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1 AGENOR MIRANDA ROCHA: PROFESSOR E SACERDOTE DA TRADIÇÃO NAGÔ-KÊTU NO BRASIL Jorge Garcia Basso Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PEPG em Educação: História, Política, Sociedade Agência de Fomento: CNPq Eixo Temático 5: Pesquisa, Educação, Diversidades e Culturas Categoria: Comunicação Oral INTRODUÇÃO A proposta deste texto busca relatar os caminhos percorridos pela pesquisa ao longo dos últimos dois anos. Inicialmente, descobri o personagem Agenor Miranda Rocha, como um educador e cânone das tradições religiosas de matriz africana Nagô- Kêtu, mencionado pelo sociólogo Reginaldo Prandi em seu livro: Segredos guardados - orixás na alma brasileira (2005). A descoberta me fez sair em busca de informações sobre esse professor, cheguei ao livro Um Vento Sagrado História de vida de um adivinho da tradição Nagô-Ketu brasileira (1996), do professor Muniz Sodré, e do jornalista e músico Luiz Felipe de Lima. Um relato biográfico acrescido de um conjunto rico e diversificado de depoimentos de artistas, intelectuais, amigos e ex-alunos que com ele conviveram, sobretudo nas quatro últimas décadas de sua vida. Meu interesse pelo estudo historiográfico da trajetória do professor e sacerdote Agenor Miranda Rocha se construiu na perspectiva de uma História da educação, pelas possibilidades que o tema oferece tanto para historiografia, quanto à reflexão sobre o ensino da história e das culturas afro-brasileiras na escola, opondo-se à perspectiva homogeneizadora de afirmação essencialista e eurocêntrica do ensino da história que as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, buscam reformular. Desde 2012, quando iniciei meu projeto de pesquisa, tive acesso a um conjunto diversificado de fontes documentais sobre Agenor Miranda Rocha mantidas na residência onde o professor viveu de 1953 a 2004: os originais das suas obras publicadas, As nações Kêtu: origens, ritos e crenças - os candomblés antigos do Rio de Janeiro (2000); Caminhos de Odu (2009) - livro editado a partir de um manuscrito original de Agenor Miranda Rocha de 1928, sobre as tradições e conhecimentos de matriz africana e a prática da adivinhação na tradição afro-brasileira; Oferenda (1998) poesia, que também teve uma edição espanhola, Ofrenda Como la flor que se oculta entre las hojas (2001); e um manual sobre o ensino de Língua Portuguesa intitulado Cadernos de Português (2000); um acervo fotográfico particular, jornais, objetos rituais, documentos pessoais, correspondências e sua biblioteca particular.

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    AGENOR MIRANDA ROCHA: PROFESSOR E SACERDOTE DA TRADIO NAG-KTU NO BRASIL

    Jorge Garcia Basso

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    PEPG em Educao: Histria, Poltica, Sociedade Agncia de Fomento: CNPq

    Eixo Temtico 5: Pesquisa, Educao, Diversidades e Culturas Categoria: Comunicao Oral

    INTRODUO

    A proposta deste texto busca relatar os caminhos percorridos pela pesquisa ao

    longo dos ltimos dois anos. Inicialmente, descobri o personagem Agenor Miranda

    Rocha, como um educador e cnone das tradies religiosas de matriz africana Nag-

    Ktu, mencionado pelo socilogo Reginaldo Prandi em seu livro: Segredos guardados

    - orixs na alma brasileira (2005). A descoberta me fez sair em busca de informaes

    sobre esse professor, cheguei ao livro Um Vento Sagrado Histria de vida de um

    adivinho da tradio Nag-Ketu brasileira (1996), do professor Muniz Sodr, e do

    jornalista e msico Luiz Felipe de Lima. Um relato biogrfico acrescido de um conjunto

    rico e diversificado de depoimentos de artistas, intelectuais, amigos e ex-alunos que

    com ele conviveram, sobretudo nas quatro ltimas dcadas de sua vida.

    Meu interesse pelo estudo historiogrfico da trajetria do professor e sacerdote

    Agenor Miranda Rocha se construiu na perspectiva de uma Histria da educao,

    pelas possibilidades que o tema oferece tanto para historiografia, quanto reflexo

    sobre o ensino da histria e das culturas afro-brasileiras na escola, opondo-se

    perspectiva homogeneizadora de afirmao essencialista e eurocntrica do ensino da

    histria que as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, buscam reformular.

    Desde 2012, quando iniciei meu projeto de pesquisa, tive acesso a um conjunto

    diversificado de fontes documentais sobre Agenor Miranda Rocha mantidas na

    residncia onde o professor viveu de 1953 a 2004: os originais das suas obras

    publicadas, As naes Ktu: origens, ritos e crenas - os candombls antigos do Rio

    de Janeiro (2000); Caminhos de Odu (2009) - livro editado a partir de um manuscrito

    original de Agenor Miranda Rocha de 1928, sobre as tradies e conhecimentos de

    matriz africana e a prtica da adivinhao na tradio afro-brasileira; Oferenda (1998)

    poesia, que tambm teve uma edio espanhola, Ofrenda Como la flor que se

    oculta entre las hojas (2001); e um manual sobre o ensino de Lngua Portuguesa

    intitulado Cadernos de Portugus (2000); um acervo fotogrfico particular, jornais,

    objetos rituais, documentos pessoais, correspondncias e sua biblioteca particular.

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    Dentro desse conjunto, destaco dois documentos muito significativos, que

    registram as lembranas do professor e sacerdote: O primeiro o filme Um Vento

    Sagrado, do diretor Walter Pinto Lima (2001), um documentrio que apresenta um

    longo depoimento do prprio Professor Agenor e tem a participao de intelectuais e

    artistas, entre eles, o cantor e compositor Gilberto Gil, o acadmico Antnio Olinto, os

    professores Reginaldo Prandi e Muniz Sodr. O segundo um relato escrito por

    Digenes Rebouas Filho, Pai Agenor (1998), baseado em lembranas, depoimentos

    e escritos de e sobre Agenor Miranda Rocha, na festa de seus 90 anos.

    Com base nesses dois documentos, este texto busca, a partir de recortes

    significativos dos registros de sua memria, apresentar um panorama da trajetria do

    professor e sacerdote, em dois universos socioculturais distintos: o mundo negro dos

    conhecimentos africanos, das tradies e oralidades das comunidades de terreiros de

    candombl da Bahia e do Rio de Janeiro, onde ele foi aprendiz e mestre, e o mundo

    branco da educao escolarizada e da cultura letrada do tradicional Colgio Pedro II e

    do Instituto de Educao do Rio de Janeiro, entre as dcadas de 1930 e 1960, perodo

    da sua atuao como docente.

    AS MEMRIAS DA INFNCIA E FORMAO

    Agenor Miranda Rocha nasceu em Luanda, Angola, no dia 8 de setembro de

    1907. Homem branco, filho de pais portugueses, Antnio Rocha e Zulmira Miranda

    Rocha. Seu pai era funcionrio diplomtico na embaixada brasileira em Angola e sua

    me atriz, cantora e fadista, festejada em revistas e jornais da poca.

    Uma histria curiosa envolve o seu nascimento. Em 1906, sua me foi

    abordada por um homem numa feira-livre em Luanda, que a interpela e faz previses

    sobre o seu futuro. Assim nos conta o prprio professor Agenor:

    Minha me encontra um negro na feira, em Luanda. Ele lhe diz que o menino que ela tinha na barriga nasceria de oito meses, com uma mancha vermelha na cabea e nesse dia ele estaria por perto, porque sabia quando. Ela o deixaria dar-lhe o primeiro banho de sua vida? Indagou. Minha me nem se sabia grvida ainda, concordou para terminar aquela situao constrangedora que supunha ser causada pela insolao. Ela era branca, catlica e portuguesa. Oito meses depois, no dia oito de setembro, s primeiras dores do parto, o negro angolano bate na porta e espera a criana para dar-lhe o primeiro banho de ervas s por ele conhecido. Assim foi feito, visto que, alm de ser de oito meses, eu trazia na cabea a mancha prevista. O angolano disse, ento, que eu seria uma grande figura dentro da seita africana. (ROCHA apud FILHO, 1998, p.14)

    O africano que havia feito tais previses insistiu em se aproximar e influir no

    destino do menino. Isso acabou levando a famlia Miranda Rocha a se transferir, em

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    1912, para a cidade de Salvador, na Bahia. Cercada por um rosrio de igrejas e

    atravessada por uma heterogeneidade tnica prxima da frica, a capital baiana

    pareceu, aos olhos do casal, o lugar ideal para quem desejava prolongar no Brasil a

    experincia angolana.

    O menino Agenor Miranda Rocha contava a, com pouco menos de cinco anos

    de idade, e foi acometido de uma febre de origem desconhecida. O menino passa

    pelos melhores mdicos de Salvador e os diagnsticos apontavam para o seu

    falecimento. Uma vizinha toma a iniciativa de ir casa de Eugnia Ana dos Santos,

    Me Aninha, fundadora, em 1910, do terreiro Ax Op Afonj um dos mais

    tradicionais candombls da Bahia, para consult-la a respeito da sade do menino.

    Jogando os bzios, Aninha verificou que a doena da criana era uma astcia do

    destino para Oxal vir a ser feito, isto , a necessidade da iniciao do menino no

    culto divindade responsvel por sua cabea. De volta, a vizinha relata ao casal as

    palavras da ialorix1. (SODR, LIMA, 1996, p. 24) Os pais desesperados com a

    situao do menino consentiram na sua iniciao. O Professor Agenor menciona

    dessa forma os acontecimentos:

    Nasci em 1907 e fui iniciado em 1912, portanto tinha s 5 anos quando acompanhava me Aninha, uma senhora imponente e natural, e o povo falava: L vai Aninha com seu santinho. O apelido de seu santinho pegou para desagrado meu. Pulquria foi quem confirmou o jogo que me Aninha fez para ver meu orix. Quando me Aninha viu o que o jogo revelava, no quis assumir a responsabilidade sozinha e mandou chamar Pulquria, para confirmar aquele Oxal, de qualidade to rara, que via como dono da minha cabea. E, por outro lado, a misso que eu trazia de vir a ser muito conhecido na seita africana. Pulquria, que residia tambm na Ladeira da Praa, num sobrado fronteirio ao que morava me Aninha, confirmou tudo o que fora visto por ela. Fui recolhido camarinha

    2, doente, desenganado e em estado de coma. No dia do

    nome, Oxal me possui e o menino semimorto grita seu orunk3 em

    p, no meio do salo. Depois disso, a doena, nunca explicada pelos mdicos, desaparece, e eu estou vivo, com 90 anos, contando tudo isso. (ROCHA apud FILHO, 1998, p.13)

    Me Aninha ganha com isso a gratido e a confiana da famlia do menino,

    tornando-se sua me-de-santo, mestra e orientadora que inicia o jovem nos

    ensinamentos, tradies, ritos e prticas do candombl, desde a infncia at a

    mocidade, quando ele se transfere para o Rio de Janeiro a fim de estudar medicina.

    1 Ialorix Zeladora dos orixs de uma casa de candombl, tambm conhecida como me-de-santo.

    2 Camarinha Quarto estritamente fechado onde ficam recolhidos os novios durante cerca de 17 dias

    da iniciao.

    3 Orunk Novo nome que o iniciado recebe e revela inspirado pelo orix, durante uma cerimnia no dia

    do nome e com o qual passar a ser designado pela comunidade.

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    Seus pais retornam a Portugal em 1926, Agenor e um irmo mais velho permanecem

    no Brasil, morando na capital da repblica.

    Sobre suas lembranas da Bahia de sua infncia, Agenor Miranda Rocha

    destaca suas amizades de toda uma vida, o casario antigo colonial, as ruas centrais, o

    Pelourinho e outros bairros, as festas populares e os candombls. Lembro-me quando

    eu estudava na nossa casa de quintal grande, no bairro da Graa. Com o livro na mo,

    suspendia os olhos e ficava ouvindo minha me, Zulmira Miranda estudando canto.

    (ROCHA apud FILHO, 1998, p.33). Lembro-me perfeitamente de minha escola em

    Salvador, onde tive um professor magnfico de portugus que muito me ensinou,

    chamado Agenor Costa; at hoje conservo o dicionrio de sinnimos feito por ele. As

    aulas eram de manh, numa escola no Rio Vermelho e depois nos Barris. (ROCHA

    apud FILHO, 1998, p.13)

    Em quase um sculo de vida, Professor Agenor conviveu com famosas

    personalidades do candombl baiano, como Cipriano Abed (falecido em 1933),

    considerado na frica um dos maiores conhecedores dos segredos de Osse, me

    ensinou tudo que eu sei deste orix. (ROCHA apud FILHO, 1998, p.31) Martiniano

    Eliseu do Bonfim (1859-1943) era grande conhecedor de If. Ele era muito amigo de

    me Aninha e eu sempre ia a casa dele, onde morava com sua esposa, D. Matilde,

    para receber seus ensinamentos sobre o culto de If. (ROCHA apud FILHO, 1998,

    p.73) Procpio Xavier de Souza Procpio de Ogunj este eu conheo muito. De

    vez em quando eu ia conversar com ele na sua quitanda sobre os ltimos barcos

    recolhidos nas casas e sobre sua ltima estrepolia com a polcia, porque foi um dos

    mais perseguidos. (ROCHA apud FILHO, 1998, p.72, 73) Felizberto Sowzer, Maria

    Pulquria da Conceio Nazareth - Pulquria de Oxssi, Ialorix fundadora do

    terreiro do Gantois, carismtica e respeitada que abriu as portas do terreiro para

    pesquisas a intelectuais como Arthur Ramos, Edson Carneiro, Ruth Landes, Donald

    Pierson, Roger Bastide e Pierre Verger nas dcadas de 1930 e 1940, tia carnal de

    Menininha do Gantois, a Escolstica Maria de Nazar (1894-1986), de quem

    Agenor Miranda Rocha foi amigo e olu. Sua iniciao no sistema do jogo de bzios,

    cujo corpo oracular, constitudo dos Odus4, cada um com seus caminhos, ebs5, mitos

    4 Odu caminho espiritual que determinado pelo jogo do if ou de bzios. o nome que

    designa os 256 odus/signos de if; estes odus so interpretados a partir de um conjunto de

    histrias e lendas antigas que formam uma espcie de enciclopdia oral dos conhecimentos

    tradicionais do povo ioruba. Toda pessoa nasce ligada a um desses 256 odus e ele que

    define sua identidade profunda, revela seu orix particular, serve-lhe de guia.

    5 Ebs sacrifcios e obrigaes que os adeptos fazem para agradar os orixs e conseguir

    suas graas.

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    e significados, foi aprendido com Eugnia Ana dos Santos - Me Aninha. O

    antroplogo Donald Pearson, que a conheceu a considerava uma das pessoas mais

    inteligentes com quem ele havia privado. Era tambm muito culta nos assuntos da

    seita e falava ioruba correntemente. (ROCHA apud FILHO, 1998, p.79)

    Em suas reminiscncias todo um cenrio da Bahia das duas primeiras dcadas

    do sculo XX, rememorado. Muitos desses lugares e personagens se imortalizaram

    na obra do escritor Jorge Amado, que contribuiu decisivamente com seus romances

    para a defesa e a divulgao do candombl. Ao lado dele se destacaram o fotgrafo e

    etngrafo Pierre Verger, o socilogo Roger Bastide e o artista plstico Carib, todos

    conheceram e reconheciam na figura do Professor Agenor Miranda Rocha, uma

    referncia da memria e dos conhecimentos e tradies afro-brasileiras. A

    familiaridade dos quatro com os conhecimentos e tradies das comunidades de

    candombl foi de grande valia na construo de suas obras literrias, artsticas e

    cientficas.

    AS LEMBRANAS DO ITINERRIO DO PROFESSOR E SACERDOTE

    Agenor Miranda Rocha, na dcada de 1920, radicou-se na cidade do Rio de

    Janeiro para estudar medicina, estudou piano e se interessou pelo canto lrico, teve

    aulas com Elena Teodorini, tornando-se amigo de Bidu Saio. No incio riam muito de

    mim porque eu tinha ora linguajar portugus ora baiano. As disciplinas eram Anatomia,

    Histria Natural, Medicina Legal e aulas prticas no laboratrio, onde aprendamos

    frmulas para aviar remdios. (ROCHA apud FILHO, 1998, p.36) Abandonou o curso

    de medicina no terceiro ano, e passou a concentrar suas atenes no estudo de

    lnguas e literatura, tendo em vista o concurso para Professor do Colgio Pedro II. O

    prprio Professor descreve estes acontecimentos:

    Quando, eu quis abandonar o curso de Medicina, consultei os orixs e eles me responderam que eu daria um bom mdico, mas um timo professor. Tranquei a matrcula na Faculdade de Medicina e fui fazer concurso no Colgio Pedro II. Meus pais sempre me deram muita liberdade e no interferiram na minha deciso. Estudei Portugus com dois professores muito bons: Alfredo Gomes, catedrtico da Escola Normal e Dalton Santos, catedrtico do Colgio Militar e do Hemetrio dos Santos. (ROCHA apud FILHO, 1998, p. 3. Grifos meus)

    Nos anos 1930, iniciou sua carreira docente no tradicional Colgio Pedro II, que

    se desdobrou por mais de trs dcadas de atuao. Assim o professor descreve o Rio

    de Janeiro na poca de sua chegada:

    O ambiente cultural no Rio daquela poca era muito bom. Eu tinha diversos amigos, alm dos professores do D. Pedro II. Tinha

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    amizade com Ceclia Meireles, com Leonor Posada, muitos msicos e escritores, como Coelho Neto e Alberto de Oliveira. Fazamos timos saraus na minha casa, quando lia-se poesia e tocava-se piano. Assistia a muitas peas, companhia de revistas com Aracy Cortes, recitais e peras no Teatro Municipal. (ROCHA apud FILHO, 1998, p. 54. Grifos meus)

    Alm das relaes derivadas das atividades de Agenor Miranda Rocha como

    professor, estudante de msica e canto lrico, se somariam com o passar dos anos, as

    relaes advindas da sua atuao como sacerdote. O professor j no exerccio de seu

    sacerdcio era procurado por muitas pessoas para orientaes por meio do orculo

    dos bzios, ou sobre o trato e o conhecimento ritual do uso das folhas. Conforme

    assinala o pesquisador Reginaldo Prandi:

    O Professor, como o olu chamado pelo povo-de-santo6, morava

    num sobrado germinado duma vila do bairro carioca do Engenho Novo, e sua casa estava sempre cheia de gente procura de conselhos e orientao. Eram mes, pais e filhos do candombl e da umbanda, devotos, amigos e clientes, pessoas simples, intelectuais e artistas, ricos e pobres, gente de todo feitio que ia a casa dele como quem vai a um local sagrado de peregrinao, para conversar com ele ou simplesmente para beijar-lhe a mo e pedir a beno. Foi personagem importante de quase um sculo da histria do candombl. (2005, p.7, 8, grifos meus)

    O ttulo de Professor foi assimilado por todos de sua convivncia, para alm de

    suas relaes ligadas sua atividade como docente. Em suas lembranas destacam-

    se a sua longa atuao como professor de Lngua e Literatura Portuguesa no ensino

    secundrio, e a sua atuao como olu e mestre do povo-de-santo.

    Em seu livro de poesias Oferenda (1998), mencionada a sua atuao como

    docente do Instituto de Educao do Rio de Janeiro. No documentrio Um Vento

    Sagrado, do diretor Walter Pinto Lima (2001) destacam-se a convivncia e influncia

    exercida por Ansio Teixeira em sua atuao como educador.

    Ainda no final da dcada de 1990, o professor Agenor Miranda Rocha foi

    convidado como decano das tradies africanas no Brasil a participar, com seus

    comentrios, em dois documentrios: Pierre Verger: Um mensageiro entre dois

    mundos, lanado em 1998, sobre a vida e a obra do fotgrafo e etngrafo francs

    Pierre Verger, narrado e apresentado por Gilberto Gil e dirigido por Lula Buarque de

    Holanda, onde o professor aborda as influncias dos conhecimentos e tradies afro-

    brasileiras no mbito da cultura nacional; O Povo Brasileiro, lanado em 2000,

    baseado na obra O Povo Brasileiro a formao e o sentido do Brasil (1995) do

    antroplogo Darcy Ribeiro, suas consideraes abordam a influncia da cultura negra

    na formao social e cultural brasileira e na prpria lngua portuguesa falada no Brasil.

    6 Povo-de-santo Frequentadores e adeptos do candombl e dos cultos afro-brasileiros.

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    As informaes biogrficas acima ressaltadas buscam destacar a importncia

    do Professor Agenor Miranda Rocha, como personagem significativo das tradies

    afro-brasileiras, sobre o qual, inexiste qualquer publicao ou estudo acadmico no

    campo da histria da educao.

    A reconstituio do itinerrio desse professor se justifica pelas possibilidades

    que apresenta para o estudo das circularidades e do sincretismo na cultura brasileira,

    na investigao dos lugares e redes de sociabilidades percorridas por esse sujeito. O

    que o torna uma referncia privilegiada para o estudo historiogrfico das prticas

    sociais de aprendizagem, das relaes de poder, da oralidade, da manuteno e do

    dinamismo das tradies e conhecimentos desse mundo negro-nag, do qual o

    Professor Agenor foi personagem importante por quase um sculo, como aprendiz e

    mestre, assim como, o mundo branco do Colgio Pedro II e do Instituto de Educao

    do Rio de Janeiro, da educao escolarizada, da cultura letrada, da msica erudita e

    do canto lrico, elementos que se misturaram na experincia desse sujeito.

    CONSIDERAES FINAIS

    Os recortes feitos nos dois documentos: o documentrio Um Vento Sagrado,

    de Walter Pinto Lima (2001), e Pai Agenor (1998) de Digenes Rebouas Filho

    visaram focalizar aspectos representativos da trajetria de Agenor Miranda Rocha,

    buscando apresentar uma viso panormica de sua experincia de vida, desde sua

    infncia at seu longo itinerrio como professor e mestre/olu das tradies religiosas

    afro-brasileiras. Suas reminiscncias do passado nos remetem a lugares, pessoas e

    instituies que o envolveram. As lembranas destacadas levantam informaes

    variadas sobre pessoas de suas relaes, das comunidades de candombl, e de

    instituies escolares, mas no s isso. O panorama da sua trajetria nos diz muito

    sobre as relaes sociais estabelecidas, as contradies daquelas estruturas sociais,

    as trocas culturais constantes que ocorriam no cotidiano dos mais variados sujeitos. O

    elemento particular, especfico e individual um ponto de partida, e a partir dele

    possvel perceber significados luz do contexto.

    O tempo passado torna-se um tempo passvel de recuperao, pelo historiador,

    por meio da narrativa memorialista, como um lugar de memria. Neste sentido, a

    narrativa memorialista, como lugar refgio da memria, em suas dimenses material,

    simblica e funcional, no nos remete somente ao fato lembrado e narrado, mas cria a

    possibilidade de deslocamento no tempo e no espao, interconectando palavras e

    representaes, correlacionando sentidos; abrindo perspectiva de acesso ao estudo

    do passado, bem como significao do lembrado, se um acontecimento vivido

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    finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, o acontecimento lembrado no

    tem limites, se apresenta como uma chave para significar o antes e o depois.

    (RICOEUR, 2007, p.416)

    As reminiscncias do Professor Agenor Miranda Rocha, em meu percurso de

    pesquisa se revelaram como indcios e sinais valiosos que foram sendo perseguidos

    como o fio de Ariana que guia o investigador no labirinto documental. (GINZBURG,

    1989, p.174).

    preciso persistir ainda um pouco mais nesse labirinto, em busca de

    significados e conexes. O grande desafio desse tipo de anlise sair da perspectiva

    microscpica e chegar ao macro, sociedade mais ampla, descrever o espao social

    de cada indivduo sem perder de vista as estruturas sociais mais complexas em que

    esse indivduo se insere.

    Referncias Bibliogrficas

    FERRAZ, Isa Grinspum. Documentrio - O Povo Brasileiro. So Paulo: Verstil Home

    Vdeo, 2000.

    FILHO, Digenes Rebouas. Pai Agenor. Salvador: Corrupio, 1998.

    GINZBURG, Carlo. A micro-histria e outros ensaios. Rio de Janeiro: Difel/Bertrand

    Brasil, 1989.

    HOLANDA, Lula Buarque de. Pierre Fatumbi Verger: mensageiro entre dois mundos.

    Bahia: Conspirao Filmes, 1998.

    LIMA, Walter Pinto. Um vento sagrado. Bahia: VPC Cinemavdeo, 2001.

    PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados: orixs na alma brasileira. So Paulo:

    Companhia das Letras, 2005.

    RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formao e o sentido do Brasil. So Paulo:

    Companhia das Letras, 1995.

    RICOEUR, Paul. A memria, a histria o esquecimento. Campinas, SP: Editora da

    Unicamp, 2007.

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    ROCHA, Agenor Miranda. Oferendas. Rio de Janeiro: Imprimatur, 1998.

    _____________________. Cadernos de Portugus. Rio de Janeiro: Fbrica do Livro,

    2000.

    _____________________. As naes ktu: origens, ritos e crenas - os candombls

    antigos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.

    _____________________. Ofrenda Como la flor que se oculta entre las hojas.

    Espanha: Algoran Poesia, 2001.

    _____________________. Caminhos de Odu: os odus do jogo de bzios, com seus

    caminhos, ebs, mitos e significados, conforme ensinamentos escritos por Agenor

    Miranda Rocha em 1928 e por ele mesmo revistos em 1998. Rio de Janeiro: Pallas,

    2009.

    SODR, Muniz. LIMA, Luis Felipe de. Um vento sagrado: histria de vida de um

    adivinho da tradio nag-ktu brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 1996.