Tese D Soares Silveira - Versão Final Unific
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UNIVERSIDADE DE BRASLIA
INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
REDES SOCIOTCNICAS, PRTICAS DE CONHECIMENTO E ONTOLOGIAS NA AMAZNIA:
traduo de saberes no campo da biodiversidade
Diego Soares da Silveira
Braslia
2011
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REDES SOCIOTCNICAS, PRTICAS DE CONHECIMENTO E ONTOLOGIAS NA AMAZNIA:
traduo de saberes no campo da biodiversidade
Diego Soares da Silveira
Orientadora: Marcela S. Coelho de Souza
Co-Orientador: Paul E. Little
Tese apresentada ao Departamento de Antropologia da Universidade de Braslia, no dia 4 de agosto de 2011, como um dos requisitos para obteno do ttulo de Doutor em Antropologia.
Banca Examinadora: Prof Dr Claudia Williams Fonseca UFRGS Prof Dr Mauro Williams Barbosa de Almeida UNICAMP Prof Dr Henyo Trindade Barreto Filho IIEB Prof Dr Guilherme da Silva e S - UNB Suplente: Prof Dr Carlos Emanuel Sautchuk - UNB
Braslia 2011
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DEDICATRIA
Em memria da minha me, Vernica,
pelo exemplo de engajamento e luta; e
ao meu av, Alvarim Soares, que sabia
escutar e tocar os sons dos pssaros.
Ao meu pai, Hugo Silveira, pelo apoio e
pelos ensinamentos
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AGRADECIMENTOS
Um texto no resulta de um autor, muito menos de uma criatividade individual. No
poderia ser diferente com esta tese, forjada a partir de uma jornada que teve incio na
graduao, passando pelo mestrado e doutorado. Nessa trajetria, apreendi a valorizar o
trabalho dirio, rigoroso e minucioso; a crtica reflexiva e o esprito inquieto; o compromisso
com a tica; e o engajamento poltico. Devo esse aprendizado aos professores, colegas,
amigos, familiares e funcionrios da universidade que me acompanharam durante esse
perodo. Sem a presena dessas pessoas este trabalho no teria sido possvel.
Gostaria de agradecer, inicialmente, aos professores e funcionrios do Programa
de Ps-Graduao em Antropologia da UNB, que me acolheram com cordialidade e ateno
durante os ltimos cinco anos. Esta tese , em parte, o resultado do ambiente agradvel e
instigante que encontrei em seminrios e outros eventos acadmicos, onde tive a
oportunidade de trocar conhecimentos e reflexes com colegas e professores. Em especial,
gostaria de agradecer s funcionrias Rosa Cordeiro e Adriana Sacramento pela simpatia e
ateno que sempre dispensaram s minhas demandas; e aos professores Lus Roberto
Cardoso de Oliveira, Mariza Peirano, Ellen e Klas Woortman, Gustavo Lins Ribeiro, Lia
Zanotta Machado, Kelly da Silva, Soraya Fleischer, Antondia Borges, Patrice Schuch, Jos
Jorge de Carvalho, Daniel Simio, por comentrios e contribuies feitas no mbito de
disciplinas, reunies e seminrios do DAN. Agradeo tambm aos membros do Laboratrio
de Antropologia da Cincia e da Tcnica (LACT/UnB) por contribuies dadas a esta tese,
em especial, aos professores Guilherme da Silva e S e Carlos Sauchuk
Um agradecimento especial ao Prof. Paul E. Little pelas contribuies dadas ao
projeto de doutorado e tese, inicialmente como orientador e posteriormente na funo de
co-orientador. A simpatia, disposio e cordialidade em que recebeu a proposta de
realizao desta pesquisa e o apoio e dedicao ao aprimoramento e a interlocuo de
algumas idias, teorias e conceitos presentes aqui, foram fundamentais para a concepo e
execuo deste projeto.
Agradeo Prof. Marcela Coelho de Souza, que recebeu com entusiasmo a
proposta desta tese. Obrigado pela ateno dispensada durante todo o perodo de pesquisa
de campo e escrita, principalmente, pelas dicas e sugestes generosamente dadas durante
nossas reunies de orientao, que certamente contriburam muito para aprimorar algumas
idias apresentadas aqui. O encontro entre a antropologia da cincia e a etnologia no teria
sido possvel sem a sua abertura ao dilogo em torno de questes que perpassam esses
dois campos disciplinares.
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Gostaria de agradecer aos colegas da turma de doutorado (2007), em especial, a
Andr Gondim, Snia Hamid, Roderlei Ges, Gersem Santos Luciano, Odilon Morais,
Roberta Salgueiro e Luciene Dias; e aos colegas de katakumba, em especial a Danielli
Jatob, Andria Otero, Josu de Castro, Alda Souza, Yoko Nitahara, Adolfo Neves,
Alexandre Aquino, Marcelo Tadvald, Diogo Pereira, Eduardo Nunes, Carlos Sautchuk, Lena
Tosta, Tas Garone, Rosana Santos, Marcus Garcia, Rodrigo Medeiros, Lusa Molina, Aina
Azevedo, Moiss Lopes, Gonzalo Crovetto, Eduardo Di Deus, Diogo Goltara, Mrcia de
Castro, Carlos Alexandre dos Santos e Antnio Jnior.
Agradeo recepo e hospitalidade dos amigos que me acolheram com carinho
em Braslia, em especial a Marco, Mateus, Denis, Ronaldo, Gabriel, Bebel, Mauro,
Guilherme e Andr. Tenho certeza que a companhia de vocs contribuiu para tornar a minha
estadia no planalto central mais agradvel.
Agradeo aos membros e equipe tcnica do Conselho de Gesto do Patrimnio
Gentico (CGEN), que abriram as portas (e o arquivo) desta instituio, permitindo a
realizao do trabalho. Especialmente, aos colegas antroplogos Alessandro e Daniele
Pires, por terem facilitado e apoiado a minha insero no Departamento de Patrimnio
Gentico. Espero que esta tese contribua minimamente para a difcil tarefa de buscar pensar
e colocar em prtica um novo marco regulatrio na rea do patrimnio gentico e dos
conhecimentos tradicionais associados.
Meus agradecimentos especiais aos professores, funcionrios e alunos do Curso
de Cincias Farmacuticas da UFAM, em especial ao professor Emerson Silva Lima e a
diretora Maria Menezes, que aceitaram e apoiaram com entusiasmo a proposta da pesquisa.
Esta tese uma tentativa sincera de contribuir para uma rea extremamente importante
para o desenvolvimento social e cientfico do nosso pas, como a pesquisa sobre plantas
medicinais. Espero, sinceramente, que a nossa interlocuo seja apenas o incio de uma
colaborao mais duradoura entre antroplogos e farmaclogos em torno de iniciativas
multidisciplinares como a que foi descrita nesta tese.
Gostaria de agradecer aos pesquisadores do Instituto Socioambiental, em especial
a Geraldo Andrello, Ludivine Eloy, Adelson Lopes da Silva, Laise Diniz, Andr Martini,
Gustavo Pinheiro, Carla Dias, Alosio Cabalzar e Melissa Oliveira, pela recepo e ateno
que deram a esta proposta. Sem o apoio e a interlocuo de vocs a realizao deste
trabalho no teria sido possvel.
Em especial, gostaria de agradecer a inestimvel orientao e colaborao de
Laure Emperaire na banca de qualificao. As suas observaes sobre o projeto e dicas
bibliogrficas foram fundamentais para o aprimoramento das idias apresentadas aqui.
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Agradeo tambm Janet Chernela, a quem tive a oportunidade de conhecer nesse
percurso, pela interlocuo e pelas orientaes bibliogrficas na rea de etnologia do ARN.
Agradeo s lideranas indgenas da FOIRN e da OIBI, em especial a Abraho
Frana, Maximiliano Menezes, Luiz Brazo, Irineu Rodrigues, Erivaldo Cruz e Mario Farias,
membros da diretoria que autorizaram a realizao desta pesquisa e contriburam para
viabiliz-la. Tambm agradeo o apoio de Andr Baniwa, vice-prefeito de So Gabriel da
Cachoeira que acolheu com bons olhos esta iniciativa. Espero que esta tese possa contribuir
minimamente para a luta dos povos indgenas do Alto Rio Negro. Um agradecimento
especial aos agricultores indgenas Direto da Roa e aos pesquisadores Armindo Brazo,
Moises da Silva, Laurentino Pereira e Maria Aparecida Hilrio. Agradeo os ensinamentos e
as conversas com o Mestre Luiz Laureano, chefe da Maloca do Conhecimento da
comunidade Itacoatiara Mirim. Sem o apoio e colaborao de vocs uma parte importante
desta tese no teria sado do papel.
Um agradecimento especial aos ribeirinhos que me acolheram durante o perodo
que permaneci na comunidade Nossa Senhora de Nazar, em especial coordenadora
Analza, ao mateiro Francisco Cavalcante, ao curandeiro Adeilton e ao senhor Manuel. Serei
sempre grato por vossa orientao, hospitalidade e amizade.
Agradeo aos amigos, Gacho, Gergia e Bruno pela recepo e hospitalidade
durante o perodo em que permaneci em So Gabriel da Cachoeira. Espero um dia poder
contribuir a vossa simpatia, amizade e cordialidade.
Gostaria de agradecer aos meus sogros, Paulo Silva e Denise Dias, pelo apoio e
parceria inestimvel durante os ltimos anos dessa jornada. Fico muito feliz em t-los
presente em um momento to importante.
Agradeo o apoio e a amizade dos familiares, especialmente ao meu pai, Hugo
Silveira, que sempre esteve ao meu lado, com seus ensinamentos e valores ticos
associados boa conduta e dedicao ao trabalho; minha av Mara por ter suportado os
momentos de ausncia nos ltimos anos; minha tia Viviane, por estar ao meu lado neste
momento importante; e aos meus irmos, Valria, Nina, Moises, Hugo, David e Rodrigo,
pelas alegrias que vivemos juntos. Apesar da distncia, vocs nunca deixaram de habitar o
meu pensamento. No importa por onde ande, somente retornando para casa que
encontro a minha morada primordial.
Palavras certamente no so suficientes para descrever o apoio e a parceria
inestimvel da companheira (e colega de trabalho) Cristina Dias, que esteve ao meu lado
nos ltimos anos, vivendo as emoes de uma jornada dupla, j que experimentamos juntos
este momento to importante em nossas vidas. Sem o teu apoio, carinho e compreenso
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esta tese no teria se materializado. Agradeo tambm pela reviso da redao e dos
detalhes finais do texto e por ter suportado com alegria as aventuras que tornaram este
trabalho possvel. Contigo, apreendi a tirar o melhor que a vida pode oferecer: alegria,
generosidade; mas tambm a pacincia e a perseverana de continuar lutando pelos ideais
que acreditamos. Nos ltimos anos, plantamos algumas sementes importantes que
certamente teremos a oportunidade de colher os frutos no futuro. Obrigado por tudo!
Agradeo a bolsa concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientfico e Tecnolgico (CNPq) durante o curso de doutorado, sem a qual este trabalho no
teria sido vivel. Esta tese , em parte, o resultado do apoio governamental pesquisa, ao
ensino pblico e de qualidade e ao desenvolvimento tecnolgico, iniciativa fundamental para
a ampliao da cidadania e do bem estar humano e social.
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RESUMO
A partir da dcada de 1990, o governo brasileiro signatrio da Conveno sobre
Diversidade Biolgica - deu incio a um debate poltico em torno da elaborao de um novo marco regulatrio na rea de pesquisa e bioprospeco dos recursos genticos e dos chamados conhecimentos tradicionais associados, tendo como objetivo o estabelecimento de relaes mais equitativas entre pesquisadores, empresas e outros setores da sociedade. Nesta tese, partindo de uma abordagem da antropologia da cincia, busquei analisar a relao entre pesquisadores da rea de biodiversidade e os coletivos locais diretamente envolvidos em seus projetos no mbito do contexto histrico da regulamentao. Para isso, selecionei duas iniciativas autorizadas pelo governo para acompanhar em campo: um projeto de bioprospeco desenvolvido por uma rede de laboratrios de farmacologia da Universidade Federal do Amazonas, que tem como objetivo a produo de fitoterpicos a partir de plantas medicinais e conhecimentos coletados em uma comunidade ribeirinha; e duas pesquisas realizadas a partir de uma parceria entre a ONG Instituto Socioambiental e a Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro uma delas sobre a agrobiodiversidade em So Gabriel da Cachoeira e a outra sobre paisagens ecolgicas entre os ndios Baniwa do rio Iana ambas inseridas em um Programa Regional de Desenvolvimento Sustentvel. A partir de uma abordagem etnogrfica inspirada na Teoria Ator-Rede, acompanhei o ciclo de produo cientfica que vai das expedies s centrais de clculo onde os objetos das pesquisas so delineados, analisados e sistematizados, descrevendo as prticas de conhecimento dos coletivos envolvidos nessas iniciativas, com nfase na circularidade entre os pressupostos ontolgicos e os aparelhos usados para evoc-los no contexto da comunidade e do laboratrio. Durante essa jornada, analisei a forma como as prticas de conhecimento entram em relao nas redes sociotcnicas a partir do trabalho de ordenao realizado pelos atores, desenvolvendo uma reflexo sobre a traduo de saberes no campo da biodiversidade luz da perspectiva da habitao e da multiplicidade ontolgica. Palavras-Chave: Antropologia da Cincia; Biodiversidade; Conhecimentos Tradicionais Ambientais; Teoria Ator-Rede; Redes Sociotcnicas; Prticas de Conhecimento; Multiplicidade Ontolgica; Traduo; Amaznia.
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ABSTRACT
In the 1990th, the Brazilian government - a member-signatory of the Convention on
Biological Diversity - started a political debate on a new legal framework to regulate research and bioprospecting of "genetic resources" and associated traditional knowledge, including the implementation of new guidelines for the establishment of more equitable relationships between researchers, companies and other sectors of society. In this thesis, based on the approach of the science studies, I sought to examine the relationship between researchers working in the field of biodiversity and local collectives directly involved in their projects, having as reference the historical context of the political and ethical regulation. I selected two initiatives authorized by the government to follow in the field. A bioprospecting project developed by a network of pharmacology laboratories located in the Federal University of Amazonas, aiming the production of herbal medicines from medicinal plants and traditional knowledge collected in a riverside community. And two researches developed from a partnership between an environmental NGO and an indigenous organization - one about agrobiodiversity and the other on ecological landscapes among the Baniwa Indians - both part of a Regional Program on Sustainable Development. Based on an ethnographic approach inspired by the "Actor-Network Theory" and political ontology, I followed the cycle of scientific production that start in scientific expeditions and ends in the centers of calculation where the scientists conceive and analysis their objects of research. During this journey, I described the knowledge practices of the different groups involved in these initiatives, with an emphasis on the interplay between ontological assumptions associated with plants and places, the equipments used to evoke them, and the way these practices relate to each other in the socio-technical networks. Along the way, I examine the translation of knowledge in the field of biodiversity in the light of the historical context of legal regulation, with reference to the ontological multiplicity and the dwelling perspective that permeates both scientific and indigenous knowledge. This translation involves a series of agencies that links phenomena as "scientific objectivism" and "perspectivism" with new legal mechanisms as Benefit-sharing and Prior Informed Consent. Keywords: Science Studies; Biodiversity; Traditional Ecological Knowledge; Actor-Network Theory; Socio-technical networks; Knowledge Practices; Ontological Multiplicity; Translation; Amazon.
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SUMRIO
PARTE I
LISTAS, 13
INTRODUO, 15
CAPTULO I - BIOPROSPECO DE PLANTAS MEDICINAS AMAZNICAS E A PRODUO DE FITOTERPICOS: FARMACOGNOSIA, REDE E ONTOLOGIA, 50
1. A Etnofarmacologia e o Projeto da Farmacognosia, 50 2. Identificao de espcies amaznicas como potenciais fitoterpicos, 55
2.1 Por uma cincia amaznida, 57 2.2 Tradues e agenciamentos cientficos: o processo de construo de um
laboratrio de plantas medicinais amaznidas, 60 3. Redes Sociotcnicas na Amaznia: farmacognosia, bioprospeco e fitoterpicos, 66 4. Plantas medicinais, conhecimentos tradicionais e fitoterpicos: pressupostos
ontolgicos, 75 4.1 A planta medicinal, a farmacognosia e o ideal da multidisciplinaridade, 75 4.2 O valor econmico e humanitrio da biodiversidade e dos conhecimentos
tradicionais e o risco de eroso, 78 4.3 A cadeia produtiva de fitoterpicos: aproximao com a indstria e gerao de
renda, 80 5. Objetivismo cientfico e farmacognosia: o mundo-das-substncias, 83
CAPTULO II - PRTICAS DE CONHECIMENTO NO LABORATRIO: DA PLANTA AO FITOTERPICO, 89
1. A coleta das plantas na Comunidade Nossa Senhora de Nazar, 91 2. O levantamento etnofarmacolgico: traduo e objetivao cientfica dos
conhecimentos tradicionais associados s plantas medicinas, 94 3. As prticas cientficas na bancada e o processo de transformao da planta em
fitoterpico, 101 3.1 O laboratrio Planta-Piloto: secagem e processamento, 101 3.2 O laboratrio de Fitoqumica: cromatografia, fracionamento e produo de
extratos,102 3.3 O laboratrio de Bioqumica: testes de bioatividade in vitro, 108 3.4 O Biotrio: testes de bioatividade in vivo, 113
4. Formas de Conhecimento no laboratrio: prticas de ordenao, distribuio e objetivao cientfica, 116 4.1 Reproduzindo o protocolo na bancada: temporalidade e conhecimento, 116 4.2 Formas de Classificao: espacialidade e conhecimento,122 4.3 A relao dos pesquisadores com os actantes e o habitus laboratorial: objetivao
cientfica, formas de visualizao dos dados e prticas de traduo,126
CAPTULO III - HABITUS RIBEIRINHO, REDES COMUNITRIAS E PLANTAS MEDICINAIS, 133
1. A Comunidade Nossa Senhora de Nazar, 133 2. Ontologia e Plantas Medicinais: formas ribeirinhas de conhecer, falar e
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usar as plantas, 139 2.1 O Mundo do Quintal: universo feminino e a potica do cuidado, 140 2.2 O Mundo da Mata: universo masculino e a potica da valentia,147 2.3 O Mundo do Curandeiro: hibridismo e a potica da traduo/transformao,151
3. Redes Ribeirinhas e a Circulao das Plantas e Conhecimentos Medicinais, 155 4. Sazonalidade, Habitus Ribeirinho e Plantas Medicinais, 161 5. A Farmacinha Ribeirinha: Resilincia, traduo e agenciamento, 165
PARTE II
CAPTULO IV - AGROBIODIVERSIDADE, PAISAGENS E PESQUISA INTERCULTURAL NO ALTO RIO NEGRO: SOCIOAMBIENTALISMO, REDE E ONTOLOGIA, 175
1. O Socioambientalismo e o dilogo entre conhecimentos cientficos e tradicionais no final do sculo XX, 175
2. O Instituto Socioambiental, o Programa Rio Negro e a rede ISA/FOIRN, 180 3. Agrobiodiversidade e inventrio de Paisagens Baniwa: pressupostos ontolgicos, 188
3.1 Mandioca, Agrobiodiversidade, Urbanizao, Redes Sociais e Risco de Eroso,191
3.2 Trilhas, Conhecimentos e Paisagens Baniwa,200
CAPTULO V - PRTICAS DE REGISTRO DA SOCIOBIODIVERSIDADE: A TRADUO/TRANSFORMAO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS EM DADOS CIENTFICOS, 207
1. As Expedies de Campo e os Aparelhos de Registro da Sociobiodiversidade, 208 1.1 Entrevistas, Questionrios e Cadernos de Anotao,210 1.2 Transectos, Colees e Fotografias,215
2. Os Aparelhos de Sistematizao e Visualizao da Sociobiodiversidade, 218 2.1 Cartografia,220 2.2 Softwares, Banco de dados e diagramas,223
3. Os Pesquisadores Indgenas: formao, traduo e mediao cultural, 229 3.1 As atividades de formao em tcnicas de pesquisa: a produo do dilogo
intercultural,231 3.2 Da pesquisa sobre os ndios para a pesquisa dos ndios,234
4. Ontologias e Temporalidades: cincias e engajamento poltico-comunitrio, 235 5. O mapeamento do mundo: a cincia enquanto mquina de traduo, 240
CAPTULO VI - ONTOLOGIAS AMERNDIAS E PRTICAS DE CONHECIMENTO NO ALTO RIO NEGRO, 245
1. Percorrendo as trilhas comunitrias, 248 2. O Mundo da Roa, 252
2.1 A Origem das Manivas e o Mundo dos Ancentrais,252 2.2 Prticas de Conhecimento na Roa,255
3. A histria da Pimenta, 259 4. Ontologias Amerndias no Alto Rio Negro: mltiplos corpos-mundos, 263
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CAPTULO VII - AGENCIAMENTOS INDGENAS DA PESQUISA AGR-ARN: A FORMAO DA FEIRA E DA ASSOCIAO CULTURAL DOS AGRICULTORES INDGENAS DIRETO DA ROA, 271
1. A Feira Direto da Roa, 275 2. A Maloca em dia de festa, 278 3. Associativismo, demandas polticas e valores comunitrios, 283
3.1 Assemblias e demandas da Associao,287 3.2 Valores Comunitrios e a chefia da maloca,291
4. Devir-ndio e Devir-Branco no Contexto Urbano: entre a festa, a feira e o associativismo, 293
CAPTULO VIII - OS PESQUISADORES INDGENAS: DOMESTICANDO OS CONHECIMENTOS E A TECNOLOGIA DO BRANCO, 299
1. Pesquisadores Indgenas no Alto Rio negro: diferentes trajetrias e geraes, 301 1.1 Primeira gerao: de liderana indgena a pesquisador,302 1.2 A gerao intermediria: de pesquisador liderana comunitria,305 1.3 A terceira gerao e a institucionalizao da pesquisa nas escolas indgenas,308
2. Formas de Agenciamento da Pesquisa (pelos pesquisadores nativos), 310 2.1 A Pesquisa indgena enquanto saber-fazer, 310 2.2 A Pesquisa indgena enquanto Domesticao da Alteridade,313
3. Os Conhecimentos e as mercadorias do Branco nas Ontologias Indgenas do Alto Rio Negro: alteridade, risco e domesticao, 317
PARTE III (CONSIDERAES FINAIS)
CAPTULO IX - PRTICAS DE CONHECIMENTO, ONTOLOGIAS E TEMPORALIDADES: ACORDOS PRAGMTICOS E OS DILEMAS DO DILOGO, 328
1. Mltiplas Prticas de Conhecimento, Mltiplos Mundos, 328 2. Ontologias e Temporalidades, 335 3. Mltiplas formas de pensar/viver o dilogo entre conhecimentos na prtica, 347 4. Propriedade intelectual, Consentimento Informado e Repartio de Benefcios, 351 5. Acordos pragmticos: convivncia ou conflito de ontologias, 362
CAPTULO X - REDES SOCIOTCNICAS NA AMAZNIA: MLTIPLAS ONTOLOGIAS-TOPOLOGIAS, 369
1. Rizomas e rvores, 369 2. Cincias Nmades e Cincias de Estado, 378 3. Ontologias e Topologias, 384 4. Alfndegas: governamentalidade, regulamentao e ontologia, 397
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS, 409
NDICE REMISSIVO, 435
APNDICES, 439
ANEXOS, 479
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LISTA DE SIGLAS
CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
CBA Centro de Biotecnologia da Amaznia
CDB Conveno sobre a Diversidade Biolgica
CGEN Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
CTA Conhecimento Tradicional Associado
DPG Departamento do Patrimnio Gentico
DPI Direitos de Propriedade Intelectual
DPPN Departamento de Pesquisa de Produtos Naturais (INPA)
EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria
FAPEAM Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Amazonas
FOIRN Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro
HPLC High Performance Liquid Chromatography
INPA Instituto Nacional de Pesquisa do Amazonas
ISA Instituto Socioambiental
MCT Ministrio de Cincia e Tecnologia
MMA Ministrio do Meio Ambiente
MPEG Museu Paraense Emlio Geldi
OIBI Organizao Indgena da Bacia do Iana
OIT Organizao Internacional do Trabalho
ONU Organizao das Naes Unidas
PET Programa de Educao Tutorial
PROCAD Programa Nacional de Cooperao Acadmica
UEA Universidade Estadual do Amazonas
UNESCO Organizao das Naes Unidas para Educao, Cincia e Cultura
UFAM Universidade Federal do Amazonas
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
RADAM Projeto Radar da Amaznia
TCLI Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
WIPO World Intellectual Property Organization
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LISTA DE FIGURAS Figura 1.1 Organograma descritivo dos elementos molares que compem a rede sociotcnica UFAM, 67
Figura 1.2 Organograma descritivo da rede de laboratrios da UFAM envolvidos diretamente na pesquisa sobre fitoterpicos, 69
Figura 1.3 Organograma descritivo do modelo meritocrtico mobilizado pelos pesquisadores para ordenar a rede laboratorial, 70
Figura 2.1 Organograma descritivo do ciclo de produo tcnico-cientfica que vai da planta ao fitoterpico, 89
Figura 2.2 Descrio da Cromatografia em Coluna, 106
Figura 2.3 Descrio da Cromatografia do tipo planar (em papel), 107
Figura 2.4 HPLC (Sistema), 109
Figura 2.5 Espectro (Grfico) gerado pela HPLC, 110
Figura 2.6 Descrio do funcionamento interno de um aparelho de Espectrofotometria, 111
Figura 2.7 Foto de Micro-Placa usada no Espectrofotmetro UV, 112
Figura 2.8 Tabela gerada a partir do teste de bioatividade realizado com ratos (Biotrio), 114
Figura 2.9 Esquema descritivo do Ciclo de Produo Cientfica na bancada do laboratrio, 121
Figura 3.1 Quadro comparativo, plantas medicinais usadas em Nazar e em comunidades de outras trs regies, 158
Figura 3.2 Quadro comparativo, plantas medicinais usadas em Nazar e as plantas comercializadas em diferentes regies do Brasil, 160
Figura 4.1 Organograma da Rede Sociotcnica ISA-FOIRN, 184
Figura 5.1 Ciclo de Produo Cientfica, Pesquisa ISA-FOIRN, 207
Figura 5.2 Diagrama descritivo do Ordenamento Direto do Censo de Paisagens gerado pelo software PC-ORD (Relatrio ISA, CGEN), 225
Figura 5.3 Grfico descritivo da fenologia de 160 espcies, 226
Figura 5.4 Diagrama descritivo das redes de circulao de plantas e conhecimentos associados gerado pelo software PAJEK (Relatrio ISA, CGEN), 227
Figura 5.5 Mediao enquanto trnsito entre culturas, 232
Figura 7.1 Quadro demonstrativo dos associados Direto da Roa por etnia (2009), 273
Figura 7.2 Quadro elaborado tendo como referncia o manual de administrao de organizaes indgenas, 285
Figura 8.1 Mediao enquanto trnsito entre naturezas-culturas, 325
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INTRODUO
Nesta tese, em detrimento de um argumento principal para onde tudo converge,
temos uma multiplicidade de pequenos argumentos dispersos nos dez captulos que
compe o texto: nenhuma grande narrativa, apenas pequenas histrias1. Essas mltiplas
narrativas no possuem uma relao hierrquica entre si, assim como tambm no esto
voltadas para a defesa de uma nica hiptese ou teoria sobre este ou aquele fenmeno
social. Por outro lado, essa multiplicidade no deve ser confundida com pluralidade2, pois
todos esses relatos esto colocados dentro de um contexto mais amplo de problematizao,
o que possibilita o estabelecimento de mltiplas associaes, permitindo certo nmero de
conexes a serem testadas no ato criativo da leitura. por isso que o trabalho de
composio no tem fim, permitindo apropriaes diferentes e desenvolvimentos paralelos
de pontos especficos da tese. E isso vlido tanto para os leitores como para o prprio
escritor. Nada do que ser apresentado aqui ou foi em algum momento conclusivo, no
por falta de capacidade metodolgica ou terica, mas por que todas as concluses so
sempre temporrias e esto em constante processo de transformao. No podemos perder
de vista que a tese sempre um ensaio uma experimentao com idias, sejam elas do
autor ou de outrem sobre um pensamento em constante processo de reformulao
reflexiva.
No entanto, o fato de estarmos diante de uma multigrafia e no de uma
monografia no significa que existem vrias teses em jogo, se entendermos por isso uma
confuso de idias que no possuem qualquer relao entre si ou que mereceriam um
estudo monogrfico especfico. claro que cada um dos stios etnogrficos apresentados
no decorrer do texto poderia ser explorado individualmente. De fato, isso plenamente
possvel. No entanto, o fato desses mltiplos stios serem analisados de forma horizontal
abre outra paisagem, permitindo reflexes que os estudos monogrficos no podem
fornecer. Inclusive, acredito que esses dois tipos de abordagem so potencialmente
complementares, bastando para isso que no estejamos preocupados em impor nossa
1 Diante do obstculo de no simplificar demasiadamente a complexidade do social, Law (2006: 62) prope investirmos em um mosaico de pequenas histrias: For if we are no longer able to draw things together to tell great stories about the growth or decline of networks, then what is there to tell? No doubt there are many possible responses. But one is this: that we need to attend to lots of little stories, and then to the patterns that subsist between those stories. 2 Tanto Law (1999) como Mol (2002) contrapem a noo de multiplicidade noo de pluralidade. Por esta ltima, esses autores entendem diferentes perspectivas, objetos ou fenmenos independentes que no entram em relao entre si (onde, pluralidade X unidade); o que no seria o caso da noo de multiplicidade, onde as diferenas esto em relao umas com as outras, constituindo-se a partir dessa relao. Neste ltimo caso, estamos diante de uma situao onde o mltiplo menos do que dois e mais do que um.
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forma de raciocnio sobre as demais. Por outro lado, esses mltiplos stios etnogrficos so
perpassados por linhas ou eixos que os colocam em relao uns com os outros, sem, no
entanto, provocar um achatamento vertical: no partimos de um centro em direo
periferia, muito menos de um global em direo ao local ou vice-versa. Todos esses
stios esto, de fato, lado a lado e no sobrepostos uns sobre os outros.
Para falar sobre o contexto mais amplo do projeto que deu origem a este trabalho,
pretendo multiplicar essa introduo em trs partes. Inicialmente, vou me remeter forma
como algumas idias foram sendo transformadas nos ltimos anos, at chegar ao que foi
exposto na tese. Fao isso por que tenho a impresso que alguns dos temas abordados
aqui j estavam presentes na minha vida muito antes de eu ter conscincia da sua
existncia enquanto um problema ou objeto de reflexo. Tudo que ocorreu desde ento
apenas permitiu tornar essas idias mais claras pra mim e, conseqentemente, para os
meus interlocutores (pelo menos isso que eu espero). Os temas de fundo desta jornada
so as prticas de conhecimento e traduo de saberes no campo da biodiversidade e o
impacto da regulamentao do acesso nas relaes entre pesquisadores e comunidades
locais. No segundo tpico, vou apresentar ao leitor a abordagem metodolgica da tese,
marcada por um olhar etnogrfico apreendido durante os primeiros anos de formao e
reformulado mais recentemente a partir da apropriao de alguns princpios epistemolgicos
que remetem antropologia simtrica e experimental. Finalizo esse tpico mencionando a
minha insero em cada um dos stios etnogrficos e a sua influncia nas idias aqui
apresentadas. Por ltimo, vou apresentar ao leitor como a abordagem etnogrfica pode
enriquecer a perspectiva hermenutica a partir de uma relao com outras noes
metodolgicas: redes, ontologia e pragmatismo.
Arqueologia de um Projeto de Pesquisa
A inquietao existencial ou terica que deu origem s mltiplas idias reunidas
nesta tese teve incio h mais dez anos, entre o trmino da graduao e o incio do
mestrado em antropologia. Durante os primeiros anos de formao em pesquisa, realizei
trabalho de campo em dois contextos bastante diferenciados: na antiga FEBEM/RS; e em
um assentamento rural de reforma agrria. Nesses dois contextos, o exerccio de reflexo
antropolgica esteve diretamente associado a problemticas e demandas polticas de
carter prtico. O exerccio do mtodo da descrio densa em contextos de engajamento
poltico e intelectual - a reforma agrria, a violncia e os direitos humanos levou a um
questionamento do papel poltico da antropologia e, principalmente, das questes ticas que
acompanham relao do antroplogo com seus interlocutores nativos. Por outro lado, a
problematizao das relaes de poder que acompanham o exerccio de descrio dos
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saberes e dos conhecimentos nativos a chamada representao etnogrfica era tema
de debates em seminrios, reunies acadmicas, palestras e, principalmente, na sala de
aula. Nesses espaos, era possvel perceber com certa clareza que os dilemas ticos
vivenciados por mim tambm afetavam os meus colegas. Tudo indicava que estvamos
diante de um fenmeno intelectual que, certamente, mudaria para sempre a forma de
pensarmos a prpria antropologia. Acredito que a minha dissertao de mestrado um
reflexo desse contexto histrico mais amplo.
A discusso sobre a relao entre saber e poder e a prtica da etnografia eram
temas que no se apresentavam unicamente nos debates acadmicos. Lembro
perfeitamente uma situao que traduz muito bem esse contexto. Antes de iniciar o trabalho
de campo no assentamento 19 de Setembro (Soares 2005), tanto eu como minha
orientadora fomos chamados para uma reunio com lideranas polticas para discutir o
retorno que daramos para a comunidade. Por outro lado, como a insero no
assentamento se deu a partir de um projeto de extenso universitria, no decorrer da
pesquisa tambm fui requisitado a dar conta de demandas pontuais dos pesquisadores.
Eles queriam saber como a antropologia poderia ajud-los a levar adiante o principal
objetivo do projeto: transformar a matriz produtiva do assentamento tendo como referncia
os padres do etnodesenvolvimento. A problemtica tica que acompanhou essa pesquisa
foi descrita em uma srie de publicaes (Soares 2006a, 2006b, 2007, 2010a) e ganhou
uma dimenso maior tendo em vista as circunstncias do dilogo entre os conhecimentos
tcnico-cientficos dos estudantes e os conhecimentos dos camponeses.
Ao mesmo tempo, consultorias realizadas no mbito do Ncleo de Antropologia e
Cidadania (NACI) apontavam para as mesmas questes: como aliar a reflexo terica com o
engajamento em problemas ou questes de ordem pragmtica? Como dar um retorno para
os nativos do conhecimento que estava sendo produzido? Como responder s suas
demandas polticas? O resultado da problematizao do discurso antropolgico e da prtica
etnogrfica teve, inicialmente, um impacto um tanto desestabilizador. Mas tudo mudou a
partir de um evento marcante na minha trajetria intelectual, a leitura de trs livros de
Latour: A Vida de Laboratrio (1979), Cincia em Ao (1987) e Jamais Fomos Modernos
(1991). As propostas de deslocamento do olhar etnogrfico da periferia para o centro de
poder das sociedades ocidentais e da ruptura com o Grande Divisor da modernidade
pareceram, naquele momento, um tanto libertrias. Essa descoberta acabou resultando na
elaborao de um projeto na rea de antropologia da cincia Biossegurana: cincia,
poltica e sociedade no Brasil Contemporneo (Soares 2006). Esse projeto foi uma espcie
de esboo inicial do que eu acabei desenvolvendo no doutorado. A minha inteno era
estudar o processo de regulamentao das pesquisas na rea de biossegurana e o seu
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impacto nas prticas cientficas, tendo como referncia principal os conceitos de
governamentalidade e biopoltica (Foucault 2005, 2008a, 2008b). A questo ento era
entender melhor as interfaces entre os discursos cientficos e jurdicos sobre o tema da
segurana da vida, tendo como cenrio etnogrfico os debates que estavam ocorrendo na
opinio pblica e trs reas onde as pesquisas estavam passando por processos histricos
de regulamentao tica: transgnicos; atividades de bioprospeco da biodiversidade; e
acesso aos conhecimentos tradicionais. Inspirado pela noo de rede e pela proposta de
uma abordagem etnogrfica da cincia em ao, esse projeto visava descrever os
principais coletivos cientficos envolvidos com essa problemtica no sul e sudeste do Brasil
e suas associaes com outros atores da sociedade civil e do governo.
Essa idia inicial sofreu transformaes significativas nos primeiros dois anos de
doutorado na UnB. O referencial terico usado nesse projeto foi ampliado significativamente
a partir de uma ampla reviso bibliogrfica no campo dos estudos da cincia, da etnologia,
da teoria ator-rede, da ecologia poltica e, finalmente, da antropologia simtrica. A partir da
relao com o meu ento orientador Paul Little3, acabei centralizando a ateno nas
problemticas ticas e polticas em torno do processo de regulamentao do acesso
biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais associados. Na poca, Little coordenava
o projeto Conhecimentos Tradicionais no Marco da Intercientificidade, voltado para o estudo
etnogrfico das formas de interao entre os sistemas de conhecimento tradicional e as
cincias modernas ocidentais. Esse projeto envolvia um grupo de alunos do PPGAS/UnB
que estava conduzindo pesquisas em contextos onde as cincias ocidentais entravam em
contato (mais ou menos assimtrico) com conhecimentos no-modernos ou tradicionais4.
Um dos eixos do projeto tinha como objetivo a anlise do processo histrico e poltico de
regulamentao jurdica das relaes intercientficas no Brasil, incluindo os debates
governamentais sobre temas como repartio de benefcios, direitos de propriedade
intelectual e consentimento informado. No primeiro ano de doutorado, fiz uma reviso
bibliogrfica sobre esses temas e passei a ler sobre as controversas polticas e cientficas
em torno da chamada regulamentao do acesso biodiversidade e aos conhecimentos
tradicionais associados.
Neste momento ser preciso fazer um breve esclarecimento sobre o contexto
histrico e poltico da regulamentao. As discusses sobre a problemtica do acesso aos
recursos genticos tiveram incio, na dcada de 1970, em fruns internacionais: pases
ainda em processo de desenvolvimento como o Brasil passaram a defender o direito de
3 Aps a sua sada do Departamento de Antropologia da UnB, o professor Paul E. Little continuou vinculado ao projeto de pesquisa na condio de co-orientador da tese. 4 Os resultados desse projeto foram publicados na coletnea Conhecimentos Tradicionais para o Sculo XXI, organizado por Paul Little (2010).
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soberania sobre os recursos genticos e a necessidade de repartio de benefcios no caso
de acesso. Na mesma poca, a valorizao econmica e ambiental dos conhecimentos
tradicionais associados biodiversidade levou pesquisadores, ambientalistas e
organizaes indgenas a defender formas de retorno dos benefcios econmicos gerados
pela aplicao desses conhecimentos na gerao de produtos naturais como medicamentos
e cosmticos. Apesar dos recursos genticos e dos conhecimentos indgenas e tradicionais
serem considerados de domnio pblico, eles eram patenteados nos pases mais
desenvolvidos. Devido ao lucro que as multinacionais passaram a ter com a comercializao
desses produtos, o livre acesso a esses recursos passou a ser questionado pelos pases
ricos em sociobiodiversidade, como o Brasil. Esse debate ficou conhecido como a guerra
dos genes e acabou resultando nas diretrizes anunciadas na Conveno sobre a
Diversidade Biolgica (CDB), onde os princpios de soberania nacional, repartio de
benefcios e consentimento informado foram estabelecidos5. Como o Brasil foi signatrio
dessa conveno, j a partir de meados da dcada de 1990 passaram a circular no
congresso nacional algumas propostas de lei voltadas para a regulamentao das
pesquisas e iniciativas tecnolgicas nessa rea.
No final da dcada de 1990, a organizao social Bioamaznia, contratada pelo
governo federal para gerir um programa na rea de uso sustentvel e bioprospeco, tentou
firmar um contrato com a Novartis, uma multinacional do setor farmacutico. Esse contrato
previa a concesso de dez mil microrganismos coletados nas florestas amaznicas em troca
de quatro bilhes de dlares em treinamento e transferncia de tecnologia. Os termos do
contrato foram altamente criticados por diversos setores da sociedade, principalmente, pelo
fato do Brasil ser signatrio da CDB e ainda no contar com uma legislao nessa rea.
Diante desse contexto poltico, o governo federal editou uma medida provisria
regulamentando essa questo. Essa MP tem sido reeditada desde ento, passando por
algumas reformulaes durante o governo Lula e tornando-se uma espcie de medida
provisria permanente. Em linhas gerais, a MP 2.186-16 regulamentou alguns artigos da
Constituio Federal de 1988 e diretrizes acordadas na CDB, instituindo parmetros para a
elaborao de um marco regulatrio nessa rea. Essa medida retificou as diretrizes da CDB
e criou um rgo no mbito do governo federal para conceber uma poltica pblica e
aprimorar a regulamentao: o Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico (CGEN)6.
Esse conselho foi criado no mbito do Ministrio do Meio Ambiente e composto
por representantes de diversos ministrios e entidades de pesquisa e desenvolvimento
5 Para saber mais sobre esse contexto histrico, ver Garcia dos Santos (2003), Carneiro da Cunha (2009: 301-10) e Little (2010: 281-89). 6 Para saber mais sobre o contexto histrico de edio da MP 2.186-16 e sobre o processo de instituio do CGEN, ver (Bensusan 2003).
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tecnolgico do governo federal, sendo responsvel pela aplicao das diretrizes enunciadas
na MP, como os princpios de consentimento informado e repartio de benefcios
declarados na CDB. Desde ento, pesquisas e atividades de desenvolvimento tecnolgico
que visam o acesso aos recursos genticos (substncias bioqumicas presentes em
organismos vivos) e/ou aos conhecimentos tradicionais associados passaram a ter que
seguir uma srie de diretrizes para serem autorizadas pelo conselho. No demorou muito
para que a nova legislao afetasse a vida dos pesquisadores, comunidades e empresas
envolvidas com iniciativas nessa rea, gerando uma srie de protestos. Em 2003, aps
crescentes demandas por participao promovidas simultaneamente por empresrios,
pesquisadores, ONGs, organizaes de povos indgenas e tradicionais a ento Ministra
Marina Silva criou a categoria de convidado permanente, abrindo espao para a
participao de outras entidades da sociedade civil, sem poder de voto. Desde ento esse
Conselho tem atuado na promoo da discusso de um marco regulatrio em diversos
setores da sociedade, na implantao de diretrizes e na concesso de autorizaes de
acesso biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais associados.
Tendo como referncia esse contexto de regulamentao jurdica na rea de
biodiversidade e conhecimentos tradicionais, em 2008, realizei uma pesquisa preliminar no
CGEN, cujos resultados foram parcialmente discutidos em um artigo (Soares 2011) e sero
retomados na terceira parte desta tese. A minha inteno era realizar um levantamento
etnogrfico inicial visando os seguintes objetivos: entender melhor como a regulamentao
estava ocorrendo na prtica; conhecer os principais atores envolvidos no debate
(instituies, pesquisadores, comunidades e etc.); e, principalmente, ter uma viso geral
sobre as iniciativas de pesquisa e desenvolvimento tecnolgico autorizadas pelo CGEN nos
seus quase dez anos de funcionamento. Eu pretendia usar esse levantamento inicial para
subsidiar a escolha de iniciativas cujas atividades de pesquisa pudessem ser
acompanhadas em campo, tendo como referncia a proposta de uma etnografia da
intercientificidade (Little 2010). O meu objetivo inicial era entender melhor como estava
ocorrendo o chamado dilogo entre as etnocincias (etnoecologia, etnofarmacologia e etc.)
e os conhecimentos tradicionais ou indgenas e como essa relao estava ou no sendo
afetada pelo contexto da regulamentao.
Os critrios utilizados para a seleo das pesquisas foram os seguintes. Primeiro,
escolher casos paradigmticos, entendendo por isso projetos que, ao circularem no
Conselho, passaram a ser considerados exemplares por envolverem as principais
controversas sob debate, como o caso das discusses sobre consentimento informado,
propriedade intelectual e formas de repartio de benefcios. Segundo, esses casos teriam
que contemplar o tema do desenvolvimento sustentvel e envolver o acesso
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biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais associados, com nfase nas duas reas
de pesquisa mais afetadas pelas novas diretrizes ticas, a farmacognosia e o
socioambientalismo. Terceiro, privilegiar pesquisas que fizessem uso de mtodos das
chamadas etnocincias e tivessem como proposta metodolgica o estabelecimento de um
dilogo entre as cincias modernas ocidentais e os chamados conhecimentos
tradicionais. Quarto, selecionar iniciativas realizadas na Amaznia Brasileira, envolvendo
comunidades indgenas e/ou ribeirinhas, tendo em vista a importncia geopoltica dessa
regio nos debates sobre biodiversidade e desenvolvimento sustentvel. Esses critrios
foram concebidos tendo como referncia a pesquisa preliminar no CGEN e as discusses
realizadas em disciplinas que cursei no doutorado, como o seminrio de leitura sobre
biodiversidade e conhecimentos tradicionais e uma disciplina sobre a Amaznia, ambas
ministradas por Little.
Aps analisar todos os processos de autorizao de acesso biodiversidade e aos
conhecimentos tradicionais associados emitidos pelo CGEN, pr-selecionei seis pesquisas
para discutir na banca de qualificao: dois projetos na rea de desenvolvimento sustentvel
e conhecimentos indgenas, sendo um deles sobre agrobiodiversidade e o outro sobre
paisagens etnoecolgicas, ambos realizados no mbito de uma parceria entre o Instituto
Socioambiental (ISA) e a Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro (FOIRN);
uma pesquisa na rea de agrobiodiversidade realizada a partir de uma parceria entre o
Museu Paraense Emlio Goeldi (MPEG) e a associao indgena Abemoka, coordenada
por lideranas Mebngkre (Kayap); duas pesquisas na rea de etnofarmacologia e
produtos naturais coordenada por uma rede de laboratrios da UFAM e do INPA; e, por
ltimo, o Banco de Biodiversidade da Amaznia, projeto coordenado pelo Centro de
Biotecnologia da Amaznia.
A partir da discusso com a banca de qualificao, selecionei trs dos seis projetos
mencionados: as duas pesquisas conduzidas a partir da parceria ISA/FOIRN; e a pesquisa
sobre farmacognosia coordenada por uma rede de laboratrios da UFAM e do INPA. A
minha insero em campo em cada uma dessas pesquisas foi diferente, assunto que
pretendo abordar no prximo tpico. Por ora, pretendo introduzir o leitor s duas iniciativas
que vamos discutir no decorrer da tese e a sua relevncia na temtica sobre
regulamentao, para depois descrever como a proposta inicial do projeto de doutorado foi
sofrendo pequenas modificaes sugeridas por eventos circunstanciais do campo e da
academia.
A pesquisa abordada na primeira parte da tese envolve uma rede de laboratrios de
farmacologia, bioqumica e produtos naturais da UFAM e do INPA, tendo como objetivo
subsidiar a concepo de fitoterpicos a partir de plantas amaznicas e conhecimentos
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tradicionais coletados em uma comunidade ribeirinha da regio do Alto Amazonas (AM). O
pedido de autorizao desse projeto circulou no CGEN durante quase trs anos, gerando
inmeras controvrsias por ser a primeira iniciativa de bioprospeco envolvendo acesso
biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais. Essa pesquisa foi selecionada por
envolver a relao epistemolgica entre diferentes disciplinas das cincias naturais
bioqumica, farmacologia, botnica e qumica e os conhecimentos medicinais ribeirinhos,
incluindo a assinatura de contratos de repartio de benefcios e um amplo processo de
consentimento informado. O projeto tambm envolve a proposta de estabelecimento de um
dilogo entre a etnofarmacologia e os conhecimentos ribeirinhos, visando colocar em
prtica o projeto cientfico da farmacognosia7.
As duas pesquisas conduzidas pela parceria ISA/FOIRN abordadas na segunda
parte da tese fazem parte do Programa Rio Negro, conjunto de iniciativas na rea de
desenvolvimento sustentvel em andamento no noroeste da Amaznia brasileira. Esse
programa tem como objetivo a elaborao de um Plano Regional em parceria com os
povos indgenas que vivem na regio. Essas duas pesquisas compartilham a proposta de
uma metodologia participativa, envolvendo o uso de mtodos das etnocincias, assim
como a atuao de pesquisadores indgenas na coleta e sistematizao dos dados
cientficos. Uma dessas iniciativas - conduzida por agrnomos, eclogos e antroplogos -
tem como objeto de estudo a agrobiodiversidade em So Gabriel da Cachoeira e visa o
registro dos conhecimentos tradicionais associados ao manejo das espcies vegetais
cultivadas na roa, assim como o mapeamento das redes de circulao de plantas e
conhecimentos. A outra pesquisa coordenada por um eclogo - tem como tema o registro
e o mapeamento das paisagens etnoecolgicas dos ndios Baniwa que vivem na regio do
rio Iana. Esses dois projetos passaram por um amplo e exaustivo processo de
consentimento informado e repartio de benefcios no econmicos e os seus pedidos
de autorizao acabaram se transformando em casos exemplares na medida em que
circularam no CGEN, tornando-se referncia nas discusses governamentais.
De alguma forma, mergulhar nos labirintos da cincia e dos conhecimentos
indgenas ou tradicionais a partir da leitura de etnografias ou de estudos de caso revelou
algumas questes importantes, exigindo reformulaes que foram, em parte, inseridas na
tese. As pesquisas que acompanhei em campo tm como eixo fundamental os objetos que
so alvo das prticas de conhecimento dos cientistas e de seus interlocutores locais.
Conforme foi amplamente discutido na banca de qualificao, esses objetos certamente no
so concebidos da mesma forma por pesquisadores, comunidades e governo. Assim, antes
7 Conforme veremos no captulo I e II, a farmacognosia a disciplina das cincias farmacuticas que visa descoberta de substncias com eficcia teraputica com o objetivo de subsidiar a produo de novos medicamentos, sejam eles convencionais ou fitoterpicos.
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mesmo do incio do trabalho de campo na Amaznia, eu estava decidido a realizar uma
descrio densa das prticas de conhecimento que entram em dilogo ou conflito nessas
iniciativas, com nfase na forma como os pesquisadores e as comunidades concebem os
objetos que circulam nessas redes8. Desta forma, em determinado momento a problemtica
da regulamentao tornou-se, por assim dizer, secundria, dando lugar ao interesse
pelas prticas de conhecimento: sejam aquelas que orientam as prprias atividades de
regulamentao, sejam as prticas dos pesquisadores e das comunidades.
No que a problematizao tica e poltica da relao entre pesquisadores e
comunidades, cincias modernas e conhecimentos no-modernos, tenho deixado de ser
uma das questes norteadoras da tese. O que mudou foi a maneira de conceber e abordar
essa problemtica. Ou seja, ao invs de ir a campo com um problema j formulado, busquei
acompanhar como e se os questionamentos ticos associados regulamentao das
pesquisas nessa rea esto afetando a relao entre pesquisadores e comunidades. Para
isso, foi necessrio seguir as controvrsias com as quais os nativos esto envolvidos e a
maneira como eles lidam com essas questes no cotidiano, ao invs de tratar essas
controvrsias como um fato consumado. Foi mais ou menos nesse momento que eu
comecei a me aproximar de uma determinada forma de questionar que me levou a percorrer
um caminho rumo ontologia: o que significa conhecer na comunidade, no laboratrio e
nas reparties pblicas do Estado Brasileiro? Como so as prticas de conhecimento que
do sentido aos objetos que circulam nessas redes? Qual o ser desses objetos e do
prprio exerccio de conhec-los?
Os primeiros meses de trabalho de campo no Amazonas intensificaram ainda mais
essa guinada em direo ontologia. A circulao entre o mundo dos pesquisadores do ISA
e da UFAM e o mundo das comunidades onde eles atuam revelou a densidade das prticas
de conhecimento e os dilemas que acompanham o dilogo entre as cincias (agronomia,
ecologia e farmacologia) e os conhecimentos indgenas ou tradicionais. Por um lado,
busquei fazer uma descrio densa das prticas de conhecimento dos pesquisadores e a
forma como eles pensam e praticam o dilogo com os conhecimentos indgenas e
tradicionais; por outro, busquei descrever as prticas de conhecimento dos ndios e
ribeirinhos, assim como as suas formas de agenciar a relao com os pesquisadores e com
o discursivo cientfico. Esse exerccio descritivo revelou que a relao entre as cincias
ocidentais e os conhecimentos indgenas e ribeirinhos envolve uma srie de prticas de
traduo associadas ao projeto epistemolgico do objetivismo cientfico, que
apresentado aqui em duas variaes disciplinares: a farmacognosia e o socioambientalismo.
Vamos ver como a construo da objetividade cientfica nessas iniciativas envolve 8 importante mencionar que, em parte, essa reflexo sobre os objetos que circulam nessas redes resultado da contribuio da Prof. Laure Emperaire na banca de qualificao.
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diferentes formas de pensar a relao sujeito/objeto, remetendo a tcnicas disciplinares
um tanto diferenciadas e a maneiras diferentes de fazer cincia. Por outro lado, vamos ver
que as prticas de conhecimento ribeirinhas e indgenas incluindo a relao com os
conhecimentos cientficos - esto colocadas para alm desse grande divisor da
modernidade.
Tendo em vista o contexto histrico e poltico da regulamentao, as
problemticas ticas e polticas contemporneas se revelaram em diferentes ocasies da
pesquisa, muitas vezes de uma forma um tanto inusitada. Aos poucos, fui percebendo que a
prpria noo de dilogo e o conceito correlato de mediao no so concebidos da
mesma forma por ndios, ribeirinhos e pesquisadores. Com isso, os grandes temas da
regulamentao o consentimento informado, os direitos de propriedade intelectual e a
repartio de benefcios tambm so vivenciados de forma diferente por esses coletivos.
Ao mesmo tempo, o deslocamento por essas redes sociotcnicas revelou certas
continuidades na forma como pesquisadores e comunidades esto sendo afetados pela
nova legislao. Essa questo retomada na terceira parte da tese, onde eu retorno a essa
problemtica aps navegar pelos labirintos das prticas de conhecimento que perpassam
essas iniciativas de pesquisa.
Esta tese foi concebida como ponto de partida e no como ponto de chegada. As
questes abordadas no so concludas ou finalizadas inteiramente, exatamente por
integrarem um horizonte mais amplo de pesquisa. De qualquer forma, as consideraes
finais (ainda em forma de ensaio ou esboo) so apresentadas na terceira e ltima parte,
nos captulos nove e dez. A minha inteno foi contribuir para o debate acadmico sobre o
impacto dos questionamentos ticos e polticos que acompanham a regulamentao do
acesso biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais nas prticas de conhecimento
dos cientistas e dos povos onde so desenvolvidas as pesquisas. Esse debate teve incio na
dcada de 1990 e, atualmente, mobiliza uma diversidade de atores: pesquisadores das
cincias naturais e sociais, ambientalistas, lideranas polticas, organizaes civis e
representantes do governo. A idia foi fazer isso a partir do acompanhamento de duas
iniciativas autorizadas pelo CGEN, tendo em vista que os pesquisadores e as comunidades
envolvidas nessas iniciativas tiveram que seguir as diretrizes enunciadas na nova legislao.
No decorrer do doutorado, essa proposta ganhou novos contornos a partir da intensificao
do dilogo entre a etnologia e a antropologia da cincia, inserindo-se dentro de um conjunto
de problemticas prprias da antropologia simtrica: como refazer esse questionamento a
partir de uma perspectiva de ruptura com o Grande Divisor da modernidade (modernos X
tradicionais; natureza X cultura; coisas X pessoas)? O que ocorre quando levamos a srio
os pressupostos ontolgicos de pesquisadores e comunidades? Como refazer a questo
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sobre os termos em que o dilogo entre conhecimentos est ocorrendo tendo em vista que
as diferenas no se reduzem a maneiras diferenciadas de representar um nico e mesmo
mundo, mas envolvem o encontro entre mundos diferentes?
A primeira parte da tese foi reservada para descrever e discutir o projeto sobre
plantas medicinais e fitoterpicos da UFAM. No primeiro captulo, aps apresentar a
pesquisa e algumas reflexes sobre a rede sociotcnica formada em torno dela, descrevo os
pressupostos ontolgicos associados proposta poltica e cientfica da farmacognosia (ir da
planta ao fitoterpico). No segundo captulo, analiso as prticas de conhecimento que
integram um ciclo de produo cientfica que tem incio com a coleta das plantas e saberes
na comunidade e finaliza com os testes de bioatividade realizados no laboratrio. Vamos ver
como esse ciclo depende de um habitus laboratorial forjado a partir de uma forma especfica
de pensar a relao epistemolgica entre sujeito e objeto. No terceiro captulo vamos
acompanhar a maneira como os ribeirinhos conhecem as plantas medicinais nos espaos
do quintal e da floresta e como eles buscaram agenciar a relao com os pesquisadores da
UFAM a partir da tentativa de estabelecimento de uma farmacinha ribeirinha.
A segunda parte da tese foi reservada para as duas pesquisas realizadas a partir
da parceria entre o ISA e a FOIRN. No quarto captulo, apresento os dois projetos e os
pressupostos ontolgicos associados proposta socioambiental e aos objetos dessas
pesquisas: a agrobiodiversidade e as paisagens ecolgicas (ou florestais). No captulo cinco,
descrevo como esses pressupostos so colocados em prtica a partir de um ciclo de
produo cientfica que tem incio nas expedies cientficas realizadas nas comunidades e
termina nas centrais de clculo, onde os dados so traduzidos e transformados a partir de
uma srie de prticas de conhecimento. Essas prticas esto associadas a uma
determinada maneira de pensar a relao entre engajamento poltico e objetividade
cientfica. No captulo seis, abordo a forma como os agricultores e pesquisadores indgenas
conhecem as plantas e lugares da floresta e da roa, a partir de um dilogo com o
perspectivismo e o multinaturalismo. Essa discusso retomada nos captulos sete e oito,
onde analiso duas formas indgenas de agenciamento da relao com essas pesquisas: a
feira Direto da Roa e os pesquisadores indgenas.
Em certo sentido, podemos afirmar que este texto abre mais questes do que
fecha, apontando direes em que os temas abordados devem ser aprofundados ou at
mesmo reformulados a partir de novas iniciativas de pesquisa. A tese enquanto
empreendimento intelectual serviu, portanto, para esclarecer a forma como certos
questionamentos podem ser formulados, alm de abrir um horizonte etnogrfico onde essas
questes podem ser investigadas. De certa forma, o trabalho de campo e o exerccio de
escrita ajudaram a definir e esclarecer um conjunto mltiplo de questes que pretendo
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continuar pesquisando futuramente: a relao (mais ou menos conflituosa ou dialgica)
entre as prticas de conhecimento cientficas e comunitrias e entre os pesquisadores e as
comunidades locais, tendo como contexto etnogrfico redes sociotcnicas formadas em
torno de projetos de desenvolvimento sustentvel e bioprospeco que fazem uso de
mtodos das etnocincias; essa reflexo deve ser orientada por conceitos que perpassam
a antropologia da cincia e a etnologia, como traduo, ontologia, redes sociotcnicas,
prticas de conhecimento, agenciamentos e pragmatismo; verificar em que medida e de
que forma a abordagem da antropologia simtrica pode contribuir para o debate em torno da
regulamentao das relaes intercientificas. Essas questes no so de forma alguma
esgotadas na tese, que se apresenta como uma primeira tentativa de formulao de uma
problematizao metodolgica e terica que ainda resta em aberto.
Etnografia e Insero em Campo
Em linhas gerais, este empreendimento intelectual surge a partir de um
compromisso com a perspectiva do olhar etnogrfico, que marca a minha formao
disciplinar: a crena no potencial minucioso da descrio densa9 como instrumento que
permite estabelecer um registro da relao com alguns aspectos da experincia existencial
de nossos interlocutores nativos (Fonseca 2000: 7). Trata-se, por um lado, de um conjunto
de prticas de conhecimento que constituem um habitus etnogrfico: seguir os nativos em
suas atividades cotidianas; participar de eventos; manter conversaes sobre temas
especficos; fazer entrevistas; tirar fotografias; desenhar mapas; manter o hbito de fazer
anotaes dirias; levantar genealogias; e analisar documentos. Por outro lado, cada vez
mais somos levados a assumir compromissos polticos ou alguma forma de reciprocidade
com nossos interlocutores, o que pode envolver desde atividades de assessoria tcnica
(laudos, projetos e etc.), at a prestao de pequenos auxlios cotidianos. Esses dois
aspectos do trabalho antropolgico esto intimamente relacionados etapa posterior,
quando buscamos transformar essa experincia (e os produtos materiais que ela gerou) em
um texto sobre determinado aspecto da vida de nossos interlocutores. Todo esse processo
envolve a construo de uma objetividade relativa: o antroplogo usa sua prpria cultura
para estudar outras, e para estudar a cultura em geral (Wagner 2010: 28).
Nesta tese, o olhar etnogrfico projetado sobre os diferentes stios que esto
conectados nas redes sociotcnicas formadas em torno das pesquisas analisadas aqui: as
comunidades onde os ndios e ribeirinhos vivem e conhecem suas plantas e lugares, os
9 Estou me referindo ao termo utilizado por Geertz (1989: 15-31) para apontar o tipo de descrio que permite diferenciar uma piscadela de um piscar de olhos: uma descrio que visa abordar as prticas socioculturais com nfase no sentido que os atores do s suas aes e ao mundo que eles habitam.
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escritrios e laboratrios onde os pesquisadores trabalham e as reparties pblicas onde a
regulamentao est sendo pensada e executada na prtica. A associao entre esses
diferentes espaos se d, por um lado, pela circulao dos objetos acessados nessas
iniciativas; por outro, pelas prticas de traduo e agenciamento dos cientistas e das
comunidades locais. Estamos, portanto, diante de uma multiplicidade de localidades que
entram em relao nessas iniciativas. Para dar conta dessa multiplicidade, fiz uso da noo
de etnografia multisituada (multi-sited ethnography), conforme definida por Marcus (1995:
105): Multi-sited research is design around chains, paths, threads, conjunctions, or
juxtaposition of locations in which the ethnographer establishes some form of literal, physical
presence, with an explicit, posited logic of association or connection among sites that in fact
defines the argument of the ethnography. A forma como essas diferentes localidades so
colocadas em relao na tese seja pelo antroplogo, seja pelos prprios nativos ser
apresentada mais adiante. Por ora, importante observar que esse deslocamento
etnogrfico entre os diferentes stios das redes sociotcnicas circunscrito descrio
densa das prticas de conhecimento que perpassam a relao dos nativos com os objetos
que esto sendo acessados nas pesquisas. Neste caso, o exerccio de descrio
etnogrfica complementado pela tarefa de seguir e mapear a circulao desses objetos
em diferentes localidades, constituindo o que poderamos chamar de uma etnografia em
rede. Como essa circulao dos objetos nas redes sociotcnicas envolve tambm a
associao entre diferentes coletivos de atores humanos e no-humanos, essa abordagem
foi colocada em prtica sob o vis de uma etnografia multiator (Little 2006). importante
observar que a inteno nunca foi descrever os diferentes grupos envolvidos nessas redes,
mas apenas alguns aspectos do seu modo de vida que nos ajudam a entender melhor a
forma como eles se relacionam entre si e com os objetos que circulam nessas iniciativas de
pesquisa.
Conforme os prprios autores fazem questo de mencionar10, apesar do etngrafo
circular por diferentes localidades e grupos sociais, essa abordagem no pressupe
qualquer tipo de neutralidade cientfica, muito menos a ocupao de um lugar distanciado
(ou epistemologicamente superior). Ao circular, o antroplogo estabelece uma relao com
os coletivos onde realiza a pesquisa, negociando sua insero em campo e estabelecendo
algum tipo de reciprocidade com seus interlocutores. Conforme j esclareceu muito bem
Haraway (1999), o resultado desse vnculo existencial que todo conhecimento
antropolgico necessariamente um conhecimento situado. Por outro lado, como essa
experincia existencial marca a perspectiva intelectual, quando o antroplogo se desloca
para outros contextos etnogrficos, ele carrega consigo algo de cada uma dessas
10 Sobre isso, ver Marcus (1995: 112-13) e Little (1999: 4; 2006: 98).
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experincias, que o transformam em um sujeito composto ou mltiplo. Existe, portanto,
uma perspectiva comparativa que inerente ao exerccio etnogrfico aqui proposto e que
pretendo expor brevemente a partir de um dilogo com outros autores, constituindo o que
denomino de uma antropologia simtrica e experimental.
Em primeiro lugar, precisamos adotar alguns pressupostos de uma epistemologia
simtrica, conforme ela tem sido colocada em prtica nos estudos da cincia e na etnologia.
Precisamos aplicar esse princpio etnografia e romper com qualquer pretenso de
superioridade epistemolgica do discurso antropolgico sobre a fala e o pensamento nativo
(Viveiros de Castro 2002: 115; Latour 2005: 1-17). Trata-se de levar a srio o que dizem os
nativos sobre o que fazem, buscando experimentar os seus conceitos e o mundo possvel
que projetam: O nativo , sem dvida, um objeto especial, um objeto pensante ou um
sujeito. Mas se ele objetivamente um sujeito, ento o que ele pensa um pensamento
objetivo, a expresso de um mundo possvel, ao mesmo ttulo que o que pensa o
antroplogo (Viveiros de Castro 2002: 119). No se trata, portanto, de abordar o discurso
nativo como mais uma representao de um mundo nico que ele compartilha com o
antroplogo (a Natureza), muito menos de buscar revelar uma lgica prtica por trs de
suas falas, algo que ele no tem acesso ou conscincia. Experimentar os conceitos nativos,
neste caso, implica em considerar que eles apontam para outro mundo to possvel quanto
quele vivenciado pelo antroplogo. Esse empreendimento intelectual no envolve a busca
de um entendimento do ponto de vista nativo ou a tentativa de elevar nossos interlocutores
a posio de sujeito, mas de estabelecer uma relao com as suas noes de ponto de vista
e sujeito e ver as possibilidades que surgem da. Nas palavras de Latour (2005: 49): ()
analysts are allowed to posses only some infra-language whose role is simply to help them
become attentive to the actors own fully developed meta-language, a reflexive account of
what they are saying.
Quando deixamos o discurso antropolgico ser afetado pelo pensamento nativo,
desfazemos o n do objetivismo etnogrfico e passamos a seguir os nossos interlocutores e
as associaes que eles estabelecem. Essa experimentao com a linguagem e com o
mundo nativo permite que o discurso antropolgico seja afetado pela relao com outras
prticas de conhecimento. Quando esse procedimento igualmente usado para descrever o
mundo dos cientistas, ndios e ribeirinhos - sem estabelecer assimetrias epistemolgicas -
inserimos a tarefa de descrio etnogrfica dentro da proposta de uma antropologia
simtrica e experimental. Conforme j afirmou Latour (2005: 23): The task of defining and
ordering the social should be left to the actors themselves, not taken up by the analyst.
Veremos mais adiante como esse princpio da Teoria Ator-Rede ganha maior densidade
quando colocado em prtica em associao com a noo de multiplicidade ontolgica.
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Mas como atrelar essa perspectiva com a tarefa de pensar vetores que permitam
colocar em relao as mltiplas experincias vivenciadas pelo antroplogo? Primeiro,
precisamos reconhecer que a tarefa de estabelecer conexes entre os diferentes mundos
que entram em contato nessas iniciativas de pesquisa no unicamente do antroplogo,
pois os prprios nativos (e suas prticas de conhecimento) tecem associaes que colocam
em relao esses mltiplos universos conceituais. Afinal, conforme veremos a seguir, os
pesquisadores do ISA e da UFAM possuem suas prprias formas de traduo dos
conhecimentos indgenas e ribeirinhos, assim como os ndios e ribeirinhos agenciam a
relao com o discurso cientfico de uma maneira bastante peculiar. Essas estratgias
nativas de estabelecer associaes e colocar em relao prticas de conhecimento
diferenciadas tambm esto sendo afetadas pelo contexto histrico e poltico da
regulamentao. Da mesma forma, o trabalho dos tcnicos, conselheiros e especialistas
do CGEN, envolve a traduo de uma srie de pesquisas em andamento em diferentes
regies do Brasil, incluindo as iniciativas descritas aqui. Essas pesquisas so inscritas nos
documentos pelos prprios usurios tendo como referncia os dispositivos jurdicos que
compem o marco regulatrio e depois so enviadas ao Conselho, onde passam a
circular. Assim, apesar de estarmos lidando com uma multiplicidade de stios, objetos e
prticas de conhecimento, essa multiplicidade no resulta em pluralidade, pois conforme
veremos no decorrer da tese - os prprios atores estabelecem as associaes que colocam
em relao esses diferentes universos etnogrficos. Cabe ao antroplogo, neste caso,
seguir e mapear essas associaes, descrevendo essa multiplicidade topolgica.
Por outro lado, a experincia do etngrafo - que circula por esses diferentes
mundos, experimentando a linguagem conceitual e as respectivas ontologias nativas afeta
a sua perspectiva sobre as redes sociotcnicas na medida em que multiplica as suas
ferramentas intelectuais, permitindo o estabelecimento do que Strathern (2004: 24-39)
denominou de conexes parciais11. O antroplogo que sai do CGEN e vai em direo ao
laboratrio um pesquisador transformado por essa experincia inicial, que se torna parte
da sua caixa de ferramentas intelectuais. O mesmo ocorre com o antroplogo que sai do
laboratrio em direo a comunidade (e vice-versa). Isso no significa, no entanto, que o
pesquisador busca traduzir esses universos a partir uns dos outros, mas apenas que ele
11 Strathern (2004: 36-40) faz uso da noo de cyborg de Haraway para se referir a uma situao onde a experincia do antroplogo com os conceitos nativos compe a sua subjetividade da mesma forma que os artefatos tecnolgicos se colocam como uma extenso do corpo humano, passando a fazer parte da sua caixa de ferramentas conceituais quando ele se encontra em outros contextos etnogrficos: (...) when I think of myself as an anthropologist, feminist scholarship becomes an aid or tool; it introduces thoughts I would not otherwise entertain. Hence an anthropologist can make feminist discourse exist as a distinct exterior presence outside the body, as it were, because it is an extension of it, an instrument made of different materials, and able to do things that the original body alone cannot. At the same time, a tool only works for as long as it remains attached it is an instrument for one persons interaction with others, but not something to be encompassed or possessed independently of that persons use of it (Ibidem: 39).
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adquire mais essa experincia intelectual e existencial, podendo fazer uso de ferramentas
apreendidas em outros contextos na medida em que se tornem teis para iluminar
diferenas e continuidades entre mltiplas complexidades.
Antes de passarmos para a ltima parte desta introduo, resta relatar alguns
detalhes importantes sobre o processo de insero em cada um dos stios etnogrficos
abordados nesta tese. Conforme j foi mencionado, durante o ano de 2008, foi realizada
uma etapa de campo preliminar no CGEN. Aps requisitar permisso para a diretora do
Departamento de Patrimnio Gentico (DPG), passei a freqentar as reparties de um
prdio localizado na sede do IBAMA, em Braslia, onde o CGEN funcionava. Ainda nos
primeiros meses, realizei um levantamento de todo o arquivo institucional desse rgo: os
processos de autorizao; as atas de todas as reunies do Conselho, incluindo as
atividades desenvolvidas no mbito das cmeras temticas e os debates no plenrio;
resolues, notas tcnicas, informativos, comunicados e todo tipo de documento disponvel
para consulta pblica. Ao mesmo tempo, passei a acompanhar as reunies mensais do
conselho e outras atividades desenvolvidas no mbito do DPG, como seminrios, reunies e
oficinas de divulgao da legislao e de consulta pblica sobre o projeto de lei que estava
em processo de elaborao na poca. Tambm realizei algumas entrevistas com os
tcnicos do DPG abordando alguns aspectos de suas atividades profissionais. Nesse
sentido, tive a oportunidade de contar com o apoio de um antigo colega de mestrado em
antropologia que estava trabalhando como tcnico no DPG, o que possibilitou estabelecer
uma relao mais prxima com parte da equipe tcnica, com quem tive a oportunidade de
vivenciar alguns momentos informais. Com o passar do tempo, fui convidado a participar do
Comit de Avaliao de Processo (CAP), composto por especialistas tcnicos
responsveis por emitir pareceres sobre os pedidos de autorizao enviados ao CGEN.
Esse exerccio permitiu ter uma viso sobre o papel dos especialistas no debate
governamental e na resoluo das controvrsias tcnicas que perpassam o marco
regulatrio.
Apesar de reconhecer que a etnografia realizada no CGEN poderia ter sido mais
densa, acredito que essa experincia preliminar forneceu uma viso importante sobre como
a regulamentao est funcionando na prtica. Alm disso, importante mencionar que o
levantamento realizado no arquivo institucional permitiu mapear as problemticas
envolvendo a regulamentao e as mltiplas iniciativas de pesquisa autorizadas pelo
Conselho desde sua fundao. Essa etnografia tambm forneceu uma idia da importncia
de se pensar a governamentalidade enquanto uma rede, desconstruindo a viso do Estado
como uma instituio exgena sociedade civil. A observao da dependncia desse rgo
do trabalho dos especialistas e dos prprios usurios do Conselho, assim como a
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influncia dos processos de autorizao no debate governamental, revelou que as
problematizaes ticas e polticas que perpassam esse ambiente institucional no tm
origem nas reparties governamentais, mas apontam para linhas e vetores que perpassam
diferentes setores da sociedade diretamente afetados pela nova legislao. De fato, o que
chega ao CGEN na forma de documentos remete necessariamente a tudo que ficou de fora
por no se adequar ao formato dos dispositivos institucionais. Com isso, para entender as
implicaes ticas e polticas da regulamentao necessrio acompanhar de perto o que
est acontecendo nas redes sociotcnicas formadas em torno das pesquisas autorizadas
pelo Conselho.
A etnografia das redes sociotcnicas abordadas nesta tese ocorreu em diferentes
etapas. O trabalho de campo nos laboratrios de farmacologia da UFAM foi realizado, em
Manaus (AM), durante os meses de maro, abril, maio (primeira quinzena), julho (segunda
quinzena), agosto e dezembro de 2009; e janeiro de 2010. A permanncia no espao dos
laboratrios foi negociada com o coordenador do projeto, que recebeu muito bem a proposta
do trabalho, exigindo apenas uma carta de apresentao da pesquisa e o comprometimento
com o sigilo das informaes bioqumicas acessadas em campo. Nesse perodo, costumava
freqentar o curso de farmcia da UFAM quatro vezes durante a semana, ocasies em que
permanecia o dia inteiro acompanhando as atividades dos pesquisadores na bancada, com
quem tambm tive a oportunidade de conviver em situaes mais informais, como jantares e
almoos. Para entender melhor a linguagem conceitual dos farmaclogos, passei a estudar
os livros didticos e os manuais de laboratrio, apreendendo um pouco mais sobre
conceitos, teorias e tcnicas da farmacognosia. Esse aprendizado didtico foi
complementado pela experincia pessoal de conduzir alguns experimentos na bancada,
apreendendo na prtica a lidar com o corpo-laboratrio e com o mundo-das-substncias. A
partir do momento em que fui me familiarizando com esse universo, passei a entender
melhor os experimentos que os pesquisadores realizavam na bancada, mantendo um
registro cronolgico das atividades conduzidas pelos cientistas. Esse trabalho foi
complementado por entrevistas realizadas com os pesquisadores da UFAM e do INPA sobre
uma diversidade de temas associados ao projeto cientfico da farmacognosia e por uma
ampla reviso da bibliografia especfica da rea.
J o trabalho de campo na comunidade ribeirinha Nossa Senhora de Nazar,
onde as plantas medicinais e os conhecimentos associados foram coletados pelos
pesquisadores da UFAM, foi realizado entre setembro e outubro de 2009, no Alto
Amazonas, quando permaneci trs perodos integrais de vinte dias na comunidade. Durante
esse perodo, fui introduzido pela coordenadora na rede de famlias que usavam e
cultivavam plantas medicinais, passando a freqentar diariamente suas casas, onde
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mantivemos longas conversas sobre diferentes aspectos da sua relao com as plantas
medicinais. Alm dessas conversas cotidianas, acompanhei o uso das plantas na produo
de remdios caseiros e alguns eventos de cura, assim como tive a oportunidade de
presenciar as redes de circulao dessas plantas em ao. Tambm estabeleci um vnculo
com os homens da comunidade, com quem tive a saudvel experincia de adentrar o
universo da mata em busca de plantas medicinais e passar os finais de tarde em rodas de
conversa sobre diferentes aspectos da vida ribeirinha. Por ltimo, antes de retornar
Manaus, realizei o levantamento etnofarmacolgico sob orientao do coordenador do
projeto.
No ISA, realizei entrevistas com os coordenadores dos projetos em dois momentos
diferentes: entre maro e abril de 2009, quando tive a oportunidade de freqentar o
escritrio desta instituio em Manaus e acompanhar minimamente a rotina de trabalho dos
pesquisadores; e depois, entre dezembro de 2009 e fevereiro de 2010. Apesar de uma das
pesquisadoras ter retornado para a Frana no ano anterior, realizamos uma srie de
entrevistas via tele-conferncia sobre as diferentes etapas da pesquisa sobre
agrobiodiversidade. Aqui preciso reconhecer uma limitao imposta pelo campo: as
atividades de pesquisa do projeto sobre agrobiodiversidade j haviam sido finalizadas. Por
outro lado, o projeto sobre paisagens estava na etapa de sistematizao dos dados, o que
possibilitou um contato mais direto com os pesquisadores. Apesar dessas limitaes, tive a
oportunidade de conviver em diferentes circunstancias com outros pesquisadores do ISA
sediados em Manaus e, principalmente, em So Gabriel da Cachoeira. Neste caso, tambm
busquei me familiarizar minimamente com a linguagem conceitual da ecologia e da
agronomia, apreendendo alguns conceitos e mtodos dessa rea cientfica, o que ajudou a
aprofundar temas mais tcnicos com os pesquisadores. O trabalho de campo no ISA foi
complementado por uma ampla reviso bibliogrfica das publicaes desta instituio,
incluindo os seus relatrios anuais e informativos.
Alm desse trabalho em Manaus, permaneci dois perodos em So Gabriel da
Cachoeira: cinqenta dias entre o final de maio e a primeira quinzena de julho de 2009; e
depois mais trinta dias entre fevereiro e maro de 2010. Nessas duas ocasies, convivi
diariamente com as famlias indgenas que participaram do projeto sobre
agrobiodiversidade, acompanhei atividades nas roas e na feira onde comercializavam
produtos e visitei stios e comunidades. importante mencionar que, apesar da pesquisa
sobre agrobiodiversidade estar oficialmente concluda, ela continuava acontecendo na vida
dos agricultores indgenas, que haviam formado uma associao para levar adiante o plano
de comercializao de produtos da roa em uma feira localizada no centro da cidade.
Tambm tive a oportunidade de conviver quase que diariamente com trs pesquisadores
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indgenas que atuaram nas duas iniciativas apresentadas aqui, sendo que um deles fez o
acompanhamento da minha pesquisa. Tambm realizei uma srie de entrevistas com os
diretores da FOIRN e da Organizao Indgena da Bacia do Iana (OIBI) sobre temas
relacionados s duas pesquisas e realizei um levantamento nos arquivos institucionais, com
nfase nos procedimentos de autorizao de pesquisas em reas indgenas. Essa
experincia de campo foi complementada por uma ampla reviso bibliogrfica sobre a
histria do contato entre ndios e brancos no ARN e sobre a etnologia dos povos indgenas
que habitam essa regio12.
Apesar do compromisso com os princpios epistemolgicos de uma antropologia
simtrica e experimental, essa perspectiva teve que se adaptar s circunstancias
assimtricas do trabalho de campo. Com isso, fiz um uso varivel dos procedimentos
etnogrficos em cada um desses contextos, mas em todos tive a oportunidade de realizar
observao participante com certa densidade. Tambm importante mencionar que, em
todos esses stios, tive que negociar a insero com meus interlocutores, assumindo, em
alguns momentos, o papel de assessor ou de colaborador, dependendo do contexto.
Apesar da etnografia multisituada e multiator no oferecer a mesma densidade que um
estudo de caso, ela oferece outras vantagens como as conexes parciais mencionadas
anteriormente. Sobre essa questo do grau de densidade da experincia etnogrfica,
gostaria de lembrar que essa densidade no um simples efeito da durao temporal, pois
envolve tambm uma srie de tcnicas, um determinado recorte temtico e uma forma
minuciosa de fazer antropologia, voltada para a explorao mxima da descrio densa
dos eventos e situaes vivenciadas em campo. Por ltimo, gostaria de lembrar que essa
experincia etnogrfica resultou no estabelecimento de um vnculo com os cientistas, ndios
e ribeirinhos com quem tive a oportunidade de conviver durante esse perodo, uma relao
que eu pretendo dar continuidade durante o restante da minha trajetria profissional. Mais
um motivo para frisar que est tese apenas um ponto de partida em um projeto intelectual
que pretendo dar continuidade.
Redes Sociotcnicas, Ontologia e Pragmatismo
A noo de redes sociotcnicas adotada nesta tese foi concebida tendo como
referncia a Teoria Ator-Rede (Actor-Network Theory, ANT13), a partir de um
12 Ainda sobre o campo em So Gabriel da Cachoeira, importante notar que passei por todos os procedimentos locais de consentimento informado: apresentei e discuti minha pesquisa com os diretores da FOIRN; assumi o compromisso de enviar uma cpia de todo material de pesquisa para a biblioteca da instituio; e aceitei a sugesto de remunerar um pesquisador indgena durante o perodo em que estive na regio. 13 A partir deste ponto, vou utilizar a sigla em ingls para me referir a Teoria Ator-Rede. Essa opo se justifica devido a popularidade dessa sigla nos estudos da cincia e na antropologia.
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desdobramento especfico das duas palavras que a compem: rede e sociotcnicas (o
segundo um adjetivo). Trata-se, portanto, de uma composio feita a partir da traduo de
noes j bem disseminadas nos estudos da cincia, mas cujo significado ou sentido
envolve uma srie de controvrsias tericas e metodolgicas. O conceito de rede surgiu,
inicialmente, na dcada de 1980, para falar sobre fenmenos (tradues, transformaes)
que no podiam ser descritos com o uso de conceitos tradicionais das cincias sociais,
visando desconstruo de uma srie de dicotomias bastante populares no pensamento
ocidental, como indivduo/sociedade, ator/estrutura e local/global (Latour 1999). Nessa
primeira etapa de concepo do conceito, a rede apontava para uma topologia que
permitia pensar o global/local como uma rede de pontos ou ndulos interligados por fios ou
malhas, constituindo uma forma de espacialidade transversal (Latour 1987, 1991). Com isso,
essa noo permitiu criticar a pretenso de universalidade do discurso cientfico sem
desconsiderar a sua extenso global. Para exemplificar o fenmeno, Latour (1987, 2001) fez
uso de uma srie de analogias com sistemas ferrovirios, de telefonia, de esgoto e de
meteorologia. Por outro lado, buscou deixar claro que a rede era o efeito do exerccio de
associao e traduo realizado pelos prprios atores: so eles que definem quem faz ou
no parte, quem est a favor ou contra suas idias e as controvrsias com as quais esto
envolvidos. Tambm foi nesse mesmo perodo que a noo de traduo (no sentido de
translao lingstica e espacial) foi apresentada por Latour, Law e Callon como o
mecanismo que p