Tese Sobre Karl Polanyi

download Tese Sobre Karl Polanyi

of 204

Transcript of Tese Sobre Karl Polanyi

Universidade Tcnica de Lisboa

Instituto Superior de Economia e Gesto

Mestrado em Sociologia Econmica e das Organizaes

Sociedade vs. Mercado otas Sobre o Pensamento Econmico de Karl Polanyiuno Miguel Cardoso MachadoOrientao: Professor Doutor Joo Carlos de Andrade Marques Graa Jri Presidente: Professor Doutor Joo Alfredo dos Reis Peixoto Vogais: Professor Doutor Joo Carlos de Andrade Marques Graa Professor Doutor Jos Maria Castro CaldasLisboa, 14/Dezembro/2009 i

ii

LeitmotivThe practical everyday activity of wage-workers reproduces wage labor and capital. Through their daily activities, modern men, like tribesmen and slaves, reproduce the inhabitants, the social relations and the ideas of their society; they reproduce the social form of daily life. Like the tribe and the slave system, the capitalist system is neither the natural nor the final form of human society; like the earlier social forms, capitalism is a specific response to material and historical conditions. Fredy Perlman

H um autor, Karl Polanyi, que diz que antes existiam sociedades com ilhas de mercado. Hoje, h um grande mercado com pequenas ilhas de sociedade. Anselm Jappe

o tempo em que () o capitalismo definitivamente elevado a princpio ontolgico. Roswitha Scholz

() tambm o sistema produtor de mercadorias da modernidade ainda uma sociedade primitiva. Robert Kurz

A Humanidade enfrenta a questo de saber se desiste voluntariamente de viver por falta de possibilidades de valorizao, ou se pe fim ao modo de produo baseado no valor. Robert Kurz

Na sociedade fetichista no pode existir verdadeiramente um sujeito, porque o sujeito, na sociedade da mercadoria, a prpria mercadoria, o valor. Anselm Jappe

iii

Aos meus pais, Helena e Fernando

iv

AgradecimentosQuero comear por agradecer ao professor Joo Carlos Graa, o meu orientador, pelo seu apoio, comentrios, conselhos e sugestes ao longo do processo de elaborao da tese. Acresce que o facto de partilhar o meu interesse por matrias e assuntos que a generalidade das pessoas considera entediantes, ou at pouco significantes, se revelou por demais reconfortante e inspirador. Agradeo tambm aos professores Joo Peixoto e Ilona Kovcs, cujas contribuies e conselhos no mbito dos Seminrios de Investigao I e II foram extremamente teis. Merecem ainda uma palavra de apreo os professores: Gareth Dale, Justin Elardo, Chris Hann (e Anke Meyer, a sua secretria), Marguerite Mendell (e Ana Gomez, do Polanyi Institute), Kari Polanyi-Levitt, James R. Stanfield e Mary V. Wrenn, que gentilmente acederam aos meus pedidos, enviando-me diverso material bibliogrfico que, de outra forma, no teria conseguido obter. No poderia deixar de mencionar o doutor Jaime Ramos, gastroenterologista que me acompanha, e o doutor Alfredo Kong e a sua equipa de cirurgia, cuja aco se revelou fundamental no tratamento dos sintomas associados doena crnica de que padeo, contribuindo assim decisivamente para a minha (boa) sade. Em ltimo lugar, e mais importante, quero agradecer profundamente aos meus pais, Helena e Fernando, pelo apoio e carinho que me tm dado ao longo dos anos, permitindo-me concluir com sucesso o meu percurso escolar e acadmico.

v

ResumoKarl Polanyi normalmente associado quase em exclusivo Grande Transformao. Embora seja a sua magnum opus, nossa convico que h mais Polanyi para alm d A Grande Transformao, pelo que iremos trat-la, mas inserindo-a no universo do pensamento Polanyiano. Neste sentido, pretendemos elaborar com a tese uma anlise alargada e integrada do (vasto) edifcio conceptual e terico construdo por Polanyi, articulando-o num todo coerente e detalhado. Tratando-se de um autor cujo programa de investigao , por excelncia, multidisciplinar, pretendemos realar as suas contribuies para a histria, antropologia, economia e cincias sociais, em particular para a sociologia econmica. Tratar-se- de um estudo terico de cariz fundamentalmente descritivo e analtico, que pretende, em primeira instncia, analisar as ideias do prprio Karl Polanyi e, em segundo lugar, realar as influncias que produziu sobre alguns autores nos mais variados campos das cincias sociais. Pensamos que o nosso trabalho constituir uma reflexo til e plena de contemporaneidade, na medida em que as discusses em torno do papel do mercado mantm toda a sua relevncia numa realidade marcada por um capitalismo cada vez mais globalizado. Acresce que Polanyi tem recebido, em Portugal, um tratamento que se poder qualificar como amplamente marginal. Assim, comearemos por efectuar, no ponto 1.3, uma breve nota biogrfica, inserindo o autor no contexto social e intelectual da sua poca. No segundo captulo abordaremos as questes conceptuais e metodolgicas que norteiam o pensamento de Polanyi, realando particularmente a distino entre economia no sentido substantivo e economia no sentido formal, as crticas efectuadas ao paradigma formalista (economistic fallacy) e inserindo Polanyi no Grande Debate entre substantivistas e formalistas. No terceiro captulo analisaremos as trs formas de integrao mediante as quais a economia, enquanto processo institudo, adquire unidade e estabilidade: reciprocidade, redistribuio e troca mercantil (exchange). Salientaremos ainda algumas aplicaes empricas do quadro de anlise constitudo por tais conceitos, nomeadamente no mbito dos estudos desenvolvidos por Polanyi em Dahomey and the Slave Trade. Finalmente, no quarto captulo, concretizaremos o quadro conceptual e metodolgico preconizado por Polanyi na sua aplicao mais conhecida: A Grande Transformao. Deste modo, analisaremos o processo, respectivamente, de nascimento, ascenso, apogeu e posterior declnio da economia capitalista de mercado. Refira-se ainda que efectuamos, no Anexo A, uma breve digresso acerca da relao que se estabelece entre Polanyi e a Nova Sociologia Econmica, tratando mais detalhadamente o conceito de

(dis)embeddedness.

Palavras chave: substantivismo, formalismo, reciprocidade, redistribuio, mercado, (dis)embeddedness

vi

AbstractKarl Polanyi is usually associated almost exclusively to The Great Transformation. Even though its his magnum opus, we believe theres more Polanyi beyond The Great Transformation, so that we will treat this work, but draw close attention to the place it occupies in the universe of polanyian thought. Thus, we propose with this dissertation to elaborate a comprehensive and integrated analysis of the (vast) conceptual and theoretical framework built by Polanyi. Being in presence of an author whose program of research is, par excellence, multidisciplinary, we intend also to emphasize his important contributions to the fields of history, anthropology, economics and social sciences, namely to economic sociology. This will be a theoretical study, essentially descriptive and analytical, which intends, in first place, to deal with the ideas of Karl Polanyi himself and, secondly, emphasize the influences that his work produced in some authors from the most diverse fields of social sciences. We think our work will constitute a useful and contemporary reflection since the discussions around the role of the market maintain all its relevance in a reality characterized by a capitalism ever more globalized. Also, we must not overlook the fact that Polanyi and his work have been amply marginalized by the main discourse within Portuguese academy. Thus, we will start by doing, in point 1.3, a brief biographical sketch, placing the author in the social and intellectual context of his times. In the second chapter we will deal with the conceptual and methodological issues that underlie the thought of Karl Polanyi, stressing particularly the distinction between the substantive and formal meanings of economic, the criticisms pointed at the formalist paradigm (economistic fallacy) and placing Polanyi in the Great Debate between formalists and substantivists. In the third chapter we will analyze the three forms of integration by which the economy, as an instituted process, acquires unity and stability: reciprocity, redistribution and (market) exchange. We will also stress some empirical applications of the framework represented by those concepts, namely in the course of the studies developed by Polanyi in Dahomey and the Slave Trade. Finally, in the fourth chapter, we will substantiate the conceptual and methodological framework proposed by Polanyi in its better known application: The Great Transformation. In this sense, we will analyze, respectively, the process of birth, rise, apogee and posterior decline of the capitalist market economy. Let us still draw the attention of the reader to Annex A, in which we elaborate a brief digression about the relation between Polanyi and the New Economic Sociology, treating in a more detailed matter the concept of dis(embeddedness).

Keywords: substantivism, formalism, reciprocity, redistribution, market, (dis)embeddedness

vii

ndiceLeitmotivDedicatria iii

iv

Agradecimentos

v

Resumo

vi

Abstractndice

vii

viii

Lista de figuras, quadros e tabelas

xiii

Captulo 1 Introduo

1

1.1 Para alm d A Grande Transformao

1

1.2 Resumo e estrutura da tese

3

1.3 Karl Polanyi: breve nota biogrfica 1.2.1 1886-1933: Hungria e ustria 1.2.2 1933-1947: Inglaterra 1.2.3 1947-1964: EUA e Canad 1.2.4 Consideraes finais

6 6 11 12 14

Captulo 2 Questes conceptuais e metodolgicas: os significados substantivo e formal da economia 15

2.1 - Introduo 2.1.1 O Grande Debate substantivista/formalista 2.1.2 Os precursores do Grande Debate

15 15 18

viii

2.1.2.1 Bronislaw Malinowski 2.1.2.2 Raymond Firth

18 20

2.2 Karl Polanyi e as definies substantiva e formal da economia 2.2.1 A relao entre a antropologia econmica e os sistemas econmicos comparados 2.2.2 Os dois significados da economia 2.2.3 A falcia economicista 2.2.4 O paradigma formalista: racionalidade meios/fins e escassez 2.2.5 Um novo ponto de partida metodolgico: a economia substantiva, ou a economia enquanto processo institudo

21

21 23 25 27

32

2.3 A escola Polanyiana na antropologia econmica (e na sociologia) 2.3.1 Trade and Market in the Early Empires: Hopkins, Pearson e Fusfeld 2.3.1.1 Terence Hopkins 2.3.1.2 Daniel Fusfeld 2.3.1.3 Harry Pearson 2.3.2 George Dalton

37

37 37 40 41 43

2.4 O paradigma formalista 2.4.1 Robbins Burling 2.4.2 Edward LeClair 2.4.3 Os dois extremos da perspectiva formalista: Scott Cook e Frank Cancian

49 49 50

51

2.5 Breve nota final

52

Captulo 3 Formas de integrao: reciprocidade, redistribuio e troca (mercantil) 54

3.1 - Introduo 3.2 As formas de integrao 3.2.1 Anlise Institucional

54 58 58

ix

3.2.2 Reciprocidade, redistribuio e troca (mercantil)

61

3.3 A trade catalctica: comrcio, dinheiro e mercados 3.3.1 Formas de comrcio 3.3.2 Usos do dinheiro 3.3.3 Elementos de mercado 3.3.4 Observaes finais

68 69 72 75 78

3.4 Polanyi: Dahomey and the Slave Trade 3.4.1 Redistribuio: a esfera estatal 3.4.2 Reciprocidade: ajuda mtua e cooperao 3.4.3 Domesticidade: terra e religio 3.4.4 Troca: mercados isolados 3.4.5 Dinheiro arcaico 3.4.6 Observaes finais

79 80 83 84 85 88 89

3.5 George Dalton: Traditional Production in Primitive African Economies 3.5.1 - Reciprocidade 3.5.2 - Redistribuio 3.5.3 Troca mercantil 89 90 91 92

3.6 Marshall Sahlins: Stone Age Economics 3.6.1 Fluxos materiais e relaes sociais 3.6.2 Esquema das reciprocidades

93 94 98

3.7 Breve nota final

100

Captulo 4 O nascimento e o colapso da moderna economia capitalista de mercado: A Grande Transformao 102

4.1 - Introduo

102

4.2 O sistema internacional

104 x

4.2.1 Consideraes iniciais 4.2.2 Cem Anos de Paz 4.2.3 As dcadas de 1920 e 1930

104 105 107

4.3 A ascenso da economia de mercado 4.3.1 O encerramento dos campos (enclosures), a Revoluo Industrial e a necessidade de proteco social 4.3.2 As mercadorias fictcias: trabalho, terra e dinheiro 4.3.3 A Speenhamland Law

110

110 113 117

4.3.4 A Economia Poltica e a emergncia da sociedade econmica 120

4.4 Contra-resposta defensiva: a autoproteco da sociedade 4.4.1 Consideraes iniciais 4.4.2 O nascimento da doutrina liberal 4.4.3 A proteco do trabalho 4.4.4 A proteco da natureza 4.4.5 A proteco dos negcios e da organizao produtiva 4.4.6 Auto-regulao imperfeita 4.4.7 A ruptura do mercado auto-regulvel

122 122 124 126 129 130 133 134

4.5 Do colapso da civilizao do sculo XIX s possibilidades de liberdade nas sociedades humanas 4.5.1 Governo, democracia e economia de mercado: a ascenso do fascismo 4.5.2 A liberdade nas sociedades industriais (complexas) 137 139 137

4.6 Breve nota final

142

Captulo 5 Consideraes finais

146

5.1 Elogio de Polanyi

146

5.2 Crtica de Polanyi

148

xi

Anexos

Anexo A Digresso sobre Karl Polanyi e a ova Sociologia Econmica: o conceito de (dis)embeddedness

A.1 Karl Polanyi: a desincrustao da economia capitalista

a

A.2 Karl Polanyi: Aristotle Discovers the Economy

e

A.3 A Nova Sociologia Econmica: todas as economias esto incrustadas f

A.4 Esboo (crtico) de concluso

s

A.5 Para uma interpretao um pouco diferente

t

Bibliografia

w

xii

Lista de figuras, quadros e tabelasFiguras

Figura No.1 Resumo esquemtico da tese Figura No. 2 Karl Polanyi (1886-1964) Figura No. 3 A Grande Transformao

5 7 144

Quadros

Quadro No. 1 Abordagens formalista e substantivista Quadro No. 2 As trs formas de integrao

52 100

xiii

Captulo 1 - Introduo1.1 Para alm d A Grande Transformao Karl Polanyi normalmente associado quase em exclusivo Grande Transformao. Neste sentido, afigura-se um caso paradoxal no campo das cincias sociais: nunca um autor ter sido tantas vezes citado, tendo a sua obra permanecido ainda assim, em grande medida, desconhecida, ignorada e at incompreendida1. Acresce que, em Portugal, Polanyi tem recebido um tratamento que poder ser qualificado como amplamente marginal2. Deste modo, e porque acreditamos que, embora se trate da sua magnum opus, h mais Polanyi para alm d A Grande Transformao, pretendemos com este trabalho elaborar uma anlise alargada e integrada do edifcio conceptual e terico construdo por Karl Polanyi, articulando-o num todo coerente e detalhado. Tratando-se de um autor cujo programa de investigao , por excelncia, multidisciplinar, ainda nosso intuito realar as suas contribuies para a histria (econmica), antropologia, economia e cincias sociais, em particular, para a sociologia econmica. Como nota Berthoud: Com algumas excepes, os especialistas retiram da obra de Polanyi [apenas] aquilo que encaram como mais apropriado para as suas preocupaes particulares. () Com uma tal fragmentao, acabam por existir dois Polanyis. O primeiro considerado um terico das sociedades primitivas e arcaicas, como acontece em Trade and Market in the Early Empires. O segundo Polanyi um crtico radical da nossa modernidade econmica, como sucede n A Grande Transformao. [Todavia,] esta partio infundada. ada poderia ser mais prejudicial para uma genuna compreenso da obra de Polanyi, que deve ser entendida como um todo, no mbito da mesma abordagem comparativa. Mais precisamente, existem nos escritos de Polanyi trs domnios interligados de reflexo: teoria geral, histria e polticas (policy). O primeiro equacionado com a procura de conceitos gerais e universais com vista comparao das economias dentro das [diferentes] sociedades; o segundo identificado com o estudo de perodos histricos e sociedades especficos [a partir desses conceitos]; o terceiro responde aos problemas mais cruciais enfrentados pela humanidade, na base dos dois primeiros domnios de reflexo. Enquanto os escritos histricos de Polanyi tm sido discutidos por um nmero deCom efeito, grande parte dos autores, como se constata com uma reviso da literatura, pura e simplesmente esquece a restante obra de Polanyi, limitando-se a tratar A Grande Transformao. Uma rpida consulta do nmero de citaes da bibliografia de Polanyi presentes na base de dados do Google Scholar bastante ilustrativa: The Great Transformation (2274 citaes); The Economy as Instituted Process (771); Trade and Market in the Early Empires (488); The Livelihood of Man (293); Primitive, Archaic and Modern Economies (243); Dahomey and the Slave Trade (109). 2 Saliente-se, entre o pouco material publicado no nosso pas, Lisboa (2000), Nunes (1993) e Rodrigues (2002).1

1

estudiosos, () a sua abordagem terica geral tem sido largamente negligenciada ou at ignorada. Isto pode ser explicado parcialmente pela forma de apresentao da sua posio terica bsica por parte de Polanyi: em nenhuma parte da sua obra encontramos uma exposio compreensiva das suas vises fundamentais sobre o homem, a sociedade e a histria; estas encontram-se dispersas por todos os seus artigos e livros. Assim, o leitor que no fique satisfeito com um entendimento superficial [do seu pensamento] () obrigado a reconstruir um todo terico coerente e com significado a partir de elementos dispersos. [No entanto,] tal empreendimento deveria, em qualquer caso, ser um pr-requisito para qualquer discusso [sria] das contribuies de Polanyi (Berthoud, 1990: 171-172, itlico nosso). E Sievers refora esta ideia acerca do holismo que caracteriza o pensamento polanyiano: Tal como ele [Polanyi] adopta uma viso unitria no que se refere sociedade e s cincias sociais, devemos tambm, para lhe fazer justia, adoptar uma viso unitria do seu esforo para compreender a sociedade atravs de uma cincia social unificada. precisamente este esforo de Polanyi que constitui a sua maior contribuio. () O esforo concreto para aplicar esta abordagem ao conjunto factual dos dados sociais relativamente raro. () [Assim,] a distino que Polanyi merece neste mbito tripartida: ele no se concentra num pequeno problema, mas toma o fenmeno da sociedade no seu todo e toda a histria da sociedade moderna como o seu objecto de anlise; ele usa dados e hipteses de um grande nmero () das disciplinas sociais tradicionais antropologia, sociologia, cincia poltica, histria, filosofia social, psicologia social, economia; e ele procura um sistema unificado de teorias explicativas, ao invs de um nmero limitado de generalizaes possivelmente descoordenadas. Este carcter distintivo coloca Polanyi de tal maneira em evidncia, que ele deve ser visto como o fundador, ou pelo menos como um profeta, de algo verdadeiramente novo. Ele delineou os princpios de um sistema econmico completo mediante o qual o homem pode prever e controlar o seu futuro social (Sievers, 1949: 361). Esta formulao de uma cincia econmica comparada genericamente relevante ter sido mesmo uma das principais contribuies de Polanyi: A tentativa de formular uma cincia econmica genrica () [revelou-se] um comeo bastante til. Parece bvio que uma anlise cientfica das potencialidades econmicas do homem deve ser baseada no conhecimento da maneira como os homens satisfizeram as suas necessidades em outras sociedades, mas Polanyi encontra-se entre os primeiros que tentaram estabelecer as fundaes para tal empreendimento. E se estes pequenos comeos parecem bastante simplistas e esquemticos, eles assemelham-se nesse respeito s primeiras etapas de qualquer nova cincia e representam um avano substancial relativamente atitude segundo a qual a economia (economics) s comeou realmente com a anlise do capitalismo. As suas proposies tericas bsicas parecem providenciar uma base permanente para uma cincia econmica genrica, ou at para uma cincia social genrica: o

2

homem um animal social; o homem um ser unificado; a sociedade deve funcionar como um todo coerente; a actividade econmica apenas uma funo social e deve estar subordinada totalidade do complexo social; a sociedade composta por instituies, nenhuma das quais especificamente econmica; a sociedade actua para proteger o tecido das suas instituies e os indivduos humanos que esse padro institucional serve (Sievers, 1949: 318-319). Neste contexto, o seu trabalho pode talvez ser mais correctamente descrito como o estudo do lugar ocupado pela economia na sociedade. Como refere Pearson, a importncia contempornea desta relao funcional entre a economia e a sociedade, tanto na teoria como nas polticas [adoptadas], nas sociedades Ocidentais e no-Ocidentais, nas economias industriais e no-industriais, que exige que voltemos a uma anlise fundamental acerca do que dizemos e do que queremos quando falamos da economia e do seu papel na sociedade. No existe melhor local para comear tal anlise do que o trabalho de Karl Polanyi (Pearson, 1977: xxvii). Para levar a cabo esta investigao, Polanyi preconizava o estabelecimento de uma interdependncia e complementaridade entre a teoria e a pesquisa emprica: A tarefa terica consiste em estabelecer o estudo da subsistncia (livelihood) humana sobre bases institucionais e histricas amplas. O mtodo a ser utilizado dado pela interdependncia do pensamento e da experincia. Os termos e as definies construdos sem referncia aos dados [empricos] so vazios, enquanto uma mera recolha de factos sem um reajustamento da nossa perspectiva estril (barren). Para quebrar este crculo vicioso, deve ser conduzida uma pesquisa conceptual e emprica pari passu. Os nossos esforos devem ser sustentados pela conscincia de que no existem atalhos no decurso desta investigao (Polanyi, 1977h: liv-lv). 1.2 Resumo e estrutura da tese A tese de Polanyi, de um modo breve, que a teoria econmica se aplica apenas moderna economia de mercado e no pode servir as necessidades do antroplogo econmico ou do historiador de civilizaes pr-mercantis. A Europa do sculo XIX desincrustou a economia da estrutura social, libertou os motivos econmicos do controlo social e colocou em andamento um processo mediante o qual as consideraes econmicas dominam a sociedade. () Para compreender as sociedades antigas ou menos desenvolvidas, nas quais as relaes econmicas esto ainda incrustadas no sistema social () necessria uma nova teoria para a economia (economics) comparada (Humphreys, 1969: 166). Como se denota na citao de Humphreys acima apresentada, a tese fundamental de Polanyi que a economia capitalista, com o seu carcter desvinculado e autonomizado em face da sociedade, reveste um carcter de extrema excepcionalidade na histria da

3

humanidade. Isto porque todas as economias do passado se encontravam, em regra, submersas e enraizadas nas relaes sociais, i.e., a economia no constitua uma esfera distinta e separada capaz de determinar, em larga medida, o destino dos seres humanos. Partindo deste carcter nico da economia de mercado moderna, Polanyi defende que os instrumentos tericos e analticos desenvolvidos especificamente para o seu estudo, nomeadamente os princpios fundamentais da cincia econmica neoclssica, no so adequados para estudar as sociedades humanas do passado. Assim, advoga um quadro de referncia assente na definio substantiva de economia, que define a mesma como um processo institudo de interaco entre o homem e o ambiente natural e social que o rodeia, o qual resulta numa oferta contnua de meios para satisfazer as suas necessidades. Esta anlise institucional proposta pelo autor concretiza-se no estudo dos padres institucionais mediante a combinao dos quais a economia adquire unidade e estabilidade, i.e., a interdependncia e a recorrncia das suas partes. Polanyi identifica trs padres primordiais que designa por formas de integrao: reciprocidade, redistribuio e troca mercantil. Esta ltima apenas desempenha um papel relevante nas modernas economias ocidentais, com a emergncia do sistema de mercados formadores de preos que caracteriza o capitalismo. Nas sociedades primitivas a reciprocidade era predominante, enquanto as sociedades arcaicas eram fundamentalmente redistributivas. Em suma, Polanyi procurou demonstrar que A troca (de equivalentes) no a nica forma possvel de socializao, e [que] a subordinao total da sociedade s exigncias do trabalho produtivo, tanto quanto a condio prvia dessa subordinao, a saber a separao da economia e do trabalho do campo global da vida, representam um fenmeno relativamente recente, limitado somente sociedade capitalista (Jappe, 2006: 223). Sero estas temticas que procuraremos aprofundar e desenvolver ao longo do texto. Tratar-se- de um estudo terico de cariz fundamentalmente descritivo e analtico, que pretende, em primeira instncia, analisar as ideias do prprio Karl Polanyi e, em segundo lugar, realar as influncias que teve na obra de alguns autores dos mais variados campos das cincias sociais. Pensamos que o nosso trabalho constituir uma reflexo til e plena de contemporaneidade, na medida em que as discusses em torno do papel do mercado mantm toda a sua relevncia numa realidade marcada por um capitalismo cada vez mais globalizado. Atente-se no seguinte resumo esquemtico da tese: 4

Figura o. 1 Resumo esquemtico da tese

2 Captulo 3 captulo 4 captulo _____________________________ ___________________ ___________________ | | | || | 2 definies de economia: - formal - substantiva economia enquanto processo institudo 3 formas de integrao: - reciprocidade - redistribuio - troca (mercado) A Grande Transformao (surgimento, apogeu e colapso da moderna economia capitalista de mercado)

Assim, no segundo captulo abordaremos as questes conceptuais e metodolgicas que norteiam o pensamento de Polanyi, realando particularmente a distino entre economia no sentido substantivo (economia enquanto processo institudo) e economia no sentido formal, as crticas efectuadas ao paradigma formalista (economistic fallacy) e inserindo Polanyi no Grande Debate entre substantivistas e formalistas. No terceiro captulo analisaremos as trs formas de integrao mediante as quais a economia, enquanto processo institudo, adquire unidade e estabilidade: reciprocidade, redistribuio e troca mercantil (exchange). Para alm disso, trataremos a denominada trade catalctica, sendo que Polanyi considerava que um inqurito crtico das

definies de comrcio, dinheiro e mercados deveria disponibilizar um conjunto de conceitos capazes de formar o material em bruto de que as cincias sociais necessitam para tratar os aspectos econmicos. Salientaremos ainda algumas aplicaes empricas doquadro de anlise constitudo por tais conceitos, nomeadamente no mbito dos estudos desenvolvidos por Polanyi em Dahomey and the Slave Trade. Finalmente, no quarto captulo, concretizaremos o quadro conceptual e metodolgico preconizado por Polanyi na sua aplicao mais conhecida: A Grande Transformao. Assim, analisaremos o processo, respectivamente, de nascimento, ascenso, apogeu e

posterior declnio da economia capitalista de mercado.Refira-se ainda que efectuamos, no Anexo A, uma breve digresso acerca da relao que se estabelece entre Polanyi e a Nova Sociologia Econmica, tratando mais detalhadamente

5

o conceito de (dis)embeddedness. Antes, porm, no ponto 1.3, comearemos por efectuar uma breve nota biogrfica, inserindo o autor no contexto social e intelectual da sua poca.

1.3 Karl Polanyi: breve nota biogrfica Como notam Block e Somers, embora no exista uma biografia completa de Karl Polanyi, tal projecto seria certamente digno dos esforos do historiador intelectual mais erudito e competente (1984: 49). Gareth Dale Brunel University, Londres - ir publicar em breve, provavelmente ainda durante o ano de 2009, uma obra bastante compreensiva. O professor Berkeley Fleming - da Universidade Mount Allison, no Canad trabalha tambm h j vrios anos numa biografia intelectual de Polanyi, estudando o imenso acervo disponvel no Instituto Karl Polanyi. Estas duas obras contribuiro certamente para preencher essa lacuna e para lanar alguma luz sobre aspectos menos conhecidos do pensamento e da vida do autor, particularmente no que respeita s influncias das vivncias na sua Hungria natal e dos anos que passou em Viena. No nosso caso, uma vez que tal extravasa o mbito desta pequena incurso no pensamento Polanyiano, tero de ser suficientes uns breves apontamentos biogrficos elaborados com base nas (poucas) referncias j publicadas que, de algum modo, versam sobre a matria3. 1.2.1 1886-1933: Hungria e ustria Karl Polanyi nasceu em Viena, em 1886. O seu pai, Mihaly Pollacek, era um importante construtor ferrovirio, mudando-se com a sua famlia para Budapeste no final da dcada de 1880. O aumento da sua fortuna permitia famlia viver a um nvel de classe mdia/alta. Karl recebeu aulas privadas em casa, modeladas segundo os padres mais elevados da elite da Europa Ocidental da poca. Entrou para a escola apenas aos 13 anos, frequentando o conceituado Ginsio Minta (Minta Gymnasium). Embora permanecendo Judeu e um Pollacek, o pai de Karl magiarizou os nomes dos filhos para Polanyi e mudou a sua religio para o Protestantismo.

Este esboo biogrfico ser baseado, essencialmente, em: Block e Somers (1984), Bohannan (1965), Congdon (1976), Dale (2009), Duczynska (1977), Fleming (2008), Hann (1992), Humphreys (1969), Litvn (1990), Mcsi (1990), Polanyi-Levit (1990), Polanyi-Levitt (2003), Polanyi-Levitt e Mendell (1987), Stanfield (1986), Vezr (1990). Destes, o trabalho realizado por Polanyi-Levitt e Mendell (1987) e por Stanfield (1986) so comummente referidos como os estudos mais completos e compreensivos efectuados at data sobre a vida de Polanyi at porque os autores tiveram contacto com o prprio Polanyi, como sucede no primeiro caso com a sua filha, e/ou com familiares e amigos prximos pelo que seguiremos de perto, e com uma ateno especial, as suas exposies.

3

6

Figura o. 2 Karl Polanyi (1886-1964)

O esprito da Revoluo Russa entrou na vida de Karl Polanyi atravs da amizade da sua famlia com os Klatschkos. Samuel Klatschko era o enviado no partidrio de todos os movimentos e partidos ilegais da Rssia Czarista, contactando com muitos dos grandes revolucionrios da altura, como Plekhanov ou Trotsky. Nele, os primos Ervin Szabo e Karl Polanyi encontraram um amigo ntimo e um mentor, o seu primeiro grande professor. Em 1902, com 16 anos, e ainda enquanto estudante do Ginsio, Polanyi juntou-se a uma organizao estudantil socialista criada pelo seu irmo Adolf e pelo seu primo: Odon Por. Foi neste contexto que Polanyi entrou em contacto com o marxismo e o Partido Social-democrata. No entanto, desiludido com as polticas de ambos, abandonou a organizao em 1907. Polanyi estudou Direito na Universidade de Budapeste, sendo contudo expulso na sequncia de desentendimentos com um grupo de estudantes reaccionrios, pelo que terminou o curso na cidade provinciana de Kolozsvar, em 1909. Com um conjunto de estudantes progressistas criaria em 1908 o denominando Crculo Galileu, sendo o primeiro presidente da organizao. Este grupo emergiu em resposta a uma necessidade, bem sentida no mago da comunidade de pensadores livres progressistas, de aumentar o nvel de conscincia social atravs do ensino e aprendizagem. Tinha como objectivos manter-se afastado da poltica partidria e dedicar-se e apelar aos milhares de estudantes

7

e trabalhadores que viviam na pobreza. Ao longo dos anos, a organizao foi responsvel por centenas de seminrios e conferncias, e por ensinar a ler e a escrever milhares de trabalhadores iletrados. A formao do Crculo Galileu significou um renascimento filosfico e cientfico, assumindo-se como um desafio ao carcter atrasado e reaccionrio do mundo acadmico e influncia do clericalismo, corrupo, oportunismo, privilgios e burocracia vigentes na Hungria de ento4. Para Polanyi, as reformas sociais necessrias requeriam tanto uma tomada de conscincia como a criao de um quadro de referncia terico. No se poderia esperar que mecanismos impessoais produzissem mudanas sociais. Assim, teve origem a sua objeco ao determinismo marxista e uma certa distncia entre o Crculo e os socialistas e comunistas oficiais, embora a organizao fosse, em larga medida, socialista. Em 1912, Polanyi comeou a exercer a sua profisso de advogado na firma do seu tio. Todavia, odiava a advocacia, e o enorme esforo e stress a que estava submetido para ajudar a famlia, aps a falncia da empresa de construo e a morte do seu pai, tinham-no debilitado profundamente. Em 1915, foi chamado para cumprir servio militar por trs anos na sequncia da 1 Grande Guerra. Acabou por ser dispensado, em virtude de problemas de sade graves, em 1917. Seria em Viena que Polanyi comearia as suas investigaes no campo das cincias sociais. Como ele mesmo escreve: As minhas ideias sobre as questes sociais desenvolveram-se apaixonadamente nestes anos: as cincias sociais, a actividade social e, acima de tudo, a possibilidade de liberdade do pensamento social. Como que poderemos ser livres, apesar da sociedade. Mas no apenas nas nossas imaginaes, no atravs de nos abstrairmos da sociedade ao negar o facto de o nosso ser estar interligado com as vidas dos demais, mas na realidade, ao almejar tornar a sociedade lcida (bersichtlich), como na vida ntima de uma famlia, de modo a que eu possa atingir um estado de coisas no qual eu tenha cumprido os meus deveres para com todos os homens e, assim, ser livre novamente, na decncia, com uma boa conscincia. (cit. in Polanyi-Levitt e Mendell, 1987: 20). A sua passagem por Viena marcou um ponto de viragem:

Segundo Dale (cf. 2009), Polanyi foi uma figura central da contra-cultura radical de Budapeste, cujos membros exerceram uma influncia marcante sobre o pensamento do sculo XX. O raio do seu crculo social era relativamente pequeno, como exemplificado pelo relacionamento das suas quatro figuras mais proeminentes: Polanyi era primo de Szab amigo ntimo de Jszi, o seu mentor e colega de escola, amigo e vizinho de Lukcs. Todos eles acreditavam que uma mudana poltica e moral na Hungria ofereceria a perspectiva de uma sociedade mais justa e progressista.

4

8

Ele tornou-se [definitivamente] num cientista social empenhado na procura das instituies capazes de assegurar a liberdade (freedom) em todas as esferas da sociedade. Afastou a passividade e tornou-se num socialista comprometido/empenhado (Polanyi-Levitt e Mendell, 1987: 21) Karl Polanyi chegou a Viena em 1919, sendo hospitalizado e submetido a uma cirurgia bastante complicada. Nesta cidade conheceria Ilona Duczynska, militante comunista, com quem viria a casar em 1923. Num manuscrito de cerca de 200 pginas que no chegou a ser publicado intitulado Behemoth dedicou-se descoberta das origens do sofrimento humano. Como escreve Polanyi, Vivemos tempos atribulados. () Seria por demais evidente que isso nos conduzisse a um empreendimento incessante na procura das origens da nossa dor e agonia, de modo a podermos, individual e colectivamente, elimin-las. Mas a necessidade de conhecer e compreender as origens da nossa poca no percepcionada ou reconhecida. (cit. in Polanyi-Levitt e Mendell, 1987: 22, itlico nosso). Assim, estamos aqui perante as ideias que viriam a animar o compromisso de uma vida inteira dedicada investigao. Os seus estudos em Viena comearam com uma releitura d O Capital de Karl Marx e dos trabalhos dos economistas Austracos Menger, Wieser, Bhm-Bawerk e Schumpeter. Em 1922, desafiou a posio de Ludwig von Mises, iniciando num debate acrrimo relativamente exequibilidade de uma economia socialista. A tentativa de Polanyi de construir uma teoria positiva para a economia socialista, onde a abolio da propriedade privada e do antagonismo entre as classes abriria caminho ao exerccio da responsabilidade social por parte dos cidados, assentava na sua averso tanto economia de mercado como ao socialismo centralizado (autoritrio, se quisermos). O ponto de partida para tal era constitudo pelos captulos iniciais do Volume I d O Capital. As relaes econmicas numa associao de homens livres so transparentes mas, sob o capitalismo, as mercadorias parecem possuir uma vida prpria independente. Polanyi argumenta que as relaes sociais devem ser pessoais, directas e no mediadas. O seu modelo de associaes cooperativas de produtores e consumidores, determinando conjuntamente a afectao e distribuio dos recursos, devia lanar as bases para uma ordem socialista democrtica (Stanfield, 1986: 11 e 15). Alis, relativamente posio do homem na sociedade, Polanyi referia-se muitas vezes famosa formulao de Max Adler: 9

o homem no um ser social porque vive em sociedade, mas ao invs, o homem vive em sociedade porque essencialmente [um ser] social dentro da sua prpria conscincia. Assim, a sociedade no algo existente entre os homens, nem acima deles, mas est dentro deles, dentro de todos e cada um deles, de modo que a sociedade enquanto realidade, e no enquanto conceito, inerente conscincia de cada indivduo5 (cit. in Polanyi-Levitt e Mendell, 1987: 24). Entre 1924 e 1938, Polanyi integrou o conselho editorial do sterreichische Volkswirt (Austrian Economist) enquanto especialista nos assuntos internacionais, escrevendo centenas de artigos e pequenas notas nesse perodo de 14 anos. Lia diariamente a imprensa internacional, incluindo o London Times, o Le Temps parisiense, o Frankfurter Allgemeine Zeitung, o austraco Arbeiterzeitung, entre outros. Para alm disso, efectuava regularmente palestras na Universidade Popular em Viena e discutia os assuntos mundiais e as suas ideias com o enorme nmero de visitantes que recebia em sua casa, incluindo: Felix Schafer, Hans Zeisel, Paul Lazarsfeld, Karl Popper, Aurel Kolnai, Irene e Donald Grant, e muitos outros. de notar que este foi um perodo de grande estmulo e maturao intelectual para Polanyi, assim como um perodo muito produtivo em termos tericos. No entanto, tem sido dedicada uma ateno bastante residual importncia que o mesmo teve para os trabalhos dos anos subsequentes, sendo que poucos dos seus escritos desta poca foram traduzidos, nomeadamente para o ingls, o que dificulta ainda mais a sua anlise e discusso (cf. Dale, 2009). Polanyi sentiu que estes anos passados em Viena foram, em parte, um desperdcio por causa da multiplicidade e disperso dos seus interesses. Mas, como notam PolanyiLevitt e Mendell, isso era uma iluso. Foi precisamente a sua observao detalhada do rumo seguido pela histria europeia contempornea, os seus estudos pormenorizados da cincia econmica, sociologia, literatura e esttica (aesthetics) e, last but not least, a sua admirao pelas realizaes culturais e conscincia de classe do proletariado de Viena, que deram como frutos o trabalho publicado mais tarde em Inglaterra e nos EUA (1987: 26). Ele era o membro mais abertamente esquerdista do jornal, situao que se tornou insustentvel com o avano do fascismo austraco. Em 1933, foi aconselhado pelos

Num pequeno aparte, note-se a proximidade que se pode estabelecer entre esta assero e as ideias de Kropotkin, segundo as quais o homem possui uma tendncia inata de sociabilidade, um sentimento de simpatia e um sentido de equidade relativamente aos seus congneres (cf., por exemplo, Mutual Aid, Anarchist Morality, Ethics).

5

10

colegas a emigrar para a Inglaterra, mas continuou a contribuir para o jornal at este ter sido definitivamente encerrado em 1938. 1.2.2 1933-1947: Inglaterra Com a ajuda de eruditos socialistas como R.H. Tawney e G.D.H. Cole, Polanyi conseguiu emprego na educao de adultos nas Universidades de Londres e de Oxford, assim como na Associao de Educao dos Trabalhadores. Assim, encontrou a sua verdadeira vocao como professor. Para alm disso, efectuou palestras sobre o fascismo Alemo e Austraco no Instituto Real de Assuntos Internacionais. Amigos ingleses ajudaram-no tambm a organizar palestras e conferncias nos EUA. Participou activamente na formao de um pequeno grupo de intelectuais socialistas, a auto-denominada Esquerda Crist. Muitos dos membros do grupo, incluindo Polanyi, partilhavam as crenas crists, mas no estavam associados a nenhuma igreja ou religio organizada. Polanyi organizou grupos de estudo, preparou materiais educativos e contribuiu para a formulao dos objectivos e polticas do grupo. A edio dos escritos da juventude de Marx despertou um grande interesse entre os membros da Esquerda Crist. Como escreve Polanyi: De acordo com Marx, a histria da sociedade humana um processo de auto-realizao da verdadeira natureza do homem. Na nossa sociedade actual, o impulso da nossa natureza em direco a relaes directas, pessoais, i.e., humanas constrangido. (cit. in Polanyi-Levitt e Mendell, 1987: 27). Em suma, a sociedade no corresponde sua essncia, mas o Homem depende dessas relaes humanas para assegurar a sua sobrevivncia e depende igualmente da natureza daqui decorre a importncia da organizao material da sociedade. Nos Manuscritos Econmicos e Filosficos Marx elabora precisamente aqueles aspectos do fetichismo da mercadoria, objectivao e alienao que Polanyi considerava h muito serem centrais e que mais tarde exploraria na sua dimenso histrica n A Grande Transformao. O argumento Polanyiano de que, sob o capitalismo, a economia est desincrustada da sociedade e a sua indignao com o capitalismo no se deviam primordialmente ao facto dos trabalhadores serem explorados, mas antes porque estes eram desumanizados, degradados, embrutecidos e reduzidos a um estado de labuta incessante e desgastante sob a gide dos moinhos satnicos, usando as palavras de William Blake (Block, 2003: 276-277).

11

Foi tambm em Inglaterra que Polanyi publicou o artigo intitulado A Essncia do Fascismo, originalmente escrito em Viena. Nele explica que a incompatibilidade da democracia com o capitalismo pode ser resolvida de duas maneiras. A primeira consiste na extenso dos princpios democrticos economia, o que implica a progressiva abolio da propriedade privada dos meios de produo. Nesta soluo socialista, a esfera poltica democrtica passa a abarcar toda a sociedade. Alternativamente, a segunda soluo, a fascista, consiste na abolio da esfera poltica democrtica, deixando apenas subsistir a vida econmica. Os seres humanos tornam-se ento produtores e apenas produtores: o fascismo assume-se como a salvaguarda extrema do liberalismo econmico. Neste sentido, nas sociedades capitalistas desenvolvidas nasce um conflito entre a economia e a poltica na medida em que a classe trabalhadora consiga utilizar o seu poder poltico para reclamar proteco contra as foras destrutivas do mercado. Conjuntamente com as aulas sobre relaes internacionais, foi-lhe pedido que ensinasse acerca da histria econmica e social inglesa, um tpico sobre o qual sabia muito pouco na altura, mas que se revelaria fundamental para o seu pensamento. Como escreve numa carta a Jaszi: Tinha j cinquenta anos quando as circunstncias em Inglaterra me levaram ao estudo da histria econmica. Nessa poca ganhava a vida como professor. Pois nasci para ser professor. Mal sabia ento que outra vocao estava ainda por ser descoberta e que me estava a preparar [com esses estudos] para a mesma () Cerca de trs anos depois escrevi um livro (cit. in Polanyi-Levitt e Mendell, 1987: 29). A estrutura desse livro, que viria a ser a sua magnum opus, j tinha tomado forma em 1940. Seria contudo nos EUA, onde ficou retido na sequncia de uma das suas palestras, em virtude do avano da blitzkrieg nazi na Europa, que Polanyi escreveria A Grande Transformao, entre 1941 e 1943. Ali conseguiu o cargo de professor na Universidade de Bennington, local onde cristalizou os seus pensamentos e escreveu a obra. Nela analisa a emergncia socialmente desagregadora da economia de mercado no sculo XIX, a reaco social protectora que provocou, e o seu subsequente declnio. 1.2.3 1947-1964: EUA e Canad Ainda regressou a Inglaterra em 1943 mas, em 1947, Polanyi recebeu pela primeira vez um convite para leccionar a tempo inteiro na Universidade de Columbia, nos EUA, onde ensinou Histria Econmica at 1953. No entanto, a famlia Polanyi estabeleceu a 12

sua residncia em Pickering, Ontrio, em 1950, porque foi barrada a entrada a Ilona nos EUA em virtude da sua anterior filiao com o Partido Comunista. Durante este perodo, candidatou-se e recebeu apoio do Concelho para a Pesquisa nas Cincias Sociais para investigar as origens das instituies econmicas. Polanyi ficou bastante entusiasmado com este projecto, afirmando na poca que o resultado ser uma [re]interpretao das economias antigas, especialmente no que toca ao comrcio, dinheiro e fenmenos de mercado, que lanar as bases para uma histria econmica comparada (cit. in Polanyi-Levitt e Mendell, 1987: 33). Um subsdio da Fundao Ford permitiu-lhe continuar a sua investigao mesmo depois de se reformar da carreira de professor. O Projecto Interdisciplinar sobre os aspectos institucionais do crescimento econmico, como se tornou conhecido, foi dirigido por Polanyi, Conrad Arensberg e Harry Pearson. As concluses do projecto foram publicadas na influente obra Trade and Market in the Early Empires em 1957. A publicao deste volume, e em particular do artigo de Polanyi intitulado The Economy as Instituted Process, desafiou a ortodoxia dominante na antropologia econmica, que tinha aplicado at ento os princpios da teoria econmica neoclssica ao estudo das sociedades no-mercantis sem qualquer reserva. Num certo sentido, as sociedades no-mercantis constituram uma espcie de laboratrio no qual Polanyi testou as teses principais d A Grande Transformao. Com efeito, a descoberta formidvel da recente pesquisa histrica e antropolgica foi que a economia humana est, em regra, submersa nas suas relaes sociais (Polanyi, 2000: 65). Assim, confirmava-se o carcter nico da sociedade mercantil, na qual a economia se encontra desincrustada. Com o fim deste projecto, Polanyi regressou ao tema da liberdade sob uma sociedade tecnolgica. Em 1960, iniciou um novo jornal chamado Co-Existence, sendo o primeiro volume publicado pouco tempo aps a sua morte, em Abril de 1964, na sua casa em Pickering, Ontrio. O importante trabalho de investigao intitulado Dahomey and the Slave Trade, escrito com a colaborao de Abraham Rotstein, seria publicado postumamente em 1966, enquanto a colectnea Primitive, Archaic and Modern Economies, editada por George Dalton e que reunia ensaios, captulos das suas obras e algum material previamente no publicado, apareceu em 1968. Finalmente, em 1977, Harry Pearson editaria e publicaria um manuscrito no acabado e, em certas partes, existente apenas sob a forma de fragmentos, intitulado The Livelihood of Man. No obstante, mesmo na sua forma imperfeita e inacabada, esta obra apresenta importantes 13

contribuies de Polanyi no que toca sua teoria geral da economia e da sociedade e ainda no que respeita anlise da Grcia Antiga. 1.2.4 Consideraes finais Podemos concluir que a experincia que deu origem ao trabalho da sua maturidade foi, acima de tudo, uma experincia europeia. Os problemas que preocuparam Polanyi ao longo da sua vida derivaram do seu testemunho da 1 Grande Guerra, das revolues Russa e Hngara, da crise econmica mundial, da ascenso do fascismo, da 2 Grande Guerra e do efmero perodo de optimismo do ps-guerra que foi minado pelo surgimento da Guerra Fria. Com efeito, a 1 Grande Guerra marcou o incio de trs dcadas de guerra civil europeia, um perodo de sofrimento humano indescritvel e de sacrifcios hericos, vindo a culminar num conflito que muito genericamente podemos designar como decorrendo entre o fascismo, por um lado, e o socialismo e a democracia por outro. Grande parte do desenvolvimento e maturao intelectual de Polanyi ocorreu durante este perodo, no qual escreveu centenas de artigos que permanecem at hoje, na sua maioria, praticamente desconhecidos. No entanto, sem compreender a sua vida e vocao, impossvel apreender tanto a motivao que o conduziu investigao das economias no-mercantis ou o significado da mesma para a nossa sociedade industrial contempornea a necessidade de reincrustar (re-embed) a economia na sociedade e de restaurar o sentido individual de resoluo (purposefulness) enraizado na cultura e criatividade das pessoas (Polanyi-Levitt e Mendell, 1987: 35). Pode-se traar as razes do seu pensamento na necessidade de subordinar deliberadamente a economia (economy) enquanto meio para os fins da comunidade humana, destacando-se no desenvolvimento das ideias de Polanyi a preocupao com a liberdade, a celebrao da cultura das pessoas comuns e a procura de um socialismo humano como nica expresso verdadeira da democracia.

14

Captulo 2 Questes conceptuais e metodolgicas: os significados substantivo e formal da economia2.1 Introduo 2.1.1 O Grande Debate substantivista/formalista Como nota S. C. Humphreys: A parte da teoria de Polanyi que tem atrado as maiores crticas a sua assuno de que a teoria econmica moderna no pode ser utilizada para analisar o funcionamento das economias primitivas e, relacionado com isto, o argumento de que a economia (economy) possui dois significados, o formal e o substantivo, que apenas coincidem na moderna economia de mercado (Humphreys, 1969: 196). Todavia, para compreendermos em toda a sua plenitude a obra e o pensamento de Polanyi, devemos comear precisamente por analisar esta distino que o autor faz entre economia no sentido substantivo e economia no sentido formal. Devemos partir, com efeito, do significado substantivo de economia, pois este constitui a base conceptual e metodolgica da abordagem preconizada pelo autor: a anlise da economia enquanto processo institudo. Em suma, essa concepo est subjacente a todo o edifcio terico desenvolvido por Polanyi, inclusive n A Grande Transformao, a sua obra mais conhecida. Se esta questo/problemtica teve a sua origem alguns anos antes, com autores como Malinowski, Firth, Herskovits, Knight ou Goodfellow, foi contudo nos anos 50, 60 e 70 que foi objecto de um debate bastante alargado e acrrimo entre as duas correntes no contexto da antropologia econmica. Tratou-se, na prtica, do denominado Grande Debate entre substantivistas e formalistas, que sofreu talvez um impulso decisivo com a publicao do artigo seminal de Karl Polanyi intitulado The Economy as Instituted Process e da obra Trade and Markets in the Early Empires, editada por Polanyi, Arensberg e Pearson (1957). Assim, Polanyi deve ser inserido, e as suas contribuies entendidas, no contexto especfico de um debate decisivo sobre as bases metodolgicas da disciplina da antropologia econmica. A discusso girou em torno da possibilidade de utilizao e aplicao da moderna teoria econmica para estudar e analisar as economias do passado, i.e., da sua pretensa aplicabilidade universal enquanto base explicativa da realidade. Os substantivistas,

15

encabeados por Polanyi6 (cf. 1968a; 1968b; 1977a; 1977b; Polanyi et al, 1968), defendiam que o esquema formalista assente no modelo neoclssico da teoria econmica apenas aplicvel ao estudo das modernas economias capitalistas, onde os mercados formadores de preos desempenham um papel fulcral. Ao invs, deve-se partir da definio substantiva que encara a economia enquanto um processo institudo de interaco entre o homem e o seu ambiente, o qual resulta numa contnua oferta de meios materiais para satisfazer as suas necessidades, esta sim com carcter universal. Entre eles encontramos desde logo autores que contriburam para a obra Trade and Markets in the Early Empires: Hopkins (cf. 1957), Pearson (cf. 1957a; 1957b; 1957c), Fusfeld (cf. 1957) e Arensberg7 (cf. 1957). Outro autor importante George Dalton8 (cf. 1960, 1961; 1962; 1963; 1965; 1968a; 1968b; 1969; 1977; 1978; 1982; 1990), considerado quase consensualmente o representante por excelncia da escola Polanyiana e aquele que mais contribuiu para desenvolver o trabalho iniciado pelo prprio Karl Polanyi. Merece tambm referncia Paul Bohannan (cf. 1953; 1954a; 1954b; 1955a; 1955b; 1956; 1958; 1959) que, juntamente com Dalton, editou outra das obras substantivistas mais importantes: Markets in Africa. H ainda que realar Marshall Sahlins9 (cf. 2004), que embora no se tratando do substantivista mais puro, obteve uma grande relevncia no campo da antropologia com a utilizao de conceitos e instrumentos importados de Polanyi, como so os casos das trs formas de integrao: reciprocidade, redistribuio e mercado. O campo formalista, por seu turno, defende que o comportamento humano maximizador que se traduz na afectao de recursos escassos a fins alternativos i.e., a economizao - encontrado em todas as sociedades humanas. Deste modo, os princpios da cincia econmica moderna so passveis de ser aplicados ao estudo de todas as sociedades, incluindo as do passado. Entre os autores que se destacaram neste campo, encontramos Burling (cf. 1968), LeClair (cf. 1968), Cook (cf. 1966; 1969) e Cancian (cf. 1968). Vrios autores procuraram sintetizar e recolher os argumentos de cada um dos lados desta polmica (cf. Kaplan, 1968; Edel, 1969; Dowling, 1979; Orlove, 1986; del Toro, 1999; Elardo, 2003; Hart e Hann, 2006; Elardo, 2007a; Onorati, 2007) que, contudo, acabou por se ir desvanecendo nos anos 80 e 90 sem que nenhum dos campos pudesse6 7

Dedicaremos todo o ponto 2.2 s vises de Polanyi sobre as duas definies de economia. Abordaremos alguns destes autores no ponto 2.3.1. 8 Analisaremos as contribuies de Dalton no ponto 2.3.2. 9 Trataremos Sahlins no captulo 3.

16

reclamar vitria (cf. Dalton, 1990; Dowling, 1979; Hart e Hann, 2006), i.e., sem se chegar a uma concluso definitiva sobre quais as bases metodolgicas e tericas sobre as quais deve assentar a antropologia econmica10. No que respeita ao campo substantivista/institucionalista, o autor que mais se tem destacado nos ltimos anos na defesa dos seus princpios e vises, i.e., da anlise da economia enquanto processo institudo, tem sido o economista norte-americano James R. Stanfield, assumida e decisivamente influenciado por Karl Polanyi (cf. 1980; 1981; 1982; 1986; 1990; Stanfield e Carroll, 2003; Stanfield et al, 2006). Tambm Justin Elardo11 tem publicado recentemente algum material do ponto vista institucionalista inspirado, em parte, pelo trabalho de Karl Polanyi (cf. 2003; 2007a; 2007b; Elardo e Campbell, 2006). Apesar do arrefecimento do debate, continuamos a achar que estas questes e problemticas mantm toda a sua relevncia e actualidade, e que a perspectiva substantivista tem bastante para oferecer - em termos conceptuais e metodolgicos s cincias sociais em geral. A viso substantivista da economia reveste ainda uma importncia maior se pensarmos no crescente clima de descontentamento e de contestao face hegemonia do mercado, quer enquanto viso/paradigma (explicativo) dominante, quer enquanto realidade econmica e social nas sociedades contemporneas. Se pretendermos melhorar o nosso futuro necessrio compreender o passado, algo que actualmente bastante complicado pois a maior parte dos textos contemporneos sobre a histria das doutrinas [econmicas] julgam e classificam os trabalhos do passado de acordo com o grau em que estes antecipam o presente () Deste ponto de vista largamente partilhado, a histria do pensamento econmico torna-se numa crnica de erros e de aproximaes (near-misses), numa espcie de odisseia medida que a disciplina (profession) segue o seu caminho gradualmente em direco Terra Prometida na prtica, a cincia econmica dos ltimos cinquenta anos (Heilbroner, 1979: 192).No entanto, pode-se falar de uma certa predominncia, hoje em dia, da aplicao dos princpios formais, at por causa da sua relevncia para a economia de mercado cada vez mais globalizada na actualidade e, portanto, fornecedora de um paradigma no negligencivel. Alguns autores referem mesmo que os formalistas saram de certa forma vencedores do debate, pois os seus modelos transformaram e incorporaram o pensamento moderno nos modelos clssicos, aproximando-se desse modo de uma maior universalidade (cf. Onorati, 2007: 12). 11 Num dos trabalhos mais interessantes e importantes dos ltimos anos no que concerne polmica substantivismo/formalismo, Elardo (cf. 2003) faz uma apresentao e uma reviso histrica do Grande Debate. O seu argumento que se a estrutura matemtica do modelo formal neoclssico for modificada, de modo a responder a qualquer das trs das principais crticas substantivistas sobre as suas assunes incluso das instituies, escolha no regulada pela escassez, cooperao ao invs de uma aco individual isolada ento a representao do comportamento humano mudar e, com isso, a natureza do paradigma ser fundamentalmente diferente, pelo que j no estaremos na presena do paradigma neoclssico (Elardo, 2003:8-9).10

17

Foi este tipo de concepo que Polanyi procurou combater nas cincias sociais, na histria, na antropologia e na cincia econmica, preconizando, ao invs, uma viso substantiva sobre as economias empricas em todas as disciplinas encarregues do seu estudo. Segundo Karl Polanyi, esta denominada falcia economicista ou mentalidade de mercado que se traduz na identificao automtica da economia com a sua forma de mercado bastante nefasta para um estudo objectivo e rigoroso do lugar ocupado pela economia nas diferentes sociedades do passado, do presente e do futuro. Assim, apenas a perspectiva substantiva capaz de fornecer os instrumentos as lentes, se quisermos adequados para estudar a economia (enquanto processo institudo). Neste captulo debruamo-nos sobre esta perspectiva substantivista preconizada por Polanyi e sobre as suas crticas lanadas ao paradigma formalista. Deste modo, comearemos por abordar brevemente os precursores do Grande Debate no ponto 2.1.2. Depois, analisaremos no ponto 2.2 as perspectivas do prprio Karl Polanyi acerca das duas definies de economia substantiva e formal. No ponto 2.3 trataremos alguns autores no campo da antropologia econmica sobre os quais Polanyi e a sua definio substantiva de economia produziram uma influncia determinante, nomeadamente Hopkins, Fusfeld e Pearson (2.3.1), e George Dalton (2.3.2), o polanyiano por excelncia. Finalmente, no ponto 2.4, apresentaremos brevemente as principais vises do campo formalista (LeClair, Burling, Cook e Cancian). 2.1.2 Os precursores do Grande Debate 2.1.2.1 Bronislaw Malinowski Em geral, a obra de Malinowski considerada na literatura como constituindo o incio da antropologia econmica enquanto disciplina (cf. del Toro, 1999; Elardo, 2003; Hart e Hann, 2006). O valor da mesma ficou a dever-se novidade que representaram na poca as suas investigaes empricas no terreno e ao seu interesse sobre as relaes que se estabelecem entre a economia e os outros aspectos do sistema social (del Toro, 1999: 84; Elardo, 2003: 10).

18

Uma das principais contribuies de Malinowski12 foi a documentao e a anlise que efectuou do sistema de troca que existe entre os habitantes das Ilhas Trobriand, referindo-se a esse sistema como o circuito Kula. Ao descrever o circuito Kula estava interessado em compreender as estruturas institucionais que regulavam a vida primitiva e a economia primitiva. No seu entender, a propenso dos Trobrianders para transferir bens sob a forma de ddivas refuta qualquer ideia acerca de um homem econmico universal. Assim, procurou demonstrar que um sistema complexo de comrcio podia ser organizado sem a existncia de mercados, dinheiro ou estados e na base da generosidade, no da ganncia (Elardo, 2003: 10-11; Hart e Hann, 2006). Em suma, Malinowski desafia a noo de que os povos primitivos se comportam de acordo com os preceitos do homo economicus: Outra noo que deve ser desfeita (exploded), de uma vez por todas, aquela acerca de um Homem Econmico Primitivo () guiado em todas as suas aces por uma concepo racionalista de interesse prprio (). O Trobriander primitivo () contradiz essa teoria falaciosa. Ele trabalha guiado por motivos de natureza social e tradicional altamente complexos, e com vista a objectivos que no esto directamente direccionados para a satisfao das suas necessidades presentes ou para assegurar [quaisquer outros] objectivos utilitrios (Malinowski, 1968: 19). Portanto, o utilitarismo, tal como usado na teoria econmica, no apropriado para a compreenso das caractersticas culturais e institucionais da vida econmica nas Ilhas Trobriand e, por conseguinte, das economias primitivas em geral. As convenes e as restries sociais, bem como os princpios da estrutura social ditam uma boa parte do comportamento econmico dos indivduos (Elardo, 2003: 15; del Toro, 1999: 84-86). A perspectiva de Malinowski reala tanto a importncia social do indivduo como a relevncia das instituies enquanto fora motriz da vida social e econmica. Se alguns autores concordaram com grande parte das ideias de Malinowski, outros criticaram-nas abertamente, pelo que emergiu um debate terico na antropologia econmica no seguimento dos conceitos que empregou nas suas anlises. O debate que, anos depois, nasceria das vises de Malinowski conhecido como o Grande Debate substantivistas vs. formalistas (Elardo, 2003: 15-16).

O autor dedicou grande parte dos seus esforos a analisar os habitantes das Ilhas Trobriand. Destacamse duas obras fundamentais: em Argonauts of the Western Pacific (1922) so estudadas as trocas (exchange), enquanto Coral Gardens and Their Magic (1935) dedicado ao estudo do trabalho, da tecnologia e da propriedade. Para uma sntese das suas principais ideias neste mbito remetemos o leitor para Malinowski (1967a; 1967b; 1968).

12

19

2.1.2.2 Raymond Firth Um dos primeiros autores a criticar Malinowski foi Raymond Firth13, um dos principais responsveis pelo incio do que viria a ser conhecido como a perspectiva formalista na antropologia econmica. Firth discordava do papel atribudo sociedade como fora determinante. Ao invs, o conjunto de aces e relaes que se estabelecem entre os actores individuais que constitui a preocupao de Firth, que pode ser definido como um individualista metodolgico. Neste sentido, encara a teoria econmica mainstream como adequada para servir de base conduo de estudos antropolgicos pois esta descreve as condies universais do comportamento humano em termos econmicos14 (Elardo, 2003: 16-17; Hart e Hann, 2006; del Toro, 1999: 8991).Em suma,

O conceito bsico da cincia econmica a afectao de recursos escassos entre vrias necessidades humanas realizveis, com o reconhecimento das alternativas que so possveis em cada esfera. No importa como definida, a cincia econmica lida com as implicaes das escolhas humanas, com os resultados das suas decises. Escolhas, necessidades e as suas implicaes na aco envolvem relaes pessoais, relaes sociais. Se a antropologia social examina formas de relaes sociais nas sociedades mais primitivas, a cincia econmica examina certos tipos de relaes sociais por exemplo, relaes de produo e de troca em todas as sociedades () Na medida em que a cincia econmica aplica princpios verdadeiramente universais, pode ser mais justificvel cham-la cincia do homem do que antropologia, que pode ser designada como a cincia dos tipos de homens (Firth, 1968: 67). Portanto, ao invs de procurar desenvolver novos princpios econmicos, o antroplogo deve utilizar as ferramentas (universais) existentes e aplic-las a condies sociais e culturais especficas, ou seja, a sua tarefa [dos antroplogos] examinar como esses princpios econmicos funcionam em contextos sociais e culturais especficos. () O problema do antroplogo, portanto, consiste em aplicar ou traduzir os princpios econmicos em novos contextos (Firth, 1968: 65). Podemos concluir que, referindo-se a pessoas escolhendo de acordo com as suas preferncias e permitindo que essas preferncias e constrangimentos possam ser

Firth responsvel, entre outras numerosas contribuies, pela edio da importante obra formalista intitulada Themes in Economic Anthropology (1967). 14 Neste sentido, segundo Hart e Hann (2006), Firth pode ser considerado o primeiro formalista.

13

20

moldados institucionalmente, a cincia econmica neoclssica aplicvel ao problema econmico de qualquer sociedade (Elardo, 2003: 19; del Toro, 1999: 89) Como vimos, existem vrias diferenas importantes entre as ideias de Firth e de Malinowski. Foram essas diferenas que abriram caminho para o debate acrrimo dos anos 50, 60 e 70 no campo da antropologia econmica.

2.2 Karl Polanyi e as definies substantiva e formal da economia 2.2.1 A relao entre a antropologia econmica e os sistemas econmicos comparados Estamos plenamente de acordo com Stanfield, quando afirma que a obra de Polanyi, em traos largos, pode ser descrita como tendo sido motivada por duas preocupaes principais: uma concernente ao problema geral da metodologia e, outra, relacionada com um problema histrico da economia poltica (1986: 26). Com efeito, o trabalho de Polanyi faz parte de um movimento mais vasto, comummente identificado como sociologia econmica. Neste sentido, como nota Harry Pearson: O mpeto para os esforos actuais no sentido de uma sociologia econmica vem do aumento dos problemas empricos encontrados por todos os cientistas sociais que tm de analisar as economias enquanto sistemas sociais. Os problemas levantam-se em duas reas diferentes; aquelas que envolvem economias pr-mercantis e aquelas onde o padro contemporneo de um sistema de mercados auto-regulados enquanto ponto de partida da anlise coloca um problema. As tentativas para lidar sistematicamente com estes problemas empricos distintos convergem num interesse comum: o estabelecimento de uma teoria da organizao econmica e do desenvolvimento genericamente relevante (1957a: 307). O nimo metodolgico de Polanyi, de que nos ocuparemos neste ponto, deriva do seu reconhecimento da afinidade terica fundamental que se estabelece entre a antropologia econmica e os sistemas econmicos comparados. At porque, de acordo com Dalton: Uma das peculiaridades da antropologia econmica que nem os factos nem as vises sobre a vida econmica primitiva esto em falta. O registo etnogrfico enorme e detalhado. O que falta uma abordagem terica til, capaz de organizar as muitas referncias descritivas [da realidade] (1968a: xxxviii).

21

Assim, uma teoria para a antropologia econmica possvel apenas se o programa de investigao das economias sociais primitivas e arcaicas for visto como fazendo parte dos sistemas econmicos comparados. As caractersticas diferenciadoras de um sistema socioeconmico emergem apenas mediante uma anlise comparativa que possibilite a especificao das peculiaridades de um determinado sistema por oposio quelas dimenses que partilha com outras formaes socioeconmicas (Stanfield, 1986: 27-28; Stanfield, 1990: 199). A anlise comparada de vrios sistemas revela as diferenas histricas e organizacionais crticas, assim como o perigo de sucumbir armadilha metodolgica do etnocentrismo, negligenciando-se a relatividade cultural de um modo considervel. Isto porque: Apenas escutando as vozes do passado no mbito dos seus prprios contextos sociais e polticos, e dando [o respectivo] crdito s suas intenes e s verdades tais como eram percepcionadas independentemente do facto de gostarmos ou no de escutar o que elas disseram e daquilo em que acreditavam poderemos aproximarmo-nos de uma compreenso do que realmente aconteceu, embora as nossas respostas sejam parciais e provisrias (Knowles, 2000: 30). Podemos afirmar que h muito para ser aprendido atravs da comparao das economias sociais primitivas e modernas se a hiper simplificao e a negligncia dos contextos culturais concretos forem evitadas. Polanyi percepcionou no apenas a necessidade de tratar a antropologia econmica como um componente dos sistemas econmicos comparados mas, igualmente, a importncia da antropologia econmica para os prprios sistemas econmicos comparados (Stanfield et al., 2006: 245). Especificamente, o autor encontrou um defeito vital na metodologia destes, que esto primria e excessivamente preocupados com as comparaes organizacionais das economias industriais modernas, efectuadas em termos de modelos formais economizadores de mercado (Stanfield, 1986: 31). Polanyi procurou ultrapassar esta viso limitada atravs do estabelecimento de uma ligao entre a histria econmica e a antropologia social. A histria econmica das economias pr-capitalistas constitui portanto uma rea vital para a comparao de sistemas econmicos, pois a negligncia da dimenso histrica e da totalidade cultural do comportamento humano reconhecida como uma limitao central da abordagem formal (Stanfield, 1980: 596; Stanfield, 1990: 199-200). Alis, a ateno dos economistas tem-se centrado naqueles aspectos da nossa economia menos provveis de serem encontrados nas economias primitivas que

22

interessam ao antroplogo. A ubiquidade da noo prevalecente de um comportamento econmico calculista e orientado para o ganho especialmente importante neste mbito. Polanyi previu que esta estreiteza da teoria econmica poderia ser superada apenas atravs da disponibilidade de uma base emprica mais alargada para essa teoria, e que a integrao da antropologia econmica, da histria econmica, e dos sistemas econmicos comparados numa histria econmica geral ou universal bastante compreensiva constitua o caminho para se alcanar essa base emprica mais alargada (Stanfield, 1986: 32-33). 2.2.2 Os dois significados da economia Com vista a desenvolver estas preocupaes metodolgicas o autor distinguiu frequentemente entre dois significados para o termo economia. Como refere Polanyi: Um simples reconhecimento, do qual devem partir todas as tentativas de clarificao do lugar ocupado pela economia (economy) na sociedade, o facto do termo econmico (economic) como usualmente utilizado para descrever um tipo de actividade humana ser um compsito de dois significados. Estes possuem origens separadas, independentes uma da outra (1977b: 19). Assim, o significado substantivo deriva da dependncia do homem relativamente Natureza e aos seus congneres para assegurar a sua sobrevivncia, ou seja, refere-se ao intercmbio com o seu ambiente natural e social mediante o qual lhe so fornecidos os elementos necessrios para a satisfao das suas necessidades materiais (Polanyi, 1968a: 139; Knowles e Owen, 2007: 180). Aponta para o facto elementar de que os seres humanos, tal como todos os outros seres vivos, no podem existir por qualquer perodo de tempo sem um ambiente fsico que os sustenha (Polanyi, 1977b: 19). Por seu turno, o significado formal deriva do carcter lgico da relao meios/fins, referindo-se a uma determinada situao de escolha, nomeadamente aquela entre diferentes usos possveis de um conjunto de meios induzida por uma insuficincia desses mesmos meios (Polanyi, 1968a: 140; Knowles e Owen, 2007: 179). Deste sentido deriva a definio de escassez da cincia econmica, que trataremos em detalhe no ponto 2.2.4. Nele encontra-se subjacente o verbo maximizar, ou economizar, i.e., fazer o melhor possvel com os meios que se possui (Polanyi, 1977b: 20). Os dois significados de economia no possuem nada em comum. Enquanto o formal resulta da lgica, o substantivo resulta dos factos; as regras do primeiro so as da mente, as do segundo so as da natureza. O significado substantivo no implica nem

23

escolha(s), nem uma insuficincia dos meios; a subsistncia (livelihood) do homem pode ou no envolver a necessidade de escolha e, mesmo na sua presena, esta no tem de ser, forosamente, induzida pelos efeitos limitativos de uma escassez dos meios. (Polanyi, 1968a: 140). Em suma, como j mencionmos, o homem sobrevive em virtude de uma interaco institucionalizada que se estabelece entre ele prprio e o ambiente natural que o rodeia. Este processo corresponde economia (economy), que lhe fornece os meios para satisfazer as suas necessidades materiais. Mas, Polanyi chama ateno para o facto de que as necessidades a serem satisfeitas no so exclusivamente corporais (bodily), tais como a alimentao ou a habitao () pois tal restringiria absurdamente a esfera (realm) da economia (Polanyi, 1977b: 20). Procurando ultrapassar uma viso redutora decorrente de uma certa ambiguidade semntica, o autor afirma mesmo que os meios, no as necessidades, so materiais. Quer se trate de objectos teis que so requeridos para evitar a fome ou que so necessrios para fins educativos, militares ou religiosos irrelevante. Enquanto as necessidades dependerem de objectos materiais para a sua satisfao, a referncia econmica (Polanyi, 1977b: 20). Neste sentido, estudar a sobrevivncia (livelihood) humana , para Polanyi, estudar a economia no sentido substantivo do termo. Apenas este significado capaz de providenciar os conceitos requeridos pelas cincias sociais para uma investigao de todas as economias do passado e do presente. Com efeito, o principal obstculo encontrado prende-se com a utilizao de um conceito de economia que junta os dois sentidos de forma ingnua, fundindo-se os significados de subsistncia e de escassez sem se perceber os perigos que isso representa para um pensamento claro e compreensivo da realidade (Polanyi, 1968a: 140-141). O que se passa que ligar a satisfao das necessidades materiais escassez e ao acto economizador, fundindo-os num nico conceito, pode parecer justificvel e razovel sob um sistema de mercado, onde e quando prevalece. Contudo, aceitar este conceito composto de meios materiais escassos e de economizao como um genericamente vlido aumenta a dificuldade em se conseguir desalojar a falcia economicista (economistic fallacy) da posio estratgica que ainda ocupa no pensamento contemporneo (Polanyi, 1977b: 20).

24

Deste modo, antes de passarmos em revista os principais conceitos/postulados do paradigma formalista e as crticas que lhes so formuladas por Polanyi (ponto 2.2.4) e de elaborarmos mais detalhadamente as perspectivas da definio substantiva (ponto 2.2.5) que segundo Polanyi constituem um novo ponto de partida em termos metodolgicos para as cincias sociais (que estudam a economia) veremos no ponto seguinte aquilo em que consiste esta falcia economicista e como o surgimento histrico da economia de mercado acabou por contribuir decisivamente para a mesma, produzindo na prtica uma identificao entre a economia realmente existente e a definio formal de economia. 2.2.3 A falcia economicista Em poucas palavras, a falcia economicista (economistic fallacy) consiste na identificao artificial da economia com a sua forma de mercado (Polanyi, 1968a: 142). A falcia em si mesma bem evidente: o aspecto fsico das necessidades do homem parte integrante da condio humana; nenhuma sociedade pode existir que no possua algum tipo de economia substantiva. O mecanismo oferta/procura/preo, por outro lado (a que normalmente se chama de mercado), uma instituio relativamente moderna com uma estrutura especfica. Assim, cingir a esfera do econmico especificamente aos fenmenos de mercado eliminar a maior parte da histria humana de cena. Por outro lado, alargar o conceito de mercado at que abranja todos os fenmenos econmicos investir artificialmente todas as coisas econmicas com as caractersticas peculiares que acompanham o fenmeno do mercado (capitalista) [Polanyi, 1977a: 6; Knowles e Owen, 2007: 186-187]. Podemos afirmar que a economia de mercado criou um novo tipo de sociedade. O sistema produtivo ou econmico passou a estar entregue nas mos de um aparelho automatizado (self-acting), i.e., um mecanismo institucionalizado controla os seres humanos nas suas actividades quotidianas assim como os recursos naturais (Polanyi, 1968b: 62). Neste sentido, emergiu uma esfera econmica que est perfeitamente delimitada das outras instituies da sociedade. Uma vez que nenhum agregado humano pode sobreviver sem um aparelho produtivo funcional, a sua corporizao (embodiment) numa esfera distinta e separada produziu o efeito de tornar o resto da sociedade dependente desta esfera () Como resultado, o mecanismo de mercado tornou-se num factor determinante para a vida do corpo social. No admira que a agregao humana

25

emergente corresponda a uma sociedade econmica num grau nunca antes visto (Polanyi, 1968b: 63). Os motivos econmicos reinam ento de um modo supremo num mundo que lhes familiar, e o indivduo levado a agir de acordo com eles sob pena de ser esmagado pelo mercado reinante. Tal converso forada a uma viso utilitarista moldou de forma profunda a compreenso do homem ocidental acerca de si mesmo. Em suma, se em todas as sociedades do passado a economia se encontrava incrustada (embedded) na sociedade, i.e., no constitua uma esfera autnoma, no presente, pelo contrrio, encontramos uma sociedade inteira incrustada no mecanismo da sua prpria economia uma sociedade de mercado15. A identificao logicamente falaciosa dos fenmenos econmicos com os fenmenos de mercado tornou-se quase num requisito prtico com a emergncia da nova sociedade e do seu modo de vida nascido dos primrdios da Revoluo Industrial (Polanyi, 1977a: 9). Neste sentido, o que designmos por falcia economicista foi [] um erro essencialmente do ponto de vista terico. Isto porque, para todos os efeitos prticos, a economia consiste agora de facto em mercados e o mercado envolve de facto a sociedade (Polanyi, 1977a: 9). Por conseguinte, a relevncia da viso economicista prendeu-se precisamente com a sua capacidade para dar origem a uma unidade de motivaes e valoraes que criaria na prtica o que preconizou como ideal, nomeadamente a identidade do mercado e da sociedade16, ou seja, esta denominada mentalidade de mercado continha [nada menos do que] a semente de toda uma cultura com todas as suas possibilidades e limitaes e a viso interior do homem e da sociedade induzidas pela vida numa economia de mercado derivaram de seguida necessariamente da

Voltaremos a abordar mais detalhadamente a questo da (des)incrustao da economia e o processo de desenvolvimento da economia de mercado capitalista no 4 captulo. 16 Devemos notar a proximidade que se estabelece entre estas afirmaes de Polanyi e o conceito conhecido hoje em dia como performatividade. Podemos definir sucintamente a performatividade como o poder que o (prprio) discurso possui para produzir na prtica determinados fenmenos (cf. Austin, 1962). Michel Callon (cf. 1998), por exemplo, tem proposto o estudo dos aspectos performativos da cincia econmica, na medida em que considera que a mesma desempenha um papel importante no apenas na descrio dos mercados e das economias mas, igualmente, no seu enquadramento prtico, i.e., influenciando directamente o funcionamento real das economias e o comportamento dos seus agentes. Por outras palavras, a economia (economics) intervm na realidade e constri os mercados atravs de uma interaco directa com as realidades humanas e tcnico-sociais e com as suas inter-relaes. Para uma ilustrao emprica da performatividade sugerimos o interessante trabalho realizado por Garcia-Parpet (cf. La Construction Sociale dun March Parfait: le Marche au Cadran de Fontaines-en-Sologne [1986], Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 65, pp. 2-13).

15

26

estrutura fundamental de uma comunidade humana organizada atravs do mercado (Polanyi, 1977a: 10). Pensamos que estar agora bem claro que a combinao dos dois significados de economia e, em particular, o predomnio da definio formal, foram originados por condies especficas e especiais: os ltimos dois sculos produziram na Europa Ocidental e na Amrica do Norte uma organizao singular da vida/sobrevivncia do homem, sendo que esta forma de economia (economy) consiste num sistema de mercados formadores de preos (price-making markets). Dado que neste sistema os actos de troca envolvem os participantes em escolhas induzidas por uma insuficincia de meios, este sistema foi reduzido a um padro passvel de ser objecto da aplicao dos mtodos baseados no significado formal da economia. Por outras palavras, enquanto a economia for controlada por este sistema, os significados formal e substantivo coincidem na prtica. Desta forma, no parecem haver razes vlidas para distinguir entre dois sentidos de um termo que esto destinados a coincidir na prtica - isto, quando aplicados nossa prpria economia [de mercado], claro est (Polanyi, 1968a: 141; Polanyi, 1977a: 10-11). Contudo, esta fuso num nico conceito prejudicial para uma metodologia precisa nas cincias sociais. O antroplogo, o socilogo ou o historiador ao estudarem o lugar ocupado pela economia nas sociedades humanas so confrontados com uma grande variedade de instituies para alm do(s) mercado(s), nas quais a subsistncia (livelihood) do homem est incrustada. Desta maneira, os seus problemas no podem ser enfrentados com a ajuda de um mtodo analtico desenvolvido para uma forma especial de economia, dependente da presena de elementos especficos de mercado (Polanyi, 1968a: 141). No ponto seguinte analisaremos as principais crticas lanadas por Polanyi ao mtodo/perspectiva formalista. 2.2.4 O paradigma formalista: racionalidade meios/fins e escassez Polanyi examina os conceitos formais a partir da maneira como a lgica da aco racional produz a cincia econmica formal e como esta, por sua vez, d origem anlise econmica (economic analysis). A aco racional pode ser definida como a escolha de meios em relao aos fins a atingir, ou seja, refere-se relao dos meios com os fins. Assumindo que a escolha induzida por uma insuficincia dos meios, a

27

lgica da aco racional transforma-se naquela variante da teoria da escolha que Polanyi designa por cincia econmica formal (formal economics) [Polanyi, 1968a: 142; Berthoud, 1990: 175]. Assim, a cincia econmica formal reporta-se ao chamado postulado da escassez. Requer, em primeiro lugar, uma insuficincia dos meios e, em segundo, que a escolha seja induzida por essa insuficincia () Para que a insuficincia induza a escolha necessrio que exista mais do que um uso para os meios, assim como uma hierarquizao (grading) dos meios, i.e., pelo menos dois meios ordenados numa sequncia preferencial (Polanyi, 1968a: 143). Ora, tendo definido a escolha, a insuficincia e a escassez em termos operacionais, fcil constatar, segundo Polanyi, que tal como pode existir escolha de meios sem insuficincia, pode igualmente haver uma insuficincia de meios sem escolha (Polanyi, 1968a: 144). A escolha pode ser induzida por uma preferncia do bem face ao mal escolha moral ou pode consistir numa encruzilhada (por exemplo, dois caminhos que conduzem ao mesmo destino) escolha operacional. De qualquer maneira, uma abundncia de meios, longe de diminuir as dificuldades de escolha, pelo contrrio, aumenta-as (Polanyi, 1977b: 25; Ankarloo, 1999: 2). Por outro lado, a escassez pode ou no estar presente nas diversas sociedades humanas. Com efeito, em algumas civilizaes as situaes de escassez parecem ser uma situao quase excepcional, enquanto noutras parecem estar dolorosamente generalizadas (Polanyi, 1968a: 144). Chegamos desta forma anlise econmica, disciplina que resulta da aplicao da cincia econmica formal a uma economia (economy) de um determinado tipo um sistema de mercado. Aqui a economia est corporizada (embodied) em instituies que fazem com que as escolhas individuais originem movimentos interdependentes que constituem o processo econmico, sendo isto alcanado mediante o uso generalizado de mercados formadores de preos (Polanyi, 1968a: 144). Desta forma, a introduo generalizada do poder de compra como meio de aquisio converte o processo de satisfao das necessidades numa afectao (allocation) de meio(s) insuficiente(s) com usos alternativos, nomeadamente, o dinheiro (Polanyi, 1977b: 28-29). Segue-se que tanto as condies de escolha como as suas consequncias so quantificveis sob a forma de preos (Polanyi, 1968a: 144-145). Deste modo, hoje em dia, est perfeitamente instalada a crena universal de que no existe o suficiente de coisa alguma, por vezes assumindo a forma de uma proposio acerca da natureza limitada da oferta, noutras a de um postulado acerca da natureza ilimitada das necessidades individuais (Polanyi, 1977b: 29). Em qualquer dos casos, 28

trata-se de asseres dogmticas que cobrem uma definio arbitrria e uma circunstncia histrica especfica: Uma vez estando o ser humano circunscrito ao indivduo no mercado, as proposies so fceis de substanciar. Dos seus desejos e necessidades apenas interessam aqueles que o dinheiro pode satisfazer atravs da compra das coisas que so oferecidas nos mercados; os desejos e as necessidades so eles prprios restringidos queles dos indivduos isolados. Assim, por definio, nenhuns desejos nem necessidades para alm daqueles satisfeitos pelo mercado so reconhecidos, e nenhuma pessoa que no o indivduo em isolamento aceite como ser humano17 (Polanyi, 1977b: 29). Neste contexto, qualquer discusso acerca da natureza dos desejos e das necessidades humanas em geral perde toda a sua substncia pois, como fcil constatar, o que est aqui a ser testado no natureza das necessidades humanas mas apenas a descrio de um quadro de mercado enquanto situao de escassez (Polanyi, 1977b: 29). No que se refere ao homem, o paradigma racional/formal preconiza a viso de que os seus motivos podem ser descritos como materiais ou ideais e que os incentivos mediante os quais a vida quotidiana organizada derivam necessariamente dos motivos materiais, em particular, da fome e do (desejo de) ganho os motivos econmicos por excelncia (Polanyi, 1977a: 11; Berthoud, 1990: 174). Contudo, este mundo de motivos econmicos baseado numa falcia dado que, intrinsecamente, a fome e o ganho no so mais econmicos do que o amor ou o dio, o orgulho ou o preconceito. Nenhum motivo humano por si s econmico. O que fez a sociedade, a partir do sc. XIX, encarar a fome e o ganho como econmicos foi simplesmente a organizao da produo sob uma economia de mercado (Polanyi, 1968b: 63; Block e Somers, 1984: 63). No mbito deste sistema, se o homem pretender sobreviver, compelido a comprar bens no mercado com a ajuda de um rendimento derivado da venda de outros bens (ou

Na sequncia do que foi apresentado nos ltimos pargrafos, note-se que Schumpeter, por exemplo, considera positivo e at desejvel este carcter ilimitado das necessidades humanas. Isto porque, se se atingisse um estado de plena saciedade o capitalismo sendo um processo evolutivo caminharia para um estado estacionrio atrfico dado no haver motivos para continuar a desenvolver as capacidades produtivas. Tal, contudo, pouco provvel uma vez que medida que so alcanados padres de vida mais elevados as necessidades se expandem automaticamente, emergindo ou sendo criadas novas necessidades estas acabam por ser, quase por definio, insaciveis. Assim, o permanente surgimento de novas necessidades e, por via destas, de novos produtos estimula as mudanas nas estruturas produtivas. Estamos na presena da denominada heterogonia de objectivos, i.e., a contnua fixao de novos objectivos obedecendo a uma lgica de conflito e de competio (agn) entre os vrios indivduos (hetero) possibilita o funcionamento saudvel da sociedade capitalista (cf. Schumpeter, 1992: 131; Graa, 1995: 27-28).

17

29

do seu trabalho) no mercado. Obviamente, o sistema funciona apenas se os indivduos possurem razes para se empregarem numa actividade com vista obteno de um rendimento. Os motivos da fome e do ganho separada e conjuntamente providenciam-lhe essas razes. Estes dois motivos so ento acoplados produo e, consequentemente, so denominados como econmicos. A assuno de que a fome e o ganho so os incentivos nos quais se baseiam qualquer sistema econmico no entanto completamente infundada pois, ao analisarmos as mais variadas sociedades humanas, verificamos que, por vezes, a fome e ganho no constituem incentivos produo e, noutras, esto fundidos com outros motivos poderosos (Polanyi, 1968b: 6465; Berthoud, 1990: 174; Block e Somers, 1984: 63-64). Isto porque Aristteles tinha razo: o homem no um ser econmico mas sim um ser social. Ele no procura salvaguardar o seu interesse pessoal com a aquisio de bens materiais mas, ao invs, procura assegurar o bem-estar social, um estatuto social e benefcios (assets) sociais. Ele valoriza as posses primariamente enquanto um meio que lhe permite atingir esses fins. Os seus incentivos possuem um carcter combinado com vista tentativa de garantir a aprovao social os esforos produtivos no so mais do que incidentais para tal. Isto porque a economia humana est, em regra, submersa nas suas relaes sociais. A mudana para um tipo de sociedade que est, pelo contrrio, submersa no sistema econmico um desenvolvimento inteiramente novo (Polanyi, 1968b: 65). No campo da antropologia, Malinowski e Thurnwald demonstraram que, no que toca ao homem primitivo, no h quaisquer evidncias nem de um egosmo cru, nem da pretensa propenso para a troca e para a barganha, bem pelo contrrio. A sua posio na sociedade e o seu direito a parte dos recursos comuns estavam-lhe plenamente assegurados, qualquer que tivesse sido o seu papel desempenhado na caa, no pastoreio, etc. De facto, o indivduo no se encontra ameaado pela fome a no ser que a comunidade no seu todo tambm esteja em situao semelhante. O mesmo se aplica ao estmulo do ganho individual, sendo uma caracterstica distintiva da economia primitiva a ausncia de qualquer desejo de obter lucros da produo e da troca, no funcionando o ganho como um impulso para trabalhar. Se estes chamados motivos econmicos fossem naturais no homem, teramos de julgar todas as sociedades primitivas e antigas como sendo profundamente no naturais (Polanyi, 1968b: 65-66). Daqui se deduzem os limites dentro dos quais a anlise econmica prova ser um mtodo eficaz. O uso do significado formal denota a economia como uma sequncia de

30

actos economizadores, i.e., de escolhas induzidas por situaes de escassez. Ora, a aplicabilidade dessas regras