Tese Completa II
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UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR
Departamento de letras
UMA NOVA INTERPRETAO DE UM AUTO
DE GIL VICENTE
Isa Alexandra Marques da Silva
Dissertao de Mestrado em Estudos Ibricos
Covilh
2009
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I
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UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR
Departamento de letras
UMA NOVA INTERPRETAO DE UM AUTO
DE GIL VICENTE
Isa Alexandra Marques da Silva
Dissertao de Mestrado em Estudos Ibricos, apresentada
Universidade da Beira Interior para a obteno do grau de Mestre
em Estudos Ibricos, sob a orientao da professora Doutora
Reina Marisol Troca Pereira
Covilh, 18 de Junho de 2009
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Dedico este trabalho a toda a minha famlia, que
sempre me apoiou ao longo de todo o meu caminho,
Ao meu namorado, um grande amigo especial e
dedicado, e a Deus que iluminou os meus
pensamentos.
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II
NDICE
PREFCIO .................................................................................................................... III
INTRODUO ............................................................................................................... 7
CAPTULO I PANORAMA HISTRICO DO TEATRO PORTUGUS ........... 15
CAPTULO II ALMEIDA GARRETT E O TEATRO PORTUGUS ................ 27
2.1. Consideraes gerais acerca do teatro ............................................................. 27
2.2. O contributo de Garrett como interventor no teatro portugus ....................... 35
2.3. Os factores responsveis pela presena de Bernardim Ribeiro e de Gil Vicente
no teatro .................................................................................................................. 46
CAPTULO III ADESO DO PBLICO OBRA UM AUTO DE GIL
VICENTE ........................................................................................................................ 63
CAPTULO IV ANLISE ESTILSTICA E IDEOLGICA DE UM AUTO DE
GIL VICENTE ................................................................................................................ 66
4.1. Algumas consideraes acerca do teor de Um Auto de Gil Vicente .............. 107
4.2. Outras personagens ........................................................................................ 110
4.3. Didasclias e Apartes a sua importncia .................................................... 112
CONCLUSO .............................................................................................................. 114
BIBLIOGRAFIA GERAL .......................................................................................... 117
WEBIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 122
ANEXOS .......................................................................................................................... I
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III
PREFCIO
Neste trabalho, intitulado Uma nova interpretao de Um Auto de Gil Vicente,
cedo lugar a uma reflexo sumria em torno da histria do Teatro, como ponto de
partida para a tragicomdia vicentina, denominada As Cortes de Jpiter, sobre a qual
Garrett introduz o seu Auto de meditao cultural.
A partir do exemplo garrettiano, aproveitamos a oportunidade para ressaltar,
especialmente, o grande deficit do nosso Pas na poca do autor, do qual podemos
verificar ainda alguns reflexos na actualidade, nomeadamente no mbito de alguns casos
de iliteracia e analfabetismo.
De facto, ainda hoje, detemos uma populao com dificuldades na descodificao
da mensagem e leitura do texto literrio, tornando-se difcil incutir no pblico-alvo uma
posio crtica face a uma abordagem especfica, que se pretenda transmitir numa
determinada obra.
Deste modo, dedicamo-nos a um tema no mbito do contexto teatral, a fim de,
atravs do exemplo, empreendedor de Garrett, demonstrar a necessidade de tomarmos
uma atitude, no sentido de tentarmos inovar a nossa cultura, recorrendo a uma
reciclagem e uma posterior mudana, ambas efectuadas, sempre que o contexto o
exigir, para que no deixemos morrer o nosso patrimnio cultural lingustico e, com ele,
a civilizao, como acontecera, na poca que o autor pretendeu pr em evidncia.
Ao longo do tratamento do tema inerente ao trabalho efectuado, contamos com o
apoio de vrias fontes bibliogrficas em diversas bibliotecas, que satisfizeram dvidas
pertinentes, bem como curiosidades, que tivemos a oportunidade de incluir ao longo do
trabalho, embora de forma sucinta.
Agradecimentos: professora Doutora Reina Pereira, querida orientadora, que eu
admiro e que dedicou parte de seu tempo a apoiar-me; que me indicou o trajecto a
percorrer, sem deixar de mostrar o seu sorriso, a sua simpatia, a sua prontido e a sua
compreenso, proporcionando-me, com a sua eloquncia, o acesso a novos caminhos do
conhecimento. Agradeo tambm a todos os professores do Departamento de Letras,
por quem sempre senti e sentirei a maior estima, considerao e uma grande admirao.
Aproveito tambm para agradecer a todos os funcionrios das Bibliotecas, que
consultei, pela sua prestabilidade, eficincia e simpatia.
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INTRODUO
A palavra teatro relaciona-se etimologicamente com o vocbulo grego theastai1, o
qual aponta para o olhar e para o contemplar com entusiasmo, sugerindo-nos, assim, o
local onde tem lugar a representao de uma determinada pea.
O teatro define-se, deste modo, como a arte, que resulta da representao de uma
pea por um actor, ou por um elenco de actores, os quais interpretam um enredo, um
tema, ligado a uma histria, contando com o apoio dos responsveis pela parte tcnica e
toda uma equipa coordenadora, responsvel por todos os detalhes necessrios
preparao devida de uma representao dramtica.
De facto, a arte de representar no mais do que a maravilhosa forma, que aborda
actos sublimes, como o acto de contemplar, admirar, apreciar, observar, imaginar,
sonhar, meditar, viajar, entre muitos outros que nos embebem num universo parte,
cujo deleite origina um momento sempre considerado curto, do ponto de vista
emocional, que se encontra envolto pela possibilidade de evaso, que nos abre o
caminho para a aquisio de novos conhecimentos, de uma nova cultura, constituindo
efeitos grandiosos e enriquecedores ao nosso interior cognoscvel.
O teatro, desde os seus primrdios at aos dias de hoje, tem vindo a incidir sobre o
objectivo de divertir, criticar e, sobretudo, suscitar o desabrochar das emoes,
causando reaces, quer de lgrimas, quer de riso.
Ainda que os momentos hilariantes de uma pea sejam fugazes, acabamos sempre
por eterniz-los no nosso pensamento, atribuindo ao aspecto mais pertinente, um lugar
de destaque, o que significa que depositmos a devida ateno ao assunto visado, tendo
retirado aquilo que brotou de mais importante da pea a mensagem. com base nesta
perspectiva que o dramaturgo Brech introduz a noo de teatro pico, baseado na
posio de distanciao que preciso manter, perante aquilo que a mensagem
incutida pela pea nos sugere, para que o espectador possa manter o seu discernimento e
evitar, assim, ser dominado pelo efeito de alienao, que anularia o primeiro.
O interesse por esta arte to elucidativa do mundo que nos rodeia, na realidade
sempre existira, embora tenha sido com contornos diferentes, ou seja, o teatro j tinha
1 Vide Livete Gonzaga, Teatro, alternativa de formao e cidadania na EJA (Educao de jovens e adultos), arquivo baseado em Augusto Boal, Teatro do Oprimido - e outras poticas polticas, Civilizao
Brasileira, Rio de Janeiro, 2005, p.11.
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tido as suas manifestaes no perodo medieval com representaes corteses
acompanhadas de mmica, mas s no sculo XVI com Gil Vicente adquirira o seu
suporte escrito com as suas vrias peas, resultantes do aproveitamento ldico e
pedaggico do teatro.
Garrett apoia-se neste exemplo para compor o seu Auto vicentino, no qual nos
fornece uma reflexo subtil acerca do estado do teatro da poca, onde Gil Vicente
desempenhar, em simultneo a funo de personagem, interagindo com outras
personagens, sendo digno de destaque a personagem Bernardim Ribeiro, que recebe,
igualmente, esse estatuto duplo.
Muitos aspectos viriam a ser mudados no nosso teatro, nomeadamente pela perda
de independncia nacional, (1580-1640) pois dvamos primazia aos modelos
estrangeiros, faltando-nos composies dramticas originais. Para alm deste problema,
havia ainda o obstculo resultante da enorme taxa de analfabetismo e a incorrecta
administrao do dinheiro pelos governantes, que no investiam na arte.
Ao encontro da necessidade de colmatar esta dura realidade civilizacional, surge
Garrett, o qual toma uma srie de medidas com vista a formar novos actores, que
escasseavam, e incentivar a criao de peas originais, atravs da concesso de prmios
s melhores, tentativas que sofreram alguns danos, provenientes de um longo caminho
que teve de ser percorrido, com alguns solavancos.
Porm Garrett consegue asfaltar esse trajecto irregular, conferindo-lhe uma
identidade, que surge retratada no Auto vicentino, que rene todos os predicados
indispensveis feitura de um bom teatro, que surge comprovado pela enorme aceitao
da obra pelo pblico, aquando da sua publicao em 1838.
Deste modo, o autor de Cato torna-se um modelo a seguir, representando uma
grande influncia para os acadmicos de Coimbra. Essa preponderncia surge reforada,
mais tarde, por Ramalho Ortigo, que emite o seguinte juzo de valor:
" foi ele o primeiro que, por meio dos seus livros nos deitou nos copos e nos fez beber o vinho da mocidade
2, acrescentando ainda, que: [] foi com ele que ns
aprendemos a estimar a beleza, a amar a liberdade, a compreender as artes e a
querer o progresso3.
2 Cf. Jorge de Sena, Estudos de Literatura Portuguesa I, edies 70, Lisboa, 2001, p.135.
3 Vide Sobre Garrett disse-se in http://www.prof2000.pt/users/esjdinis/biblioteca/almeida%20garrett.doc.
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No seguimento das consideraes de Ramalho Ortigo, Vitorino Nemsio,
relativamente ao seu papel no teatro, refere: Garrett tem uma predileco constante e
fiel por tudo que o que diz respeito ao palco4.
A afirmao de Vitorino Nemsio vem confirmar o enorme empenho e interesse
do autor pelo teatro, facto que surge espelhado no Auto de Gil Vicente, que Garrett
considera como uma Pedra lanada no edifcio do nosso teatro, que j chamou outras
muitas, confessando ainda que tem f que h-de ir crescendo o monte e se h-de vir
rematar o edifcio5.
Esta revelao traduz uma posio de comprometimento de Garrett em combater o
atraso cultural do nosso Pas, no mbito do teatro, aceitando, assim, o desafio que lhe
fora confinado no seu cargo de Inspector-Geral dos teatros, funo que levar a cabo
com enorme desempenho.
Aps todas estas reflexes acerca de Garrett no nos restam dvidas quanto ao seu
valor, merecendo um trabalho elaborado, com vista a pormenorizar o seu desempenho
produtivo no contexto do teatro em Portugal.
Deste modo, no mbito da abordagem do mundo imenso, que o teatro abarca,
passaremos a referir a contextualizao histrica do teatro portugus, tendo em conta
todo um conjunto de aspectos voltados para as manifestaes existentes desde a
Antiguidade Clssica at Idade Mdia, evidenciando, nomeadamente, o teatro grego
na sua incidncia em valores morais, que se pretendiam ser retratados luz do bom
exemplo, sendo as ms aces criticadas nas comdias com o riso, na base do lema
ridendo castigat mores, isto , rindo castigam-se os costumes e, na Tragdia atravs
do sofrimento, ambos, com vista regenerao das aces.
No que diz respeito ao teatro de Roma, evidenciaremos os seus elementos tambm
de modo sucinto, por forma apenas a verificar aquilo que distingue a tragdia da
comdia, passando essa diferena pelo facto de se cultivarem ambas e se dar especial
importncia tambm mmica. No obstante a grauitasque caracterizava o povo
Romano, a festiuitas e o italum acetumencontravam-se igualmente presentes.
4 Idem, ibidem.
5 Vide consideraes de Garrett, Introduo in obra integral Um Auto de Gil Vicente, edio Porto
Editora, Porto, 2005, pp. 15-16.
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Manifestaes dramticas como os fesceninos, as atelanas, os mimos e as stiras eram
disso exemplo.6
Aps a referncia ao teatro na Grcia e em Roma, de forma a fornecer uma leve
panormica daquilo que fora esta maravilhosa arte no perodo da Antiguidade Clssica,
daremos lugar ao mesmo no contexto da Idade Mdia, onde referirei os vrios gneros
que existiam, bem como a consistncia e o modo de funcionamento de cada um deles.
Seguidamente passaremos a desenvolver as tendncias teatrais existentes no seio
do teatro de ordem profana e palaciana, atendendo definio de cada uma delas, s
quais acrescentaremos gneros, que historiadores franceses acreditaram ter existido,
recebendo as denominaes de Farsa e Sottie, relativamente aos quais procederemos ao
esclarecimento da sua importncia.
Uma vez que se torna importante a referncia s manifestaes teatrais que
precederam ao aparecimento da verdadeira arte teatral, evidenciaremos, igualmente, o
contributo escasso de Anrique da Mota, representante da mais antiga manifestao
teatral, para seguidamente concluirmos, de forma justificada, com o papel
preponderante de Gil Vicente, a respeito do qual passaremos a apresentar a importncia,
as suas influncias advindas de figuras de referncia no contexto espanhol e do perodo
medieval, a organizao da sua obra, pelos seus filhos, aniquilada, parcialmente, pela
aco da Inquisio, aps a sua morte, aquando da reedio das suas peas, compiladas
em 1586.
De este autor s poderiam resultar discpulos, dos quais salientaremos alguns, a
fim de fazer notar a qualidade deficitria das suas criaes, que mais no so que
simples imitaes do seu Mestre.
Para alm de darmos a conhecer toda a sua importncia e a dos seus seguidores,
tambm passaremos a referir, ainda que de forma breve, o desempenho de outras figuras
importantes no mundo literrio, que tambm se evidenciam neste contexto,
nomeadamente Cames, S de Miranda e Antnio Ferreira, ainda que no de forma
exclusivamente centrada neste gnero especfico. Com efeito, uma vez que foram
personalidades que se destacaram noutros gneros, tornar-se- importante destacar Gil
Vicente, para traduzir mais claramente um maior aprimoramento no mbito do teatro.
Terminada toda esta contextualizao breve, mas esclarecedora do percurso
evolutivo do teatro, desde a Antiguidade Clssica at ao perodo do nosso dramaturgo
6 Vide Nair de Castro Soares, Literatura Latina. Guia de estudo. Antologia, ed. Autor, Coimbra, 1996.
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de referncia, introduziremos um novo captulo, relativo ao contexto do teatro
enquadrado numa outra poca, ligada vivncia de Almeida Garrett, autor do Auto que
serve de objecto a esta dissertao.
Em primeira instncia, faremos um brevssimo balano acerca do estado do teatro
do nosso Pas, no contexto do sculo XVI, para dar a conhecer o quanto nos
encontrvamos retidos, no que toca liberdade de voar sem pouso certo no contexto
das criaes teatrais, devido ainda presena do Tribunal do Santo Ofcio e da
dominao vincada da cultura espanhola, que tinha vindo para Lisboa, condicionando
esta a nossa dependncia cultural e lingustica e aquela, a qualidade e diversidade das
peas, no que toca ao extremo cuidado que requeria quanto aos temas escolhidos,
evidenciando mais uma vez Gil Vicente no contexto dos problemas que, a reedio
pstuma das suas peas, enfrentara na sequncia dessa imposio.
Na sequncia destes aspectos torna-se propcio enumerarmos alguns locais, onde
tinham lugar algumas das representaes, a fim de reflectir acerca das precrias
condies que existiam no sculo XVI, pois existia apenas o ptio de Borratm, o
acesso parcial ao Hospital de Todos-os-Santos, concedido por Filipe II em resposta a
um local para as Comdias. Outro dos locais que existiu para o teatro fora o ptio das
Arcas, considerado o mais escolhido no sculo XVII, o qual sofrera os danos de um
incndio, sendo reconstrudo antes do surgimento do terramoto. Tambm no referido
sculo, evidenciamos Francisco Manuel e a sua Farsa O Fidalgo Aprendiz, que s mais
tarde fizera sentir a sua importncia.
Estas referncias relativas aos entraves que existiram ao longo destes sculos,
quer relativamente aos condicionalismos normativos da poca, quer em relao s
condies existentes nos locais de representao, visa preparar o leitor para concluir que
mesmo com as tentativas de empenho, o sculo XVII no constitura a soluo, mas sim
uma fissura, o que justificado pela persistncia dos problemas culturais de um
Portugal demasiadamente voltado para as questes blicas, para a cultura de outros
Pases e para uma falta de iniciativa em apostar na administrao financeira voltada para
a regenerao da nossa cultura, dificultada tambm pela ausncia de um grande nome
do Teatro e da pera, Antnio Jos da Silva, que enfrentara o poder condenativo da
Inquisio.
No mbito do sculo XVIII, o mais importante constou no desenvolvimento do
gosto italiano pela pera.
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Para alm de todos estes aspectos negativos, surgiram ainda neste perodo
histrico medidas caricatas, como a exigncia de actores apenas de um s sexo e peas
portuguesas, acompanhadas de intervenes em lngua italiana.
De seguida passaremos a referir, igualmente, a predominncia, no sculo XIX, de
alguns entremezes, farsas populares, chamando a ateno para o facto de nem todas
serem impressas, pois algumas eram apenas representadas, devido precria qualidade
das mesmas. Outras formas de teatro incidiram sobre os chamados elogios de
natureza poltica.
O percurso oscilatrio do teatro portugus volta a sofrer uma quebra, motivada
por vrios factores de natureza histrico-poltica. No entanto a Inquisio j tinha
acabado e estvamos sob a dominao de uma Constituio Liberal, o que j facilitaria
uma distribuio mais equitativa dos direitos da populao e uma abordagem livre dos
temas. Porm os conflitos entre liberais e absolutistas ainda continuaram.
Todos estes aspectos preparam o caminho para algumas referncias ao sculo
XIX, a fim de evidenciar o papel de Garrett em todo este contexto, por forma a
esclarecer a ndole dos problemas enfrentados por si na sua poca.
Nesta altura, os locais de representao teatral continuam sem as mnimas
condies, sendo, portanto, provisrios.
Garrett recebe o cargo de Inspector Geral dos teatros, facto que abordaremos ao
pormenor, no que respeita s suas medidas de resposta, no captulo seguinte.
Assim, seguir-se- o papel de Garrett como interventor neste mbito, onde aps
uma introduo breve sua biografia, na qual ressaltaremos a sua formao acadmica,
os seus ideais polticos, as suas obras, as suas influncias, as suas paixes, passando
pela referncia a uma srie de situaes, ocorridas ao longo da sua vida, a fim de
justificar, de certa forma, a sua aptido para o cargo, procederemos abordagem do
tema que abre um novo captulo, no qual, para alm das medidas e das solues
apresentadas, acrescentaremos ainda as etapas enfrentadas pelo autor at
concretizao do seu objectivo.
Deste modo, comearemos por justificar o surgimento do convite ao autor para o
desempenho do cargo, para evidenciar o seu enorme entusiasmo e empenho pelo
mesmo, que o levara a criar um Conservatrio dividido em trs sectores confinados a
uma formao multidisciplinar de complementaridade pedaggica, passando tambm
pela concesso de prmios aos autores de peas originais e pela formao de actores e
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seguros, iniciativas que o obrigaram a lidar com alguns dissabores, provenientes de
insinuaes relacionadas com o fornecimento de subsdios desiguais aos teatros
provisrios.
Para alm destes inconvenientes, muitos outros Garrett teria de enfrentar, os quais
se prendem com o maior obstculo: a formao cultural insuficiente do pblico.
Porm Garrett avana na sua iniciativa de criao do Auto de referncia,
inspirando-se na tragicomdia As Cortes de Jpiter de Gil Vicente e apoiando-se na
lenda dos amores de Bernardim Ribeiro, factos cuja presena passaremos a justificar
pela voz do autor.
Seguidamente referiremos, na abertura de um outro captulo, uma reflexo sob a
forma de balano pelo autor, onde nos revela um sentimento de revolta pelo facto de
peas traduzidas constiturem a maior causa de atraso do nosso Pas, de forma a destacar
ainda mais o significado preponderante do Auto.
De seguida passaremos a expor, primeiramente, o alvo de crtica visado pela pea,
o seu tempo histrico, os estudiosos que se encontraram a favor da obra e aqueles que
sustentaram uma posio contrria.
Posteriormente, apresentaremos as razes que se encontraram por detrs da
escolha de Bernardim Ribeiro e de Gil Vicente pelo autor no seu Auto, onde lhes
confere um estatuto duplo de personagem/autor, para evidenciar, luz de uma relao
intertextual com as Viagens, as estratgias do autor para captar a ateno do leitor.
Aps a tomada de conhecimento do mtodo de trabalho de Garrett,
abordaremos, de forma desenvolvida a lenda do amor de Bernardim pela Infanta, na
perspectiva de vrios estudiosos, nas suas vrias posies, quer de adjuvantes, quer de
oponentes, a fim de elucidar sobre a raiz de onde brotou o interesse do autor na sua
abordagem, no podendo deixar de passar pela biografia de Bernardim Ribeiro,
protagonista da lenda, a respeito da qual se far vrias consideraes diferenciadas, uma
vez que se trata de um assunto sem uma base slida em que nos possamos apoiar.
Referidas todas estas abordagens desenvolvidas em torno da lenda, como base do
Auto e da biografia de Bernardim, ser feita uma referncia sua obra, intitulada
Saudades, j que fora retomada por Garrett na sua pea, a fim de satisfazer algumas
dvidas relativas descodificao dos anagramas, que vo ao encontro dos amores do
poeta.
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Seguidamente passaremos a abordar a biografia de Gil Vicente, que Garrett
tambm integra na sua obra e que, tal como a anterior, tambm se apresenta ambgua.
Desta forma, finalizaremos o captulo, concluindo, luz de inferncias, todo um
conjunto de razes que ter conduzido o autor utilizao de tais mtodos e de que
forma os aplicara na pea, de maneira a obter uma boa receptividade, cedendo o lugar a
uma reflexo acerca do factor lenda de que se servira, para melhor esclarecer a
escolha da verso relacionada com amor por Dona Beatriz, em detrimento do amor pela
sua prima, Joana Zagalo.
Para alm de toda a importncia confinada aos factores referidos, cederemos lugar
a uma receita referida por Garrett nas Viagens, a qual reflecte alguns pontos presentes
no Auto, que passaremos a confrontar, de forma a concluir a inteno que o autor teve
em destacar aquilo que era preciso mudar no nosso Pas, atravs da sua pea,
acrescentando ainda, de um modo mais concreto e directo, a importncia do papel de
Gil Vicente em todo o seu esplendor dramtico, sem deixar de ter em conta a sua
biografia.
Aps toda uma abordagem em torno do maravilhoso mundo do teatro, efectuado
por Garrett, s resta assistir aos louros recebidos pelo xito da estreia do Auto
vicentino, iniciando, para esse fim, um novo captulo, onde procederei abordagem do
enorme sucesso que teve, servindo de paradigma exemplar e aplaudido
entusiasticamente pelo pblico.
Com toda a receptividade positiva que acolhera a pea garrettiana, outras obras
foram criadas e outros impedimentos surgiram, nomeadamente no que toca
propriedade literria.
Assim, de forma a confirmar tudo aquilo que foi referido, relativamente aos
captulos que abordaremos nesta dissertao, passaremos a introduzir um ltimo
captulo, dedicado anlise do assunto central, objecto de toda a pesquisa a pea: Um
Auto de Gil Vicente.
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Captulo I
PANORAMA HISTRICO DO TEATRO PORTUGUS
A histria do nosso teatro apresenta algumas vicissitudes, tendo passado por
vrias fases ao longo do seu percurso evolutivo.
O teatro ao longo da Antiguidade Clssica7, na Grcia, transmitiu sentimentos,
valores e comportamentos, ridicularizados na comdia ou castigados na tragdia, onde
se evidenciava a influncia dos deuses sobre os homens.
Por outras palavras, as situaes evidenciadas pelas personagens serviam de
exemplo ao pblico, quer atravs do riso, quer atravs do sofrimento, para que, assim,
as pessoas fossem conduzidas a uma profunda introspeco, de forma a libertarem-se,
atravs da depurao dos sentimentos.
As representaes teatrais inseriam-se em celebraes, que honravam o deus
Dionsio.
Em Roma tambm tinham lugar as tragdias e as comdias, ainda que com
algumas diferenas. A msica, os trajes e a linguagem corporal, ainda que na
actualidade no possamos dispor de muitas informaes, teriam uma grande
importncia, auxiliando e complementando a palavra.
7Na Antiguidade Clssica, celebravam-se cerimnias em honra do Deus Dionsio, por meio de danas,
constituindo o verdadeiro receptculo para o surgimento do teatro na Grcia. Nessas festas, para alm de
danar, tambm cantavam os ditirambos, que consistiam em cantos corais de carcter apaixonado, que
poderiam ser alegres ou sombrios. Uma vez que se tratava do deus do vinho e da fertilidade, os
participantes, nesses momentos festivos, acabavam, naturalmente, embriagados.
O sculo V a.C. vive o seu momento cultural, mais preponderante com a tragdia. Os temas que eram
retratados prendiam-se com os problemas existentes nas relaes dos homens entre si e com os deuses,
relacionados com vrias temticas, como o desrespeito para com as divindades, que eram retratadas em
pblico, por ocasio das festas dionisacas. As representaes trgicas integravam-se em cerimnias de
teor cvico e religioso, podendo qualquer membro da plis, assistir, facto que inclua os pobres, que
adquiriam os seus bilhetes no theoricon, que incidia numa espcie de fundo comum. As peas trgicas
eram constitudas por um prlogo, para que o autor pudesse expor as circunstncias especficas e o mito,
que tinha nomeado para passar a pblico. De seguida eram introduzidos os prodos, onde o coro tomava o
lugar da orquestra, seguindo-se os vrios episdios, ligados pelos cantos e danas do coro.
A tragdia, segundo Aristteles, na sua obra intitulada Potica, pode ser definida como aquela que [] se serve da aco e no narrao, e que, por meio da compaixo e do temor, provoca a Katharsis de tais
paixes. Assim, segundo Stephen Halliwel, na Potica aristotlica, podemos resumir a tragdia sobre uma base moralista ou didctica, atravs da qual, nos ensina a dominar os sentimentos conducentes ao
sofrimento, podemos inserir, igualmente, a base da Katharsis, ligada ao fortalecimento da resistncia
emocional, diminuindo, assim, a nossa vulnerabilidade, a base de moderao, de forma a encontrar um
equilbrio e, por ltimo, a base incidente sobre a funo libertadora da Katharsis.
No que concerne comdia, a sua funo incidiu na crtica poltica e nas referncias a factos ou a
temas conhecidos e figuras importantes, com finalidade crtica.
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Na Idade Mdia, o teatro caracterizou-se pelo seu entretenimento, alegrando as
festas com cenas burlescas.
Neste perodo surgiram, pois, tambm, algumas manifestaes, onde tinham lugar
diversas representaes figurativas com contornos profanos, palacianos, religiosos e
populares, com a participao de jograis8 e jogralesas, que recitavam e danavam, tendo
sido estes os nossos primeiros actores. Para alm destes esboos, houve igualmente a
presena do teatro castelhano, representado por alguns poetas, nomeadamente por Juan
del Encina.
Uma das manifestaes teatrais mais antigas que ocorrera no perodo medieval
portugus remonta ao ano de 1193, correspondendo a um documento baseado numa
doao de terras no lugar de Canelas, da freguesia de Poiares do Douro, concedidas por
D. Sancho I ao jogral Bonamis e a seu irmo Acompaniado, com vista a pagar um
arremedilho, que os dois irmos tinham representado na sua Corte, sendo constatada
no ano de 1222 a Bonamis e aos legatrios de seu irmo por D. Afonso II.
As manifestaes teatrais de ordem religiosa e popular, com contornos profanos,
procuravam entreter as festas populares ou a nobreza, constituindo um momento de
lazer e diverso com cenas de carcter burlesco, aludindo a cenas da vida de Cristo ou
de Santos, atravs dos quais se transmitiam valores religiosos. Porm s alguns temas
sobreviveram em alguns motivos festivos, em toda a Europa medieval, algumas
representaes, segundo os franceses, se denominam de Mistrios, Milagres, Laudes e
Moralidades.
Nos primeiros tinham lugar temas como a adorao dos pastores, ou a viagem dos
Reis Magos, ou a paixo e Ressurreio de Cristo; nos segundos, dava-se lugar aos
milagres preconizados por algum santo ou Virgem; nos terceiros, cantavam-se cnticos
de louvor a Deus e aos santos, sendo dialogadas e, por vezes, com interveno de
msica e actores vestidos a rigor. Relativamente s moralidades, as personagens de
forma alegrica ou personificada, representavam os vcios e virtudes.
8 Os jograis eram associados a uma origem no nobre, estando a sua funo associada tarefa de cantar e
tocar as composies dos trovadores. Porm, estudos vieram mostrar que o jogral alm dessa tarefa de
divulgador de feira, praa ou corte, poderia estar ao servio de um trovador ou outro jogral, ou actuar
independente, recolhendo o repertrio de vrios trovadores, que constituam uma pequena biblioteca de
rolos, que o acompanhavam.
Os trovadores eram de origem nobre e encontravam-se envoltos numa arte de galanteria, devida s
damas, atravs de composies de amor, ou de maledicncia no caso das composies satricas.
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Estas representaes tiveram lugar, inicialmente, dentro da igreja, para que os
fiis percebessem melhor a mensagem incutida no carcter abstracto dos ensinamentos
religiosos, passando mais tarde a ocorrer fora da mesma sobre um estrado dividido em
vrios compartimentos, para serem percorridos pelas personagens gradualmente ao
longo de uma representao dramtica. Este facto ficou a dever-se ao carcter profano
das manifestaes teatrais, constituindo um declnio no seio do teatro, conferindo-lhe
um carcter popular, alheado dos formalismos consuetudinrios e passando a dirigir-se a
um pblico-alvo iletrado.
No que concerne s manifestaes de ordem profana e palaciana, destacam-se os
arremedilhos, os momos e os entremezes, os quais consistiam em representaes
jocosas, de carcter profano existentes no perodo medieval.
Os primeiros consistiam na combinao entre a declamao e a mmica,
enfatizando mais a fbula contada pelos jograis ao pblico, o qual se compunha tanto
por pessoas humildes, como os camponeses, como por fidalgos. Outras formas de
representao, preconizada pelos jograis, consistiam na imitao, de forma burlesca, de
pessoas ou acontecimentos, ridicularizando-lhes o semblante.
O auge do arremedilho teve lugar nos sculos XIII e XIV e, apesar de no ser
permitido a presena na corte de mais de trs jograis, a verdade que, neste perodo fora
excedido o limite imposto pelo regimento de 1250 da casa real. Porm, mais tarde, com
o surgimento da imprensa no ano de 1454 e o aparecimento do livro, a importncia do
papel dos jograis regrediu.
Os entremezes caracterizavam-se por um sentido mais especfico, correspondendo
a episdios particulares e a aces cmicas, sendo vrios aqueles que eram
representados na mesma festa. Os temas alegricos de pendor aristocrtico eram
apresentados por figuras que legendavam o significado subjacente. De entre as figuras
tnhamos os momos, que representavam recorrendo mmica, tendo inicialmente
incidido no uso de mscaras, ou no disfarce do prprio actor. Eram representadas
figuras como fidalgos, pajens e por vezes o prprio monarca em festividades rgias,
constituindo temas provenientes de novelas de cavalaria em que os episdios e os
personagens eram evidenciados por meio de uma aco mimada, danada e por vezes
recitada.
Outras manifestaes teatrais que cremos terem existido, de acordo com os
historiadores franceses, a farsa e a sottie. Ambas de carcter satrico, distinguem-se
-
18
pelo facto de a primeira ser mais popular e centrar-se nos factos e indivduos e a
segunda centrava-se na crtica de ordem poltica e construtiva, integrando, como
protagonistas os parvos que correspondiam a tipos ou instituies sociais.
Relativamente ao teatro castelhano, contamos com o contributo de Juan del
Encina, que associava s suas obras pastoris os autos e mistrios religiosos, aludindo a
questes morais, nos quais utilizava a lngua sayagueza, convertida pelo mesmo nos
vrios falares do oriente peninsular, na reproduo fidedigna do ambiente pastoril.
As representaes de ordem religiosa sofreram alguns entraves oriundos dos
princpios da igreja e das suas autoridades, que proibiam qualquer representao alusiva
a factos bblicos, pois o povo nas festas, ao desempenhar o papel, quer de auditrio,
quer de oficiante, tendeu irreverncia, evidenciada pelos cantos e pelos actos.
Outras manifestaes pr-teatrais, para alm das j referidas, passam por alguns
trechos de Anrique da Mota no Cancioneiro de Garcia de Resende, os quais, de acordo
com a observao de Andre Crabe Rocha, so como uma criana que balbucia
primeiro de depois articula9, partilhando da mesma opinio Antnio Jos Saraiva e
Rodrigues Lapa. Na posio contrria encontra-se Leite de Vasconcelos, que publica as
trovas de Anrique da Mota a um alfaiate de D. Diogo, sobre um cruzado que lhe
furtaram no Bombarral, concluindo, a partir das mesmas, o facto de se encontrar
perante as mais antigas peas do teatro portugus10, abrindo portas para a explorao
de todo o resto da sua obra na ptica dramtica.
Deste modo, o teatro portugus encontra-se, desde a nacionalidade at aos fins do
sculo XV, na primeira fase, passando segunda com Anrique da Mota11
, que
compusera apenas alguns trechos dialogados com contornos chocarreiros no
9 Cf. Lus Francisco Rebello, O primitivo teatro portugus, Editora Biblioteca Breve, Amadora, 19842, p.
67.
10
Idem, p.65.
11
Anrique da Mota, poeta palaciano dos sculos XV e XVI, desempenhou a funo de juiz e comps
peas, como O Processo de Vasco Abul, o qual se encontrava relacionado com a rea judicial, em que se
tratava de decidir se a personagem principal iria ter direito a recuperar um colar, que tinha oferecido a
uma bailarina popular. Outras peas incidiram no Pranto do Clrigo, na Farsa do Alfaiate, na Farsa do
Hortelo e nas Lamentaes da Mula.
As farsas referidas encontravam-se ligadas reproduo carnavalesca de situaes, que aconteciam.
Anrique da Mota, a partir de tais factos, exerce uma aco de julgamento sobre algum elemento de
carcter ridculo. As personagens-tipo, como o clrigo beberro, o cristo-novo roubado, do hortelo
caricato no seu aspecto exterior, ainda que orgulhoso daquilo que faz, conferem dinamismo s peas. Cf.
Antnio Jos Saraiva, Oscar Lopes, Histria da Literatura Portuguesa, Editora Porto Editora, 10 edio,
s.d., p. 158ss.
-
19
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, que, atravs das Trovas a um clrigo sobre
uma pipa de vinho que se lhe foi pelo cho, faz-nos lembrar O Pranto de Maria Parda.
Uma terceira fase correspondente ao uso pleno da fala12, que diz respeito ao
autor desta ltima pea.
Cremos ter nascido o teatro nos primrdios do sculo XVI, devido indicao
cnica que se encontra presente na primeira pea vicentina, intitulada Auto da Visitao,
representado no ano de 1502 nos Paos de Lisboa. Nela vem referido o facto de essa
pea ter sido a primeira coisa que o autor fez13 e que em Portugal se representou14,
sendo confirmado pelo desconhecimento de obras escritas pr-vicentinas.
Deste modo, Gil Vicente marca uma nova viragem no nosso teatro, contribuindo,
com o seu gnio dramtico, para a sua edificao, aproveitando algumas aprendizagens
implcitas pelo seu convvio palaciano e as manifestaes teatrais precedentes,
incluindo, deste modo, o carcter ldico e pedaggico e partindo de exemplos,
derivados das clogas de Juan del Encina15
e Lucas Fernandez16
e das comdias de
Torres Naharro17
, concedendo o suporte escrito ao patrimnio dramatrgico, onde
12
Cf. Lus Francisco Rebello, op. cit., p. 67.
13 Cf. Lus Francisco Rebello, Breve Histria do Teatro Portugus, Editora Europa Amrica, Lisboa, 2000
5, p. 16.
14
Idem, ibidem. 15
Juan del Encina ter nascido, provavelmente, no ano de 1468 e morrido no ano de 1530. Era judeu e filho de um sapateiro, tendo tido, no entanto uma formao acadmica adequada em Salamanca, o que lhe
permitira ser msico. Teve o privilgio de ser beneficiado da proteco do duque de Alba, conferindo-lhe
o direito de representar peas no seu Palcio no perodo natalcio.
A oportunidade de se formar e de fazer representaes em locais conceituados, como o Palcio, t-lo-
transformado numa figura de grande renome no contexto do teatro moderno.
Em suma, no seu carcter artstico, podemos destacar a msica, a poesia e o teatro, tendo conferido a
este ltimo, o aproveitamento do drama medieval e a linguagem popular.
As obras que se destacam so: oito clogas, vilancetes tradicionais, pastoris, religiosos e profanos, onde
predomina o popular, que cede lugar ao erudito.
16
Fernandez nascera em 1474 e morrera em 1542, tendo desempenhado, em vida, a funo de sacerdote e professor de msica como Juan Del Encina. O primeiro d seguimento cultura medieval, presente em
vrias clogas, de acordo com o ambiente pastoril, que era caracterstico neste tipo de composies
poticas. Outras obras onde cultivara a continuidade do esprito medieval, fora, sobretudo, em duas farsas do Nascimento e O Auto da Paixo, destinado a ser representado, este ltimo, em locais religiosos,
como as Catedrais.
17
De Bartolom Naharro apenas h conhecimento de que ter estudado talvez em Salamanca, desempenhando, posteriormente, a funo de sacerdote em Roma sob as ordens de Clemente VII,
momento que aproveita para se dedicar composio das suas obras, que apresentar apenas aos
eclesisticos, facto que contribuiu para um atraso nas inovaes introduzidas.
-
20
podemos encontrar situaes burlescas, de crtica social e de transmisso de valores
cristos.
Todavia Gil Vicente retomou dentre as manifestaes medievais, para alm do seu
carcter ldico, algumas formas dramticas, como o arremedilho, formando a partir da
a farsa, na qual surgem presentes resqucios dos goliardos18
, destacando-se o Pranto de
Maria Parda, o Velho da Horta, o Clrigo da Beira e o Auto das Fadas.
Entre o ano de 1502 e 1536, o nosso dramaturgo foi, portanto, autor, encenador e
actor de aproximadamente cinquenta autos, sendo a maior parte compilada por seus
filhos Lus e Paula Vicente, que procederam sua edio em 1562 e sua reedio no
ano de 1586, a qual sofreu grandes alteraes causadas pela interveno da Inquisio,
pois baseava-se em satirizar temas comuns, inerentes a figuras sociais, algumas
influentes como o clero, embora com alguma subtileza. Os filhos do dramaturgo
procederam diviso de toda a obra em quatro tipologias diferentes, a saber: obras de
devoo, comdias, tragicomdias e farsas, apresentando, porm, algumas discrepncias
na ligao entre cada pea, relativamente aos temas correspondentes a cada uma.
O nosso Pas abre-nos a porta a um mundo literrio novo, que se caracteriza pelo
surgimento do perodo da Renascena, tambm conhecido pela denominao
Renascimento, abandonando, assim, o velho mundo feudal.
Gil Vicente e Cames transmitem-nos precisamente um teatro que se integra na
passagem de um perodo que se encontra a terminar para outro que se encontra a iniciar.
Gil Vicente, atravs do convvio nas Cortes de D. Joo II e D. Manuel ir sofrer
algumas influncias advindas dos seres palacianos a que assistia.
As suas manifestaes teatrais iniciam-se em autos pastoris, passando por farsas
de carcter burlesco e por comdias e tragicomdias.
A sua obra herdou dos entremezes palacianos alguns temas nas suas comdias e
tragicomdias, destinando mais tarde as primeiras, de carcter cavaleiresco, ao
entretenimento da Corte. As segundas encontravam-se revestidas de um carcter
No que toca sua produo dramtica, comps primeiros dons a Palas, seis comdias, que agrupara,
um Dilogo del Nacimiento e algumas poesias profanas e religiosas em metros curtos, cujos temas
incidem na veia satrica ao ambiente romano, que lhe causara alguns problemas com a Inquisio.
Em suma, Naharro uma figura artstica, que cultiva a comdia, proveniente do retrato de alguns
elementos ficcionais, contornados por elementos de teor verdico e a comdia satrica ao servio apenas
da realidade objectiva.
18
Clrigos desfavorecidos, sem o apoio da igreja, tornavam-se vagabundos de esprito provocador. Andavam pelas tavernas e pelas portas das Universidades, cantando e recitando poemas ousados, ou
satricos, debruando-se estes, sobre a corrupo da Igreja.
-
21
aristocrtico e alegrico em tom de cntico e assentes na crtica filosfica da sociedade
ou de episdios de farsa.
um dramaturgo que, embora tenha bebido algumas influncias importantes
decorrentes do perodo medieval no que toca s representaes litrgicas, aos
arremedilhos, aos entremezes populares e aos momos cortesos, nunca deixou de estar
atento s mudanas do perodo quinhentista. Cultiva a comdia erudita, diferenciando-se
dos autos sacramentais do barroco espanhol. Gil Vicente, graas sua grande
determinao, graas ao seu gnio inconfundvel, graas sua persistncia no auto e na
comdia, ambos de carcter popular, com que revestiu o nosso teatro, e graas sua
recusa em adoptar novos modelos dramatrgicos, constitui a sua tentativa de integrao
na esttica renascentista.
O contributo de Gil Vicente reforado pelos pontos de vista de Antnio Jos
Saraiva19
, que o considera como o representante mais eloquente do velho teatro
moribundo em Portugal, e Mrio Martins, que relativamente s suas obras considera a
crista triunfante de uma vaga at ento de pouca altura, mas que j vinha de longe, do
corao da Idade Mdia20.
Um bom exemplo no poderiam deixar de ter os discpulos de Gil Vicente. De
entre os mais populares, destacam-se Antnio Ribeiro Chiado, o mulato Afonso lvares
e o cego madeirense Baltasar Dias.
A continuidade marcada pelos seus seguidores encontrou-se muito longe de
inovar e engrandecer ainda mais os autos vicentinos, pois basearam-se na imitao e na
repetio, que em alguns casos atingira o plgio, contribuindo para o esvaziamento do
contedo polmico vicentino, regredindo cada vez mais a sua escola, que passa a conter
meros dilogos padro entre personagens transformadas em tipos que se movem de
um lado para o outro sob um nome genrico de fidalgo, escudeiro, entre outros.
Relativamente aos temas dos seus seguidores, os predominantes so autos religiosos,
assentes na vida dos santos, ao passo que em Gil Vicente so as moralidades que
ocupam lugar de destaque entre aqueles, tendo escrito apenas um de carcter religioso,
intitulado Auto de So Martinho. Deste modo ficaram a faltar as caractersticas mais
marcantes de Gil Vicente, como a intencionalidade dramtica, o denso lirismo e a
19
Cf. Lus Francisco Rebello, O primitivo teatro portugus, op. cit., p. 18. 20
Idem, ibidem.
-
22
violenta crtica, passando-se a uma inteno elogiosa, que defende, de forma evidente,
as hierarquias da igreja.
Cames (1524 1580), por sua vez, vai beber os seus temas a dramaturgos da
Antiguidade Clssica, como Plauto, ao passo que a estrutura e a linguagem dos seus
autos so herdadas de Gil Vicente.
Lus de Cames, autor de uma grandiosa obra pica intitulada Os Lusadas, em
que enobrece o povo portugus e os seus grandes feitos pela Ptria, rumo descoberta
de novas terras, no campo do teatro no se destacou de igual forma. Escrevera trs
peas: o Auto dos Anfitries, o Auto de Filodemo, publicados, pela primeira vez, em
1587 na Primeira Parte dos Autos e Comdias Portuguesas, e o Auto de El-rei Seleuco,
sendo este ltimo descoberto entre os manuscritos do Conde de Penaguio em 1645,
acabando por permanecer anexado numa edio, relativa s Rimas da sua autoria,
segundo nos consta Tefilo Braga.21
No que respeita aos temas e ao tratamento das personagens, Cames herdara-os
de Gil Vicente. Os seus temas retratam a natureza com base numa posio superior
vontade dos deuses e s convenes sociais, conferindo-lhe, por esta razo, um esprito
renascentista, ao qual acrescentou um esprito medieval, pois aliou o auto, aclamado por
Gil Vicente, aos temas mitolgicos dos grandes nomes greco-romanos.
Retomando a influncia de Plauto, acima referido, torna-se pertinente acrescentar
ainda, no seguimento do paradigma, a compatibilidade existente entre as personagens
deste e as personagens de Cames, presentes no Auto dos Anfitries, embora outras
tenham sido adicionadas, como Calisto, Feliseu e Aurlio com seu Moo. Outra
semelhana diz respeito personagem Almena, correspondente personagem Alcmena
plautina.
Outras caractersticas do teatro de Cames prendem-se com a escolha da
personagem Jpiter, para desempenhar o papel de profetizar os acontecimentos que
tero lugar na pea, o aproveitamento do cmico, encarnado no duplo, que se efectuar
com Mercrio, na figura de Ssia e de Jpiter, na figura de Anfitrio, no Auto dos
Anfitries, onde aproveitar tambm para parodiar pelo caminho do ridculo, o qual
atingir, quer o grotesco, quer a faccia discretamente graciosa. Nesse auto, o autor dar
primazia ao tema do amor e ao carcter equitativo das paixes.
21
Cf. Jos Oliveira Barata, Histria do Teatro Portugus, Editora Universidade Aberta, 1991, pp. 175-
-176.
-
23
Outro aspecto a ressaltar do teatro camoniano tem que ver com o uso da
redondilha maior que, segundo J. Voisine,22
ter sido para o perfeito equilbrio entre o
esprito popular e o esprito aristocrtico.
Para alm da questo da forma, deparamo-nos com a abordagem da temtica
mitolgica, verificando-se a pardia da mesma, com aplicaes caricaturais, que
contribuam para uma certa desconstruo da sua essncia, isto , os elementos que a
contemplavam desarmonizavam-se, atingindo o ridculo.
O objectivo de Cames em suscitar o riso nos espectadores, atravs da
transformao do mito, tornava-se difcil para o entendimento daqueles no que tocava
ao carcter histrico de que tendia a afastar-se, no entanto era possvel seguir
rigorosamente o seu teor, se as suas figuras representativas, no se encontrassem alheias
ao idealismo, que existia sua volta. Deste modo, apareciam embebidas em sentimentos
terrenos e subestimadas pelos caracteres fracos dos humanos, chegando a atingir a
banalidade e a torpeza, caractersticas que conferiam s personagens, supostamente
divinas, um carcter humano.
A forma de tratamento do tema mitolgico, efectuada por Cames, desde logo
transmitiu o seu carcter inovador, contrastando com a ideia que os espectadores tinham
do mesmo, facto que esteve na origem de uma fraca aceitao das suas peas.
Todo este percurso dramatrgico evidencia-nos o seu fugaz interesse de um
Cames ainda estudante.
Personagem contornvel, no respeitante introduo da dramaturgia de pendor
clssico em Portugal fora S de Miranda. No ano de 1528 regressara de uma estadia em
Itlia, encontrando-se embebido em grandes nomes, seus contemporneos, tais como:
Sannazarro, Ariosto, Bembo e Ruccellai.
S de Miranda (1481-1558) inicia-se na comdia em prosa, intitulada Os
Estrangeiros, que ter sido escrita aps o seu regresso de Itlia. Cremos ter surgido
entre 1526 e 1528, sendo publicada em Coimbra em 1559.
Dez anos mais tarde ter escrito a comdia Os Vilhalpandos, que ter ido a
pblico em 1560. Ambas as comdias foram, pois, editadas aps a sua morte.
22
Vide J. Voisine, Amphitrion dans le theater europen de la Renaissance, in Bulletin de lAssociation G. Budet, n3, 4 srie, 1954, p.81.
-
24
Para alm destas peas s restara uma outra intitulada Clepatra, que no passara
de um reduzido excerto de uma tragdia em verso, limitando-se as trs peas
totalidade da sua obra dramtica.
S de Miranda baseou as suas comdias imitao dos Clssicos latinos Plauto e
Terncio e o renascentista Ariosto, constituindo para o nosso Pas da poca um acto de
extrema audcia, uma vez que a nossa tradio dramatrgica, caracterizava-se pela
composio de peas em redondilhas, as quais Gil Vicente tinha aclamado em Portugal
com o apoio da Corte. Por esta razo, S de Miranda, no prlogo da sua primeira
comdia, tece uma crtica aos autos vicentinos, chocando com o dramaturgo.
As suas comdias possuem vrios aspectos semelhantes, passando pelo respeito
pelas regras da Comdia Clssica e pelo prlogo, que anuncia em ambas a intriga nas
figuras personalizadas da comdia numa e da fama noutra. Esta personificao nas duas
peas vai beber a uma outra personalidade de nome Erasmo, no seu Elogio da loucura.
Outro aspecto importante a considerar no prlogo a revelao que S de
Miranda faz na primeira comdia a respeito do facto de ter arremedado Plauto e
Terncio e ter retirado de Ariosto a personagem Doutor Petrnio. Na segunda
Comdia, volta ao aproveitamento dos temas plautinos do Soldado Fanfarro e do
Anfitrio de Cames.
No que se refere ao rol de temas que rondam as suas comdias, ambas inerentes a
Itlia, destacam-se uma sociedade corrupta, a existncia de amores interesseiros e
fingidos, a presena de alcoviteiras, frades libertinos, militares fanfarres, criados
astutos e namorados ingnuos.
Quanto tragdia Clepatra, at hoje no recuperada, o surgimento de uns versos
lricos e sextilhas octossilbicas, junto do manuscrito da cloga Aleixo, fazem-se
corresponder.
A ttulo de concluso, podemos referir que a causa de uma fraca aceitao das
peas mirandinas se deve ao facto de o autor ter cultivado a inovao, proveniente da
influncia trazida de Itlia, onde decorria a comdia erudita. Esta nova tendncia
operara de tal forma inovadora23
, que teve de ser defendida com afinco, perante a difcil
aceitao.
23
Vide GiuseppeTavani, As caractersticas nacionais das comdias de S de Miranda in Ensaios Portugueses, Lisboa, INCM, 1988, pp.414-415.
-
25
Ora, se num Pas como Itlia a mudana sofrera obstculos relacionados com a
aceitao, no seria de admirar, que S de Miranda, ao tentar concretizar o mesmo
objectivo em Portugal, enfrentasse a mesma situao. No entanto, o dramaturgo no
desistira, demonstrando coragem na defesa da sua convico transformadora da
Comdia.
Outro dramaturgo de referncia da poca Antnio Ferreira nas suas peas Bristo
e o Ocioso. Tendo permanecido algum tempo em Coimbra, tomou contacto com os
grandes mestres, que o elucidaram acerca do Humanismo italiano24
, passando a
interessar-se por saber mais acerca da traduo de comdias clssicas, que se
representavam naquele local, tendo para isso convivido com S de Miranda em Lisboa,
em conversas relacionadas com os maiores interesses que rondavam os nossos
intelectuais da poca, acabando por, aliado a ele, introduzir o Classicismo em Portugal.
Outro aspecto aliado a Antnio Ferreira o facto de ter escrito as suas peas na
nossa lngua, recusando a lngua castelhana em quaisquer dos seus versos.
A sua Comdia intitulada Bristo, em prosa, fora escrita em Coimbra e dedicada ao
prncipe D. Joo, sendo a nica publicada ainda em vida. A pea retrata o tema da
existncia de vrios pretendentes para uma moa, arrastando ideais interesseiros de pais
pobres que desejavam fazer o casamento de suas filhas por mera convenincia, casando-
-as com filhos de burgueses de maior hierarquia social. Os fanfarres, os alcoviteiros, os
intriguistas so outros temas entre outros, imitando o Soldado Fanfarro de Plauto, tal
como S de Miranda na comdia Vilhalpandos.
A comdia Cioso, tambm escrita em Coimbra e dividida igualmente em cinco
actos, trata os temas habituais relacionados com convenincias matrimoniais, o marido
ciumento, o isolamento da esposa do ciumento, entre outros temas, parecendo
assemelhar-se s comdias mirandinas.
Porm, foi com a tragdia Castro que obteve maior receptividade. Esta obra
suprema, escrita na nossa lngua, manifestou novidade na sua composio em verso
branco decassilbico, onde evidenciou o nosso sentimento trgico e fatalista, nas figuras
do infante e futuro rei D. Pedro com Ins de Castro, no qual o amor no tem foras para
resistir s razes de Estado. constituda por quatro actos, compostos por vrias cenas,
com a interveno dos coros, que executam uma aco dramtica de grande significado.
24 O Humanismo italiano foi um movimento intelectual que se manifestara durante o sculo XIV, no final da Idade Mdia e atingiu uma maior consistncia no Renascimento, assente na reviso dos modelos
artsticos da Antiguidade Clssica, sendo encarados como a afirmao da autonomia humana.
-
26
Apesar de tratar-se de uma tragdia moldada pelos cnones das tragdias da
Antiguidade Clssica, o seu autor Antnio Ferreira abstrai-se do fatalismo trgico
transcendente, que controlava as figuras mitolgicas, passando a adquirir um
imanentismo de cariz humanista que se adequa melhor aos sentimentos cristos.
Por outras palavras, Antnio Ferreira transforma dramaticamente um episdio
inerente histria ptria, em vez de se limitar elaborao repetitiva de mitos clssicos
ou temas bblicos, evitando assim de basear-se no habitual de todas as outras tragdias.
-
27
Captulo II
ALMEIDA GARRETT E O TEATRO PORTUGUS
2.1. CONSIDERAES GERAIS ACERCA DO TEATRO
O nosso Pas encontrava-se dominado por uma srie de condicionalismos,
ocorridos nos sculos XVI, XVII e XVIII, que impediram a nossa evoluo cultural,
facto que pela sua importncia, no mbito do teatro, ser abordado neste captulo,
contando com o contributo e desempenho de Garrett, num captulo subsequente.
Portugal, na segunda metade do sculo XVI, encontra-se sob a dominao
castelhana e cingido autoridade do Santo Ofcio. Esta situao afectou ainda mais, de
forma directa o esplio que o dramaturgo Gil Vicente nos deixou, uma vez que, na
reedio pstuma das suas peas, compiladas pelos seus filhos, se assistiu perda de
algumas delas.
Porm, muitos retratos de membros da sociedade, nas suas peas, foram
denominados de forma categorial, sendo referidos, por exemplo, atravs de uma das
suas caractersticas fsicas aliada ao seu estatuto desempenhado socialmente. Este facto
ter contribudo para assegurar algumas das peas.
A presena castelhana, por seu turno, vem com os seus artistas mais proeminentes
at Lisboa, comeando por se afirmar, interferindo com o desenvolvimento de um teatro
que se pretendia original.
A corte filipina encontrava-se em Lisboa, revestida de cmicos espanhis que se
apelidavam de mogigangas. Representavam sobre o Ptio de Borratm, denominado
igualmente por Mouraria, o qual j existia desde o ano de 1588, data em que Filipe II
permitira o acesso parcial ao Hospital de Todos-os-Santos, para dar lugar
representao de comdias, evitando assim alguns ataques de telogos importantes.
Para alm do ptio referido havia ainda o ptio das Arcas, considerado de certa
forma o centro do teatro portugus durante o sculo XVII, at sua destruio
provocada por um incndio por volta do ano de 1698. Fora depois reconstrudo
enquanto Hospital, acabando por prolongar-se at ao surgimento do terramoto de
175525
.
25
Vide Lus Francisco Rebello, Breve Histria do Teatro Portugus, op. cit., p.69.
-
28
Deste modo, o nosso teatro encontrava-se em declnio, assente na infecundidade
de dramas originais e afundado em imitaes.
Em 1640, o nosso Pas comea por recuperar alguma autonomia, sendo de
ressaltar Francisco Manuel de Melo na sua farsa O Fidalgo Aprendiz, passado cerca de
seis anos, constituindo uma obra de referncia no sculo XVII. No entanto, a verdade
que as influncias que tnhamos sofrido e a redefinio de novos itinerrios s mais
tarde que se manifestam claramente.
Assim, poderemos considerar o sculo XVII um fosso na evoluo do teatro
portugus, pois a maior parte das obras deste perodo foi redigida em latim ou
castelhano, contribuindo para a perda da nossa independncia, alargada ao nosso maior
patrimnio de identidade a lngua. Tambm o fanatismo de D. Sebastio contribura
para o atraso do teatro no nosso Pas, pois provocara o desvio da ateno dos
portugueses para questes blicas e para a religio, distanciando-os da cultura teatral.
Outro aspecto conducente ao nosso atraso, prendeu-se com o Salvatrio,
denominao atribuda pelo povo s propostas exageradas de compresso de despesas,
apresentadas pelo Ministro da fazenda, Antnio Jos de vila, as quais Garrett tentara
refutar numa das suas consideraes parlamentares da Cmara dos Deputados de 1841,
datada de 15 de Julho, relacionadas com a Discusso da Lei da Dcima.
Nesse mesmo ano, a fim de evitar despesas, tentaram fechar o Conservatrio de
Arte Dramtica.
A Comisso Externa colocara algumas propostas conducentes reduo de
despesas, que sendo mal aceites, deram origem ao termo Salvatrio, revestido de ironia
e carcter depreciativo.
Garrett no acata as propostas, colocando-se numa posio oposta, em que afirma
o seguinte:
Resolvi votar contra os Srs. Ministros desde que os vi adoptar em globo e sem distino todas as propostas da Comisso Externa; algumas das quais so to
absurdas, to incoerentes, to filhas de um esprito mesquinho de retroaco e
obscurantismo [] propostas tais que s por aberrao mental podiam sair de to conspcua congregao de homens como so []. Garrett finaliza, considerando: estou persuadido que grande nmero de membros desta Cmara, daqueles mesmo que alguma oposio tm feito aos Srs. Ministros, ho-de abandonar a
oposio, e ho-de votar por uma verdadeira salvao do Estado. Esta sim, que a
salvao deveras: - o mais Salvatrio! 26
26
Vide Mrio Gonalves Viana, Poesia e Teatro - Ensaio Preambular, (Seleco e Notas), Clssicos
antigos e modernos, srie B, Editora Livraria Figueirinhas, Porto, 1944, n.1, pp. 189-190.
-
29
No sculo XVIII, nos reinados de D. Joo V e de D. Jos, desenvolve-se o gosto
pela pera27
. Este novo tipo de espectculo, proveniente de Itlia, entusiasma bastante o
primeiro, levando-o a encaminhar para l os msicos mais marcantes da sua corte para
melhor se aprimorarem nas suas aprendizagens, destacando-se Francisco Antnio de
Almeida, que tinha composto a pera La Pazienza di Socrate, constituindo a primeira
cantada no nosso Pas em pleno Carnaval no ano de 1733, e Antnio Teixeira, na sua
msica composta para peras joco-srias de Antnio Jos da Silva, tambm autor da
pea Judeu. Este ltimo representa no contexto dramatrgico a personalidade mais
importante, situada entre Gil Vicente e Garrett, tendo sido condenado fogueira pela
Inquisio, devido questo judaica retratada na sua pea.
A presena do Tribunal do Santo Ofcio causou um grande entrave no nosso
teatro. Em 1780, Pina Manique interferiu no pedido de licena do empresrio Paulino
Jos da Silva, que orientava o teatro que surgia na Rua dos Condes. Para representar
as peas, tornava-se necessrio, que fossem primeiro vistas e examinadas no tribunal
da Mesa Censria, para serem julgadas no que toca religio e aos bons costumes28,
sendo levadas a pblico luz de uma segunda condio de serem exibidas por homens,
27
Apesar do surgimento tardio deste gnero teatral, a verdade que foi muito bem acolhido em Portugal, aps a Restaurao. Todavia, h algum tempo, o msico Domenico Scarlatti, italiano,compositor de
serenatas, j se encontrava no nosso Pas, representando um, entre muitos dos estrangeiros, que se sentia
aliciado pela possibilidade de obter lucros nas festas de corte.
Em 1735 assistimos instalao definitiva de uma companhia italiana, que se instala em Lisboa, sob a
direco de Alessandro Paghetti, que cremos ter tido contacto com Francisco Antnio de Almeida, autor
de La Pazienza di Socrate, a qual foi cantada no Pao da Ribeira em 1733.
As condies materiais do nosso Pas foram melhorando gradualmente, de forma a receber mais
conveniente a pera maneira de Itlia. Contudo, tambm assistimos mesma cantada em portugus,
com um protagonismo que chegara a atingir os elementos da corte e outras camadas sociais, que passaram
a adquirir o gosto pela mesma.
Outros autores de pera surgiram no nosso Pas, destacando-se Metastsio e Goldoni, sendo o trabalho
deste ltimo, aquando a sua ida a Paris, muito requisitado pelo nosso embaixador, que lhe encomendara
algumas das suas obras. Para alm destes autores, tambm recebemos, em catadupla, outros autores,
bailarinos, arquitectos, cengrafos e coregrafos.
Perante toda uma positiva receptividade, contudo, o nosso envolvimento foi tardio, como j referimos,
facto que se deve aos encargos econmicos, que uma iniciativa desta dimenso acarretava.
Portugal encontrava-se, assim, predisposto a receber tendncias novas do estrangeiro, continuando a
existir as tradues e a perda de originalidade. Na altura em que se apreciava a pera italiana, surgiam,
em simultneo, tradues de O Tartufo, Athalie ou O Bourgeois Gentilhomme.
A aceitao da arte francesa de um Molire, de um Voltaire, de um Corneille e de um Racine, por sua
vez, no foi acolhida equitativamente por todos, sendo os mais receptivos os nobres.
A primeira representao que tivemos deste teor ocorreu em homenagem a Lord Tirawley, diplomata
ingls, que desejava assistir a uma obra em portugus. Assim, Alexandre de Gusmo traduz Le Mari
Confundu, esclarecendo tratar-se de uma adaptao ao gosto portugus, a qual estreara em 1737, em
Lisboa. Segundo Jorge de Faria, a arte francesa em Portugal ter comeado de forma mais veemente, na
segunda metade do sculo XVIII.
28
Cf. Lus Francisco Rebello, O Primitivo Teatro Portugus, op. Cit., p. 25.
-
30
pelo que no pode haver receio de que aconteam aqueles distrbios que so inevitveis,
quando se renem muitas pessoas de ambos os sexos29.
Nesta linha de pensamento, D. Maria, a rainha piedosa, pela sua tendncia
solidria e pelo seu fanatismo religioso, concordou com a medida, mantendo-a at ao
ano de 1799, altura em que Jos de Paula, personalidade ligada ao mundo do teatro,
conseguiu invalid-la.
Antes de a lei ser anulada, no ano de 1787, William Beckford assiste
representao de uma pea com a presena apenas de actores masculinos, provocando-
-lhe um sentimento de indignao, que evidencia em carta. Tomemos um excerto, a fim
de avaliarmos o carcter caricato que os preceitos da poca obrigavam. Beckford30
comenta:
o drama causou-me mais enfado que divertimento. O teatro baixo e acanhado, e os actores, porque no h actrizes, so inferiores a todo o critrio. Tendo ordens
absolutas da rainha afastado do palco cnico as mulheres, os papis atinentes a
estas so representados por mancebos. Julgai que agradvel efeito esta
metamorfose produzir, especialmente nos bailarinos. Ali se v uma robusta
pastora trajando as cndidas vestes originais, de macia barba aveludada e
proeminente clavcula, colher flores com um punho capaz de derrubar o gigante
Goliath, um rancho de leiteiras, seguindo as suas enormes pegadas, aos pontaps s
saias a cada passo. Tais meneios e saltos desconcertados, tais trejeitos e olhos,
nunca eu tinha visto, nem espero tornar a ver na minha vida.
Para alm desta condicionante, agravante do nosso teatro, juntou-se uma outra lei
em 1812, que defendia que algumas peas portuguesas deveriam ser em msica e era
lngua italiana, de forma a aceder aos britnicos, acelerando ainda mais a
desnacionalizao do nosso Pas.
Quanto aos vrios temas polmicos que se procuravam exprimir atravs das peas,
todos eles eram referidos metaforicamente, de forma a conservar a descrio pretendida,
derivado da censura inquisitria.
No teatro, a pouca evoluo que se operara foi surgindo a um ritmo lento. Os
rcades manifestaram-se contra a influncia da pera italiana e o teatro de cordel. Estas
formas de teatro direccionavam-se a um pequeno grupo social que decaa, ou seja, a um
povo inculto.
29
Idem, ibidem. 30
Idem, p.26.
-
31
Na pera italiana do sculo XVIII, por algum tempo, os papis consignados a
mulheres eram representados por homens, que eram sujeitos a amputao sexual, para
que a voz se tornasse melodiosa, recebendo a denominao de Castrati.
Uma nova Arcdia surgira no ano de 1790. Prolongou-se a tendncia
neoclassicista, escrevendo-se dramas alegricos, elogios dramticos e tragdias feitas
em verso, onde o assunto que imperava dizia respeito Antiguidade.
No final do sculo XVIII, estimava-se uma mdia de 80% da populao
analfabeta, representando, na prtica quase a totalidade, pois s existia uma populao
de cerca de trs milhes de pessoas. Os rcades dedicavam-se tragdia de ideais
cvicos, de acordo com o neo-classicismo e a comdia de moralidade burguesa.
As formas dramticas que imperam at ao primeiro quartel do sculo XIX
passam pelos entremezes e farsas populares, sendo umas apenas impressas e outras
representadas. Este facto deve-se, de acordo com Tefilo Braga, ao facto de faltarem:
os criadores do drama nacional; no se passava das meras tradues ou imitaes das Tragdias de Arnaud ou Voltaire; porm as aluses polticas enlouqueciam as
plateias, que estavam atentas a escutar os elogios dramticos, espera em que
pudessem prorromper em estrondosos aplausos. 31
Deste modo conclumos, que os elogios eram de natureza poltica, revestidos de
aco dramtica e dialogados entre personagens alegricas, histricas e mitolgicas em
simultneo, como por exemplo a glria, a inveja e as figuras histricas como Afonso
Henriques, entre outras imagens de referncia, surgindo por ocasio de festas oficiais. O
perodo auge destas manifestaes dramticas deu-se entre 1790 e 1895.
A partir do ano de 1807, o teatro em Portugal sofre um abrandamento nas suas
representaes, marcado pela primeira invaso francesa e a consequente fuga da corte
para o Brasil, seguindo-se ainda a ocupao inglesa factores que condicionaram uma
mudana mais rpida no seio da vida econmica e social no nosso Pas. O Brasil
atingira a sua independncia econmica, suscitando uma grande mudana nas
mentalidades burguesas, que se encontravam envoltas de ideais liberais que imperavam
em Frana com a Revoluo relativa ao ano de 1789.
Em 1820 d-se a revoluo liberal com vista a barrar a ocupao estrangeira e
assim atingir a liberdade e acabar com o feudalismo na economia do Pas.
31 Cf. Lus Francisco Rebello, O Teatro Romntico, 1838-1869, Editora Biblioteca Breve, Amadora, 1980
1, pp. 22-23.
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32
Dois anos mais tarde, o Pas passa a reger-se sob o regime de uma Constituio
Liberal. A Inquisio tinha sido suprimida, permitindo a liberdade de expresso escrita,
podendo ter lugar na imprensa qualquer obra alusiva a quaisquer temas.
No entanto, os conflitos polticos ainda no tinham acabado. No perodo entre os
anos de 1823 e 1850, surgem conflitos entre liberais e absolutistas devido a questes
relacionadas com a aquisio de bens feudais, que se encontravam na posse da igreja e
da nobreza e que tanto precisavam os burgueses, para contornar a perda dos lucros
provenientes da ligao comercial com o Brasil, aquando da sua dependncia.
Aps a Revoluo de Setembro no ano de 1836, as leis de personalidades como
Mouzinho da Silveira e Joaquim Antnio de Aguiar acabaram com os direitos
senhoriais, reorganizaram a diviso administrativa do Pas, acabando com as ordens
religiosas, nacionalizando-lhes os bens. Deste modo, encontrvamo-nos perante uma
sociedade revestida de uma pequena burguesia, constituda por artesos e camponeses.
Para alm das mudanas ocorridas nos campos social, administrativo, poltico e
econmico, tambm as reas da educao e da cultura sofreram uma transformao, que
comeou por ser operada por Almeida Garrett, que tinha sido encarregado de tomar
medidas no sentido de organizar um teatro nacional, para que nos enriquecssemos no
que toca ao civismo e moral, isto , fazer com que o teatro fosse um marco de
referncia cultural a seguir pela nao.
Todavia, essa funo exigia de Garrett a capacidade de ultrapassar diversos
obstculos, como a situao em que se encontrava o estado da nossa literatura
dramtica, que tinha sido violada pelos trabalhos sem significado dos poetas trgicos e
pelas chocarrices dos autores de entremezes denominados de cordel, que conduziram
o nosso Pas ao mago da decadncia cultural.
O Teatro do Salitre e o Teatro da Rua dos Condes eram dois conhecidos locais de
representao dramtica. O primeiro, situado em Lisboa, constitua um local desprovido
de conforto e das mnimas condies, sendo comparado por Anselmo Braancamp Jnior
a uma baiuca32 onde tinha lugar a classe nfima da sociedade33 e ali s as falas
cmicas de carcter mais obsceno e as mais desonestas que acolhiam uma maior
receptividade por parte do pblico, sendo as nicas aplaudidas. Relativamente ao
32 Cf. Lus Francisco Rebello, Breve Histria do Teatro Portugus, op. cit., p.93. 33
Vide Anselmo Braamcamp Jnior, Crnica Literria de Coimbra, n2, 18404, s.p.
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33
segundo, tratava-se de um local provisrio de representao, considerado por Costa
Cascais, uma espelunca imunda e carunchosa34.
Para alm da ausncia de qualidade das representaes teatrais, tambm havia
outro problema, que se relacionava directamente com a falta de candidatos devidamente
instrudos e propensos vida artstica. De facto, a taxa de analfabetismo no nosso Pas
j era bastante elevada na poca, atrasando o avano cultural.
Deste modo, os actores existentes, de acordo com o referido nos jornais da poca,
eram aqueles que passavam o dia trabalhando com o martelo ou sentados na tripea e
as mais das vezes se apresentavam em cena embriagados35.
O Teatro de S. Joo, localizado na cidade do Porto, tambm no escapou
decadncia. A composio dos dramas eram incumbidos a homens incultos e
despreparados e as peas eram entregues representao por uma companhia que
actuava vrias vezes com os seus actores bbados. Deste modo concluimos que no
havia actores, pois ningum manifestava vontade em seguir as artes, considerada uma
profisso condicionada pela poca. Colocava-se a questo acerca de quem estaria
disponvel para ser o autor da composio dos dramas para aqueles actores, pois
ningum se queria sujeitar a desempenhar um trabalho de noites sem um elenco altura.
Assim, as nicas composies que existiam eram tradues mal feitas, originando uma
linguagem bastarda e amalgamada de portugus e francs, repercutindo-se at ao
surgimento da restaurao e, embora tenham surgido algumas peas portuguesas
originais, no passaram de um simples retrato dos sucessos aterradores da nossa guerra
civil.
Surgiram ainda vrias tentativas, com vista a colmatar o atraso cultural, mas
todos os esforos foram insuficientes.
Este facto revela o enorme estado de dependncia em que se encontrava o nosso
Pas, faltando-nos a nossa identidade lingustica.
O nosso Pas, fora assolado por muitas vicissitudes de diversa ndole, marcadas
pela demasiada ateno voltada para questes blicas e administrativas, que
predominaram em detrimento do cultivo das artes, o que constitura o principal factor de
atraso.
34
Cf. Lus Francisco Rebello, O Teatro Romntico, op. cit., p. 39. 35
Idem, ibidem.
-
34
O nosso Pas, na arte de representar, nunca esteve ao mesmo nvel dos outros
Pases. Nunca tivemos uma grande afluncia de actores, como acontecia em Frana,
Alemanha e Inglaterra, permanecamos, pois, na estagnao valorizando composies
dramticas sem valor.
Faltava ao nosso Pas a lei responsvel pela Inspeco dos teatros, funo que fora
confinada a Almeida Garrett e que o autor ultrapassar atravs de uma srie de medidas
que sero desenvolvidas no subcaptulo seguinte.
Deste modo, o autor das Viagens inicia-se na grande empreitada da sua vida,
que o levar a operar grandes mudanas no estado cultural do nosso Pas, as quais sero
uma resposta ao que considera estar mal. Essas mutaes sero evidenciadas por meio
da tomada de medidas conducentes a esse objectivo, sendo abordado todo o processo no
captulo subsequente.
-
35
2.2. O CONTRIBUTO DE GARRETT COMO INTERVENTOR NO TEATRO
PORTUGUS
Garrett, nascido no ano de 1799, foi considerado o introdutor do romantismo em
Portugal. O autor passara a sua infncia no Porto e nas quintas do Castelo e do Sardo,
desfrutando de paz e serenidade, junto de duas criadas, que o ajudaram a adormecer
luz de histrias. Estas condicionaram o seu interesse pelo patrimnio cultural popular,
que o conduzira composio do Romanceiro.
Com a primeira invaso francesa, Garrett foi levado a deslocar-se para os Aores,
onde a sua educao confinada a seu tio D. Frei Alexandre da Sagrada Famlia, bispo
da diocese. Neste perodo da sua vida, toma contacto com as humanidades clssicas,
tomando conhecimento dos clssicos gregos e latinos, bem como dos autores franceses,
espanhis e italianos dos sculos XVI e XVII, passando tambm por autores ingleses e
pelo estudo da histria sagrada e retrica, mostrando j uma propenso para orador.
Longe de se encontrar interessado pela carreira eclesistica, logo comea a entregar-se
ao amor durante o perodo da adolescncia, originando o cultivo da poesia e comeando
por se formar no curso de Direito em Coimbra. Aqui a sua formao cultural volta a
sofrer influncias, entrando no campo das ideias liberais, fazendo discursos de defesa
dos seus ideais revolucionrios e compe Odes, as quais canta. Para alm destas
aprendizagens, comea a dedicar-se actividade de dramaturgo, que nos deixa desde j
antever a sua ligao futura ao teatro de forma to preponderante. Escreve neste perodo
tragdias filosficas maneira clssica com um contedo de cariz poltico, destacando-
-se Lucrcia e Xerxes, sendo apenas Mrope a nica, que na opinio do autor deveria
ser publicada, sendo todas elas anteriores revoluo de 1820.
No ano seguinte fora publicada a tragdia Cato, com contornos clssicos e
contedo liberal, tendo sido vrias vezes representada e em que Garrett participara
como um dos actores, suscitando um grande interesse ao pblico feminino, dentre o
qual destaca-se a admiradora Luisa Midosi com quinze anos de idade, por quem se
apaixona e casa. Entretanto outras produes so criadas, como o poema em verso
branco intitulado O Retrato de Vnus, com o qual enfrenta alguns problemas
relacionados com questes morais. Com a perseguio dos liberais, o autor obrigado
ao exlio, o que ocorrera em Inglaterra no ano de 1823. Viveu l junto de uma famlia
rica e a nvel cultural, bebeu novas aprendizagens, nomeadamente do movimento
-
36
romntico ingls, tomando conhecimento de Byron e Walter Scott e, atravs destes,
passara a interessar-se pelas influncias que ocorreram na Alemanha e perpassavam
Frana.
A propsito das correntes estticas, Garrett, aps todas as influncias por que
passou ao longo da sua vida, formou uma tendncia hbrida que se manifesta nas
formas, nos temas estticos, referncias ao nvel cultural, tornando-se invivel uma
demarcao precisa na sua superao das fases literrias. Atravs das primeiras peas
dramticas, relativas ao perodo de juventude do autor, podemos concluir a existncia de
alguns resqucios neoclssicos e a tendncia para alguma susceptibilidade pr-
romntica.
Por outro lado, Garrett, no meio desta variedade de tendncias estticas, evidencia
a sua tendncia de autor romntico. Porm, no se assume numa esttica literria
especfica, uma vez que sempre prezou a sua independncia e a aquisio de um ponto
de equilbrio entre elas, cultivando-as sem a adeso exclusiva a uma em particular.
Assim, Garrett afirma: No sou clssico nem romntico; de mim que no tinha
seita nem partido em poesia36.
No que diz respeito ao romantismo, o autor evidencia-o atravs do desrespeito
pelas regras, atravs do primado do sentimento sobre a razo, o fim de regras e
desigualdades sociais, a mistura de gneros e a preferncia pela originalidade das obras,
em vez da imitao de modelos tradicionais e, portanto, atravs da sua tendncia
inovadora, elementos que fazem com que na prtica Garrett seja um autor romntico,
mas no de um romantismo exagerado, pois essa tendncia condena-a por consider-la
inverosmil, isto , sustenta uma posio crtica face ao ultra-romantismo, referindo-se
nas Viagens a esses excessos da sua poca, assente naquele destempero original de um
drama plusquam romntico, laureado das imarcessveis palmas do Conservatrio para
eterno abrimento das nossas bocas!.37
Tendo j desempenhado primeiramente a profisso de chefe de repartio da
instruo no Ministrio do Reino, encontra-se neste perodo sem meios de subsistncia e
a procurar um meio de sustento, passando a desempenhar a funo de correspondente no
banco Laffite, na sucursal do Havre. A partir deste momento, recomea a sua actividade
36
Cf. Carlos Reis, Literatura Portuguesa Moderna e Contempornea, Editora Universidade Aberta, Lisboa, 1990, p. 43.
37
Cf. Almeida Garrett, Viagens na minha Terra, edio Amigos do Livro, Lisboa, sd., pp. 250-251.
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37
literria, compondo os poemas Cames e Dona Branca, responsveis pela introduo do
romantismo em Portugal.
Muitas outras mudanas sero operadas na vida de Garrett. Outros exlios e outras
influncias surgiro, bem como outros amores. O seu casamento com Lusa no tem
seguimento e o seu divrcio, uma vez no concretizado, impossibilitar-lhe- de
legitimar sua filha, fruto da sua relao com Adelaide Deville Pastor. Ainda com os
seus cinquenta e quatro anos de idade, Garrett conhece um novo amor de nome Rosa
Montufar Infante, mais conhecida pelo nome de Viscondessa da luz, que surge nos seus
poemas.
Estas referncias demonstram o modo intenso com que o autor se entregou ao
amor.
A biografia de Garrett38
marcada por uma srie de vicissitudes e influncias que
condicionaram o seu percurso literrio e o seu universo cultural, destacando-se tanto
como prosador, como poeta, orador, fidalgo, diplomata, deputado e dramaturgo,
destacando-se, deste modo, como uma das maiores personalidades de referncia da
cultura do sculo XIX.
No mbito do teatro que este trabalho aborda, Garrett superou-se, tendo comeado
por projectar os primeiros esboos, neste mbito, quando tinha 15 ou 16 anos, crendo o
seu amigo e bigrafo Francisco Gomes de Amorim, que o autor tenha escrito a tragdia
Lucrcia com essa idade, apesar de ter sido trazida a pblico apenas nos seus vinte anos
de idade, correspondendo ao ano de 1819.
Com a idade referida publicao da sua pea, Garrett j centrava o seu
pensamento sobre o teatro de uma forma convicta, referindo a seguinte reflexo:
Os teatros, desde que da civilizao e bom gosto foram depurados, e limpos das fezes da barbaridade, comeam a ser no s a escola da boa, e ldima linguagem, e
a moral s, e pura, mas o incentivo da glria, e o germe das virtudes sociais. 39
Em 1838, com os seus 39 anos, criou e publicou a pea de referncia Um Auto de
Gil Vicente, a qual assentou numa reflexo profunda acerca do teatro, a respeito da qual
falaremos aps a abordagem de todo o trabalho de Garrett conducente mesma.
38
Vide J. tomaz ferreira, Prefcio in Almeida Garrett, Frei Lus de Sousa, editora Europa-Amrica, 8 edio, Lisboa, s.d, p.11 et passim.
39 Cf. Mrio Gonalves Viana, Poesia e Teatro, op. cit., p. 62.
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38
Garrett, preocupando-se com o futuro civilizacional e cultural do nosso Pas,
resolve intervir de uma forma mais activa no panorama do teatro, atravs do seu cargo
de Inspector dos teatros, mas como fora referido no subcaptulo anterior, no foi tarefa
fcil.
Deste modo torna-se importante abordar o percurso do autor at atingir a meta
pretendida. Para que possamos compreender melhor o seu modo de actuao, falta-nos
responder s seguintes questes: Quais as medidas que tomou e as etapas por que
passou Garrett e qual a soluo que encontrara para dar resposta sua obra de
iniciativa? Passemos, assim, resposta das questes colocadas, referindo,
primeiramente como tudo comeou.
Aps o triunfo da revoluo de Setembro no ano de 1836, Garrett inicia-se no
renascimento cultural da arte dramtica do nosso Pas.
Passos Manuel, colega e amigo de Garrett, assina uma Portaria rgia, convidando-
o a implementar sem perda de tempo um plano para a fundao e organizao de um
teatro nacional nesta capital, o qual sendo uma escola de bom gosto, contribua para a
civilizao e aperfeioamento moral da Nao portuguesa e satisfaa aos outros fins de
to teis estabelecimentos. 40
A rainha D. Maria II aceitou a ideia de Passos Manuel, permitindo, assim, aps
cerca de ms e meio o encaminhamento do projecto lei, que lanava as medidas de
reforma do nosso teatro, sendo dentro de trs dias uma lei estabelecida, pois havia uma
grande urgncia cultural. Garrett encarara esta necessidade como uma questo de
independncia nacional41.
Uma vez que os nossos governantes tinham andado, at data, preocupados com
o estado da cultura do nosso Pas, decretada em 15 de Novembro a Inspeco-Geral
dos teatros e espectculos Nacionais, nomeando Garrett, pelo convite de Passos Manuel,
para o cargo no ano de 1836, o qual o encarara como uma questo pessoal indo muito
alm da sua funo de investigar o estado dos teatros, avanando tambm para a criao
de um conservatrio de msica, iniciativa estabelecida no ano de 1835.
A quantidade de alunos comea a aumentar no Conservatrio dirigido por Garrett,
o qual comeou por funcionar dividido em trs sectores, sendo um destinado escola
dramtica, dirigida pelo actor francs Paul e acompanhada por um colega seu de nome
40
Cf. Lus Francisco Rebello, O Teatro Romntico, op. cit., pp. 36-37. 41
Idem, ibidem.
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Manuel Baptista Lisboa. O outro sector foi entregue escola da msica sob a
responsabilidade de Domingos Bontempo e o terceiro e ltimo sector ocupou-se da
escola de dana, mmica e ginstica especial.
Segundo Anselmo Braamcamp Jnior, acadmico, que nos refere o estado de
declnio do nosso teatro desde o ano de 1820, Garrett entendeu o seu novo cargo, ligado
in