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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCOCENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM

    ANTROPOLOGIADOUTORADO EM ANTROPOLOGIA

    CURAS ATRAVS DO ORN:

    rituais teraputicos no Il Yemanj Sb Bassam

    (Recife)

    MARIA ODETE VASCONCELOS

    RECIFE

    2006

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANASPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA

    DOUTORADO EM ANTROPOLOGIA

    CURAS ATRAVS DO ORN: Rituais teraputicos no IlYemanj Sb Bassam (Recife)

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia da UFPE pela alunaMaria Odete de Vasconcelos, para obteno do ttulo de

    Doutora em Antropologia, tendo como orientador o Prof.Dr. Roberto Mauro Cortez Motta.

    RECIFE2006

    .

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    Vasconcelos, Maria OdeteCuras atravs do Orn : rituais teraputicos

    no Il Yemanj Sb Bassam (Recife) / MariaOdete Vasconcelos. Recife : O Autor, 2006.

    313 folhas : il., fot.Tese (doutorado) Universidade Federal de

    Pernambuco. CFCH. Antropologia, 2006.

    Inclui bibliografia, apndice e anexos.

    1. Antropologia - Xang. 2. Etnlogia Antro-pologia cultura. 3. Cura Terapias religiosas. 4.Cura - Fitoterapia. Ttulo.

    39 CDU (2.ed.) UFPE390 CDD (22.ed.) BC2006-456

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    A terra no cansa nunca,a terra quieta, rude,

    a princpio incompreensvel.A Natureza rude e a princpio

    incompreensvel,no desanime, siga em frente: existem

    coisas divinas bem acondicionadas,juro a voc que existem coisas divinas

    mais belas do que possam as palavras dizer.

    Walt Whitman, 1983.

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    DEDICATRIA

    Letcia:tia e amiga

    maternal.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Dr. Roberto Mauro Cortez Motta, amigo constante e orientador

    generoso, que concedeu tempo, idias e livros, conduzindo de modo efetivo e

    afetivo cada etapa deste trabalho.

    Profa. Dra. Maria do Carmo Tinoco Brando, pelo empenho e

    obstinao despendidos para instaurar o Doutorado no PPGA da UFPE, e por

    alertar-me no sentido de estudar o Terreiro Yemanj Sb Bassam.Ao Corpo Docente do Programa de Ps-Graduao em Antropologia da

    UFPE, especialmente, o Prof. Dr. Antonio Motta, pelo carinho, interesse e falas

    tranqilizadoras nos momentos pontuais do Doutorado.

    Ao Prof. Dr. Bartolomeu Figuera de Medeiros, Coordenador do

    Doutorado, pela atitude colaborativa com os alunos da primeira turma.

    Agradeo o apoio recebido pelas instituies: Programa de Ps-Graduao em Antropologia da UFPE, Universidade Federal da Bahia,

    Universidade Cndido Mendes e Centro de Estudos Afro-Asiticos, que me

    proporcionaram a realizao do Curso Fbrica de Idias.

    A Profa. Gislia Potangy, amizade construda ainda no Mestrado em

    Antropologia da UFPE, pelas palavras de apoio, to caras nos momentos mais

    difceis desses ltimos anos.

    Aos amigos e colegas da primeira turma do Doutorado: Ktia Medeiros

    de Arajo, companheira de todas as horas, que com os ps sangrados como os

    meus, nos instantes finais do trabalho, esteve presente todo tempo. E Eduardo

    Fonseca, sempre prestativo.

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    Aos amigos fiis, pela presena, apoio e colaborao, dentre os quais,

    destaco: Grzia Cardoso, Rosa Aquino e nio Mariz.

    Um especial agradecimento Profa. Dra. Hlia Maria Cannizzaro,

    companheira constante durante o trabalho de campo, leitora vida do texto, bem

    como, pelo reconhecimento da fidelidade dos dados.

    Profa. Dra. Marion Teodsio de Quadros, amiga fiel, pelo interesse na

    minha caminhada nas Cincias Humanas, incentivadora mpar e leitora crtica.

    Historiadora e Arquivista, Aneide Maria de Santana, pela franquia do

    Documento do Arquivo Ultramarino Brasil/Portugal (Abcedrio das plantas

    curativas usadas no Nordeste em 1778) que se constituiu em fonte primria.

    Suziene Davi Silva pelo tratamento dado s fotografias, muitas delas

    prejudicadas pelo tempo, e por fotografar o assentamento de Ossim, que veste

    a capa.

    Aos Prof. Jos Amaro Santos Silva, Julia e Adilson Annes, pela

    disponibilidade e extremada pacincia em suprimir dvidas e ajustar minhas

    interpretaes sobre os dados coletados.

    Regina Salles de Souza Leo e Ana Maria Costa, pelo atendimento

    administrativo gentil e eficiente.

    Ao Prof. Antonio Jos Cavalcante Albuquerque, fiel escudeiro na arena da

    computao e de to grande ajuda nos instantes finais da impresso.

    Vernica e Letcia, sempre concretamente presentes.

    Ao povo-de-santo do Terreiro Yemanj Sb Bassam.

    Para Deus e os Orixs.

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    RESUMO

    Esta pesquisa tem como objetivo estudar as aes curativas praticadas no

    Terreiro de Xang, Yemanj Sb Bassam, situado no Brejo de Beberibe,

    Recife. O estudo procura identificar os aspectos simblicos e a lgica, usados

    pelos fiis para a compreenso do binmio doena/cura, bem como, as dinmicas

    que norteiam as representaes construdas em torno dos elementos

    estruturantes do Xang, elementos aliados dos processos da cura religiosa. O

    trabalho confere relevncia s ervas sagradas usadas como instrumentos

    teraputicos. Por outro lado, realiza um resgate da histria e percurso religioso de

    Dona Elizabeth de Frana Ferreira (Me Betinha), de grande atuao como

    agente de cura, lder religiosa do Terreiro, e de sua importncia para a

    religiosidade afro-brasileira do Recife. A metodologia usada foi etnogrfica. As

    tcnicas aplicadas foram: observao participante, gravaes de entrevistas semi-

    estruturadas e de conversas informais com os membros da comunidade religiosa

    e usurios dos processos de cura. Constaram, tambm, da coleta de dados:

    filmagens em VHS, fotografias dos espaos e cerimnias presenciadas no

    Terreiro. A anlise dos dados permitiu revelar as concepes do conceito de

    doena elaborados pelos adeptos do culto e verificar a existncia de

    complementaridade entre as terapias religiosa e mdica.

    Palavras Chave: Xang Cura Ervas

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    ABSTRACT

    This dissertation examines healing practices in the specific context of an Afro-

    Brazilian Xang shrine: the Terreiro of Xang, Yemanj Sab Bassam,located

    in the Brejo de Beberibe, Recife in Northeast Brazil.The aim of the study is to

    identify some symbolic aspects of to the logic applied by the followers of this

    religion, to the understanding of the couple disease/healing. The dissertation alsoexamines the symbolic representations built around the Xangos structure

    studying the meaning of sacred herbs considered as therapeutic tools. It also

    contains a biographical outline of Dona Elizabeth de France Ferreira (Mea

    Bettina) leader of theshrine stressing the importance of her role within the \afro-

    Brazilian religious context of Recife. The methodology was of investigation was

    the ethnographic work, based on participant observation, semi-structured andrecorded interviews and informal conversations with members of the religious

    community enriched with The collected qualitative data also includes VHS films

    and photographic pictures of the setting and religious ceremonies of the Terreiro.

    Keywords: XANG - CURE - HERBS

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    SUMRIOSUMRIOSUMRIOSUMRIO

    INTRODUO..................................................................................14

    CAPTULO 1 Consideraes sobre o Xang do Recife............25

    1.1. Quatro pilares: aspectos fundamentais do Sistema Religioso..35

    1.1.1. Do sacrifcio.............................................................................. ...35

    1.1.2. Da Folha........................................................................................44

    1.1.3. Do Transe......................................................................................59

    1.1.4. Da festa..........................................................................................65

    CAPTULO 2 Da Cura....................................................................80

    2.1. Cura Mdica.............................................................................. 82

    2.2. Consideraes em torno da Doena..................................... ....84

    2.3. A Cura religiosa como objeto de estudo da

    Antropologia da Sade............................................................. ..90

    CAPTULO 3 - O Terreiro Yemanj Sab Bassam ...................... ..99

    3.1. Contextualizao................................... ....................................101

    3.2. Descrio do Terreiro......................................................... .......104

    3.3. Da Aquisio...............................................................................105

    3.4. Descrio dos espaos ..............................................................110

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    3.4.1 Espao Sagrado............... ....................................................... 111

    3.4.1.1. ... Pej dos Exus........................................ ..........................................111

    3.4.1.2. ... Salo de Toques...............................................................................112

    3.4.1.3. ... O Peji dos Orixs..............................................................................114

    3.4.1.4. ... A Cozinha Sagrada......................................................................... .117

    3.4.1.5. ... A rvore Sagrada.............................................................................119

    3.4.2. Espao Urbano......................................................................................... 121

    3.4.3. Espao Mata..............................................................................................128

    3.5 Panteo, Calendrio Litrgico, Genealogia Sagrada..................................133

    CAPTULO 4 A Comunidade do Terreiro Yemanj Bassame Trs

    Retratos.......................................................................140

    4.1. Me Betinha, filha de Yemanj: Uma Ialorix Singular...........................143

    4.2. Jos Amaro Santos da Silva, filho de Xang Aganju iyr

    Oxogum do Terreiro.................................................................................162

    4.3. ngelo Frutuoso...................................................................................... 167CAPTULO 5 O Orn enquanto agente de cura no Terreiro Yemanj

    Sb Bassam.................................................................................171

    5.1. Clientela e formas de Diagnosticar...........................................................172

    5.2. Aes Curativas........................................................................................186

    5.2.1. Oferendas Sacrificiais usadas para curar.......................................................198

    5.2.2. Pratos de Cincia ...........................................................................................203

    5.2.3. Limpezas Corporais........................................................................................205

    5.2.4. Amassi............................................................................................................209

    5.2.5. Obor (Bori).....................................................................................................212

    CONSIDERAES FINAIS.............................................................................216

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................... 222

    ANEXO A - Planta Baixa do Terreiro Yemanj Sb Bassam....................... 242

    ANEXO B Documento do Arquivo Histrico Ultramarino..............................245

    ANEXO C Cerimonial deObori.....................................................................288

    APNDICE A Relao de Plantas Curativas Usadas no

    Terreiro..................................................................................................291

    APNDICE B Fotografias do Terreiro Yemanj Sb Bassam.

    (arquivos da pesquisadora e da Dra.Mareila Seeber-Tegethof................298

    CAPA: Assentamento de Ossim.Fotografia de Suziene Davi.

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    INTRODUO

    Esta tese persegue um resgate atravs de trabalho etnogrfico do

    Terreiro Yemanj Sb Bassam,j extinto, situado na periferia do Recife, Brejo

    do Beberibe. Os seus objetivos principais so compreender os elementos que

    norteiam as prticas simblicas e a lgica nativa que existe nos processos de cura

    usados nessa casa de culto de Xangde Pernambuco.

    No texto, saliento os aspectos simblicos envolvidos nos processos

    teraputicos observados no Terreiro; as representaes em torno da categoria

    doena; as dinmicas balizadoras das representaes construdas em torno dos

    elementos estruturantes doXange abordo as aes curativas mais freqentes.Para atingir os objetivos propostos, a pesquisa se deteve nos principais rituais do

    Xangdando especial relevncia atuao dos mesmos nos processos de cura.

    Destaquei trs atores da comunidade religiosa, fundamentais para a

    realizao desses rituais e/ou das prticas curativas: Dona Elizabeth de Frana

    Ferreira (Me Betinha), Jos Amaro Santos Silva e ngelo Frutuoso. Me Betinha

    fundou e administrou os saberes religiosos praticados no Terreiro Yemanj Sb,

    tendo sido a me-de-santo atuante, mais antiga do Recife na poca de sua morte.

    O babalorix Jos Amaro, Oxogum (oficiante de sacrifcios) da casa, alm de

    pertinente atuao na realizao das cerimnias rituais, inclusive, aquelas com

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    fins curativos. ngelo Frutuoso, og do Terreiro, que este cargo foi pessoa

    importante no contexto laico da casa. Mdico. Utilizava a profisso, cuidando da

    sade dos membros da comunidade religiosa. Sua participao nos contextos

    curativos exercidos na casa era um exemplo vivo da convivncia entre dois

    campos diferentes - o cientfico e o religioso - relacionados aos processos de cura.

    Na minha Dissertao de Mestrado, defendida em 1995, meu interesse

    se caracterizou por realizar um consrcio entre aspectos mdicos e

    antropolgicos. Naquela ocasio, pesquisei o simbolismo que confere lgica ao

    ato da doao de rgos entre pessoas vivas, especificamente o rim.

    Em 1993, me movimentei para a religio afro-brasileira com resultante

    vinculao e pertencimento. O olhar que deitei ao universo do Terreiro

    freqentado, disciplinadamente, carregava um interesse para os fazeres e as

    prticas religiosas, conflitos e tenses perceptveis, e outros aspectos

    pertencentes ao mundo laico que habitavam o Terreiro. Interessei-me pelos rituais,

    principalmente, aqueles relacionados com cura. Os conceitos de doena, a

    qualidade da clientela e os instrumentos de cura associados as suas indicaes

    fizeram parte dos dados coletados.

    A multiplicidade dos interesses me levou a disciplinar minhas

    observaes e, da, nasceu um dirio de campo. Somando-se a ele, foram

    realizados registros sob a forma de fotografias, filmagens em VHS, e gravaes

    em fita cassete (das msicas cantadas durante as cerimnias, de conversas

    informais, e de entrevistas semi-estruturadas). Este trabalho etnogrfico

    aconteceu no perodo compreendido entre 1993 at 2002.

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    Quando o Programa de Ps Graduao em Antropologia da

    Universidade Federal de Pernambuco, instaurou seu Doutoramento, nele me

    engajei. O desejo de aprofundar meu conhecimento antropolgico sobre o

    Terreiro, agora, com a sistematizao conferida pelos conhecimentos tericos e

    prticos oferecidos pelo curso constru um projeto, onde, imergisse no tema das

    religies afro-brasileiras, tendo, como alvo, as questes relacionados com o

    binmio doena/sade, que vm me interessando, desde minha formao mdica

    e antropolgica. O projeto tinha como objetivo aprofundar aspectos como: verificar

    os processos teraputicos exercitados no universo do Terreiro; perseguir as

    lgicas nativas sobre as aes curativas; compreender o papel dos rituais

    curativos, e, neles, o das plantas, bem como, os simbolismos que revestiam esses

    processos. As temticas acima citadas, portanto, se tornaram legitimadas em um

    projeto institucional, aps dez anos de observao e registros realizados no

    terreno estudado. Gostaria de enfatizar, que as observaes e registros

    etnogrficos, iniciadas desde quando passei a freqentar o Terreiro, muito antes

    da construo do projeto de tese, eram generalizadas. Isto significa dizer que, at

    2000, minhas preocupaes no eram focadas, exclusivamente, no objeto desse

    trabalho. Entretanto, os seus temas faziam parte do todo observado, e, mesmo

    sem especificidade rigorosa, eles eram pontuados. Isto porque, primeiro, a

    inquietao com a cura sempre existiu, e, segundo, as pessoas pertencentes

    comunidade religiosa apresentavam um comportamento singular, quando se

    tratava do uso de servios teraputicos. Parecia haver uma simbiose, entre as

    diferentes prticas curativas (religiosa e mdica), mesmo que as compreenses

    das categorias sade/doena aparentassem divergncias. Por outro lado, para

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    aumentar esta inquietao, os profissionais da sade, afiliados ao Terreiro

    estudado, tambm assumiam um comportamento singular, quanto s questes da

    cura. Eles buscavam pari em si, para os familiares e amigos o auxlio da cura

    viabilizada pelo Terreiro.

    A preocupao com a cura no Terreiro, sempre esteve presente,

    mesmo, quando o doutoramento no estava em pauta e, inexistia um projeto de

    estudo definido. Foi a partir dessas observaes, que as plantas se revelaram

    para mim, revestidas de uma importncia capital dentro das aes curativas, ali

    praticadas.

    Durante o Doutorado, j com meu interesse especificado, me dei conta

    da necessidade de me debruar sobre o campo, agora sabendo o alvo que

    deveria perseguir. Quando este entendimento aconteceu, e o carter curricular do

    PPGA permitiu, o Terreiro no mais existia. Acontecera o falecimento de sua lder

    religiosa com conseqente dissoluo da instituio. Como continuei mantendo

    contato com as pessoas da comunidade religiosa do Terreiro (inclusive, para

    continuar realizando as minhas obrigaes rituais), passei a ter, com elas,

    dilogos gravados e conversas informais que acresceram, ratificaram e filtraram

    meus dados sobre o tema deste projeto.

    Entrevistei os profissionais da sade, ligados ao Terreiro, a fim de

    verificar como entendiam o fenmeno da cura ou alvio ocorridos naquele

    universo. Entrevistei, ainda, babalorixs, ialorixs, filhos e filhas-de-santo, com a

    finalidade de me aprofundar nas suas interpretaes sobre os ritos, mitos e o

    fenmeno da cura. As ervas sagradas, mais usuais nas aes curativas, foram

    cotejadas.

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    Para enriquecer os dados, sobre Dona Elizabeth de Frana Ferreira,

    entrevistei seus familiares biolgicos (filha e genro). Com o intuito de seguir a sua

    trajetria religiosa, enquanto adepta da religio afro-brasileira, entrevistei a filha e

    o neto biolgico da me-de-santo que a consagrou.

    Entrevistas com erveiros do mercado pblico de S. Jos, permitiram

    verificar semelhanas e diferenas, entre as formas como eles e o povo-de-santo,

    coletavam e se relacionavam com as plantas.

    Realizei, na Prefeitura do Recife (Secretarias de Desenvolvimento

    Econmico e de Planejamento, Urbanismo e Meio Ambiente) e IBGE (Instituto

    Brasileiro de Geografia e Estatstica), levantamento de dados scio-demogrficos

    do bairro onde se situava o Terreiro com o propsito de sentir o pulso social da

    populao circunvizinha.

    Necessrio se fez, uma pesquisa bibliogrfica sobre Antropologia das

    Religies Afro-brasileiras, Etnobotnica, Antropologia da Sade, e concepes de

    sade/doena dogmatizadas pela medicina oficial.

    Para aproximao terica sobre religies afro-brasileiras em geral,

    enfatizando seus aspectos basilares (sacrifcio, transe, folha, festa, cura) me

    detive nas interpretaes dos textos de: Aflavo,1997;Santos, 1993; Alves 1998;

    Amaral, 2002; Augras, 1983, 1986; Bastide, 1950, 1974, 1978; Braga, 1992;

    Brando,1987; Carneiro, 2005; Caroso & Bacelar,1999; Lima,1937; La Porta,

    1979; Loyola, 1996, Motta, 1976, 1985, 1986, 1988, 1991,1995,1999; Montero,

    1985; Povas, 1999; Prandi, 1995, 2001, 2005; Ribeiro, 1954,1978,1982; Ortiz,

    1988; Ramos, 1940; Riserio,1996; Rodrigues, 1988; Pvoas, 1999; Verger,

    1981, 19951997. Dentre estes, foram fundamentais as contribuies de Motta

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    para a compreenso dos conceitos bsicos do Xang, da importncia dos rituais

    do sacrifcio, do amassi,e do papel do sistema religioso para a sobrevivncia dos

    afiliados. Montero, Loyola e Augras foram importantes para as reflexes

    relativas cura religiosa e seus elementos estruturais e estruturantes, posto que,

    ela trafega na teia de mltiplas relaes entre: ordem e desordem, pureza e

    impureza, fora e fraqueza, o eu e o outro, etc., e na busca pelas coerncias e

    incongruncias, bem como, pelos sentidos instauradores e reveladores de

    estruturas que povoam o humano.

    Sobre ervas, enquanto, objeto da fitoterapia, e, suas relaes com as

    Religies Afro-brasileiras, seja na enumerao das espcies e dos usos curativos,

    seja sobre os modelos classificatrios construdos pelos nativos, que permeiam as

    indicaes, foram importantes os textos, aqui citados: Albuquerque, 1997;

    Arajo, 2002; Cabrera, 1992; Camargo, 1988, 1989, 1990; Caroso,1999;

    Caprara, 1998; Lunhing, 1999; Barros 1993; Barros e Napoleo, 2003;

    Bornhausen, 1991; Macioti,1993; Martins eMarinho,2002; Meyer &Ribeiro,

    2004; Prandi, 2001; Verger, 1995, 1981; Voeks, 1997. Dentre estes,

    Albuquerque, CamargoeVergerpermitiram uma familiarizao com os vegetais

    usados ritual e curativamente, e a partir da, compar-las com aquelas mais

    usadas no Terreiro. BarroseBarros & Napoleo indicaram os parmetros que

    do lgica aos sistemas classificatrios nativos das plantas de utilidade litrgico-

    teraputica no mundo das religies Afro-brasileiras.

    Como fonte primria, trabalhei o documento do Conselho

    Ultramarino: Abcedrio de varias ervas, razes e frutos medicinares produzidas no

    Brazil, Cidade da Paraba do Norte e sua Comarca, anexada a uma carta remetida

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    para Portugal, pelo ento governador, Thomaz Jos de Mello, para identificar as

    ervas usadas na nossa regio em 1788, e , verificar similitudes de indicao

    medicamentosa com as utilizadas no Terreiro (ANEXO B).

    O simbolismo e a eficcia simblica foram vistos, principalmente, pela

    tica de Lvi-Strauss(1975) e, foi um dos fios condutores que usei para percorrer

    os significados contidos nos processos rituais curativos.

    As interpretaes das escolhas das modalidades de cura tiveram

    embasamento em Douglas (1973, 1996, 1998). Para a reviso conceitual e

    histrica da cura e da doena, tanto no vis medico, quanto no religioso, utilizei,

    Canguilhem, 1978; Hegenberg,1998;Porter, 2002. Autores que pesquisam nos

    campos da Antropologia da Sade e da cura religiosa foram de suma importncia,

    para balizar conceitos e comparar os dados encontrados, e dentre eles, cito:

    Canesqui, 1998; Ferretti, 1988; Hoffnagel, 1986, 2002; Minayo, 1998, 1994a;

    Medeiros, 2002.

    Organizei, analisei e selecionei dos meus registros, os filmes em VHS

    (oito), as fotografias (trinta e oito) e gravaes em cassete (doze). Eles so

    referentes ao Terreiro enquanto espao, transes e rituais (quando foi permitido

    registr-los), as festas pblicas, e as pessoas. Neles, esto contidos as conversas

    informais com Dona Elizabeth de Frana Ferreira, as oferendas e algumas

    cerimnias rituais, os cantos executados nos toques etc. Foram produzidos

    durante os quase dez anos de vivncia no Terreiro.

    Como se sabe, muitas vezes, o antroplogo vai para o campo sem ter

    clareza do que seja importante para delimitar seu objeto de estudo, sendo

    fundamental a imerso no universo estudado para essas definies. Na trajetria

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    do meu campo, esse caminho foi realizado em duas etapas. Numa primeira etapa

    (quando os interesses no estavam legitimados por um projeto), as observaes,

    anotaes e outros registros foram difusos, e o tema desse trabalho,

    possivelmente, no foi especialmente privilegiado naquela ocasio. Ele existe,

    igualitariamente, entre os dados globais coletados. Numa segunda etapa, j aluna

    do doutorado, sem contar mais, com a existncia do Terreiro para re-visitaes

    etnogrficas, procurei entrevistar e/ou conversar informalmente com alguns

    membros da comunidade extinta. E, nesses contatos, o tema cura, passou a

    ocupar a merecida posio de estaque. Esses encontros permitiram

    complementar os dados do meu objeto especfico de estudo, esclarecer dvidas

    que a escritura das anotaes de campo suscitavam. Analisei, detidamente, meu

    antigo dirio de campo, deitando sobre ele um olhar aguado para a questo da

    cura e do simbolismo que a reveste, para as prticas curativas mais usuais no

    Terreiro, bem como, para as ervas sagradas que participavam como instrumentos

    de cura.

    O estudo essencialmente etnogrfico. Justifico minha opo pela

    etnografia, por considerar que ela congrega uma srie de caractersticas que, vo

    se tornando fundamentais para o conhecimento antropolgico, assumindo um

    carter, inclusive, resiliente, nas palavras de Almeida (2004), mais do que as

    teorias que, como o funcionalismo, a acompanhou desde o seu nascimento.

    Acredito que a Antropologia Interpretativa, de Geertz (1989), tem sido

    um marco de referncia, pois questiona as implicaes positivistas do

    conhecimento que possibilita dilogo e comparao entre fenmenos culturais.

    Assim, a etnografia, como descrio densa preconizada por Geertz, foi a minha

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    opo metodolgica de dilogo dentro de um campo especfico da Antropologia, o

    das religies afro-brasileiras, e da cura religiosa no meu terreno.

    Questes relacionadas a campos e espaos de atuao diferenciados,

    agentes e saberes distintos, que encontravam no Terreiro um ambiente para o

    exerccio de prticas curativas; a elaborao e vivncia de costumes; ensinamento

    de atitudes; estabelecimento de significaes das coisas e das aes, capazes de

    gerar mudanas nas vises de mundo e nos comportamento dos sujeitos foram

    fundamentais para a anlise etnogrfica aqui empreendida.

    A multiplicidade de relaes de complementaridade, hierarquia e poder

    estabelecidas entre saberes e prticas relacionados cura no Terreiro, bem como,

    o reconhecimento de diferenas entre o transcendente, o sutil, o puro, etc., e o

    material, o ordinrio, o impuro foram analisados, relacionando indicadores de

    autoridade e liderana que sustentavam a comunidade religiosa estudada.

    O trabalho est subdividido em cinco captulos, alm dessa Introduo

    e das Consideraes Finais. No Primeiro Captulo, fao uma digresso terica

    sobre o Xang do Recife, levando em conta, os elementos estruturais que

    embasam as prticas religiosas. O Segundo Captulo trata da conceituao da

    categoria doena na medicina oficial, levanta a importncia do estudo dos temas

    correlatos pela Antropologia e aponta matrizes tericas para realizao dos

    mesmos. Pontua alguns aspectos sobre a cura religiosa. No Terceiro Captulo

    contextualizo o Terreiro no bairro onde se localizava e descrevo seus principiais

    espaos. Aponto as entidades do panteo cultuado, e pontuo as principais festas

    do calendrio litrgico da casa. Trao, ainda, a linha genealgica de sua tradio.

    No Quarto Captulo, sumarizo a composio da comunidade religiosa. Achei

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    temerrio descrever suas caractersticas, desde o incio, at sua fragmentao

    (por s ter conseguido informaes muito fragmentadas). Mas, elaboro uma

    galeria de trs retratos, pinados da comunidade. O critrio de escolha de duas

    delas, atores das trs cenas, foi perpassado pela importncia das mesmas no

    contexto do Terreiro, bem como, e principalmente, pelos seus envolvimentos com

    os rituais de cura religiosa. A terceira pessoa foi escolhida por sua atuao na

    cura mdica (que tambm era ministrada no Terreiro). No Quinto Captulo

    descrevo as representaes feitas pelas lideranas e comunidade sobre a doena

    e da cura, aponto a lgica nativa que permitia a realizao dos diagnsticos, e

    descrevo os instrumentos mais usados para determin-los. Pontuo, tambm, as

    principais aes curativas que constelavam as estratgias de cura existentes,

    juntamente com os mais representativos rituais teraputicos. Analiso a

    coexistncia de prticas curativas baseadas em lgicas diferentes nos processos

    de cura do universo estudado.

    Constam dois Apndices: A, uma relao das ervas curativas mais

    incidentes no Terreiro, e um quadro comparativo, elaborado a partir da fonte

    primria, representada pelo documento do Conselho Ultramarino Brasil/Portugal,

    de 1788; O Apndice B um ensaio fotogrfico do Terreiro.

    A planta baixa do Terreiro produzida por Adilsom Annes, tem a

    importncia de representar a viso da estrutura arquitetnica e a distribuio dos

    espaos, pelo olhar de um membro da coletividade e constitui o ANEXO A. Como

    ANEXOBincluo a fonte primria, denominada Abecedrio de vrias ervas, razes

    e frutos medicinais produzidos no Brazil. Cidade da Paraba do Norte e sua

    Comarca, das quaes uzo muitos nascionais nos seos curativos com

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    aproveitamento pela sade perdida, datado de 1788, e enviada para o Conselho

    Utramarino em 1788, pelo governador Thomz Jos de Mello. O ANEXO C o

    roteiro da cerimnia de Obori realizado na lder do Terreiro, elaborado pelo

    BabalorixJos Amaro Santos Silvae usado na ocasio.

    Os embasamentos tericos que respaldam a interpretao dos

    argumentos esto diludos ao longo dos captulos.

    Optei, por chamar os informantes pelo primeiro nome, seguido de suas

    respectivas filiaes sagradas, exceto aqueles que, assumida e legalmente,

    permitiram o uso de sobrenomes.

    As palavras iorubanas esto grafadas semelhantemente aos

    Dicionrios de Cultos Afro-Brasileiros,Cacciatore, (1977), e Antolgico da Cultura

    Afro-Brasileira, Fonseca Junior(1995).

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    CAPTULO 1 - Consideraes sobre oXang do Recife

    Senti uma vontade louca de penetrar no mistrio do Xang. De v-lo

    de perto. De assistir suas danas. De conhecer o que de extraordinrio

    e secreto dentro dele se passava.

    Valente, (1976. p: 9).

    Como estudei a cura em uma casa de culto da religio afro-brasileira,

    categorizada como Xang de Pernambuco (Xang do Recife) farei algumas

    consideraes conceituais sobre este sistema religioso que serviro de rotas

    interpretativas para os dados etnogrficos.

    O Xang do Recife a forma de religiosidade, onde, as entidades

    cultuadas so os Orixs, deuses de origem africana, que aqui aportaram,

    juntamente, com os escravos. O modelo religioso do Xangassemelha-se ao do

    candombl da Bahia. Um dos aspectos relevantes do Xang sua razovel

    fidelidade essncia cultural africana. Esta fidelidade s razes culturais quilo

    que os prprios fiis, quando se trata do nag, chamam de nag puro. E nesse

    particular, diferencia-se de outras manifestaes religiosas afro-brasileiras

    existentes no Recife, que Roberto Motta, numa feliz e didtica classificao,

    diz:

    (...) o Xang apenas uma das religies afro-

    pernambucanas(...) [e continua], (...)Distinguirei ento

    quatro grandes variedades dentro desse domnio

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    religioso, que constituem na verdade tipos ideais, pois

    o concreto est cheio de gradaes, interpenetraes

    e aberraes. So o Catimb, o prprio Xang, a

    Umbanda e uma variedade intermdiaria, mas a tal

    ponto espalhada que merece reconhecimentoexplcito, o Xang umbandista. Motta (1991: 18)

    Assim, Motta destaca quatro modalidades de cultos afro-brasileiros

    vivenciados no Recife: a) Xang(que procura preservar o panteo e as tradies

    litrgicas africanas); b) Jurema1 ou Catimb (culto dos mestres2 - espritos

    curadores brasileiros de origem portuguesa, caboclos espritos curadores, mas

    de descendncia indgena, ciganos,exusmasculinos e femininos pombas-giras);

    c) Umbanda Branca, que cultua um panteo flexibilizado, no sentido de englobar

    entidades do Xang, da Jurema, e espritos acatados pelo kardecistas; d)

    Xang Umbandizado, que cultua os orixs, re-elaborando os elementos

    mitolgicos, entidades kardecistas, e entidades da Jurema (1999).

    Desse modo, as outras manifestaes religiosas afro-recifenses

    permitem-se associar, nas suas prticas religiosas, e no seu panteo, elementos

    indgenas e cristos (catlicos e kardecistas).

    Quanto ao Xangde Pernambuco / Xangdo Recife, ele orgulha-se da

    manuteno da tradio africana, mesmo que a permanncia dos traos

    1 Tenho observado no Centro de Jurema de Pai Adilson Annes, situado no bairro daMacaxeira (Recife), que, pretos/as velhas so categorizados como mestres.A invocao dasentidades, para que aconteam os transes, feita, atravs, de cantos especficos para cadauma delas (sem acompanhamento instrumental), concentrao, fumaa (cigarros, charutos,cachimbos, defumadores, incensos), e luzes de velas. Osmdiuns(pessoas que atravs dotranse, recebem as entidades), algumas delas, so iniciadas no culto, por um processocomplexo de rituais, que culmina com a ingesto do sumo da raiz, casca ou frutos dovegetal Jurema (Pithocolobium tortum).2Motta (1999) neste trabalho, chama ateno para o sentido semntico da palavra mestreassociado ao de mdico,antigamente usado em Portugal.

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    originrios esteja presente, em alguns terreiros, em menor grau. Desvincular o

    Terreiro Yemanj Sb Bassam dos fundamentos nag, causava desagradado

    e irritao nas lideranas da casa.

    No Terreiro estudado, sacerdotes e afiliados, durante os momentos

    pontuais de cultuao no aceitavam incorporaes de espritos3, mas sim, de

    orixs. Considere-se aqui, espritos, como sendo a parte do ser humano que se

    desprende do corpo com a morte, e que o kardecismo, a jurema e a umbanda,

    admitem capazes de incorporar as pessoas, possuindo-as transitoriamente.

    Estes seres imateriais denominados eguns, no deviam apropriar-se do corpo

    de nenhum participante durante a cultuao aos Orixs.

    Todos acreditavam que os orixs, representavam as foras da natureza

    (mar, rio, pedreira etc.), mas acatavam, ao mesmo tempo, os relatos mticos que

    falam terem sido eles: reis, rainhas, caadores ou guerreiros. Estas entidades

    eram consideradas, ainda, administradoras dos fazeres da vida social (agricultura,

    metalurgia, caa etc.), alm de expressarem as sentimncias e os desejos

    essenciais da vida humana (justia, amor, sade). Entretanto, curiosamente,

    embora admitissem os relatos mticos como verdadeiros, afirmavam que as

    entidades no viveram biologicamente e, por isso, temiam a morte e os mortos.

    Afirmavam que Iansera a nica entidade que enfrentava os eguns.

    O transe, pouco oralizado no Xang, ao contrrio do que ocorre na

    Jurema, Umbanda e espiritismo kardecista a manifestao da incorporao dos

    orixs, considerados, como foi citado acima, foras da natureza, vibraes

    3 Tenho registros em Dirio de Campo, que muitas vezes, Me Betinha, referia-se a umadada incorporao como tendo sido de um egun e no de orix. Nestas ocasies percebia-se sua insatisfao.

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    telricas, energias representativas dos elementos fundamentais do planeta (fogo,

    gua, vento, trovo, tempestade etc.).

    O Xang uma religio dinmica. Dinmica, no s pela diversidade

    dos seus deuses, como tambm, pela riqueza ritualstica vivenciada nas prticas

    de culto. Este dinamismo, creio, ocorre pelo fato de que a teologia iorubana

    repassada oralmente. No existem livros sagrados. Quando muito, os terreiros

    tm documentos rudimentares, escritos caligraficamente, que so os cadernos,

    copiados e recopilados e ofertados para aqueles que se consagram.

    Quanto oralidade, Vergerescreve:

    (...) A transmisso oral do conhecimento considerada

    na tradio ioruba como o veculo do ax, o poder, a

    fora das palavras que permanece sem efeito em um

    texto escrito. As palavras para que possam agir,

    precisam ser pronunciadas. O conhecimento transmitido

    oralmente tem o valor de uma iniciao pelo verbo

    atuante, uma iniciao que no est no nvel mental da

    compreenso, porm na dinmica docomportamento(...). Verger, (1995:20)

    O Xang uma religio que se aprende com o tempo e o exerccio das

    prticas rituais. Para tal, so absolutamente necessrias pacincia e humildade.

    Pacincia contada pelos anos que o fiel tem de esperar para realizar todos os

    passos, que vo desde seu processo inicitico, at a consagrao e a

    confirmao. Humildade balizada pelo adobal4. Considero que a prostrao aos

    4 Reverncia realizada aos ps dos objetos que representam os orixs, dossacerdotes/sacerdotisas da casa (ou visitantes), das pessoas que ocupam lugar destacadona hierarquia da comunidade do Terreiro. Forma explcita de demonstrar, publicamente,sujeio.

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    ps de pessoas e de objetos um instrumento eficaz para administrar a

    onipotncia, que Freud (1966) j julgava responsvel por algumas das mais

    infelizes manifestaes patolgicas da mente.

    Este dinamismo do Xang perceptvel atravs da concepo da

    existncia do Ax - fora, circulante que ocupa todos os espaos, todos os

    fazeres, todas as possibilidades de mudar o destino humano. Esta fora, ao

    mesmo tempo em que funda o terreiro, tambm o mantm vivo, ligando todos os

    membros da comunidade entre si, e eles aos orixs. Santos,quando se refere

    ao ax, informa:

    (...) O ax como toda fora, pode diminuir ou aumentar.

    Essas variaes esto determinadas pela atividade e

    conduta rituais. A conduta est determinada pela

    escrupulosa observao dos deveres e das obrigaes

    regidos pela doutrina e prtica litrgica de cada

    detentor do ax, para consigo mesmo, para com o grupo

    de Olorix a pertence e pra com o terreiro.

    Santos, (1993:40)

    O ax fora incorporada s pessoas, transferido para elas pelo orix,

    ou por elementos que o possui. Mas,o ax doado pela entidade retorna para ela,

    atravs de sacrifcios e oferendas. Os veculos concretos desse trfego de energia

    e de graas so os elementos considerados possuidores de fora. A comunicao

    oral, as relaes inter-pessoais, as trocas entre os humanos e os orixs, so

    permeados por este elemento dinamizador.

    Segundo Motta (1986), o Xang um modelo religioso de carter

    intramundano. Carter este, que se explicita atravs do alvo final dos interesses

    que representa a concretude do mundo material (problemas existenciais,

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    problemas relacionados com o bem estar social, problemas amorosos/afetivos,

    problemas de sade). Para solucionar, ou tentar minimizar as dificuldades

    pessoais, aqui relacionadas, os sacerdotes/sacerdotisas do Xang usam de

    liturgias especficas. Logo, o imediatismo visvel, e constitui-se, inclusive, em um

    motivo de aproximao evidente para novos afiliados.

    Motta (1986)respalda-se em Weber, quando este ltimo admite existir

    umas religies que, essencialmente, preocupam-se com a ascese espiritual, e

    outras, que se mobilizam para a administrao do aqui e do agora. E esta a

    alavanca, a fora motriz, o empenho, diria at, a motivao maior para a cultuao

    sistemtica e disciplinada dos Orixs. Cultuao que ocorre nas datas

    referendadas pelos calendrios litrgicos dos terreiros, ou em outras ocasies,

    nas quais, existam emergncias em afiliados e/ou simpatizantes.

    Percebe-se nos fiis do Xang, nosbabalorix / Ialorixs, e diria, at

    mesmo, nos prprios orixs (perceptvel nas narrativas mitolgicas), uma

    despreocupao com a ascese. Nunca assisti no Terreiro, um transe, onde, o

    orix realizasse qualquer discurso que extrapolasse os interesses imediatos de

    quem com ele falava. Pelo menos, h uma despreocupao em correlacionar o

    viver eticamente e uma possvel hierarquizao na vida depois da morte. No

    existem, no discurso religioso da comunidade, exigncias preceituais

    condicionadas s normas rigidamente ticas. claro, que estimulado o

    cumprimento das regras sociais necessrias para uma convivncia salutar. Mas, o

    esperado - at mesmo o exigido - que um liame, um compromisso incorruptvel

    seja mantido entre o fiel e o orix. Como entre o humano e o orix existe a

    obrigatria mediao do sacerdote/sacerdotisa, a estes se dediquem o respeito, o

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    acatamento e a obedincia. H um contrato de reciprocidade entre os fiis e os

    orixs. E por extenso, entre os fiis e seus pai e me-santo.

    A reciprocidade tem visibilidade atravs da obrigatoriedade por parte

    dos humanos de ofertar aquilo que os orixs (gostem e/ou o exijam) e por parte

    dosorixs,obrigatoriedade de realizar o contra-dom. Entre os fiis e mediadores,

    a reciprocidade refletida por demonstrao de respeito, dedicao, obedincia e

    inquestionvel crena na validade das prticas litrgicas. Os

    sacerdotes/sacerdotisas devem ser responsveis por aqueles que botou a mo

    na cabea. O zelo pelo bem estar dos mesmos, e a disponibilidade para atender,

    religiosamente, suas necessidades aflitivas um dos aspectos do compromisso

    assumido pelos pais e mes-de-santo. Portanto, o comprometimento circula na

    trade composta por: Orix, pai e me-de-santo, filhos e filhas-de-santo.

    O contrato de reciprocidade entre os fiis e orixs, entre fiis e

    sacerdotes/sacerdotisas, entre sacerdotes/sacerdotisas e fiis, reflete uma

    preocupao maior com a vida pragmtica. Os aspectos ligados ao mundo

    material se sobressaem na religiosidade vivida no Xang. Preocupao

    firmemente atrelada ao fazer religioso.

    O Orn (espao alm, onde permanecem as divindades, os ancestrais,

    os mortos) no espelha os fatos vivenciados no Ai (mundo material, tempo de

    vida). Nas falas ouvidas no universo estudado, as pessoas ocupariam uma

    posio diferenciada ou privilegiada depois da morte, se viveram corretamente

    religio. Viver corretamente a religio seria realizar os rituais corretamente, com

    assiduidade apropriada, alimentando os orixsde axs. Este seria o passaporte

    de maior validade para adquirir privilgios depois da morte. A manuteno dos

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    laos criados com as entidades, o cumprimento dos interditos preceituais5, o

    respeito e obedincia aos sacerdotes e sacerdotisas carimbariam o passaporte

    etreo.

    claro, que pais e mes-de-santo do Terreiro, no acatavam nem

    estimulavam, ou eram permissivos, com erros sociais e indignidades cometidas

    por seus filhos e filhas-de-santo.Tenho registrado em Dirio de Campo, uma fala

    da Ialorix do Terreiro, Me Betinha, de que certa vez foi procurada por um

    senhor, para que ela lhe deitasse o jogo6. Na pergunta inicial, quando solicitou

    de Yemanj a informao bsica: se falaria ou no, tem como resposta um

    inflexvel no. Yemanj no dir nada para o consulente. Ao indagar,

    preocupada, o porqu do silncio da entidade, o orix ento, responde: o

    consulente um matador. Inquieta, a me-de-santo diz ao consulente que no

    teve permisso de sua santa para jogar. Hostil, a pessoa solicita uma explicao.

    Ela diz o motivo. O homem cai em prantos, segundo seu relato, e se retira

    reafirmando a validade da informao7. Em outra ocasio registrei em minhas

    anotaes, que uma filha da Oxum, membro da comunidade, foi flagrada

    surrupiando dinheiro e objetos das bolsas das pessoas. Testemunhei Me

    Betinhasolicitar seu afastamento da casa, justificando a imposio, pelo fato da

    mesma ser ol (ladra).

    5 As interdies no Terreiro estudado, frequentemente, estavam relacionadas vivncia

    religiosa: tabus dietticos (ingesto de certas comidas e bebidas alcolicas), limpezacorporal (abstinncia sexual, proibio das menstruadas participarem dos rituais). Estasinterdies, freqentemente, eram transitrias, e estavam associadas s cerimnias rituais.6 Rito divinatrio realizado com bzio, dologum, tambm conhecido comodilogun.(Cacciatore, 1977).7Percebo, nessa fala, um julgamento moral que explicita uma sano (no permisso para

    realizar o jogo) e esta atitude tem uma franca similitude com o modelo judaico-cristo.

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    O que observei que no Terreiro inexistia uma atitude coibitiva, ou

    mesmo, um ajuizamento de valores, ao menos, naquilo que concerne vida

    ntima das pessoas. Ao contrrio, havia uma quase cumplicidade, ou um

    aparente desconhecimento (no noto, no vejo, no julgo), no que se refere,

    principalmente, s opes sexuais e as infidelidades conjugais. Essa atitude foi

    percebida tanto nos sacerdotes e sacerdotisas (em relao aos seus filhos e

    filhas-de-santo), quanto na comunidade (em relao a todos).

    Por outro lado, o panteo cultuado no Xang, ele prprio, constitudo

    por deuses plenos de humanidade, ricos de traos de carter, no mnimo

    questionveis, como soe acontecer com os humanos. Xang reconhecido pela

    sua grande sexualidade, pela seduo exacerbada, pelos inmeros

    relacionamentos amorosos (Oxum, Ob, Ians); Nan, conta-se, colocou no

    charco o prprio filho Omulu,para que morresse,envergonhada do mesmo, por

    ser uma criana completamente chagada; Oxum, amante ciumenta,

    astuciosamente, engana Ob estimulando-a a extirpar uma das orelhas (para

    comprometer a esttica), e com a mesma fazer uma iguaria palatvel para Xang

    (alimento que o enojaria). Sem esquecer a considerao demonstrada por todos,

    para com a entidadeExu, que representa a ambigidade e a indefinio. Retribui

    a quem mais oferecer, mesmo que o agraciamento se contraponha a quem menos

    lhe deu. Esta venalidade mpar no diminui seu prestigio junto ao povo-do-santo.

    Esses so apenas, uns dos muitos relatos mticos, que ouvi no TerreiroYemanj

    Sb Bassam, que mostram a tonalidade humana dos deuses (portadores de

    falhas e imperfeies comportamentais). Algumas delas, inaceitveis para as

    religies ticas.

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    No Xang, o que esperado e exigido dos adeptos a permanncia

    do contrato de reciprocidade entre o fiel, oorixe os sacerdotes. imperdovel

    quando acontece uma ruptura da manuteno dessas relaes recprocas.

    Contrato este, visvel nas oferendas propiciatrias ou expiatrias, bem como, no

    contra-dom retribudo pela divindade. Se aceitas, as oferendas propiciatrias, o

    orix compromete-se a conceder resposta favorvel s necessidades mais

    prementes e atuais do doador (cura de doenas, empregos, ascenso nas

    ocupaes dos que trabalham, soluo para relacionamentos amorosos

    conturbados, favorecimentos em questes jurdicas, proteo para as

    perseguies em qualquer mbito). Do mesmo modo, nas oferendas expiatrias, o

    retorno esperado o perdo, a musurao8.

    Portanto, pertinente a fala de Motta (1986), quando coloca que o

    Xang pretende, em primeira instncia, o dom exterior, em oposio ao dom

    interior, pretenso caracterstica das religies ticas. Mas, ressalva que, esta

    concepo no deve ser interpretada, como se o Xang, enquanto sistema

    religioso, no possusse interiorizao. Ao contrrio, nele, a essencialidade

    profunda. Existe de modo intenso, na medida em que, atravs do transe acontece

    a mais ntima relao de humanos com deuses.

    Esta discusso me parece importante para entender que os rituais do

    Xang, tm entre seus propsitos, ingerir (mediata ou imediatamente) no

    cotidiano dos adeptos. uma religio alimentada pelos dons, pelas graas, pelos

    resultados favorveis que exterioriza. Desse modo, percebia nas minhas

    8 Verbalizao muito utilizada no terreiro estudado que significa solicitar clemncia,

    piedade ou perdo aoorix.

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    observaes, uma aderncia entre os ritos e as aes sobre o cotidiano da vida

    dos adeptos. Ora, a doena faz parte do cotidiano. O adoecimento faz parte da

    vida das pessoas. E condio aflitiva. Dentre outras condies aflitivas, a

    doena um dos motivos que mais aproximam as pessoas do Xang. Realizar a

    cura das doenas oportuniza o Xanga exteriorizar seus poderes. O centro de

    gravidade do Xangest nos resultados visveis e concretos, viabilizados pelo

    ritual. A seguir, discutirei os aspectos fundamentais do Xang, pois eles esto

    presentes, em maior ou menor grau, em todos os rituais envolvidos nos processos

    de cura observados no Terreiro.

    1.1 Quatro pilares: aspectos fundamentais doSistema Religioso.

    Quatro aspectos caracterizam o Xang, e dele, so indissolveis: o

    sacrifcio, a folha, a festa e o transe. A essncia, a ara simblica dessa religio,est montada nestes quatro pilares.

    1.1.1Do sacrifcio

    O sacrifcio percorre a histria da humanidade. Por ser sacralizante,

    torna-se capaz de estabelecer um movimento biunvoco entre os seres humanos e

    os seres do universo divino. Ele se faz atravs do aniquilamento concreto ou

    metafrico de animais, plantas, ou objetos. A histria da humanidade est plena

    de relatos da imolao sacrificial de animais, inclusive, humanos. Rememoro a

    predisposio de Abrao para sacrificar Isaac, seu prprio filho, como devoo

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    inconteste ao Deus. H uma correlao entre sacrifcio e religies. As antigas

    tradies judaicocrists, os livros de Gnesis 4:4 e o Levtico 1:7 descrevem

    ofertas sacrificiais de animais. E o Novo Testamento oferece, claramente, uma

    conotao sacrificial para a morte de Jesus.

    Considerando a atualidade, Michel Leiris (2001) enxerga as touradas

    sendo mais do que um esporte espanhol. Acredita que ela um evento sacrificial.

    Defende a idia de que, a mobilidade entre o sacrificador (toureiro), e a vtima

    sacrificvel (touro), pode inverter, mudando as posies na arena e esta

    possibilidade, carrega a tourada de uma tonalidade de tragicidade gradativa que

    tem nuances de sacralidade. Por outro lado, o significado da Eucaristia, no

    Catolicismo Apostlico Romano, traduz em sua essncia, a idia de que a carne e

    o sangue de Jesus so banqueteados9para selar uma comunho do devoto com

    Deus.

    O exerccio de oferendas concretas s divindades do panteo do

    Xang, tem sua visibilidade maior atravs da regularidade e do nmero dos

    animais sacrificados. Ela torna-se mais relevante, quando por ocasio das

    grandes obrigaes10, o sangue derramado vem de animais de grande e mdio

    porte (quatro ps), ou de outros, com os quais, no mantemos maior intimidade

    (cgado, por exemplo).

    O Xang categorizado por Motta (1991) como uma religio

    sacrificial, diferentemente da Jurema que considera infra-sacrificial, e da

    Umbanda Branca que preenche condies para ser tida como supra-sacrificial.

    9A palavra hstia, etimologicamente, vem do latim: hostia, hosteacujo significado vtimaofertada aos deuses10Ofertas rituais obrigatrias, que atendem as exigncias das entidades, capazes depropiciar benesses. No fazer as oferendas demanda sofrimentos (Cacciatore, 1977).

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    Neste estudo classificatrio, considera que no Xang, o sacrifcio de animais

    acompanha todas as etapas vivenciadas pelo fiel, desde sua iniciao, at a

    consagrao, na qual, ele prprio se faz o sacrificado.

    Por outro lado, seja para propiciar a realizao de graas, seja para

    expiar erros, ou seja, simplesmente, para cultuar as entidades, o sacrifcio

    transcende estas trs possibilidades, pois permite uma comunho entre o doador,

    o orix e o sacerdote. No momento do sacrifcio, esta trade esta interligada.

    Na compreenso do devoto, vrios so os motivos que justificam o ato

    sacrificial. Destaco um dos mais relatados pelas pessoas do Terreiro estudado.

    Entendiam as pessoas, que as divindades carecem do sacrifcio para alimentar a

    essncia e o poder prprios. A essncia nutrida atravs da fora simblica,

    contida nas vtimas sacrificiais e, o poder aumenta, quando a retribuio ocorre

    (quando uma graa recebida) confirmando a autoridade. Os adeptos da casa

    referiam que o sangue e outros componentes do corpo da vtima possuam

    poderes especiais. Eram portadores de Ax. A vida e o sangue da vtima

    sacrificada contm, ax (poder, fora, mana), que alegram e fortalecem a

    divindade, e a obriga ao contra-dom. Esta crena confere lgica a oferenda. No

    Terreiro estudado, por diversas vezes, ouvi frases de preocupao, proferidas pela

    me-de-santo que liderava o Terreiro, referindo-se aos filhos e filhas-de-santo

    que no alimentavam seus orixs. Afirmava que eles estavam contribuindo para

    tirar-lhes a fora, o ax. Sua fala foi confirmada quando vivi uma fase de

    encantamento pelo orix Ob (orix da ventania). Meu fascnio se devia, em

    parte pela beleza do seu porte, pela leveza de sua dana, pela riqueza de sua

    coreografia, alm, claro, dos seus poderes de levar como um vento os

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    o beb, mas tambm, transferisse substncias para a nutriz. Alm do que, no

    existe uma equivalncia entre o que dado e o que recebido. As posies

    relativas entre o humano, submetido s fragilidades do acaso (pobreza,

    desemprego, doenas, ou desamores) de um lado, e o orix, do outro lado,

    protetor, dono do seu destino, forte e dativo de graas, passam a permitir a

    existncia de canais distributivos entre os dois. Mas convenhamos, uma galinha

    menor que um emprego.

    Outro aspecto deve ser levado em considerao: parte da comunidade

    do Terreiro concretamente beneficiada pela redistribuio dos corpos dos

    animais imolados. Esta redistribuio favorece, mesmo que periodicamente, um

    aporte razovel de protena para os adeptos economicamente desfavorecidos

    Motta (1988).

    Sobre a redistribuio de carnes, sistematicamente realizada para os

    devotos, nas grandes obrigaes, Motta (1995) analisa e ressalta os aspectos

    econmicos do Xang, afirmando:

    (...)Entre os afro-brasileiros, como entre os antigos

    gregos, o sacrifcio, ao lado de seu papel

    propriamente simblico, exerce funes de carter

    claramente alimentar e portanto econmico.

    Motta, (1995:14)

    O autor reafirma este aspecto do Xang (Motta, 1993), quando diz

    que, o sacrifcio constitui-se em uma estratgia de sobrevivncia, pelo menos,

    para as classes sociais mais desfavorecidas e certas etnias12. O animal

    12Os afro-descendentes so bastante representativos no Xang. Em seu grande percentual

    pertencem aos patamares da sociedade de menor poder aquisitivo, embora, outras etnias,

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    sacrificado raramente ofertado por inteiro (somente quando o orix exige). O

    sangue e as vsceras so ax. Eles so obrigatoriamente oferecidas entidade13.

    J as pores no sacralizadas do animal, denominadas eran,so os msculos

    dos grandes animais, msculos e carcaas das aves. Estes so redistribudos com

    a comunidade do terreiro. Freqentemente, esta redistribuio no terreiro

    estudado era realizada com as pessoas menos dotadas financeiramente.

    Mottaconcebe que o sacrifcio noXangno pode ser divorciado da

    utilidade nutricional. Defende o autor, que os aspectos simblicos que recobrem o

    ritual estimulam as abstraes, logo, bom para pensar. Entretanto, a

    redistribuio das carnes para a comunidade bom para comer14 (1991:7).

    Percebo que esta interpretao leva em conta as possibilidades de existncia de

    verdadeiras teias estruturais, transparentes quando observadas, onde razes e

    motivos se mesclam. O autor afirma que em qualquer evento sociocultural, e no

    somente os religiosos, devem ser analisados em toda complexidade de seu

    contexto (estrutural, formal e funcional).

    Fao esta discusso para apoiar minha inferncia de que no Xang

    h uma circularidade entre dar e receber. Os fiis do os axs aos orixs, os

    orixs retribuem o recebido com graas. O Terreiro transfere para os fiis mais

    faam parte da comunidade religiosa, constituindo um contingente quantitativamenterespeitvel.13

    As penas, a cabea, o pescoo e os ps das vitimas vo servir para arrumar e enfeitar demodo plstico e funcional, a comida colocada no recipiente que faz parte do conjunto deobjetos que compem a representao material da entidade (assentamento).14 A alimentao ocupa um lugar especial no Xang. Alm, da distribuio de carnes dasvtimas sacrificiais imoladas nas grandes obrigaes, a prpria festa pblica, no seu recorteprofano, oferece comunidade e visitantes, um farto e a variado cardpio (carnes, bolos,refrigerantes etc.). Percebia no Terreiro, em Me Betinha, e tambm, nos responsveis poruma dada obrigao, a preocupao com as comidas, com um grande bolo, com ossalgadinhos, com os doces etc. que ornamentariam a mesa de refeies.

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    necessitados, o que excedente do que foi ofertado por todos. Logo, as trocas

    so simblicas e concretas.

    Quando as entidades, no momento dos transes, oferecem s

    pessoas presentes na festa pblica (afiliados e visitantes), pequenas pores dos

    alimentos que lhes foram ofertados (e que permanecem nos seus

    assentamentos) ocorre uma espcie de eucaristia, onde todos comungavam da

    simblica refeio. Antes o Orixcomeu ou est comendo as comidas que se

    encontram aos seus ps. Agora ele esta redistribuindo. Estas pequenas pores

    de comida so portadores de ax.Axacrescido pelo Orix quando recebeu a

    ddiva. No Terreiro, quando este fato ocorria, todos que comiam estas pequenas

    pores doadas pelas prprias mos das entidades, acreditavam estar sendo

    alimentados de pores do ax15. Uma translcida redistribuio de axspara o

    pblico presente, semelhante redistribuio do eran que fora realizada com

    alguns membros da comunidade.

    No terreiro estudado, mesmo pertencendo classe mdia ou alta,

    algum poderia receber, em uma dada obrigao, partes considerveis do eran.

    Esta doao no estava atendendo a necessidade nutricional de quem recebia.

    Mas estava atendendo a necessidade de axs. Quando ocorria (e era raro), o

    receptor sempre demonstrava grande satisfao, por considerar que estas carnes,

    tendo origem a partir de um ato sacrificial, estavam energisadas, logo, portadoras

    e transmissoras de energia benfica. De acordo com o que observei no terreno, o

    simblico que reveste o sacrifcio remete para a admisso de que mesmo estas

    15Freqentemente, a comida era retirada de pratos preparados com peixes, amal, acaraj,abar, frutas, etc.

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    pores, as profanas, esto imantadas pela energia que banhou o ato. No

    sacrifcio, est contido o contedo simblico, que recobre os outros fazeres e

    prticas religiosas do modelo Xang, inclusive os rituais curativos. Os adeptos da

    religio acreditavam que as partes da vtima sacrificada eram salutares.

    Assim , que quando faz uma reflexo compreensiva sobre o sacrifcio,

    Mottadefende que ele o embasamento da religio e, acrescenta, no sentido de

    fortalecer seu argumento, que:

    (...) o sacrifcio (denominado obrigao e eb pelos

    xangozistas), no constitui simplesmente um rito (como

    queriam meus predecessores), porm o rito por

    excelncia de todo o culto, ponto de partida e/ ou de

    chegada de todos os demais ritos. Na realidade, toda a

    religio afro-brasileira, pelo menos em suas formas mais

    tradicionais ou ortodoxas, poderia ser descrita como um

    vasto sistema de prestao de sacrifcios, a que tudo o

    mais se subordina. (...) Motta, (1991:7)

    Por viabilizar o trnsito de ax, o sacrifcio inaugura todos os outros

    rituais.

    Por outro lado, o sacrifcio o grande administrador da sentimncia de

    culpa, exercendo papel semelhante ao das atitudes ascticas, comuns s religies

    consideradas ticas. Ele decorrncia de um carter universalista do

    comportamento humano, e que se faz, como um contraponto do modelo tico de

    outras religies.

    Nas palavras de Motta:

    (...) o sacrifcio [pode ser visto] representando tambm

    um aspecto virtualmente universal da condio humana:

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    o sentimento de dependncia, desvalimento, dvida e

    culpa que penetra a vivncia. Motta, (1991:2)

    Conceituao, tambm, defendida por Freud (1966)e Money-Kyrle

    (1930), pelo menos no que se refere a culpa. Mas, a administrao das aflies

    pode ser realizada atravs dele e por este vis que participa como restaurador

    de esperanas. (Durand, 1997) concebe que o sacrifcio capaz de administrar o

    destino humano. Desse modo, o destino humano pode ser metamorfoseado, at

    atingir o nvel suportvel, atravs do ato sacrificial. Esta possibilidade acalanta.

    Confere foras para suportar aflies. Viabiliza curas.

    Acrescento que para o povo-de-santo o sangue da vtima vida.

    muito mais. vida saudvel, livre do sofrimento e da doena16. Quando espargido

    sobre o assentamento17 representa, em ltima anlise, a comunho entre o

    filho/a-de-santo e seu orix, ou quando derramado sobre o prprio corpo do fiel,

    est lhe alimentando de sade. A pureza, a harmonia, e bem-estar so os

    ingredientes dessa refeio. E a redeno.

    La Portaoferece uma passagem interessante, quando em seu livro Estudo

    Psicanaltico dos Cultos Afro-Brasileiros, escreve:

    (...) Em certos momentos do rito, observa-se que o

    filho-de-santo, ao ter seu corpo coberto de sangue

    (que foi vertido sobre sua cabea e escorreu sobre sua

    face e corpo), parece a figura de Cristo, habitualmente

    ajoelhado ou deitado, algumas vezes com os braos

    estendidos para os lados como que crucificado. (...)

    queremos frisar o seguinte: como Cristo, o filho que

    16Os animais sacrificados e qualquer outro tipo de oferenda (frutas, flores, comidas secas)

    so cuidadosamente escolhidos para que no tenham qualquer tipo de falha.17Pedra, rvore, smbolos metlicos, ou outros objetos, que materializam o Orix.A fora eo poder da entidade encontram-se assentada nestes objetos.

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    queria ser Deus, o crente tem que ser sacrificado para

    ser tambm divindade. Alm de expressar identificao,

    ele se redime de estar sacrificando o animal-Deus.La Porta, (1979: 66)

    Ao Deus, ao sagrado, ao sacralizado pressupem-se atributos de

    pureza e sade.Portanto, o sacrifcio no Xang (uma das suas principais vigas

    mestras) , tambm, uma manifestao pragmtica de busca de pureza e sade.

    Mottadiz:

    (...) A graa dos Orixs supe-se que produza sade,estabilidade financeira, satisfao sexual e afetiva,

    etc. (...) Motta (1986a: 78 -79).

    No presente estudo que enfatiza a cura no terreiro estudado, o sacrifcio

    dentre os diversos papis que exerce, salienta-se como instrumento litrgico, que

    busca a cura das doenas fsicas, emocionais e mentais. um dos contra-dom

    esperado.

    1.1.2 Da Folha

    A relao dos humanos com os vegetais tem datao to antiga que

    se confunde com seu prprio aparecimento no planeta. Esta relao, para lhe dar

    relevncia, precedeu at mesmo o aparecimento do ser humano,na medida em

    que os primatas dependeram das rvores como proteo fsica, alimento e

    estradas para seus deslocamentos. Os vegetais so as fontes, em grande

    percentual dos alimentos que originam a energia responsvel por todos os

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    eventos vitais do corpo animal. Desde o nascimento at a morte, o vegetal

    mantm com os humanos uma relao protetora em todos os aspectos do viver.

    Ele subsidia abrigo, defesa (armas e meios de evaso), arte (instrumentos

    musicais, esculturas, etc.), desperta religiosidade, estimula o senso esttico e se

    faz remdio. Os saberes religiosos de vrias correntes msticas, inclusive, do

    Xang, constroem teorias para conferir poderes, identificar o invisvel e sacralizar

    seres e objetos, dentre eles, os vegetais.

    Quando a humanidade escolheu a fixao espacial em contraposio

    vida nmade deve ter percebido (e esta percepo foi fundamental para a

    escolha feita ter dado certo), que das sementes cadas no solo brotavam espcies

    semelhantes.

    Os vegetais que os gregos denominavam botan,raiz etimolgica da

    palavra botnica- cincia que os estuda - esto indissoluvelmente associados aos

    processos curativos. Feiticeiros curadores, mdicos eram, entre outras coisas,

    conhecedores das vrias propriedades das ervas. No podemos dissociar o

    conhecimento sobre plantas, das prticas da medicina primordial. Nem da

    medicina moderna. Nem podemos separ-los dos fazeres mgico-religiosos que

    permearam e, ainda permeiam os processos de cura.

    Fazendo uma rpida viagem atravs dos tempos sobre o tema, verifica-

    se que o uso das ervas com finalidade curativa, culinria e cosmtica

    encontrado em documentos das mais diversas e antigas culturas. Os chineses,

    tm relatos datados de 3700 a. C. nos quais, esto relacionadas cerca de 150

    plantas curativas (Le Goff, 1999); os egpcios tem documentos existentes desde

    1550 a.C. e neles, existiam dados semelhantes; Os sumrios domentavam

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    prescries onde falavam, do uso curativo de erva-doce (Pimpinella vilosa), de

    beldroega (Monarda didyma) e de alcauz (Glycyrhiza glabra); o prprio

    Nabucodonosor, nos seus jardins suspensos babilnicos, cultivava alecrim

    (Rosmarinus officinalis) e aafro (Crocus sativus) (Bornhausen, 1991); 1000

    anos a.C. ocorreu um desenvolvimento espetacular, relativo s ervas medicinais e

    mgicas na ndia, constituindo-se, um verdadeiro corpus de conhecimento

    utilitrio sobre a arte de curar atravs de plantas (Miranda, 2004); Bornhausen

    refere que Hipcrates, por volta de 460 a. C., advogava que para tratar o doente

    era necessrio o uso de dietas e hbitos higinicos. Nos primeiros, as ervas (sob

    forma de alimentos e/ou remdios) e os segundos respaldados em assertivas

    filosficas18 que norteassem o modo de viver do enfermo. Ele acreditava haver

    uma correlao entre forma e cor da planta com o mal acometidoi19no paciente

    (1991).20Mas, na Grcia no podem ser esquecidos os nomes de Aristteles e

    Teofrasto que escreveram a Histria das Plantas e A origem das Plantas

    (Marques, 1999).

    Na Roma antiga, a presena de dois especialistas fundamentais:

    Dioscrides (mdico de Nero), autor do livro De Histria Mdica, que um

    vademecum da medicina herbria, e Plnio, autor de Histria Natura (Miranda,

    2004).No poderia esquecer, tambm, de Galeno, mdico de Marco Aurlio que

    prescrevia o uso de plantas (Bornhausen, 1991). Outra figura importante

    Avicena, que da sua farmacopia constava indicao, para dirimir males, de

    18Hipcrates defendia que o doente quem deveria ser tratado e no a doena que lheacometia.19

    Patologias relacionadas com o sangue eram tratadas com plantas que tivessem folhas ou frutosvermelhos.

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    ervas como camomila (Matricaria chamomilla), menta (Mentha arvensis) e lavanda

    (Lavandula angustifolia) (Marques, 1999). Na Idade Mdia, os mosteiros

    passaram a ser depositrios do acervo de toda sabedoria do mundo, inclusive dos

    conhecimentos botnicos. sabido que no entorno das igrejas, dos conventos e

    dos mosteiros eram cultivados vegetais que serviam como alimentos, fabricao

    de vinhos, e medicamentos. Quanto ao Brasil, a vegetao foi seu carto postal.

    Caminha, salienta em sua carta para El Rei D. Manuel, que na nova terra h

    muita quantidade de ervas compridas; fala tambm sobre a existncia de muitas

    palmeiras, e faz referncia a mata escrevendo: esse arvoredo que tanto e

    tamanho e to basto e de tanta qualidade de folhagem que no se pode calcular.

    Os descobridores se depararam com autctones de corpos pintados com extrato

    do urucum (Bixa orellana), que atendia no s necessidade do prazer esttico,

    quanto ao repelente aos insetos (Bornhausen, 1991). Os jesutas, ao

    chegarem ao Brasil, cuidaram de assimilar os conhecimentos curativos das ervas

    que os indgenas detinham. Registraram esses conhecimentos, e deles se

    valeram, quando necessrio, o que no era raro, dada dificuldade de suprir os

    medicamentos, a partir do Reino.

    O livro Viagem pelo Brasil de Martius (1979 [1844]) embora em

    nenhum momento, d validade sabedoria fitoterpica indgena, possui grande

    importncia porque no deixou de registr-los; Piso (1948), em 1658, na suaHistria Natural do Brasil Ilustrada estuda e descreve plantas brasileiras,

    inclusive, pernambucanas, se empenhando em desenh-las. Salienta, no seu

    texto, as propriedades medicinais das mesmas. Muitas delas, ainda hoje, so

    empregadas como fontes teraputicas, e algumas com as mesmas indicaes

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    curativas daquela poca. No Tratado Descritivo do Brasil de Gabriel Soares de

    Souza, datado de 1587 existe um repertrio de plantas medicinais nordestinas

    (Pereira, 1982).

    Atendendo aos aspectos etnobotnicos, existe uma literatura que

    remete aos primeiros documentos de viajantes e/ou cientistas que passaram

    perodos ou viveram no Brasil, alguns deles em Pernambuco, dos quais, os

    principais so: Mello (1788)21, Barleus (1980); Marcgrave (1942); Piso (1948).

    Eles escreveram sobre a flora brasileira e citaram seus usos teraputicos e/ou

    ritualsticos. Inclusive, em quase todos os textos mencionados, h, no s

    descries morfolgicas detalhadas, mas tambm, requintados desenhos das

    plantas estudadas.

    Ao chegar ao Brasil, o africano, pela maneira de relacionar-se com o

    vegetal, sofreu um dos mais traumticos impactos: a confrontao feita entre a

    flora africana com a brasileira. Foi necessrio ele identificar as espcies vegetais

    conhecidas desde a frica. Necessrio, tambm, para ele foi conhecer espcies

    vegetais capazes de substituir as rvores, as plantas as ervas (se aqui, elas no

    existissem). Foi fundamental conhecer e dominar esta mata desconhecida,

    deslumbrante, e misteriosa como forma de estabelecer a mais urgente maneira de

    sobreviver, tanto fsica quanto culturalmente. Portanto, o conhecimento da floresta

    brasileira deve ter sido precedido e orientado pela necessidade de preservar a

    21MELLO, T. J.A Abcedrio de vrias ervas, razes e frutos medicinais produzidas no Brasil, Cidade

    da Paraba do Norte e sua Comarca, das quais fazem uso muitos nacionais nos seus curativos, comaproveitamento pela sade perdida. Arquivo Histrico Ultramarino. Documento manuscrito, nopublicado. Lisboa. 1788.

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    viso de mundo e os aspectos culturais identitrios de africanidade, j que em

    sua terra de origem, a floresta era referncia bsica. Se para algumas espcies

    vegetais, inexistentes no Brasil, era impossvel uma substituio por espcies

    assemelhadas, com o passar do tempo, algumas delas foram trazidas

    clandestinamente, nos navios negreiros que continuavam, inexoravelmente, suas

    viagens sustentadoras do comrcio escravo. Desse modo, entrou no Brasil, a

    pimenta-da-costa (Xylopia aethiopica); o obi (Cola acuminata Schott.& Endl.); o

    dend (Elaeis guineensis), aqui aclimatando-se (Barros,1993).

    Quando substituies foram feitas, os africanos mantiveram os nomes

    iorubanos nas plantas substitudas. Como exemplo de substituies de plantas

    que so plenamente acatadas no Xang: gameleira branca (Fcus mxima M.)

    que foi nomeada de Irko, rvore sagrada, e ela prpria, um Orix; a jaqueira

    (Artocarpus integrefolia L.), que recebeu o nome de apaok, e a cajazeira

    (Spondias mombim L), que foi chamada de Orik (Barros, 1993:26).

    Os critrios balizadores, que serviram para efetivar as substituies das

    plantas africanas no encontradas no Brasil, foram, ou parecem ter sido,

    principalmente, as semelhanas morfolgicas entre as folhas, as dimenses do

    caule e a morfologia das flores e frutos.

    O vegetal, ou mato, apresenta, do mesmo modo que o sacrifcio para o

    Xang, uma imbricao, na qual, associam-se os aspectos simblicos e osfuncionais. Percebe-se, no primeiro caso, que as rvores so cultuadas e

    representam o sagrado, tanto quanto as entidades. Freqentemente, as rvores

    que expressam fora simblica so enormes ou, de grande/mdio porte, e quando

    ocupam este sitio no imaginrio do fiel, passam a ser consideradas divindades. Os

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    elementos botnicos de sua constituio sejam razes, caules, folhas ou flores,

    so objetos de uso ritual. Muitos dos materiais simblicos, como alguns

    assentamentos e objetos rituais (gamela emblemtica que contm a pedra do

    orix Xang, os instrumentos musicais (il) construdos da madeira retirada de

    grandes rvores22). As arvores, elas prprias, so seres sagrados, ou

    representativos de entidades divinizadas e, como tal, cultuadas. Os vegetais so

    matria prima para a preparao de elementos empregados em rituais iniciticos,

    o que j suficiente para serem depositrias de respeito e devoo. Eles

    exercem um importante papel funcional, como elementos de cura. Na minha

    vivncia no Terreiro constatei essa importncia.

    Como foi enfatizado no item correspondente ao sacrifcio, vimos que ele

    atende, ao apelo simblico e a carncia alimentar (periodicamente) de parte da

    comunidade dos terreiros. A folha, segundo minhas observaes do terreno

    estudado, tambm, responde s necessidades da economia simblica, e presta

    um servio, dirimindo as deficincias do atendimento e ateno bsicas em sade

    (oferecidos pelo estado), s camadas populacionais menos favorecidas, que soem

    fazer parte dos terreiros de Xang. Exerce este papel, quando instrumento

    curativo (banhos, chs, sacudimentos). Mas, mesmo sendo da classe mdia ou

    alta, portador de um eficiente seguro-sade, as pessoas no se eximiam de

    buscar auxlio, atravs dela, para seus males fsicos, emocionais e mentais.

    Assim, a folha desempenhava um papel simblico e outro funcional. Como ocorre

    no sacrifcio, estas vertentes se mesclam, se imbricam, formam uma teia cujos fios

    22No Centro de Jurema de Adilsom Annes, os cachimbos, os ps da mesa sagrada e outros

    objetos so produzidos a partir de madeiras consideradas pertencentes ao reino encantadodas Cidades da Jurema (angico, jurema branca e jurema preta).

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    so indissociveis, de tal modo que se algum didatismo pretender realizar este

    divrcio, possibilitar uma compreenso reduzida do fenmeno.

    Por tudo que acima foi referido, e acrescentando sua importncia nos

    ritos, a folha de vital para a o Xang. Tanto que existe a clssica afirmao: K

    s ew, K s orix(sem folha no h orix).

    Quanto existncia e importncia de um espao nos terreiros, destinado

    ao verde vivo, Barros (1993) identifica que para alm do acervo de folhas

    coletveis para os fazeres ritualsticos e/ou curativos, que est umas vezes mais,

    outras menos, neste ambiente, existe a prpria cultuao s arvores consideradas

    sagradas.

    Textualmente, ele diz:

    (...) Paralelamente s prticas vinculadas ao orix

    Ossim dono das folhas percebe-se a manuteno de

    um culto especfico a certas rvores que compem a

    representao simblica da floresta africana (...)

    importante fazer referncia a uma outra diviso quepensamos ser mais abrangente, qual seja: alm do

    espao mato e urbano, visualizamos resduos do que

    poderia ser denominado de espao cultivado, cujo

    protetor Oko orix da agricultura.

    Barros, (1993:20)

    No Terreiro estudado, no existia uma rea especfica para o cultivo de

    ervas rituais/curativas. Mas, fazia parte do calendrio litrgico da casa, acerimnia anual propiciatria s colheitas, a Obrigao do Inhame. Escrevo, nas

    minhas anotaes, que embora as verbalizaes proferidas na cerimnia pelos

    sacerdotes, fizessem referncias s colheitas agrrias, generalizadamente a

    nfase dada era que o inhame imolado para Orixal, propiciasse ganhos

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    financeiros aos participantes. Ganhos estes, que permitissem (com seu ax) uma

    mesa plena de alimentos, um roupeiro cheio de vestimentas, e um corpo

    preenchido por sade. Ento, parece-me que um rito agrrio usado para

    atender as necessidades da cidade moderna, de um pas economicamente

    fragilizado.

    Na cosmoviso dos afiliados e simpatizantes do Xang, as rvores e

    tudo que lhe constituem (folhas, caules, razes, flores e frutos) so possuidores de

    uma fora, de uma energia, de um poder, enfim de um ax, que pode e deve ser

    empregado para diversas finalidades, sejam litrgicas ou curativas. Nesta mesma

    cosmoviso, o vegetal tido como zelado, energizado, organizado em seu poder

    utilitrio. Esta proteo dada ao vegetal vem do Orix Ossim senhor das

    folhas,que tambm, orienta com sabedoria, diria botnica e farmacobotnica,

    a realizao de preparados usados magicamente, tanto nos rituais, quanto nos

    remdios23. Barros, (1993)coloca que alm de Ossim outras entidades (Aron,

    OguneOxossi)participam da proteo das folhas, sem contudo, tirar o poder do

    primeiro.Estas entidades habitam na floresta, ou no espao mata do universo do

    terreiro. Enfim, locais amplos. Amplitude que espacialmente caracteriza, e qui

    propicia, a localizao e o aparecimento de florestas. (Verger,1981) acrescenta a

    esta trade de divindades associadas com Ossim, o prprio Exu.

    A existncia do orix Ossim - relevante membro do panteo, sem o

    qual, nenhuma cerimnia ritual pode acontecer - confirma a importncia das folhas

    para o Xang. Esta importncia visvel, quando a sabedoria das plantas dada

    23Palavra aqui usada no seu sentido etimolgico remedum,que significa recurso utilizado

    para se contrapor ou combater doenas.

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    para sacerdotes especiais (babalossim) e preconiza-se a manuteno de

    reservas, diria mesmo, de segredo sobre esses conhecimentos, de modo que a

    divulgao impea a banalizao.

    Vergerdiz que:

    (...) O nome das plantas e sua utilizao e as palavras

    (of), cuja fora desperta seus poderes, so os elementos

    mais secretos do ritual no culto dos deuses iorubas

    Verger, (1982:122).

    O espao - mato dos terreiros possui rvores sacralizadas e no

    candombl, o Irko, que desde a frica considerado um um orix

    fitomrfico nag(Cacciatore, 1977),(Chlorophora excelsa)era a arvore sagrada

    do terreiro estudado. No Xang do Recife esta rvore gameleira branca, que

    pode ser das espcies (Fcus doliaria M e/ou Fcus mxima M.) a planta que

    substitui a africana. O Irko por ocasio das grandes obrigaes envolvidos

    com uma cinta de fazenda. So freqentes o sacrifcio de animais realizados parao Irko. Muitas vezes, presenciei as mltiplas e superficiais razes do Irko do

    Terreiro Yemanj Sb, acomodarem entre suas fendas: quartinhas, comidas e

    flores resultantes de obrigaes.

    Pelo papel que algumas rvores ocupam no panteo, como o orix

    (Irko), pela ingerncia nos rituais e pela relevncia assumida no uso nos

    processos de cura, a folha tem um significado simblico e funcional no egb24. A

    importncia do uso medicamentoso das plantas no Xang, no significou,

    unicamente, uma estratgia de resistncia cultural do negro escravizado (embora,

    24So as comunidades que ocupam um espao, nele habitam transitoriamente nos perodos

    de obrigao, geralmente, localizados na periferia da cidade onde cultuam as entidades,os orixs e os ancestrais.

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    tambm, o tenha sido). Durante o perodo escravista, os donos de escravos

    estimulavam o uso dos conhecimentos referentes cura, atravs das plantas.

    Permitiam que fossem mantidos e aplicados. Essa concesso se deve em parte,

    para eximi-los dos cuidados com a sade do contingente negro e, em parte, pelas

    prprias deficincias mdicas que a comunidade, como um todo, vivenciava no

    perodo colonial. Eles prprios, os brancos, recorriam aos tratamentos com ervas

    preconizados pelos escravos (Santos Filho, 1959)25.

    Entretanto, concordo com Braga, quando ele coloca que:

    (...) ainda que possa possuir algumas virtudesmdicas j testadas pela farmacologia cientifica,

    como o caso para um nmero considervel de

    plantas, o seu grau de poder curativo est

    diretamente ligado ao contedo mgico-religioso

    que se lhe empresta (...) Braga, (1980:71)

    Desse modo, liberar prticas curativas significou permitir rituais.

    O africano para manter viva sua tradio fundadora, necessitou re-

    inscrever no Brasil a compreenso da nova floresta. Aqueles vegetais africanos

    inexistentes, aqui, ou foram substitudos (por vegetais brasileiros), ou importados

    da frica. Esta ltima estratgia tornou-se possvel por conta da manuteno de

    contatos entre as duas regies(Verger, 1987).Quanto primeira atitude, valeu-se

    o africano das similitudes morfolgicas entre as plantas nativas brasileiras, quando

    25A medicina no Brasil vivia em condies de penria. O nmero de mdicos formados no

    Reino, residindo no Brasil no perodo compreendido entre os sculos XVII e XVIII, nuncaultrapassou um quantitativo de dez profissionais (Machado, 1978, p.171). Olinda, a despeitode sua importncia, na poca, era medicada por um nico profissional mdico/cirurgio ecinco barbeiros Montero (1985:15).

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    comparadas, atravs da memria, com as africanas. Para avaliar as indicaes

    curativas, as tentativas (erros e acertos) nortearam a preciso.

    Quanto aos contatos, Luhning (1999) informa que os escravos

    africanos no Brasil, ao cabo de algum tempo, depois de estruturarem suas novas

    vidas, comearam a se comunicar com a frica, atravs de cartas e libertos que

    retornavam ao seu pas, o que tornava possvel um intercmbio (nas duas

    direes) de sementes e mudas de plantas brasileiras/africanas reafirma estas

    informaes e fala, ainda, que este intercambio, tambm ocorreu, atravs, de ex-

    escravos que se tornaram marinheiros. Admite-se que aconteceram muitas trocas

    nas duas direes: tanto da frica para o Brasil, quanto do Brasil para frica, o

    que abonado por autores como (Verger, 1987; Cunha, 1984).

    Mas foi imprescindvel uma reclassificao das plantas, inscrevendo os

    novos vegetais, na mesma lgica determinante da lgica africana. O sistema

    classificatrio criado por Lineu26 em 1735, cientfico na medida de sua

    sistematizao, praticidade, universalismo, e por estas razes, acatado pela

    botnica oficial. Este sistema permitiu uma anlise muito interessante de

    Foucault,quando afirma que a taxionomia viabilizou o aparecimento de um:

    (...) espao aberto na representao por uma anlise

    que antecipa possibilidade de nomear, a

    possibilidade de ver o que se poder dizer, mas que no

    se poderia dizer depois, nem ver, distncia, se ascoisas e as palavras, distintas umas das outras, no se

    comunicassem, desde o incio, numa representao.

    Foucault(2000:172 225)

    26Systema Naturae que categorizou os seres vivos, por reas de complexidade decrescente.

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    A funcionalidade da compreenso de conhecimentos, como a fitoterapia

    passa pelos sistemas classificatrios micos. Como coloca LviStrauss(1976),

    no basta identificar as plantas evocadas nos ritos e/ou prticas, necessrio se faz

    reconhecer os papis que lhes foram atribudos em um sistema de significaes,

    para ento perceber as relaes significantes que elas estabelecem.

    Na classificao de Lineu, para os seres vivos, foram levados em

    conta, como indicadores normativos: nome, gnero, espcie, atributos, uso e

    literatura (nesta ordem descritiva). Desse modo, todo um patrimnio cultural est

    contido na classificao (tradies, crenas, potica, etc.). Ora, o sistema

    classificatrio das plantas africano diferente da taxonomia de Lineu, pois,

    baseado em caractersticas e qualificaes como: tamanho do vegetal;

    caractersticas das folhas (tonalidade, textura spera ou lisa, superfcie pilosa);

    existncia de movimentos (se fecham as folhas e em que circunstncias o fazem);

    ocorrncia de espinhos; qualidades odorficas; sabores (amargo, doce, azedo,

    queimante); li