
cabe, ainda, criar condições favoráveis para uma
integral realização dos mesmos".
Assim, para a efetivação desse
ideal constitucional, se faz necessário garantir, entre
outros, o respeito às convicções, à igualdade, à
liberdade e à saúde de cada indivíduo.
Obrigar a mãe carregar em seu
ventre, pelo longo período da gestação, os filhos que
não irá ter, imaginando, a cada instante, que nascerão
mal formados e morrerão logo em seguida, é
constrangê-la a sofrimento inútil, cruel, incompatível
'' Camargo, Antônio Luís Chaves. Culpabilidade e reprovação penal. São Paulo Sugestões Literárias, 1994, p. 12 e 31
= Mandado de Segurança n° 990 09 100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ao conceito de vida digna.
Ademais, a circunstância
angustiante que passa não só a gestante, mas seu
marido e toda a família, sabedores de que os fetos
apresentam formação imperfeita e que, não se podendo
afastar a anomalia, não haverá sobrevida ao parto,
inflige-lhes grande pesar, que pode trazer reflexos
sérios, quiçá irreparáveis, à saúde psíquico-emocional
de todos os envolvidos.
Maria Helena Pereira Franco
Bromberg12 observa que para os pais de crianças com
doenças fatais, o processo de luto começa no momento
em que lhes é comunicado o diagnóstico.
Entendemos, pois, que o direito às
vidas dos fetos, exíguas e inviáveis, não podem se opor
ou prevalecer sobre a saúde psíquica da gestante e de
seus familiares.
J á tivemos a oportunidade de
'" Bromberg, Mana Helena Pereira Franco. Luto A Morte do Ouro em Si, ín Vida e Morte: Laços da Existência São Paulo Casa do Psicólogo, 1996.
= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
escrever13 que "a dignidade decorre da própria natureza
humana, o ser humano deve ser sempre tratado de
modo diferenciado em face da sua natureza racional. É
no relacionamento entre as pessoas e o mundo exterior e
entre o Estado e a pessoa que se exterioriza os limites
da interferência no âmbito desta dignidade. O seu
respeito, é importante que se ressalte, não é uma
concessão do Estado, mas nasce da própria soberania
popular, ligando-se à própria noção de Estado
Democrático de Direito."
Não se trata de valorar de maneira
diferente o mesmo bem jurídico tutelado - vida da mãe,
vida dos fetos. Analisa-se o alcance social de cada uma
delas e, considerando que os gêmeos não sobreviverão
ao parto ou logo após ele, prevalente deve ser a vida da
mãe, sua dignidade.
Na manifestação de Jorge
Miranda14: "Cada pessoa tem de ser compreendida em
relação com as demais. Por isso, a Constituição
n Silva, Marco Antônio Marques, Acesso à Justiça Penal e Estado Demouático de Direito São Paulo. Juarez de Oliveira, 2001, p 01 14 Miranda, Jorge. A Dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de Direitos Fundamentais, ín Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, Ia Ed São Paulo Quartier Latin, 2008, p 173.
= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
(Portuguesa) completa a referência à dignidade da
pessoa humana com a referência à "mesma dignidade
social" que possuem todos os cidadãos e todos os
trabalhadores (arts. 13°, n° 1, e 59°, n° 1, alínea h),
decorrente da inserção numa comunidade determinada,
fora da qual, como diz o art. 29°, n° 1, da Declaração
Universal, "Não é possível o livre e pleno
desenvolvimetno da sua personalidade."
Oportuno citar mais um trecho
das considerações do Ministro Marco Aurélio Mello,
naADPFn 0 5415:
"Quando se chega ao final da gestação,
a sobrevida é diminuta, não
ultrapassando período que possa ser
tido como razoável, sendo nenhuma a
chance de afastar-se, na sobrevida, os
efeitos da deficiência. Então, manter-se
a gestação resulta em impor à mulher,
à respectiva família, danos à
integridade moral e psicológica, além
15 Medida Cautelar na Ação de Descumpnmento de Preceito Fundamental n° 54, julgada em Io
de julho de 2004, Supremo Tribunal Federal
= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
dos riscos físicos reconhecidos no
âmbito da medicina. Como registrado
na inicial, a saúde, no sentido admitido
pela Organização Mundial da Saúde,
fica solapada, envolvidos os aspectos
físicos, mental e sociahn
Decidindo acerca da mesma
matéria, o Desembargador Sebastião Carlos Garcia,
deste Egrégio Tribunal de Justiça, assim se
manifestou:
eiConsigne-se, a propósito, o evidente
confronto entre dois direitos
fundamentais - direito à vida do
nascituro e direito à dignidade pessoal
e à saúde psíquica-emocional e eugênica
da parturiente. Situada nesse ponto a
questão süb judice, não haveria como
deixar de garantir primazia à vida,
como direito inalienável da pessoa
humana, estendida ao nascituro. Essa
equação, não obstante, cede e inverte-se
ao se defrontar com a certeza - certeza
= Mandado de Segurança n° 990 09 100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
científica , aliás - da inviabilidade da
vida do feto pós-parto." (Apelação Cível
com Revisão n° 516 .299-4 /5 - 6a Câmara
de Direito Privado - 13.09.2007 - M.V.).
Diante dessa situação, deve-se
abreviar-lhes o sofrimento; afastar-lhes do forte abalo
psicológico pelo qual estão passando e o pesaroso
sentir; assegurar-lhes a saúde16, e a dignidade.
Nesse sentido:
"Entendemos que estas vivências
diferentes e, ao mesmo tempo tão semelhantes, trazem
como maior entrave para sua adequada elaboração a
ausência do necessário suporte social. Isto nos remete à
necessidade de mudança dos paradigmas e sobretudo
de mentalidade em relação à experiências humanas de
tamanho impacto pessoal e social17."
A justiça entra aqui. Auxilia na
diminuição e elaboração de um luto que de certo modo
16 A Organização Mundial de Saúde define saúde como "um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença " http.//www.opas org br/ 14 Casellato, Gabnela. Morta, Mana Antometa P. Lutos Matemos - Um Estudo Comparativo. ín Estudos Avançados sobre o Luto Campinas: Livro Pleno, 2002, pág 121 e 127
= Mandado de Segurança n° 990 09 100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
não é franqueado pela sociedade.
Convivemos com o "mito do amor
materno" e rechaçar um filho, ainda que sabidamente
natimorto, é algo criticado pela sociedade. É como se
sua dor não pudesse ser reconhecida e autorizada.
É o caso!
Assim: "O luto experimentado por
essa mãe não é franqueado, não é autorizado
socialmente, a perda não pode ser abertamente
reconhecida, socialmente validada ou publicamente
lamentada. A sociedade revela que não só não
reconhece a necessidade de enlutar-se como também
não reconhece que tenha havido qualquer
relacionamento significativo anterior à perda.18"
Esta Corte de Justiça tem se
posicionado no sentido de, na impossibilidade de
sobrevida do feto, permitir o aborto, com o propósito de
abreviar o sofrimento materno, em respeito ao seu luto,
sua saúde e dignidade:
IS Casellato, Gabnela Motta, Mana Antonieta P Luíos Maternos - Um Estudo Competi ativo. ín Estudos Avançados sobre o Luto. Campinas Livro Pleno, 2002. pág 122/123.
= Mandado de Segurança n° 990.09 100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
22
Aborto - Eugênico - Feto com má
formação congênita - Impossibilidade de
vida extrauterina comprovada - Medida
destinada a evitar sofrimento físico e
psicológico à mãe e familiares
Expedição de autorização e eventuais
ofícios determinada - Segurança
concedida (Mandado de Segurança n°
309.340-3 - Cotia - Ia Câmara Criminal -
Rei. David Haddad - 22.05.00 - V.U.).
Aborto - Eugênico - Autorização -
Admissibilidade - Impossibilidade de
vida extrauterina - Detecção de
cardiopatia grave e má formação de
diversos órgãos - Deformidade absoluta e
irreversível - interrupção da gravidez
que vem a evitar tanto o risco de vida da
mãe tanto o seu sofrimento em saber
que daria à luz a um natimorto -
Segurança concedida (Mandado de
Segurança n° 418 .592-3 /4 - São Paulo -
5a Câmara Criminal - Rei. Barbosa
Pereira - 12.06.2003 - V.U.).
Mandado de Segurança n° 990.09 100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO 23
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Mandado de Segurança - Indeferimento
de medida cautelar - Concessão de
autorização para que a impetrante
realize aborto - Feto com má formação
congênita, portador da chamada acrania
- Anomalia incompatível com a vida para
o feto - Recomendação medida pela
interrupção da gestação - Preservar o
bem estar psicológico e clínico da
gestação - Segurança concedida. Em se
tratando de solicitação de aborto
eugênico ou necessário, em decorrência
de má formação congênita do feto
comprovada cabalmente por laudos
médicos, admite-se a autorização
judicial para a interrupção da gravidez,
como forma de se evitar a amargura e o
sofrimento psicológico da mãe, que, de
antemão, sabe que o filho não terá
qualquer possibilidade de sobrevida
(Mandado de Segurança n° 375.201-3 -
São Vicente - 3 a Câmara Criminal - Rei.
Tristão Ribeiro - 21.03.2002 - M.V.).
= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
24 ^
Mandado de Segurança n° 884.716-3/6 -
São Paulo - 5a Câmara Criminal - Rei.
Marcus Zanuzzi - 15.12.2005 - V.U.;
Mandado de Segurança n° 886 .650-3/9 -
São Paulo - 12a Câmara Criminal - Rei.
João Morenghi - 02.08.2006 - V.U.
Em conclusão, não havendo a
possibilidade de vida extrauterina dos fetos, para evitar
maiores danos e em respeito à dignidade humana, o
reclamo apresentado é legítimo, autorizando-se a
intervenção cirúrgica para a interrupção da gravidez.
Pelo exposto, CONCEDE-SE a
segurança nos termos declarados, determinando-se a
imediata expedição do alvará e demais ofícios que
fizerem necessários.
MARCO ANTÔNIO
Relator
1 <*w
= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos