Teorias da Mais-Valia Difusa
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Teorias da Mais-Valia Difusa
a crítica da economia política e o mito da classe produtiva
Leo Vinicius
e-mail: leov(arroba)riseup.net
2010
à memória de Alex Marchi
“esse exemplo colossal de integridade, de dignidade, de conduta coerente com o que
pensava e pelo que lutava.” (Marcelo Pomar)
Índice
Prefácio.............................................................................................................................5
Parte 1O Mito da Classe Produtiva na Crítica da Economia Política
Introdução..........................................................................................................................9Capítulo I - O Movimento Operário: nova classe produtiva.....................................20
Rebeldia coletiva e a ciência do socialismo..............................................................20Elementos de constituição: forças econômicas, experiências e tradições.................25Ressignificando e utilizando significações burguesas...............................................28Um movimento de artesãos.......................................................................................32Hodgskin: conhecimento, cooperação e trabalho produtivo.....................................35
Capítulo II - Proudhon: o governo dos produtivos sobre os improdutivos..............38A classe trabalhadora proudhoniana..........................................................................38Produtivos e improdutivos.........................................................................................41A antinomia da necessidade como força produtiva...................................................46
Capítulo III - Marx: antinomias sobre trabalho produtivo.......................................48Trabalho produtivo e trabalho improdutivo...............................................................48A antinomia da produção material e manual.............................................................50A dualidade do trabalho produtivo............................................................................53Antinomia da divisão do trabalho..............................................................................56Antinomias entre o presente e o porvir......................................................................64Um pragmatismo em Marx........................................................................................70Duas perguntas sobre trabalho produtivo..................................................................73Marx do porvir, Marx do Grundrisse........................................................................77Mais-valia como conceito político?..........................................................................82
Parte 2Teorias da Mais-Valia Difusa:
a hegemonia do trabalho imaterial e a multidão
Introdução........................................................................................................................85Capítulo IV – A Formação do Operaísmo...................................................................88
Contexto histórico......................................................................................................88Negri nos anos 1960..................................................................................................93Conceitos e idéias centrais do operaísmo..................................................................94
Fábrica social......................................................................................................94Operário massa e composição de classe.............................................................95Classe trabalhadora como pólo ativo.................................................................98Antecipação e anti-terceiromundismo................................................................98
Capítulo V- Durante o Potere Operaio (1967-1973).................................................103As lutas no período..................................................................................................103O Potere Operaio.....................................................................................................108A teorização.............................................................................................................111
Capítulo VI – Da Autonomia Operaia à Prisão........................................................114As lutas no período..................................................................................................114
A Autonomia Operaia..............................................................................................120Negri nos anos 1970................................................................................................122
O operário social...............................................................................................122Evoluções das posições de Negri.......................................................................125
Capítulo VII – A Década de 1980...............................................................................134Capítulo VIII – De 1990 a 2009..................................................................................141
As lutas no período..................................................................................................141O conceito de trabalho imaterial..............................................................................146Características do trabalho imaterial.......................................................................152O conceito de hegemonia do trabalho imaterial......................................................155A política no trabalho imaterial e na sua hegemonia...............................................161Características do pós-fordismo..............................................................................164Considerações sobre o pensamento de Paolo Virno................................................167O conceito de multidão: quando ser produtivo pode coincidir com ser livre.........168
Multidão em Paolo Virno..................................................................................168Multidão em Negri e Hardt...............................................................................172
Multidão em sentido estrito e amplo.......................................................................178Antinomia do trabalho imaterial: economia avançada vs. global............................180A antinomia da multidão: o específico vs. o global................................................186Multidão: passado, presente e projeto.....................................................................188Federalismo ontem e hoje........................................................................................189
Capítulo IX – Pragmatismo e Mito do Comunismo Maduro..................................192Teleologia e o mito do comunismo imanente e maduro..........................................192O pragmatismo no operaísmo e pós-operaísmo......................................................195
Concluindo...
Dos propósitos das teorias da mais-valia difusa............................................................201Dos referentes para uma teoria crítica...........................................................................213
Referências Bibliográficas.............................................................................................217
Teorias da Mais-Valia Difusa
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Prefácio
A preocupação que resultou neste estudo e discussão foi a de adequação entre
teoria e prática. Mais precisamente preocupação com a falta de adequação do discurso
predominante na esquerda ou entre anticapitalistas em relação ao fazer daqueles que,
nos dias de hoje, apresentam uma prática de insubordinação ou antagonismo, uma
prática que explicita conflitos sociais, fazendo-os se constituírem em um sujeito
político. Num contexto em que esses sujeitos são em maioria despossuídos, sem-
emprego, subempregados, trabalhadores informais, portando identidades como por
exemplo de sem-terra ou sem-teto quando organizados, parecia-me que o discurso da
esquerda, ligado a conceitos da crítica clássica da economia política estava em
descompasso com essa realidade.
Na academia, mas também em meio à intelectualidade de organizações
políticas marxistas hoje em dia, costuma haver uma precedência da teoria, dos conceitos
da crítica da economia política, sobre a experiência vivida. Perdeu-se o que parece ser o
fundamental dessa crítica clássica, seja a de Proudhon ou a de Marx: ela buscava
valorizar o fazer, legitimar politicamente e empoderar – para usar um termo em voga –
um sujeito político, um movimento social concreto com o qual esses pensadores se
identificavam. O movimento operário, esse sujeito político, e sua prática de
insubordinação, precederam e determinaram a crítica da economia política. Tal
afirmação em si não chega a ser polêmica, embora suas conseqüências não sejam
levadas adiante de uma forma geral. Estar ciente dessa precedência caminha lado a lado
com o entendimento que permeou este estudo: mais importante que saber o que um
Proudhon ou um Marx diziam, ou o que um Negri diz, é saber por que diziam e para
quem diziam. Em outras palavras, mais importante é entender a função que os
conceitos, a teoria e o discurso possuíam, os seus propósitos e objetivos. De certa forma
isso significa enfatizar e, mais do que isso, apontar como fundamental na crítica da
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economia política o seu caráter pragmático, aproximando-se assim do que Georges
Sorel chamou de mito – a função prática e mobilizadora de uma idéia.
Para participar de tal função a teoria deve corresponder à experiência vivida,
ter como referência um sujeito e sua subjetividade. Quando proponho no capítulo III o
conceito de mais-valia difusa, de modo a expor, tornar relevante, dar atenção, à
atividade que cria capital, que é explorada por empreendimentos capitalistas mas que
não se enquadra nos conceitos de mais-valia relativa e absoluta, trata-se mais da
proposição de um anticonceito, isto é, um conceito que busca apontar os limites de
outros conceitos, mas que por sua vez também não possui valor prático no contexto
atual, uma vez que não encontra correspondência em nenhum sujeito político, numa
subjetividade imanente a um movimento social. Esse (anti)conceito parte de uma
análise, digamos, econômica, e não da observação de uma prática de contestação e
insubordinação. Infelizmente esse tem sido em geral o estado dos conceitos ainda
utilizados pela esquerda ou pelos anticapitalistas. E evidentemente só a prática de
movimentos constituídos e que venham a se constituir pode ser a base para mudança
desse quadro.
O estudo aqui apresentado foi realizado como pesquisa de pós-doutorado, no
Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo entre 2007 e 2010, e foi
possível devido ao financiamento da FAPESP1. Devo agradecer a Paulo Arantes pela
oportunidade tanto de realizar a pesquisa quanto de estar em contato com um ambiente e
discussões intelectualmente relevantes e muito enriquecedoras durante o período.
Gostaria de dedicar este trabalho a duas pessoas: a Cesare Battisti, na prática
ator dele, que esteve preso no Brasil durante todo o período de sua realização e que
ainda se encontra preso enquanto escrevo estas linhas. Não é difícil concordar com
Oscar Wilde, nossa sociedade parece ser mais capaz de perdoar seus criminosos do que
de perdoar seus sonhadores. A segunda pessoa a quem dedico, à sua memória, é Alex
Marchi, militante do Movimento Passe Livre de Florianópolis.
Alex Marchi foi um companheiro de luta, de política, de movimento, mas além
disso uma pessoa que concentrava virtudes humanas, e em tal grau, que o tornam uma
referência para mim e para todos os companheiros que tiveram no convívio com ele
uma experiência marcante. O exemplo mais completo que pude encontrar ou até mesmo
imaginar das qualidades que se deseja ou que se idealiza no mundo a que aspiramos
1 As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
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chegar através de uma transformação deste. Sua ética, corretude, razão, honestidade,
sinceridade na luta, sua força na vida, sua simplicidade, seu empenho, altruísmo, que se
expressavam de diferentes formas, eram tais que tenho a certeza que jamais conseguirei
ser tão bom, como ser humano, e tão virtuoso quanto ele – e creio que todos aqueles que
o conheceram sentem o mesmo. Indissociável de sua figura era o seu espírito coerente
com seus ideias, que o guiava nas suas atitudes, no seu engajamento e nos seus
posicionamentos. Espírito esse que o fazia questionar e romper com estruturas e poderes
de grupos políticos do qual fez parte. Era estritamente sua razão livre de dogmas e sua
experiência vivida que o guiavam em busca da almejada, por todos nós, igualdade e
liberdade sociais. É esse o espírito que, em muito, procurou estar presente na base deste
estudo. Um espírito capaz de romper com sagradas escrituras e conceitos, guiado pela
razão e buscando mostrar que o fundamento deve ser a experiência vivida. Para os que
compartilharam lutas com ele, a lembrança de Alex Marchi é além de tudo um reforço
da possibilidade da existência de uma nova sociedade e de um novo homem, os quais
desejamos profundamente.
agosto de 2010
Leo Vinicius
Teorias da Mais-Valia Difusa
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Introdução
É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. (Karl Marx, tese dois das Teses Sobre Feuerbach)Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. (Karl Marx, tese onze das Teses Sobre Feuerbach)
Nas suas hoje recorridas Teses Sobre Feuerbach, Marx expressava uma
preocupação pragmática, particularmente na tese onze. No entanto, ao longo de sua
obra, ele desenvolve uma posição epistêmica antinômica a esse pragmatismo. Marx,
quando pretendeu encontrar leis gerais da história e da sociedade de acordo com o
padrão de ciência na época2, acabou dando ênfase à imanência dessas leis: o
desenvolvimento histórico, o progresso e a transformação social sendo conseqüência da
inevitável da atuação delas3. Nesse sentido, como bem destaca Cornelius Castoriadis, a
antinomia presente no pensamento de Marx poderia ser descrita como: se existem leis
da história como ele propunha, nenhuma genuína atividade humana seria possível4, a
não ser, quando muito, como técnica.
A busca dessa verdade objetiva por Marx, e independente da ação humana,
estaria assim virtualmente em contradição com o pragmatismo também presente no seu
pensamento, no seu desejo por uma prática transformadora a expensas de uma filosofia
interpretativa ou representativa da realidade e do mundo. A teleologia presente na obra
de Marx, ligada à idéia de leis imanentes da história, que apontava um rumo histórico
em direção ao comunismo era apreendido por Georges Sorel como um mito, uma crença
supostamente boa e eficaz politicamente para um grupo social, no caso a classe
2 Época em que a mecânica clássica, com seus modelos deterministas e seu objeto de estudo bastante determinável num futuro, presente e passado, era o grande modelo de ciência, vide por exemplo a obra de Auguste Comte. 3 Sobre essa ênfase à imanência de leis históricas e sociais no pensamento de Marx, ver Castoriadis (1982; 1987b).4 No sentido dado por Castoriadis, a ação humana (genuína) estaria relacionada à criação e auto-instituição. Cf. Castoriadis (1982; 1987b).
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trabalhadora5. O teor de verdade científica, rigorosamente deduzida, serviria para
construir e reforçar a crença e um imaginário; constituir o mito.
O mito, para Sorel, não deveria ser avaliado com base na sua proximidade a
uma “verdade científica”, mas nas conseqüências práticas que dele adviriam. A
importância de um mito, por sua vez, deveria ser definida com base na sua capacidade
de mobilizar e engajar as pessoas em uma ação política6. O conceito de mito deveria ser
entendido como uma “representação coletiva mobilizadora”7, e não como mistificação
ou criação imaginária em contradição com um real. Eles não seriam “descrições de
coisas, mas expressões de vontades”8. O mito aparece em Sorel como mediação
necessária entre princípios e ação, uma força motriz de todo movimento histórico, um
meio “de agir sobre o presente”9. É nesse sentido, como mito, que ele percebe tanto a
greve geral – defendida por ele próprio e pelos sindicalistas revolucionários no seu
tempo – quanto a “revolução catastrófica de Marx”10, correspondente à crise final do
capitalismo.
A leitura e abordagem de Sorel é bastante pragmática. O pensamento de Sorel
se aproxima do pragmatismo, de Charles Peirce a Richard Rorty, uma vez que para os
pragmatistas, de uma forma geral, as crenças devem ser pensadas como regras de ação,
como instrumentos para se alcançar objetivos, e não como representações da realidade
pretendentes à validade universal.
A hipótese ou leitura que norteia esta primeira parte é a de que, assim como a
teleologia marxiana pode ser apreendida como mito, como o fez Sorel11, a crítica
clássica da economia política, formalizada por pensadores socialistas identificados com
o movimento dos trabalhadores no século XIX, pode e deveria ser apreendida
fundamentalmente como parte de um esforço coletivo para a constituição de uma
“classe produtiva” como mito. Crítica essa que teve nas obras de Pierre-Joseph
Proudhon e Karl Marx suas formas acabadas mais importantes, ao lado da forte
pretensão científica que possuíam esses pensadores. A noção ou conceito de trabalho
5 Cf. Sorel (s/d). Não cabe aqui discutir se se tratou de uma crença realmente boa para a classetrabalhadora. Houve muitos que, ao contrário, afirmaram que o determinismo contido em Marx, ou mesmo em Kropotkin, tendia a fazer com que se depositassem falsas esperanças no rumo dos acontecimentos, sem eventual preocupação e participação ativa da classe trabalhadora.6 Cf. Sorel (1992).7 Julliard (1992, p. 7).8 Sorel (1992, p.49).9 Sorel (1992, p. 145).10 Sorel (1992, p.41).11 Cf. Sorel (s/d).
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produtivo contido nessas críticas, que irá embasar a de classe produtiva, sendo portanto
nosso objeto preferencial de análise e discussão..
Nossa abordagem da crítica clássica da economia política, em específico dos
seus conceitos de trabalho produtivo e classe produtiva, será pragmática em um duplo
sentido. Primeiro, no sentido em que defendemos que a obra dos críticos clássicos da
economia política – Marx e Proudhon em específico – deve ser compreendida como
sendo fruto, em grande medida e fundamentalmente, de uma preocupação pragmática
por parte de seus autores. Pragmatismo esse manifesto, por exemplo, por Marx nas suas
Teses sobre Feuerbach. Segundo, no sentido de que nossa preocupação, nosso enfoque,
pretende ser em grande medida e fundamentalmente pragmático. Em suma, uma leitura
pragmática de autores que estaremos supondo e tentando na medida do possível
sustentar terem sido em grande medida pragmáticos, e que suas obras seriam melhor
assimiladas e úteis hoje em dia se fossem entendidas como parte de um esforço
pragmático. Como pretendemos ajudar a mostrar no primeiro capítulo, o movimento e a
rebeldia dos trabalhadores, de um proletariado em um capitalismo crescentemente
industrial, sua prática e subjetividade, antecederam e determinaram a teoria crítica da
economia política e a definição decorrente de classe produtiva, seja na sua versão
marxiana ou proudhoniana. Abstraída dessa relação, como freqüente, essa teoria crítica
é apreendida única e primordialmente como objetivamente representativa e
correspondente à realidade: uma verdade positiva e de validade universal. De acordo
com a nossa hipótese, perde-se assim o critério fundamental das formulações
decorrentes dessas teorias críticas: o de constituírem uma “crença boa”, com valor
prático para um grupo social; uma crença que fundamenta, apóia, enriquece, incentiva e
fortalece uma prática rebelde e um movimento social emergente, significativo e
antagonista em seu tempo a um poder constituído. A análise aqui empreendida das
formulações de Karl Marx e Pierre-Joseph Proudhon sobre a noção de classe produtiva
e sobre conceitos de trabalho produtivo/improdutivo, busca ressaltar o caráter
pragmático dessas construções, no que elas se inclinavam à constituição de mito a partir
de um valor prático a um movimento e grupo social com o qual esses pensadores se
identificavam em seu tempo. Em última análise, busca demonstrar que elas deveriam ser
entendidas, sobretudo e fundamentalmente, como parte de um processo de valorização
da fonte do próprio poder de oposição e supressão do capital que apresentavam os atores
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12
de uma insubordinação ao mesmo; valorização do fazer, da atividade concreta dos
proletarizados que se rebelavam12.
A preocupação implícita no que foi até aqui exposto poderia ser formulada na
seguinte pergunta: o mito de classe produtiva, os conceitos de trabalho produtivo, dessa
crítica clássica valorizam o fazer, a atividade concreta, dos grupos sociais portadores de
uma rebeldia coletiva atualmente?
Cabe agora situarmos a posição pragmática adotada, se assim podemos dizer,
uma vez que existem importantes nuances e diferenças entre autores filiados ao
pragmatismo. Como bem procura mostrar Thamy Pogrebinschi, existem diferenças
substanciais entre o pragmatismo clássico de Charles Pierce, William James e John
Dewey e o neopragmatismo de Richard Rorty13.
O pragmatismo clássico é enfaticamente empirista, algo por sua vez ausente em
Rorty. Enquanto para James e Dewey a noção de experiência era central, uma vez que
dela viria a sanção ao que valeria a pena acreditar, ou seja, ao que seria verdadeiro, em
Rorty a linguagem ganha um espaço que acaba minimizando a noção de experiência
vivida e sua relação com a prática social. Tais diferenças, não sem razão, normalmente
são tomadas como indicativos de que Rorty foi bastante influenciado pela chamada
“virada lingüística” na filosofia. Quanto a isso a abordagem aqui pretendida estaria mais
próxima do pragmatismo clássico de William James do que do neopragmatismo de
Richard Rorty.
Como o apreendemos, o pragmatismo seria em grande medida uma formulação
de certos procedimentos usuais em atividades consensualmente denominadas de
científicas. Atividades cuja base é a construção ou formulação de modelos, de conceitos
ou de descrições. Sendo apenas sobre tais descrições ou modelos que caberia julgar se
são verdadeiros ou não – o pragmatismo se caracteriza exatamente pela não
preocupação com verdades absolutas, independente de contextos. Como os modelos nas
ciências naturais, as descrições e seus conceitos são instrumentos para atingir
propósitos, e não respostas a dúvidas ou enigmas. Os modelos ou descrições são
verdadeiros – e só nesse sentido representam uma verdade – à medida que são bons para
12 Embora o movimento operário histórico tivesse como bandeira principal a redução da jornada de trabalho – visando tempo para o repouso e o lazer assim como para a instrução – , e embora no tempo de não-trabalho tenham constituído práticas culturais, escolas, associações etc., o poder operário era fundamentalmente o poder que os operários possuíam na produção, isto é, na fábrica capitalista. Quanto a esse poder operário, ver, por exemplo, Gorz (1982).13 Cf. Pogrebinschi (2006).
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os propósitos a que se destinam, e são bons de acordo com as conseqüências práticas e a
experiência.
No entanto, não se trata apenas de buscar a linguagem e o conhecimento que
sejam instrumentos para alcançar objetivos e desejos. Trata-se de conceber que toda
linguagem e conhecimento, toda descrição e representação são desde sempre
instrumentos, que expressam e encarnam objetivos e desejos; da mesma forma como
para Castoriadis toda técnica encarna e expressa significações imaginárias sociais e
portanto não é “neutra”, não é independente dos propósitos e relações que a define14.
Toda representação da realidade é, portanto, de acordo com nosso enfoque de inspiração
pragmatista, uma representação para se agir sobre a realidade. Como afirmou William
James, a postura pragmatista se dirige ao concreto e adequado, aos fatos e à ação15.
O pragmatismo, seja dos clássicos ou o de Rorty, é contextualista, isto é,
objetos e afirmações existem de modo relacional e indissociados de um contexto. Nesse
sentido William James expõe que a verdade não é uma propriedade estanque inerente a
uma idéia, mas algo que acontece a ela, por um processo de verificação e validação. A
verdade para ele seria o nome daquilo que demonstra ser bom como crença, e bom por
razões definidas e evidentes. Ao mesmo tempo, uma nova idéia seria tida como
“verdadeira” enquanto satisfaz o desejo individual de assimilar a nova experiência ao
seu conjunto pessoal de crenças16.
Historicamente o pragmatismo tem estado associado ao liberalismo político de
seus principais formuladores, como Dewey e Rorty. Este último chegando mesmo a
confundir ser pragmatista com ser politicamente liberal17. O que nos interessa aqui é
pensar e trazer uma posição pragmática em um contexto de conflito e disputa entre
grupos sociais com diferentes experiências e realidades vividas. Conflitos que podem se
configurar ou se aproximar do que se disseminou chamar de luta de classes.
Os modelos e descrições distintos e mesmo antagônicos, em tal contexto,
refletem distintas experiências e realidades sentidas e vividas, e, portanto, diferentes
propósitos. A princípio não se trataria de compará-los em termos de serem mais ou
menos verdadeiros que o outro, uma vez sendo instrumentos a diferentes propósitos,
14 Cf. Castoriadis (1982).15 Cf. James (1975).16 Cf. James (1975).17 Cf. Rorty (1994).
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que partem de diferentes grupos sociais, referidos a diferentes realidades vividas18. São
nesse caso expressões de distintas significações imaginárias, para usar um conceito de
Castoriadis.
Num contexto de disputa entre grupos sociais a crença, modelo ou descrição
pode ser boa e verdadeira de duas formas: sendo boa à autovalorização e ajudando à
constituição do grupo enquanto sujeito político, e, em conceitos gramscianos, na luta
por hegemonia por parte desse grupo, com o objetivo de sua visão de mundo se tornar a
visão dominante. O primeiro caso é em geral o caso que se assemelha ao do mito
soreliano. Tomando as palavras de William James, seu significado será verdadeiro se
sua aplicação se adequar bem com outras aplicações da vida19.
A redescrição das narrativas (Rorty) ou a ressignificação das experiências
(Dewey) são portanto atividades que criam novos modelos – e obviamente novas
descrições – adequadas a propósitos e desejos emergentes de grupos sociais. Rorty bem
sugere que tal método ou atividade estaria relacionada à política utópica e à ciência
revolucionária20. Nesse sentido ele propõe que o sujeito que se vê numa situação social
opressiva, como escravo, por exemplo, não aceite as descrições de seu senhor sobre o
real, que saia dos limites de seu universo moral, e que selecione os aspectos do mundo
que lhe dêem apoio para seu juízo do que teria valor. Assim, o processo de escravos
deixarem de sê-lo por serem concebidos como parte da humanidade passaria por uma
redescrição ampliada do “nós” humanos21.
A redescrição e a ressignificação, como exemplificado no exemplo supracitado
dado por Rorty, foram processos presentes na constituição do movimento operário
histórico. Algo efetuado pelos sans-cullotes, por exemplo, e do qual participaram
intelectuais identificados com a condição e revolta dos trabalhadores em um nascente
capitalismo industrial, de Robert Owen a Proudhon e ao próprio Marx. A noção de
classe produtiva e a qualificação de “produtivo”, as quais nos detemos nesta primeira
parte, foi redescrita pelo movimento operário, com sua significação sendo encolhida.
Não obstante, ao tratar das redescrições e seu papel, Rorty expõe uma forte
tendência a um idealismo lingüístico ou cultural, presente em sua obra. Essa tendência
18 Como ressaltam Barbara e John Hammond, uma filosofia gerará inúmeras filosofias conforme seus aspectos são destacados de acordo com as experiências e crenças de cada grupo social. Esse foi para eles o caso da economia política de Smith e Ricardo. Cf. Hammond e Hammond (1967).19 James (1975, p.173).20 Rorty quer dizer com ciência revolucionária a ciência cientificamente revolucionária e não a ciência da revolução. Cf. Rorty (1989).21 Cf. Rorty (1989).
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se apresenta na ênfase dada à determinação do comportamento lingüístico sobre a
prática não-lingüística22. Sendo assim Rorty vê o progresso e a transformação social
como conseqüência de novas linguagens e vocabulários, de novas narrativas, com o uso
de metáforas, onde romancistas e literatos teriam importância maior que, por exemplo,
filósofos23.
Nosso intuito nas discussões e análises expostas também não é dar respostas a
enigmas, mas reformular perguntas, procurar as perguntas acertadas (relativas a
determinados propósitos). Algo que, como aponta João Bernardo24, seria a tarefa do
intelectual, ou do trabalho intelectual. Claro está que também se trata de um trabalho de
redescrição.
No primeiro capítulo nos concentramos no movimento operário, no seu período
que podemos dizer de formação: entre as duas últimas décadas do século XVIII e as
cinco primeiras do século XIX. Nosso foco é o movimento operário na Inglaterra e na
França, por ser onde ele esteve mais desenvolvido no período, além de terem
influenciado mais profundamente o pensamento de Proudhon e Marx. Esse apanhado do
movimento operário, do seu imaginário e constituição, no período referido, serve para
sustentarmos a precedência da rebeldia coletiva, do movimento social e de suas
ressignificações, sobre a crítica da economia política.
Buscamos então na seqüência apresentar e analisar a noção de trabalho
produtivo, improdutivo e da própria categoria trabalho em Proudhon, além de outros
aspectos pertinentes do seu pensamento. O pensador francês, diferentemente de Marx,
não sistematizou definições de produtivo e improdutivo, e sua referência a essas
qualificações são poucas e esparsas ao longo de sua obra. Motivo pelo qual a parte
seguinte, dedicada a Marx, é mais extensa. Nela apresentamos algumas antinomias no
pensamento de Marx quanto à distinção produtivo/improdutivo. Antinomias que nos
levam a reforçar nossa hipótese inicial de que tal distinção buscava primordialmente
22 Segundo o próprio Rorty: “O método [da redescrição] consiste em redescrever grandes porções de coisas de formas novas, até que se tenha criado um padrão de comportamento lingüístico que vá tentar a geração que está surgindo a adotá-lo, fazendo assim que eles procurem novas formas, mais apropriadas, de comportamento não-lingüístico; por exemplo, a adoção de um novo equipamento científico ou de novas instituições sociais” (Rorty, 1989, p. 9).23 Rorty é antiplatônico por ser antidualista, no entanto se encontra com Platão no status relativo que dão à atividade intelectual. Se Platão vê o filósofo que traz a luz sobre o senso comum, sobre o horizonte estreito da vida cotidiana mostrando a verdade, como rei que por isso deveria ser, Richard Rorty vê o poeta, ou aquele que produz novos vocabulários e linguagens como “a vanguarda da espécie” (Rorty, 1989, p.20). Para um a atividade intelectual funda o reinado do filósofo, para outro a vanguarda da espécie.24 Tal ponto de vista foi explicitado por João Bernardo em uma exposição em setembro de 2004, em São Paulo.
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traçar e reforçar a auto-representação que o movimento operário fazia de si próprio, da
classe trabalhadora, nos levando também a pensar essa distinção antes como uma
distinção de poder, uma distinção política.
Antes de seguirmos é pertinente discutirmos brevemente o que pretendemos
significar com termos que levam a idéias relativamente vagas como insubordinação,
antagonismo e anticapitalismo, embora a questão da essência rebelde ou anticapitalista
de uma prática, ou até que ponto e em quais circunstâncias tal ou qual prática é
antagonista e anticapitalista, torne-se marginal no âmbito da nossa hipótese e da nossa
análise.
Tratando em perspectiva um movimento social-histórico, como o movimento
operário, a afirmação de que se tratou de um sujeito político e de um grupo social que
teve práticas antagonistas, anticapitalistas, e que se constituiu a partir de sua
insubordinação e rebeldia, a princípio não é matéria de controvérsias. Trata-se até
mesmo da constatação que podemos fazer a partir da nossa perspectiva histórica, ou do
reflexo do movimento operário, no que ele precedeu a crítica teórica da economia
política, ter se aproximado até mesmo de se tornar um paradigma de anticapitalismo, de
insubordinação e de antagonismo a um poder constituído. No entanto, quando
afirmamos que a insubordinação de uma categoria social, ou um sujeito político,
precede e determina uma teoria crítica, abre-se a questão do que seria propriamente essa
insubordinação, em termos mais concretos. Assim, temos a questão: o que seria uma
prática rebelde? O que é ser antagonista a um poder constituído, na prática? Como
discernir uma prática insubordinada e anticapitalista? O que pode ser uma prática
rebelde e anticapitalista hoje em dia? 25
Se para Holloway o capital é a “afirmação do comando de outros na base da
“propriedade” do fato e, em conseqüência, dos meios de fazer, a condição prévia do
fazer daqueles outros aos que se comanda”26, então uma prática anticapitalista seria uma
prática antagônica à afirmação desse comando. O capital sendo aí apresentado e
apontado como conceito político, como uma relação de mando e subordinação. Nesse
sentido não há dificuldade de enxergar, por exemplo, nos zapatistas, uma prática de
insubordinação e anticapitalista, na medida em que retomam os meios de fazer e negam
o comando e o governo dos outros sobre eles afirmando sua autonomia, através das
25 Não é preciso dizer que nem todo ato de rebeldia ou insubordinação é necessariamente anticapitalista, e por sua vez nem toda prática anticapitalista é anti-autoritária ou positivamente socialista.26 Holloway (2003, p.52).
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instituições políticas e econômicas que estabelecem. A questão de identificar uma
prática como antagônica a um poder constituído, como insubordinada ou anticapitalista
começa principalmente quando a prática não possui uma forma, generalização ou
continuidade tal que efetivamente signifique a supressão ou redução do comando, do
poder constituído sobre o sujeito.
A rebeldia pode ser apreendida como uma potência, no entanto as instituições
que estarão em constituição por ela é o que importa, em última análise, em termos de
ação política efetiva. O instinto humano de revolta ao qual Bakunin constantemente se
remetia se assemelha ao impulso cru, momento de negatividade, que Holloway chama
de antipoder. Antipoder cuja materialidade, segundo o mesmo, seria “esse estrato de
não-subordinação desarticulada, sem rosto, sem voz”27. Efetivamente não será um
estrato de não-subordinação desarticulada e sem voz que poderá se opor ou suprimir
poderes constituídos como o capital e o Estado. Esse antipoder, ou essa rebeldia e
insubordinação de um grupo social precisaria ao menos ganhar alguma(s) forma(s) para
se tornar antagônico, ou efetivamente antagônico, a um poder constituído – no caso
desse poder ser o capital, para se tornar efetivamente anticapitalista. Os conselhos
operários são um exemplo de forma histórica que trazia consigo esse estrato de
negatividade da revolta dos trabalhadores, em períodos em que a ruptura, ou a
revolução, chegou a estar na ordem do dia. Os Municípios Autônomos zapatistas e suas
Juntas do Bom Governo, juntamente às suas instituições no campo produtivo, comercial
e educacional, são outro exemplo histórico. Se a ação política em sentido pleno é aquela
que visa uma nova instituição de sociedade – realizando plenamente o projeto de
autonomia -, como considera Castoriadis28, essa nova sociedade emerge dessas
instituições autônomas29 (auto-instituídas) que se colocam em antagonismo com a velha
sociedade instituída; uma forma social que se coloca como negação da outra. Usando o
exemplo da experiência dos conselhos operários, nos termos de João Bernardo, quanto
mais se desenvolvem as formas de auto-organização popular, mais as formas
heterônomas se extinguem; o comunismo em constituição significando o Estado em
extinção30. Uma forma social toma o espaço e o lugar da outra; a afirmação de um outro
ou novo tipo de poder subtrai o poder então constituído, situação em que um
27 Holloway (2003, p.235).28 Cf. Castoriadis (1987b).29 Autonomia como qualidade daquele que dá a lei a si próprio.30 Cf. Bernardo (1975).
Teorias da Mais-Valia Difusa
18
antagonismo a um poder constituído é claramente identificado, sem maiores
controvérsias.
À dificuldade de discernir o que é ou poderia ser considerada uma
insubordinação, uma prática antagonista ao comando que caracteriza o capital, uma
prática anticapitalista, alia-se ainda o fato do antagonismo perpassar a própria
insubordinação, sempre contendo o negado31, além do que, como já lembrava Camus,
na sociedade burguesa a revolta passa a ser não apenas uma realidade humana, mas uma
realidade histórica, sendo constituinte da própria “ordem burguesa”32, para usarmos uma
expressão que torna a sentença paradoxal.
Ao lado da suposta negatividade por trás de (supostas) rebeldias, em formas
tão pessoais que, como aponta o próprio Holloway, parecem ser incapazes de ter
qualquer ressonância política, como por exemplo pintar o cabelo de verde, há aquelas
que embora podendo ter alguma ressonância política, permanecem em grande parte
apenas como recusa, como negação: a defecção, o êxodo, a sabotagem, a destruição
material33. A questão da forma que ganha a rebeldia se torna mais importante à medida
que ela passa a ser subsumida na manutenção e evolução de uma formação social.
Podemos ter uma formalização disso nas palavras de João Bernardo, quando este afirma
que “a sociedade começa a constituir-se quando a relação-de-negação tende para a
negação-em-relação”34.
A revolta não está necessariamente fora do processo difuso de produção de
valor econômico, seja mesmo por existir como valor-signo integrado à lógica de
comunicação, diferenciação e personalização que caracteriza o consumo no seu sentido
sociológico35. A revolta existe como consumo, como espetáculo36, integrada como
produção de signos. Ela existe na forma-signo, que seria uma forma fetichizada37. A
31 Conseqüente com sua lógica não-identitária, e seguindo o caminho no qual a insubordinação teria como ponto de partida a negação, o “grito de não”, Holloway lembra que afirmar que algo existe como insubordinação significa dizer que também existe como subordinação, e vice-versa. A negação implicaria sempre a subsunção do negado, reproduzindo negativamente sempre os termos em que foi posto o conflito. O antagonismo assim não seria apenas externo, mas perpassaria o próprio sujeito insubordinado e sua negação. Cf. Holloway (2003).32 Cf. Camus (1999).33 Cf. Holloway (2003).34 Bernardo (1991a, p.27).35 Cf. Baudrillard (1995a).36 Se para Guy Debord “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens” (Debord, 1998, p.14), de modo idêntico, para, “o consumo define-se sempre pela substituição da relação espontânea mediatizada por meio de um sistema de signos” (Baudrillard, 1995a, p.96).37 Como aponta Holloway: “Toda prática social é um antagonismo incessante entre a sujeição da prática às formas definidoras, fetichizadas, pervertidas do capitalismo e a tentativa de viver-contra-e-mais-além
Teorias da Mais-Valia Difusa
19
rebeldia que se manifesta através dos signos e que se confunde por isso com o consumo
da rebeldia nos fornece um exemplo, entre outros possíveis, do que poderíamos chamar
de uma subsunção da rebeldia no capital. Tal é o caso do conjunto de práticas
associadas à juventude, que têm sido denominadas de contracultura38.
Embora levada a cabo essa problematização, no âmbito do que afirmamos e
propusemos fundamentar, ou seja, da hipótese de que as formulações dos pensadores
clássicos críticos da economia política deveriam ser entendidas fundamentalmente como
parte de um processo de valorização de um movimento ao qual eles se identificavam em
seu tempo, definir exatamente o que seria uma prática rebelde e antagônica ao capital
está longe de ser essencial. O que nos importa, fundamentalmente, é mostrar a
precedência e determinação de uma prática sobre a teoria. Prática essa que era em
grande parte apreendida como antagônica ao capital pelos formuladores ou
formalizadores dessa teoria, e com a qual se identificavam.
dessas formas. (...) A luta de classes, então, é o incessante antagonismo cotidiano (seja percebido ou não) entre a alienação e a desalienação, entre a definição e a antidefinição, entre a fetichização e a desfetichização” (Holloway, 2003, p.211-212).38 Para a relação da contracultura e da rebeldia contracultura com a lógica e estrutura do consumo cf. Heath e Potter (2005); Hebdige (1994); Frank (1997).
Teorias da Mais-Valia Difusa
20
Capítulo I
O Movimento Operário: poder aos produtivos
Rebeldia coletiva e a ciência do socialismo
À medida que diminui o número dos magnatas capitalistas que usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumentam a miséria, a opressão, a escravização, a degradação, a exploração; mas, cresce também a revolta da classe trabalhadora, cada vez mais numerosa, disciplinada, unida e organizada pelo mecanismo do próprio processo de produção capitalista. O monopólio do capital passa a entravar o modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho alcançam um ponto em que se tornam incompatíveis com o envoltório capitalista. O invólucro rompe-se. Soa a hora final da propriedade particular capitalista. Os expropriadores são expropriados39.
Como indica o contexto da citação acima, a revolta (da classe trabalhadora)
aparece em Marx apenas como uma mediação humana de leis históricas imanentes: um
veículo da realização de leis históricas cujo vetor seria o “desenvolvimento das forças
produtivas”. Seu contemporâneo e adversário na Associação Internacional dos
39 Marx (1989, p. 881, grifo meu).
Teorias da Mais-Valia Difusa
21
Trabalhadores, Mikhail Bakunin, via, no entanto, a revolta, a rebeldia, como categoria
fundadora do progresso social. Chegou a polemizar com Marx quanto ao tema.
Contrapondo-se ao que seria um determinismo econômico, Bakunin acusa Marx de não
não levar em conta o instinto de revolta, e todos os fatores históricos e culturais que
favoreceriam esse instinto, como força do desenvolvimento histórico40.
A centralidade dada por Bakunin à rebeldia, no seu pensamento e discurso, lhe
dando um status de categoria política, tem uma linhagem, embora um tanto marginal
nas ciências humanas e na filosofia contemporânea, que chega aos nossos dias:
passando principalmente por Camus, ganhando fôlego no discurso e visão de mundo
expostos pelos neozapatistas chiapanecos, e tendo em John Holloway o sistematizador
de uma teoria da insubordinação, ou teoria rebelde, que mescla marxismo e zapatismo41.
Castoriadis afirma que a única ação política digna desse nome é a ação que
visa uma nova instituição de sociedade; uma ação que visa realizar plenamente o projeto
de autonomia. Ação política que só teria se tornado possível com a criação histórica da
autonomia. Autonomia que estaria ligada, por sua vez, à capacidade de questionar as
leis instituídas, sejam elas formais ou informais42. Se entendermos a rebeldia como
comportamento, fenômeno ou ação que questiona e se contrapõe a situações ou
instituições estabelecidas ou em curso, não é difícil apreendermos no pensamento de
Castoriadis a rebeldia como uma categoria política implícita. Se é certo que a rebeldia
vai além do simples questionamento – ela abre luta contra/por algo – , como indica a
própria etimologia da palavra, a qual nos leva à idéia de ‘travar guerra contra’, o sujeito
político, o agente político, é antes de tudo um sujeito rebelde, ou ao menos um sujeito
que questiona o instituído, através de uma determinada prática. Esse questionamento, ou
essa rebeldia, antecede e determina a possibilidade de ação política, de ação
transformadora das próprias leis da sociedade. É o que Castoriadis deixa claro ao
afirmar que “é na sociedade e na história que aparece a subjetividade reflexiva e
deliberante, e o sujeito político, enquanto ele se opõe aos indivíduos que são
simplesmente conformes à instituição de sua sociedade”43.
A rebeldia de uma classe trabalhadora, em processo de formação, não passaria
sem menção na historiografia da formação do movimento operário europeu. Albert
40 Cf. Bakunin (2001).41 Para uma discussão mais extensa sobre a rebeldia como categoria política, as contribuições de Bakunin, de Camus, dos zapatistas e de Holloway, ver o capítulo I de Liberato (2006).42 Cf. Castoriadis (1987b).43 Castoriadis (1991).
Teorias da Mais-Valia Difusa
22
Lindermann e Bernard Moss se reportaram a uma classe trabalhadora que sofre como
um grupo crescente e com um sentido proletário de insegurança e rebeldia44. Nas
décadas de 1830 e 1840, proletário iria se tornar um termo usado antes de tudo para
descrever trabalhadores subversivos e rebeldes45. Tal relação semiológica também nos
recorda, ou nos mostra, como uma prática ou comportamento rebelde era indissociável
da própria formação, reconhecimento e surgimento como sujeito político da classe
trabalhadora oitocentista.
A prática rebelde e de resistência de um proletariado antecedeu e determinou a
crítica da economia política que intelectuais socialistas iriam desenvolver no século
XIX. Como diriam Cole e Filson em relação ao caso britânico, nos anos 1820 emergiu
uma escola de escritores que tentou fornecer uma base teórica à ação econômica e social
das classes trabalhadoras46. Essa teoria e crítica apareceriam, portanto, como suporte a
um grupo, a uma prática, numa luta por hegemonia mas também como reforço de
representações coletivas mobilizadoras. O britânico Thomas Hodgskin – um dos
primeiros intelectuais a escrever sobre economia política e ensiná-la de uma perspectiva
trabalhista – , explicitaria isso em 1825, ao escrever a esse respeito que, uma vez o
trabalhador não se sentindo molestado até então pelas pretensões do capital, não havia
utilidade em opô-las com argumentos, mas uma vez modificado esse quadro, quando a
prática dos trabalhadores despertara a resistência, isso lhe determinava a tentativa de
derrubar a teoria (a economia política estabelecida) nas quais elas estariam baseadas e
justificadas47. E.P. Thompson também observara que a teoria de Hodgskin48 derivava
em grande parte da experiência dos ofícios londrinos49, o que nos indica mais uma vez a
precedência da prática e da experiência vivida em relação à teoria na formulação dos
primeiros tratados de crítica da economia política, de vieses anticapitalistas.
Na década de 1830, “quando Marx ainda era um adolescente”, como lembra
Thompson, “a luta pelas mentes dos sindicalistas ingleses, entre uma economia política
44 Cf. Lindermann (1983); Moss (1976).45 Cf. Lindermann (1983).46 Cf. Cole e Filson (1951).47 “The claims of capital, are, I am aware, sanctioned by almost universal custom; and as long as the labourer did not feel himself aggrieved by them, it was of no use opposing them with arguments. But now, when the practice excites resistance, we are bound, if possible, to overthrow the theory on which it is founded and justified” (Hodgskin, 1825).48 Hodgskin teve grande influência na classe trabalhadora inglesa, segundo seu contemporâneo Francis Place, o qual desaprovava suas idéias. Cf. Parssinen (1973; Thompson (1987). Francis Place (1771-1854), inglês, trabalhou como alfaiate, participou de movimentos reformadores e progressistas, e publicou em 1822 Illustrations and Proofs of the Principles of Population.49 Cf. Thompson (1987).
Teorias da Mais-Valia Difusa
23
capitalista e uma socialista fora ganha (pelo menos temporariamente)”50. Os vencedores
teriam sido os socialistas (Thomas Hodgskin, Willian Thompson, James Morrison,
Bronterre O’Brien, entre outros): o capital era trabalho acumulado, “da roupa e da
comida dos miseráveis”51. Vitória bastante natural uma vez que boa parte das
abordagens dos economistas socialistas partiam da experiência vivida dos trabalhadores,
ou iam ao encontro delas.
Mas não se tratava meramente de luta pelas mentes dos trabalhadores. Havia
que se contrapor aos postulados de uma economia política que se erigia como ciência
que justificava as coisas como eram, incluindo a condição econômica e social dos
trabalhadores. O rápido desenvolvimento da industrialização deu às doutrinas de Smith,
Malthus e Ricardo uma sanção poderosa. Desde Adam Smith a economia política
ganhara uma grande força social, e suas leis, nas palavras do historiador G.D.H. Cole,
ganhariam uma devoção quase religiosa. Governantes e empresários, sob a influência de
transformações econômicas, afirmavam a nova doutrina do laissez faire com citações de
Adam Smith e dos economistas políticos que o seguiram. Evocada para justificar os
abusos do sistema industrial, dando-lhes a sanção científica da inevitabilidade de leis
naturais, a economia política era usada, até mesmo contra as intenções de Smith,
Ricardo ou mesmo Malthus, para a apologia do estabelecido52.
O status da economia política se tornou tal que, segundo os historiadores John
e Barbara Hammond, Smith e Malthus estavam se tornando tão familiares nos debates
parlamentares quanto um Cícero ou um Virgil. O debate público sobre as questões
sociais passava cada vez mais pelos temas e teses da economia política, e sua autoridade
era evocada para fundamentar e dar autoridade aos pontos de vista. Evidentemente, os
economistas políticos críticos, socialistas ou proto-socialistas, não conseguiram
penetração entre as camadas governantes e altas da sociedade inglesa no período de
formação da classe trabalhadora. A economia política acabou produzindo no período de
Riqueza das Nações até a década de 1830 um temperamento resignado entre os políticos
britânicos, diante das misérias e sofrimentos da sociedade industrial que ganhava
corpo53.
50 Thompson (1987, p.436).51 Man, 13 de outubro de 1833 (apud Thompson, 1987, p. 437).52 Cf. Cole (1948); Hammond; Hammond (1967).53 Cf. Hammond; Hammond (1967).
Teorias da Mais-Valia Difusa
24
Quando Marx apontava que Ricardo fazia parte do grupo dos economistas que
representavam o capital industrial54, não podia restar dúvida que ele próprio se colocava
no grupo dos economistas que representava os trabalhadores (produtivos). Atrás dos
postulados da ciência economia política, e mesmo das concepções de trabalho
produtivo, Marx tinha claro que se tratava de disputa entre classes e interesses de
grupos. Em um sentido gramsciano, parte de uma disputa por hegemonia. Smith e
Ricardo não teriam outra missão “se não a de demonstrar como a riqueza se adquire nas
relações de produção burguesas”55. Arguto, Marx expunha a relação contextual entre as
teses econômicas que surgiam e se alteravam, e os interesses burgueses que também
surgiam e se alteravam. Quando Adam Smith colocava na categoria de trabalhadores
improdutivos os “clérigos, advogados, homens de letras de toda espécie, atores, bufões,
músicos, cantores de ópera, dançarinos etc.”, para Marx, tratava-se de proposições de
uma burguesia então revolucionária:
Eis aí a linguagem de uma burguesia ainda revolucionária, que até então não subjugara a sociedade toda, o Estado etc. (...). Estado, Igreja etc. só têm justificativa como organizações para superintender ou gerir os interesses comuns da burguesia produtiva; e seu custo, por pertencer às despesas acessórias da produção, tem de ser reduzido ao mínimo indispensável. Essa idéia tem interesse histórico e está em contradição aguda seja com o modo de ver dos antigos, para os quais o trabalho produtivo de coisas materiais traz o labéu da escravatura e é considerado apenas pedestal para o cidadão ocioso, seja como concepção inerente à monarquia absoluta ou constitucional aristocrática surgida nos fins da era medieval (...). Contudo, a burguesia alcança o domínio, apoderando-se ela mesma do Estado ou estabelecendo um compromisso com os antigos dirigentes: reconhece os profissionais ideológicos como carne da sua carne e os transforma em funcionários a ela apropriados; não é mais como representante do trabalho produtivo que os confronta; os verdadeiros trabalhadores produtivos erguem-se contra ela e dizem que ela vive da atividade de outras pessoas; está bastante educada para não se deixar absorver de todo pela produção, mas para querer um consumo “refinado”; mais e mais os trabalhos intelectuais se realizam a seu serviço, põem-se a serviço da produção capitalista: como resultado imediato dessas ocorrências, as coisas mudam, a burguesia procura, no “plano econômico”, legitimar, de seu próprio ponto de vista, o que criticara e combatera antes. Nessa linha, seus porta-vozes e forjadores de consciências perfumadas são os Garniers etc. Acrescente-se aí que esses economistas por sua vez sacerdotes, professores etc., empenham-se em demonstrar sua utilidade “produtiva”, em justificar seu salário “no domínio econômico”56.
A esses economistas, Marx iria dizer que seriam preferíveis aqueles que, como
Malthus, “defendem diretamente a necessidade e a utilidade dos “trabalhadores
improdutivos” e dos meros “parasitas”, ao invés de quererem afirmar a produtividade
destes”57.
54 Cf. Marx (1980b).55 Marx (2004, p.140).56 Marx (1980b, p.283-284).57 Marx (1980b, p.155).
Teorias da Mais-Valia Difusa
25
Ou seja, para Marx as teses econômicas daqueles que representavam a
burguesia se alterava historicamente, à medida que esta tomava domínio do Estado e
subsumia os serviços a seu interesse. Longe de uma ciência que traria uma verdade
objetiva distante dos sujeitos sociais, a economia política se desenvolveria por
formulações com interesse prático a determinados grupos ou classes.
Elementos de constituição: forças econômicas, experiências e tradições
Pode-se dizer que a teoria socialista encontra sua lógica interna nas crises e
transformações política e econômica que sacudiram a antiga sociedade européia,
durante a primeira metade do século XIX58. Na França, o desenvolvimento em massa do
socialismo entre a classe trabalhadora ocorreu fora das diversas escolas socialistas59. O
sectarismo e dogmatismo dessas escolas, junto com a rejeição da atividade política, as
afastavam da classe trabalhadora. Corroborando o que Bernard Moss havia apontado
quanto ao socialismo francês predominante até fins do século XIX, de características
federalistas e associativas, ele poderia ser descrito como uma ideologia vinda de
baixo60, da experiência vivida e tradições dos trabalhadores qualificados61 que
formavam o movimento operário. Controlando todo o processo de produção sem o
auxílio de um mestre, esses trabalhadores62 podiam facilmente se enxergar como os
únicos verdadeiros produtores, e seus mestres como exploradores que usavam a posse
do capital para extrair parte do valor real que os trabalhadores sozinhos produziriam. Ao
58 Cf. Russ (1987).59 Cf. Sewell Jr. (1986).60 Cf. Moss (1976).61 Em inglês a expressão skilled worker ou skilled labourer remete ao trabalhador cuja habilidade e conhecimento do ofício vindo de anos de prática e experiência o colocam muito próximo ao que se pode chamar de artesão, por isso utilizamos as expressões trabalhador qualificado, artesão, e operário profissional (esta última usada por pós-operaístas) indiferenciadamente. Como veremos mais adiante, principalmente na França foram esses trabalhadores que constituíram o movimento operário até o último quarto do século XIX, quando esses e os trabalhadores industriais se fundiram em meio ao movimento.62 Esse trabalhador qualificado, dotado de um saber-fazer transmitido de uma geração a outra sem intermediários, carregando a destreza e experiência das quais a fábrica não poderia prescindir paracontinuar produzindo – podendo prescindir no entanto de patrões e de outros funcionários – , é denominado por André Gorz e pelos pós-operaístas de operário profissional, em distinção ao operário massa que emergiria com o fordismo. Trabalhador que tinha orgulho do trabalho bem-feito, que prezava pela qualidade do que produzia, e que tinha consciência da sua soberania prática na produção. Os conhecimentos práticos insubstituíveis desse operário de ofício faziam com que o patrão e os contramestres dependessem da estima e da fidelidade dele para a produção, e por sua vez o operário de ofício via estes como parasitas, totalmente dispensáveis à produção. Existia um poder operário de ordem técnica, na fábrica, “paralelo ao poder social e econômico do capital, capaz de se opor a este e de pretender sua supressão” (Gorz, 1982, p.58-59).
Teorias da Mais-Valia Difusa
26
mesmo tempo, esses trabalhadores qualificados, ou artesãos, mantinham uma série de
valores sociais – orgulho, autonomia, solidariedade de ofício, experiência organizativa,
e um ethos igualitário nutrido pelo republicanismo popular – que motivaram uma
resposta transformadora ativa63. Esse socialismo federalista se originou da herança
corporativa dos artesãos urbanos transformada pelos levantes revolucionários de 1830 e
1848. Essa herança corporativa se refere ao modo de produção e venda de bens no
Antigo Regime, organizado por corporações – a qual se constituía em um corpo
coletivo, diferentemente das individualizadas relações de mercado que dominariam
posteriormente. As relações de produção nos ofícios dos artesãos eram sociais tanto
num sentido institucional quanto moral. Os artesãos urbanos – diferentemente dos
trabalhadores de fábrica – apreendiam seu trabalho como social, conseqüente da sua
tradição corporativa. Tal tradição propiciava o entendimento de que o trabalho era e
deveria ser regulado coletivamente e de que os trabalhadores de um mesmo ofício
formavam uma comunidade moral solidária64.
Seja também na Inglaterra ou na Alemanha, o movimento operário se formou
a partir da própria atividade dos trabalhadores, e em diversos momentos e eventos sem
nenhuma influência de teóricos65. Como procura mostrar E.P. Thompson, os textos e
idéias de um Robert Owen, por exemplo, tiveram influência apenas no sentido de terem
servido como matéria-prima adaptada e utilizada pelos trabalhadores de acordo com
suas próprias experiências vividas66. O movimento operário, como sujeito político e no
seu imaginário, foi resultado de uma combinação de forças econômicas, tradições e
experiências vividas. John e Barbara Hammond salientam que as classes trabalhadoras
britânicas não foram convertidas por uma idéia iluminada, por uma frase mágica ou por
uma filosofia gradual e libertadora qualquer. No período de formação da classe operária
britânica teria ocorrido um estranhamento das classes trabalhadoras, não devido à
influência positiva de idéias e de entusiasmo, mas devido ao efeito da experiência em
modos de pensar e ver a vida. Os ensinamentos, teorias e discursos de intelectuais como
Cobbett, Paine, Owen, entre outros, somente eram produtivos ou frutificavam quando a
experiência vivida real tornava os trabalhadores prontos para recebê-los. Os problemas
gerados pela Revolução Industrial teriam obrigado todos os afetados a pensar sobre eles.
No entanto o ponto de partida dos ricos e dos pobres seria diferente: os primeiros
63 Cf. Moss (1976).64 Cf. Sewell Jr. (1986).65 Cf. Thompson (1987); Plum (1979).66 Cf. Thompson (1987, pp.391;392;408).
Teorias da Mais-Valia Difusa
27
partiam da abstração da propriedade privada, e os últimos, dos fatos de suas próprias
vidas67. Os movimentos por reformas, os movimentos sindicais e os cooperativistas que
fizeram parte do processo da formação da classe operária britânica, foram,
evidentemente, menos produto de líderes proeminentes do que de poderosas forças
econômicas que levavam irresistivelmente a sociedade no sentido de uma nova
categorização das pessoas e a uma reforma de instituições e redistribuição do poder
político. A liderança servia apenas para clarificar o movimento de forças, e para
mobilizar a opinião com base nelas. Ilustrativo da determinação e preponderância dessas
forças econômicas de uma época é o fato de socialismos muito próximos em conteúdo
(associativismo, cooperativismo) terem se desenvolvido simultaneamente na França e
Inglaterra sem evidência de que um tenha influenciado o outro nos seus primórdios68.
Para E.P. Thompson, pode-se dizer que a classe operária inglesa já estava
feita, e não mais em formação, entre 1832 e 1833. Ainda segundo ele, a consciência
dessa classe poderia ser vista sob dois aspectos: i) consciência da identificação de
interesses de trabalhadores dos variados ofícios, expressa em diversas instituições e
principalmente no sindicalismo geral; ii) consciência da identidade de interesses da
classe operária como “classe produtiva”, enquanto contrários aos das demais classes (e
o amadurecimento da reivindicação de um sistema alternativo)69. O trecho abaixo, do
regulamento de uma sociedade de trabalhadores da aldeia tecelã de Pipponden, Reino
Unido, formada em 1832, bem exprime como no imaginário da classe trabalhadora
formada ela era a única criadora de toda a riqueza (a única classe verdadeiramente
produtiva), e o valor-trabalho era idéia que emergia da própria prática, da própria
experiência vivida dos trabalhadores:
O plano da cooperação que estamos recomendando ao público não é visionário, mas é praticado em várias partes do Reino: todos vivemos do produto da terra, e trocamos trabalho por trabalho, o que é objetivo pretendido por todas as Sociedades Cooperativas. Nós trabalhadores produzimos todas as comodidades da vida – por que então não trabalharíamos por nós mesmos e nos esforçaríamos em melhorar nossas condições? (...) Que o trabalho é a fonte de toda riqueza: por conseguinte, as classes trabalhadoras criaram toda a riqueza70.
A idéia marxiana do trabalho abstrato, substância comum e cristalizada nas
mercadorias, tem sua base última, sua referência ou seu lastro social, na experiência
vivida, na prática dos trabalhadores (trocar trabalho por trabalho) e da classe
67 Cf. Hammond e Hammond (1967).68 Cf. Cole (1948).69 Cf. Thompson (1987).70 In: Thompson (1987, p.396).
Teorias da Mais-Valia Difusa
28
trabalhadora de então; um sujeito político do século XIX. A tese aqui posta é de que a
teoria marxiana, nesse caso o valor-trabalho71, só tem sentido prático e transformador, a
qual era sua preocupação exposta nas Teses Sobre Feuerbach, e portanto só tem valor e
sentido em si mesma, em relação a esse sujeito, a essa experiência vivida que é
elemento formador desse sujeito político. Sem o sujeito político, o qual é indissociável
dessa experiência vivida, a idéia marxiana perde seu sentido original, tornando-se
apenas uma pretensa verdade objetiva, de validade universal, matéria de discussões
puramente escolásticas.
Ressignificando e utilizando significações burguesas
Como William Sewell Jr. procura mostrar, a visão socialista do trabalho como
a atividade constituinte da ordem social e política pode ser vista como um dos
desenvolvimentos lógicos possíveis de certos conceitos fundamentais do Iluminismo: o
homem como ser senciente natural que acresce o mundo de ordem e utilidade
combinando e transformando as substâncias disponíveis na natureza. O próprio
pensamento e prática liberal-burguesa aplicou tal visão à vida política quando buscou
afirmar o trabalho útil como critério de pertencimento à comunidade política e quando
redefiniu a nação como uma associação de cidadãos produtivos vivendo sob um corpo
comum de leis. A propriedade privada, por sua vez, sendo fundamentada como legítimo
fruto do trabalho. O socialismo, desse ponto de vista, foi uma extensão lógica daquilo
que a Revolução Francesa já havia estabelecido, porém, ao invés de representar o
trabalho humano indiretamente, através da propriedade, ele e o movimento operário
insistiram na representação direta do trabalho, como tal72.
71 A teoria do valor de Marx, intelectualmente, foi inspirada em Smith e principalmente em Ricardo, como é notório. Mas por sua vez, Smith e Ricardo partiram do que se realizava na prática entre pessoas, entre trabalhadores ou negociantes. Castoriadis assim explica, fazendo crítica a Marx: “o valor-trabalho dos clássicos, de Smith e de Ricardo, não invoca a categoria de “substância” e se aí se descobrisse a palavra, seria sem dúvida num emprego inocente. Que as mercadorias são trocadas em proporção ao trabalho que sua produção custa, isso quer dizer para os clássicos: se alguém me propusesse trocar um produto que me custou dez horas de trabalho por um de seus produtos cuja fabricação só me custaria nove horas de trabalho, eu recusaria sua proposta; e, mediante a concorrência, a relação dos respectivos tempos “médios” de trabalho regulamentará a relação das quantidades trocadas. O “valor-trabalho” é assim, antes das imensas (e insuperáveis) complicações criadas pelas diferenças dos trabalhos individuais, pelo “capital”, pela “terra”, pelo “tempo”, etc., um assunto de bom senso e mesmo uma tautologia simples: quem daria dez para ter nove?” (Castoriadis, 1987a, p.268).72 Cf. Sewell Jr. (1982).
Teorias da Mais-Valia Difusa
29
Enquanto esse discurso iluminista na sua versão burguesa se mantinha como
discurso de oposição a um regime aristocrático, suas próprias contradições internas e
ambigüidades não apareciam, pois o que importava era seu contraste em relação às
instituições e visões político-sociais tradicionais. Mas após a Revolução Francesa,
quando esse discurso se tornou constitutivo da ordem político-social, suas contradições
e ambigüidades vieram à tona muito mais facilmente. Sendo que algumas dessas
contradições teriam se tornado rapidamente pontos importantes do conflito político e
social. Como Sewell Jr. exemplifica, se o trabalho era a fonte de toda propriedade, por
que alguns teriam que trabalhar sem acumular propriedade enquanto outros possuíam
grandes quantidades de propriedade mas não labutavam? Ou por que os direitos de
cidadania integral deviam ser limitados aos homens que possuíam significativa
quantidade de propriedade excluindo aqueles que eram incumbidos do trabalho
produtivo?73
Essas contradições e ambigüidades permitiram que o imaginário do
movimento operário, o socialismo e a crítica da economia política, se constituíssem
utilizando como importante matéria-prima o próprio discurso estabelecido pela
burguesia, alterando, subvertendo, redescrevendo, re-significando, expandindo ou
limitando conceitos e idéias, em suma, operando um détournement, se quisermos
utilizar uma expressão situacionista. Como diria Máxime Leroy, é quimérica a
concepção do socialismo histórico fundado sobre um saber verdadeiramente científico e
estranho às concepções burguesas74. O utilitarismo, e as teorias do valor-trabalho, estão
entre esses elementos que formaram parte do discurso burguês, que subordinava a esfera
da troca à esfera da produção, e que foram apropriados pela classe trabalhadora na sua
formação.
Quanto ao utilitarismo, ele apareceria tanto em um Diderot quanto nos sans-
cullotes para fundamentar a distribuição de poder entre as classes ou grupos sociais. Se
através dos seus intelectuais a burguesia expressava que todo o Terceiro Estado, o que
incluía ela, efetuava trabalho útil, no entanto para os sans-cullotes o trabalho útil era
fruto de uma categoria mais restrita: somente aqueles que executavam trabalhos
manuais75. A base utilitária para reivindicação política era a mesma, modificando-se no
entanto as fronteiras entre o útil e o não-útil. Utilitarismo que continuaria sendo
73 Cf. Sewell Jr. (1982).74 Cf. Leroy (1946).75 Cf. Sewell Jr., 1982.
Teorias da Mais-Valia Difusa
30
apropriado pelos trabalhadores, com um movimento operário já bem delineado, como
indica um artigo do jornal operário francês L’Artisan, de 1830, um dos primeiros jornais
operários franceses, bastante referido na historiografia do movimento operário daquele
país. No primeiro número do jornal, é afirmado que a classe mais numerosa e mais útil
da sociedade, indubitavelmente, era a classes dos trabalhadores, sem a qual o capital não
teria valor, e sem a qual não haveria máquinas, indústria, comércio...76 A primazia da
classe trabalhadora era afirmada, entre outras coisas, em bases utilitárias.
Não era diferente na Inglaterra, como podemos apreender através da
historiografia de E.P. Thompson. A utilidade social teria sido a base mais sólida
encontrada pelos radicais operários para fundamentar suas reivindicações. O jornal
operário Gorgon, de 22 de agosto de 1818, afirmava a utilidade geral ser o objetivo
único e último da sociedade, se dirigindo contra as pretensões naturais ou normativas
que pudessem vir a lhe opor77.
As doutrinas que afirmavam os trabalhadores serem os únicos produtores,
dirigidas ao povo, eram consideradas perigosas e subversivas pela burguesia, como
expressou James Mill em 183178. A teoria do valor-trabalho, lançada as bases por Smith
e estendida por Ricardo, seria apropriada pelos teóricos socialistas, e daria força ao
imaginário, construído pela classe trabalhadora em formação, de que eles seriam os
únicos produtores, e conseqüentemente deveriam ter controle sobre os meios de
produção e sobre o produto do seu trabalho. Na verdade, pensadores radicais ligados aos
trabalhadores, antes da obra de Ricardo, já sustentavam claramente que o trabalho era a
fonte de todo o valor79. Não sem motivos os economistas burgueses, em sua ampla
maioria, começariam a atacar a teoria do valor-trabalho de Ricardo nas décadas
seguintes ao lançamento de Principles of Economics80.
Robert Owen foi um importante difusor da idéia de que o trabalho era a fonte
de todo o valor, idéia que emergia concomitantemente da burguesia e dos trabalhadores.
Junto com a tradição artesã e com o corolário popular nos círculos da classe
trabalhadora de que os capitalistas só exploravam o trabalho e não acrescentavam valor,
76 Cf. Sewell, Jr. (1982); Douléans e Dehove (1953).77 E.P. Thompson salienta entretanto que o utilitarismo, à época muito vinculado à economia política ortodoxa, a Malthus e à classe média, fez com que os operários por muitas vezes recorressem ao discurso do direto natural para não se verem presos ideologicamente ao discurso burguês. O The Gorgon era bancado por Jeremy Bentham, que via nele um veículo de transmissão do utilitarismo à classe trabalhadora. Cf. Thompson (1987).78 Cf. Briggs (1967, p.64).79 Cf. Thompson (1987).80 Cf. Meek (1973).
Teorias da Mais-Valia Difusa
31
ela foi um importante elemento no surgimento do cooperativismo e de associações de
troca baseadas no padrão tempo de trabalho81. Como frisam G.D.H. Cole e A.W.
Filson, a assunção de que o trabalho é a única fonte de valor, difundida por Owen,
Ricardo, Hodgskin, entre tantos outros, além de ter exercido grande influência no
desenvolvimento do cooperativismo, de maneira geral também influenciou fortemente a
ascendente confiança da classe trabalhadora na sua própria importância e força82. Ou
seja, ela teve um valor prático para um grupo e movimento social: reforçou e ajudou a
criar suas representações e significações coletivas e mobilizadoras.
A visão e discurso burguês, em sua época revolucionária, do antagonismo
entre classes produtivas – o Terceiro Estado – e os ociosos ou classes parasitárias e
improdutivas, fez parte também do imaginário da classe trabalhadora, evidentemente.
Saint-Simon não deixa de ser um exemplo de transição entre essa visão trazida pela
burguesia e a que viria a ser propriamente a da classe trabalhadora. Na sua visão,
embora a sociedade repousasse sobre a indústria, ela seria governada por improdutivos.
Em Saint-Simon , no entanto, os ociosos eram mais reconhecidos entre governantes e
clérigos do que entre a burguesia industrial. A divisão de John Wade, editor do The
Gorgon, em “classes parasitárias” e “classes produtivas” também não restringia ainda
essas últimas ao grupo que iria constituir a classe trabalhadora, nela cabia ainda
profissionais liberais e patrões, embora a ênfase estivesse nos artesãos, agricultores,
diaristas etc.83
A oposição entre o ocioso e o produtor é ressignificada pela classe
trabalhadora, sendo essa nova significação parte da sua própria formação enquanto tal.
Essa ressignificação consiste na restrição da classe produtiva à classe trabalhadora,
colocando a burguesia, o capitalista, como ocioso, inútil, aristocrata. Em 1833, no
“Manifesto das Classes Produtivas da Grã Bretanha e Irlanda”, pode-se ver que em tal
altura a classe trabalhadora já havia se colocado como sinônimo de classe produtiva. Tal
redução da classe produtiva ocorre concomitantemente à ampliação e mudança de visão
sobre a fonte dos problemas sociais: as classes parasitárias, ociosas, sinecuristas, eram
identificadas até certo momento como aquelas que sugavam o trabalho e a produção dos
produtivos através de impostos, porém o capitalista e a burguesia industrial, enquanto
exploradores econômicos, foram postos nesse conjunto a ser combatido. Não se tratava
81 Cf. Cole e Filson (1951); Lindermann (1983).82 Cf. Cole e Filson (1951).83 Cf. Thompson (1987).
Teorias da Mais-Valia Difusa
32
mais simplesmente de impostos governamentais que sustentariam os parasitas, mas da
propriedade dos meios de produção que sustentaria a exploração econômica, não menos
parasitária. Além da teoria do valor-trabalho, a distinção feita pelo estatístico Patrick
Colquhoun entre classes produtivas e classes não-produtivas foi apropriada pelos
teóricos socialistas, ajudando a forjar a estrutura de uma teoria da exploração84.
Hodgskin seria um dos primeiros a formulá-la.
Como os economistas de seu tempo, Hodgskin buscava encontrar na economia
leis tão naturais quanto às físicas, ou fazer crer que as havia encontrado. A exploração
econômica, a apropriação do produto de outro, era apontada por ele como uma violação
de leis econômicas naturais que traria conseqüências inevitáveis, analogamente a uma
hipotética tentativa de alterar a direção da força da gravidade85. Como em Marx, em
Hogdskin um positivismo, uma objetividade científica que buscava refletir as ciências
naturais da época, revestia um discurso que tinha por base e fundamento, no entanto, um
caráter eminentemente pragmático.
Um movimento de artesãos
Bom lembrar que quando falamos de movimento operário no século XIX,
principalmente na sua primeira metade, estamos falando de um movimento formado
hegemonica e majoritariamente por artesãos, por trabalhadores qualificados, os quais
carregavam uma tradição e cultura formada antes da Revolução Industrial86. Sem essa
relação com a experiência vivida e tradições culturais desses artesãos é impossível
explicar as formas de organização, a luta, proposições e o imaginário do movimento
operário no século XIX. Principalmente no caso francês os artesãos permaneceram na
maior parte do século XIX como o setor dominante da classe trabalhadora urbana
numérica, política e culturalmente87. Embora na França esse domínio tenha sido maior e
até mais longo, na Inglaterra e na Alemanha o movimento operário ganhou forma e foi
conduzido pelos artesãos. Mesmo na Inglaterra, berço da Revolução Industrial, os
84 Cf. Briggs (1967); Parssinen (1973).85 Cf. Hodgskin (1966).86 Cf. Lindermann (1983); Hammond; Hammond (1967); Plum (1979); Thompson (1987); Sewell Jr. (1986).87 Cf. Sewell, Jr. (1982; 1986). Em 1876 a população industrial empregada em indústrias de pequena escala na França era ainda o dobro da empregada em indústria de larga escala. Não é à toa que um dos primeiros jornais da classe trabalhadora francesa, de 1830, chamava-se L’Artisan.
Teorias da Mais-Valia Difusa
33
artesãos só foram ultrapassados numericamente pelos operários industriais na segunda
metade do século XIX, sendo que a representatividade dos artesãos na atividade política
era ainda maior que seu número relativo88. A cultura radical que E.P. Thompson analisa
e que teria sido um dos elementos importantes na formação da classe trabalhadora
britânica era, nas suas palavras, “a cultura de indivíduos qualificados, artesãos e alguns
trabalhadores por encomenda”89.
Na Alemanha não foi muito diferente. Os artesãos tiveram papel central na
formação e emergência do movimento operário alemão, em parte por trazerem da sua
tradição uma coesão que era fonte de solidariedade e ação coletiva, enquanto os novos
operários industriais precisavam de novas bases de solidariedade90. Em 1848, na
Alemanha, os artesãos eram considerados a classe operária91.
E o que era trabalho para essa classe? Os trabalhadores parisienses apreendiam
concretamente o trabalho como a atividade praticada pelos artesãos qualificados. Mas,
mais amplamente, usavam também o termo para designar as atividades úteis
empreendidas pelo povo (trabalho não-qualificado, agricultura, serviços domésticos,
comércio e até mesmo atividades intelectuais). Essa noção abstrata e universal permitia
que eles projetassem a toda sociedade a visão construída a partir de sua específica
perspectiva de classe92.
Importante aqui frisar que o trabalho, plenamente, em toda sua concretude,
estava vinculado no imaginário da época e do próprio movimento operário a uma
atividade manual, muscular, física, embora quase sempre combinada ao conhecimento
prático adquirido. Nessa classe trabalhadora que deu origem ao movimento operário do
século XIX o trabalho se torna quase sinônimo de trabalho manual. Os sans-cullotes por
exemplo se definiam como homens que trabalhavam com as mãos93.
No Antigo Regime, além das atividades manufatureiras, o comércio também
era considerado uma forma de trabalho manual. Esses eram chamados de artes
mecânicas, em oposição às artes liberais, de caráter intelectual e fruto do ensino. Na
hierarquia dada pela atividade executada, ser nobre e executar artes mecânicas era algo
excludente, não se tratava de algo digno de um nobre. Embora se tratasse de trabalho
manual, as artes mecânicas diferiam do simples trabalho braçal. Elas ainda eram artes,
88 Cf. Sewell Jr. (1986).89 Thompson (1987, p.405).90 Cf. Kocka (1986); Plum (1979).91 Cf. Plum (1979).92 Cf. Sewell Jr. (1982).93 Cf. Sewell Jr. (1982).
Teorias da Mais-Valia Difusa
34
isto é, incluíam aplicação do intelecto e de uma habilidade. Portanto, abaixo das artes
mecânicas, na hierarquia ocupacional, vinha o puro trabalho braçal. Era o estatuto de
arte que dava existência social e alguma dignidade às artes mecânicas. O trabalho
carregava ainda a conotação cristã de dor, sacrifício e penitência. A atividade braçal,
considerada apenas trabalho, sem arte, se encontrava no fundo da hierarquia social.
Executar nada além de trabalho era menos do que possuir a ocupação mais baixa
possível; era como se não fosse nenhuma ocupação. Os trabalhadores braçais eram
considerados sem estado, isto é, sem status, sem categoria.
Em 1848, no discurso do movimento operário e também já na cultural geral
francesa, trabalho já carregava uma forte conotação de produtividade e criação, bem
diferente daquela do Antigo Regime. Mas a referência ao trabalho físico, manual,
muscular, era permanente no movimento operário de então. O trecho da canção Le
prolétarienne, escrita pelo tapeceiro Mathon, em 1833, é ilustrativo: “Mas é forte o
braço do proletário, Que se enrijece nos trabalhos” 94.
Trabalho era uma ação física que envolvia o corpo e principalmente as mãos,
que se tornariam um símbolo de classe95. No século XIX havia uma relação do trabalho
com a transformação da matéria, com a atividade física, com a produção de objetos
materiais, visíveis, úteis, que acresciam à riqueza do mundo, de modo que o verdadeiro
trabalho, ou sua plenitude, se vinculava a essas características; ou seja, a uma produção
tangível, à transformação da matéria, à atividade física, manual, e à criação de objetos
úteis.
Na Inglaterra não era diferente. Como apontava Cobbett, era das mãos dos
trabalhadores que vinha a riqueza da nação96. Nas palavras de Owen, “o trabalho
manual, corretamente direcionado, é a fonte de toda riqueza, e da prosperidade
nacional” 97.
O próprio Hodgskin acautelava os trabalhadores a não reduzirem de tal forma
o termo trabalho às operações manuais:
Infelizmente, também há, penso, em geral, uma disposição para restringir o termo trabalho à operação das mãos (...) Mas mostrei que a maior eficácia do capital fixo depende da habilidade do trabalhador, de modo que chegamos à conclusão que não mero trabalho, mas a habilidade mental, ou o modo no qual o trabalho é dirigido, determina suas potencialidades produtivas. Eu portanto pediria cautela a meus
94 “Mais il est fort le brás du prolétaire, Qui s’endurcit dans les travaux”. In: Sewell Jr. (1982, p. 214).95 Cf. Perrot (1986).96 Cf. Cole e Filson, (1951).97 “the manual labour, properly directed, is the source of all wealth, and of national prosperity”. In: Cole e Filson (1951, p.191).
Teorias da Mais-Valia Difusa
35
camaradas trabalhadores a não limitar o termo trabalho às operações das mãos. Antes que nossas máquinas e instrumentos mais úteis pudessem ser inventados, uma vasta quantidade de conhecimento acumulada no progresso do mundo por muitas gerações foi necessária.98
Para Hodgskin, aqueles que trabalhavam sobretudo com as mãos tendiam a
superestimar sua parte na produção da riqueza, e aqueles cuja atividade era sobretudo
observar as leis que regulam o mundo material (a ciência, a filosofia), tendiam a olhar
de cima para baixo, com desdém, aqueles que executariam o que a observação
determina. A observação das leis que regulam o mundo material e a execução seguindo
tais leis seriam os dois únicos elementos necessários para a produção de riqueza,
segundo ele99.
Hodgskin: conhecimento, cooperação e trabalho produtivo
O economista anticapitalista inglês via em pelo menos algumas espécies do
que podemos hoje chamar de trabalho imaterial uma atividade tão importante e
produtora de riqueza quanto o trabalho manual da classe trabalhadora. O cientista ou
filósofo cujas observações tornariam as mãos do trabalhador produtivas; os
planejadores, projetistas, que deveriam saber o estado dos mercados, as qualidades dos
materiais etc., seriam tão importantes quanto as habilidades dos trabalhadores manuais
para o completo sucesso de qualquer operação complexa100. No entanto, como esses
planejadores geralmente seriam ao mesmo tempo capitalistas, a remuneração pelo seu
trabalho se confundiria com o lucro capitalista. Embrionariamente, Hodgskin
apresentava elementos que hoje podemos relacionar com a classe capitalista dos
gestores101.
Esse papel da ciência, da observação das leis naturais, como elemento das
forças produtivas – próximo ao que Marx iria chamar de general intellect no Grundrisse
– leva Hodgskin a ver na comunicação e na concentração urbana elementos importantes
98 “Unfortunately, also, there is, I think, in general, a disposition to restrict the term labour to the operation of the hands. (…) But I have shown that the greater efficacy of fixed capital depends on the skill of the labourer; so that we come to the conclusion that not mere labour, but mental skill, or the mode in which labour is directed, determines its productive powers. I therefore would caution my fellow labourers not to limit the term labour to the operations of the hands. Before many of our most useful machines and instruments could be invented, a vast deal of knowledge gathered in the progress of the world by many generations was necessary” (Hodgskin, 1825).99 Cf. Hodgskin (1966),100 Cf. Hodgskin (1825; 1966).101 Sobre os gestores como classe capitalista cf. Bernardo (1991b).
Teorias da Mais-Valia Difusa
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que contribuem ao aumento do conhecimento e da riqueza. A citação é extensa, mas
importante para manter a integridade do seu pensamento:
Ninguém duvida que a comunicação rápida que pode se ter agora de qualquer parte deste país para qualquer outra parte, contribui ao aumento do conhecimento e da riqueza. As descobertas feitas em Londres, Manchester, ou Glasgow, são conhecidas em cada uma dessas cidades, e são difundidas em toda a ilha, em poucos dias. Inúmeras mentes são instantaneamente postas em trabalho mesmo que por sugestão; e toda descoberta é instantaneamente apreciada, e quase tão instantaneamente aperfeiçoada. As chances de aperfeiçoamento, está claro, aumentam em proporção à multiplicação de pessoas cuja atenção é devotada a um tema em particular. Parece-me, portanto, que um aumento no número de pessoas produz o mesmo efeito que a comunicação; pois a última só opera por trazer mais gente a pensar sobre o mesmo tema. (...) À medida que o mundo envelhece, e que o número de homens aumenta e se multiplica, há uma tendência constante, natural e necessária ao aumento do seu conhecimento, e conseqüentemente do seu poder produtivo. Esse princípio parece ser amplamente confirmado pela experiência. Quase todas as descobertas e melhorias têm sido feitas em cidades populosas e em países densamente povoados102
O que Hodgskin destaca como força produtiva, ao lado do labor dos
trabalhadores que se erguiam como classe trabalhadora, é a cooperação/combinação e o
conhecimento comum sociais. Inúmeras mentes, ligadas, se comunicando, partilhando
conhecimento e linguagem, no pensamento de Thomas Hodgskin, se aproxima muito do
conceito de intelectualidade de massa utilizado pelos pós-operaístas nos dias de hoje
para tratar da produção de valor no pós-fordismo.
Sobre trabalho produtivo, ele conclui que a necessidade mútua das indústrias,
já na complexidade da produção e da sociedade de seu tempo, tornaria todos os
trabalhos igualmente produtivos. Seria impossível distinguir quais dos diferentes
trabalhos industriosos executados em um país populoso seria o mais produtivo ou o
mais útil: “Todos eles parecem igualmente necessários, e toda espécie de trabalho, seja
mental ou corporal, deve ser igualmente chamado produtivo, se ele obtém a subsistência
àquele que o pratica.”103
102 “No one doubts that the rapid communication which may now be had from every part of this country to every other part, contributes to the increase of knowledge and wealth. The discoveries made in London, Manchester, or Glasgow, are known in either of theses towns, and are spread over the whole island, in a few days. Numbers of minds are instantly set to work even by hint; and every discovery is instantly appreciated, and almost as instantaneously improved. The chances of improvement, it is plain, are great in proportion as the persons are multiplied whose attention is devoted to any particular subject. It appears to me, therefore, that an increase in the number of persons produces the same effect as communication; for the latter only operates by bringing numbers to think the same subject. (…) As the world grows older, and as men increase and multiply, there is a constant, natural, and necessary tendency to an increase in their knowledge, and consequently in their productive power. This principle seems to be amply confirmed by experience. Almost all discoveries and improvements have been made in crowded cities and in densely peopled countries” (Hodgskin, 1966, p. 93-95).103 “All of them seem equally necessary, and every species of labour, whether mental or bodily, must equally be called productive, if it procure a subsistence for him who practises it.” (Hodgskin, 1966, p.50).
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A qualidade de ser produtivo, com toda conotação positiva que carrega a
palavra, era afirmada e defendida por ele, portanto, no fato de através desse trabalho o
trabalhador conseguir sua subsistência. Todos os trabalhos que cumprissem isso seriam
igualmente produtivos: “Sempre que o trabalho é voluntariamente pago, ou seus
produtos são livremente comprados, e o trabalhador pode viver do seu trabalho,
devemos presumir que é produtivo tanto a ele quanto aos compradores”104.
Ora, para Hodgskin a importância do princípio de que é produtivo o trabalho
que mantém o trabalhador surgiria da necessidade de se contrapor às teorias
prevalecentes relativas ao capital e à prática universal dos capitalistas. Práticas e teorias
segundo as quais só seria produtivo o trabalho que, além de manter o trabalhador,
gerasse um lucro.
Era impossível falar de trabalho produtivo sem apontar seu limite extremo, e sem aludir tanto à teoria oposta quanto à prática social que condena os homens à fome a menos que seu trabalho produza muito mais do que eles requerem para seu próprio uso ou consumo105.
Thomas Hodgskin assim procurava uma definição de trabalho produtivo da
perspectiva do trabalhador, para aquém ou além do capital – nisso irá ser
diametralmente oposto a Marx, cuja definição de trabalho produtivo buscava uma
objetividade de acordo com as relações de produção estabelecidas, o que seria produtivo
da perspectiva do capital, isto é, no modo de produção capitalista. Na definição de
trabalho produtivo do britânico, há uma condenação relativamente direta da economia
capitalista.
104 “Whenever labour is voluntarily paid for, or its products are freely purchased, and the labourer can live by his labour, we must presume that is productive both to him and the buyers” (Hodgskin, 1966, p.50).105 It was impossible to speak of productive labour without pointing out its extreme limit, and without adverting, as well to the opposite theory, as to the social practice, which condemns men to starvation, unless their labour will produce much more than they require for their own use or consumption (Hodgskin, 1966, p. 52).
Teorias da Mais-Valia Difusa
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Capítulo II
Proudhon: o governo dos produtivos sobre os improdutivos
A classe trabalhadora proudhoniana
Filho de camponeses, Pierre-Joseph Proudhon nasceu em 1809 e além de
tipógrafo se tornou figura destacada do socialismo francês e europeu no século XIX,
desenvolvendo uma crítica da economia política de grande repercussão na sua época.
Na sua obra e nas suas cartas, sempre deixou clara sua identificação com o que ele
próprio chamava de classes trabalhadoras, assim como deixava claro o sentimento de
pertencimento a elas. Exemplo é a passagem seguinte de De la justice dans la
révolution et dans l'église: “é a propósito do trabalho, de seus direitos e de suas
obrigações, que pretendo ressaltar sem cessar a classe trabalhadora, na qual é
necessário, por meu nascimento, minha educação e minha vida inteira, que eu me
inclua” 106.
Ele nunca escondera, bem pelo contrário, que seu engajamento intelectual
tinha em vista os interesses das classes trabalhadoras, como pode ser visto no seguinte
trecho do Système des contradictions économiques: “o interesse da ciência e do próprio
proletariado obrigam-me a completar minhas primeiras asserções e a manter os
106 “c’est à propos du travail, de ses droits et de ses obligations, que j’entends accuser sans cesse la classe travailleuse, dans laquelle il faut bien, de par ma naissance, mon éducation e ma vie entiére, que je me range” (Proudhon, 1932, p.1).
Teorias da Mais-Valia Difusa
39
princípios verdadeiros”107. Na sua última obra, De la capacité politique de la classe
ouvrière, seu objetivo declarado era dar, desde então, a sanção da ciência à emancipação
dos trabalhadores: “Eu tenho buscado, por um trabalho preparatório, e com reserva da
opinião democrática, juiz em última instância, dar desde o presente à emancipação
operária a alta sanção da ciência”108.
Não é nosso objetivo e intuito discutir a episteme proudhoniana ou mesmo
sua ausência. Mas nos interessa salientar, como vimos, que a ciência aparecia a ele
como recurso a ser usado em favor do interesse e da emancipação do grupo social ao
qual ele se identificava e fazia parte. A pretensão de dar a sanção da ciência à
emancipação do proletariado era também uma pretensão de Marx, sem dúvida, embora
diferisse na episteme. Ainda mais do que hoje, uma sanção que pudesse ser sustentada
como científica não era algo de pouca importância num embate entre grupos de
interesse – no caso, uma “luta de classes”.
Mas quem são concretamente os trabalhadores aos quais Proudhon se coloca
lado a lado? É possível apreendê-los das definições e noções de trabalho ao longo da
sua obra.
Em De la création de l'ordre dans l'humanité, após exaltar Adam Smith por
ter desfeito uma cadeia anterior de mal-entendidos e ter finalmente posto o trabalho
como fonte das riquezas, o francês considera o trabalho sob dois pontos de vista:
primeiro especificamente, como os procedimentos de cada arte e profissão, os meios de
fabricação, o aperfeiçoamento de instrumentos e máquinas etc. Sob esse aspecto
Proudhon conclui que o trabalho se denomina particularmente “mão-de-obra”109. Sob
um segundo ponto de vista, genericamente, ele poderia ser considerado as leis de
produção e de organização comuns a todas as espécies de trabalhos e indústrias110. A
pesquisa do trabalho sob esse segundo aspecto constituiria a Economia Política
propriamente dita.
Essa distinção pode ser entendida como uma definição estrita e uma definição
ampla, genérica, de trabalho. Considerando-o em sentido genérico, toda função últil
seria trabalho, e portanto a economia política abarcaria a esfera governamental assim 107 Proudhon (2003, p.325).108 “J’ai voulu, par un travail préparatoire, et sous réserve de l’opinion démocratique, juge en dernier ressort, donner dès à present à l’émancipation ouvrière la haute sanction de la science” (Proudhon, 1924, p.103).109 Proudhon (1927a, p.293).110 É bom frisar que indústria, na época, ainda possuía um significado mais amplo que o de hoje, significando não apenas a fábrica, mas a atividade produtora, de fabricação, de uma forma mais geral. Cf. Bestor Jr. (1948).
Teorias da Mais-Valia Difusa
40
como o comércio e a indústria111. Seria para ele uma das atribuições essenciais da
economia política distinguir o que seria útil daquilo que seria improdutivo, incluindo
nisso a esfera governamental.
Escrevendo como economista, Proudhon define trabalho em De la création: “a
ação inteligente do homem sobre a matéria, com um objetivo previsto de satisfação
pessoal”112. Tal definição, no entanto, para dizer o mínimo, carrega consigo uma forte
ênfase no trabalho em sentido estrito dado por ele (a “ação do homem sobre a matéria”),
ao mesmo tempo em que determina o trabalho pela utilidade, pela criação de valor de
uso, que se supõe do “objetivo previsto de satisfação pessoal”.
Em Manuel du Spéculateur, dez anos depois, ao apontar o trabalho como um
dos quatro princípios gerais da produção de riquezas, não restará dúvida sobre o perfil
da classe da trabalhadora que ele defende e se coloca lado a lado. De modo a explicar o
que seria o trabalho, declara que se entenderia comumente pela palavra trabalho a
forma dada pela mão do homem à matéria, e que, embora restrito, esse seria o ponto de
vista que passara a ser usado para designar especialmente, sob o nome de “classes
trabalhadoras”, a massa dos fabricantes, artesãos, agricultores, vinhateiros, jornaleiros,
todos aqueles que colocariam, como era comum se dizer, “a mão à obra”113. Em De la
justice, Proudhon reporta a condição de indignidade e o rebaixado status social do
trabalhador a uma herança religiosa que indignificava o corpo, e portanto inferiorizava o
trabalho físico, manual, copóreo. E é à defesa e interesse desses trabalhadores que o
pensador francês se levanta; os mesmos que constituíam o movimento operário.
Trabalho, antes de tudo e mais do que hoje, significava trabalho físico, modificador da
matéria. E eram esses trabalhadores, explorados diretamente pelos capitalistas, centrais
ao desenvolvimento e acumulação do capital industrial, que formaram a classe
trabalhadora, e era à emancipação e interesses deles que Proudhon procurava dar a
sanção da ciência. Ou seja, Proudhon partia de uma classe trabalhadora concreta,
concreta na sua situação comum, da sua atividade física, da sua relação de exploração e
da sua resistência. Como vimos, principalmente na França o movimento operário era
composto majoritariamente e hegemonicamente por artesãos, por trabalhadores das
“artes mecânicas”.
111 Cf. Proudhon (1927a, p. 294).112 Proudhon (1927a, pp. 296; 304).113 Proudhon (1857, p.1).
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Em La révolution sociale, Proudhon apresenta uma divisão da nação francesa
em três categorias principais: a burguesia, a classe média, e a classe trabalhadora ou
proletariado. Essa última viveria, assim como a classe média, mais de seu trabalho e de
seus serviços que dos seus capitais, porém não possuiria nenhuma iniciativa industrial,
sendo bem designados como assalariados. Salientava ainda que o proletariado era
composto de uma multidão pobre, quando não miserável.114
Trabalho manual, transformador da matéria, assalariado, e uma condição de
pobreza ou miséria compunham assim o retrato da classe trabalhadora que formava o
movimento operário, com a qual Proudhon se identificava e para a qual tentava dar seu
aval científico.
Produtivos e improdutivos
O tipógrafo e pensador francês não formulou nenhuma definição explícita de
trabalho produtivo (e improdutivo), e, portanto, nenhuma análise sistemática do mesmo,
como o fez Marx posteriormente. Embora a distinção entre produtivos e improdutivos
fosse de suma importância na sua crítica social e econômica, a ausência de uma
definição rigorosa, e a leitura de sua obra, indicam que ele evocava o trabalho produtivo
(e o improdutivo) em um significado que seria compreendido pelo seu público, por ser
um significado corrente à época: trabalho produtivo seria aquele que produziria riqueza,
valor – principalmente os trabalhos industriais ou industriosos à época – e improdutivo
aquelas funções que apenas consumiriam essa riqueza – funcionários públicos,
serviçais, entre outros, à época.
Quando afirma que: “o improdutivo deve obedecer, e por uma amarga
derrisão, o improdutivo comanda”115, ele exprime o núcleo da transformação social que
defendia:
O problema pois consiste, para as classes trabalhadoras, não em conquistar, mas sim em vencer ao mesmo tempo o poder e o monopólio, o que significa fazer surgir das entranhas do povo, das profundezas do trabalho uma autoridade maior, um fato mais poderoso, que envolva o capital e o Estado e que os subjugue116.
114 Cf. Proudhon (1938, p.125).115 “le improductif doit obéir, et par une amére dérision, l’improductif commande” (Proudhon, 1923, p. 409).116 Proudhon (2003, p.434).
Teorias da Mais-Valia Difusa
42
Ele carregava adiante a proposição que culminou na revolução de 1789,
inverter o comando dos improdutivos sobre os produtivos, porém, assim como o
movimento operário já antes dele, restringindo os produtivos à classe trabalhadora e
conseqüentemente incluindo os capitalistas, os burgueses, nos improdutivos. Como ele
próprio apontava sobre o senso comum popular: “hoje em dia no espírito do povo,
capitalista e ocioso são sinônimos”117. Em De la création, ele chama o capitalista e o
proprietário de produtor fictício118; do mesmo modo, no Système des contradictions,
aponta que do efeito do monopólio resultaria “a ficção econômica pela qual o capitalista
é considerado como produtor”119. O Estado, por sua vez, caracterizado como “órgão
improdutivo” e “personagem sem propriedade e sem capitais”120.
Para ele, “aqueles em benefício dos quais o imposto se recolhe são muito
verdadeiramente improdutivos”. E o cerne da transformação social que ele prega
aparece novamente, e ainda mais claramente, logo na seqüência:
Insisto nesta afirmação, que me parece pouco contestável pois, ressalvando-se as disputas sobre as palavras, todos me parecem de acordo sobre a coisa, porque ela contém o germe da maior revolução que deve ocorrer no mundo: quero falar da subordinação das funções improdutivas às funções produtivas, ou seja, em uma única palavra, da subordinação efetiva, sempre exigida mas nunca conseguida, da autoridade aos cidadãos121.
Em De la création, declarando buscar retificar o espírito de Adam Smith, o
qual assinalara como improdutivos os militares, magistrados, oficiais de justiça,
advogados, médicos, padres, artistas, entre outras profissões, Proudhon afirma que
embora essencialmente anormais, e por conseqüência sujeitas à reforma, não se deveria
declará-las à época improdutivas, uma vez que a condição presente da sociedade as teria
feito uma necessidade. Indo além, pontua que: “são produtivos em mais alto grau, sua
especialidade sendo de produzir, não aquilo que o homem deve consumir para viver,
mas aquilo para o qual o homem recebeu a vida, isto é, a beleza e a verdade, a arte a
ciência”122.
Vemos que em De la création123 Proudhon vinculava trabalho produtivo ou
função produtiva a trabalho necessário ou função necessária – útil, poderíamos dizer – ,
117 Proudhon (2003, p.325).118 Cf. Proudhon (1927a, p.315).119 Proudhon (2003, p.321).120 Proudhon (1923, p. 96).121 Proudhon (2003, p.357).122 “sont productives au plus haut degré, leur specialité étant de produire, non ce que l’homme doit consommer pour vivre, mais ce pour quoi l’homme a reçu la vie, e’est-à-dire le beau e le vrai, l’art et la science” (Proudhon, 1927a, p.307).123 Proudhon disserta sobre produtivos e improdutivos basicamente em uma página de De la création.
Teorias da Mais-Valia Difusa
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ao mesmo tempo que vinculava a qualidade de produtivo a um conteúdo do produto,
sem levar em conta, por exemplo, as relações de produção.
Será na sua obra seguinte, Système des contradictions économiques,
especificamente no capítulo VII (A Polícia ou o Imposto), que ele tocará mais
longamente, mas não completamente, na distinção em produtivos e improdutivos,
esboçando uma perspectiva que parece não se alterar até o fim de sua vida. Perspectiva
essa que se choca com aquilo brevemente esboçado anteriormente em De la création.
Ele passará a concordar com Smith quanto a considerar como improdutivos os tipos de
funcionários cujo produto seria negativo (salário ou rendimentos pagos por impostos),
embora seus trabalhos e funções pudessem ser úteis e necessários.
Diferentemente daqueles que trabalhavam no que ele chamava das quatro
divisões do trabalho coletivo (extração, indústria, comércio e agricultura), e que traziam
“ao mercado um produto real cuja quantidade se pode medir, cuja qualidade se pode
apreciar”, no caso dos funcionários públicos nada de semelhante ocorreria: “Estes
obtêm seu direito à subsistência não pela produção de utilidades reais, mas pela própria
improdutividade onde, sem que seja sua culpa, estão retidos”. E arremata: “Os
funcionários do Estado são (...) verdadeiramente improdutivos124.
Eis, portanto, uma categoria de serviço que, não fornecendo produtos reais, não pode de modo algum saldar-se de maneira ordinária; serviços que não recaem sobre uma lei de trocas, que não podem tornar-se objeto de uma especulação particular, de uma concorrência, de uma comandita, nem de espécie alguma de comércio125.
Como vemos, ele introduz uma noção formalmente vaga de “utilidade real” e
“produto real”, sem deixar muitas pistas sobre a que ele buscava se referir com essa
adjetivação. Cabe acrescentar que “funcionários públicos”, “homens de poder”, “o
poder” e “a polícia” são expressões intercambiadas por ele, como por exemplo nas
passagens que seguem:
O Estado, a polícia, ou o seu meio de existência, o imposto, são – repito-o – o nome oficial da classe que se designa em economia política sob o nome de improdutivos, ou seja em uma palavra: a criadagem social126.O imposto pertence a esta grande família de instituições preventivas, coercitivas, repressivas e vindicativas, que Adam Smith designava sob o nome genérico de polícia127.
Num contexto anterior à existência do que se convencionou chamar Estado de
bem-estar social, ou mesmo de garantias estatais de direitos sociais, o Estado se resumia
124 Proudhon (2003, p.355).125 Proudhon (2003, p.356).126 Proudhon (2003, p.358-9).127 Proudhon (2003, p.361).
Teorias da Mais-Valia Difusa
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fundamentalmente a um aparelho repressivo e militar, e o funcionalismo público em
grande medida ao governo – quanto mais que o recrutamento dos funcionários públicos
era ainda fortemente determinado pela origem de classe. Proudhon continuava assim,
pelo interesse da classe trabalhadora, a batalha intelectual iniciada pela burguesia
revolucionária, da qual Adam Smith mostrou ser um importante interlocutor. Luta
contra o aparelho “parasitário” do Estado, do imposto, do poder constituído. Porém,
diferentemente da burguesia revolucionária, subordinar os improdutivos aos produtivos,
ou a autoridade aos cidadãos, significava para Proudhon subordinar também o capital e
a propriedade ao trabalho. Vale lembrar que para ele a propriedade também fazia parte
da grande família da autoridade128.
A ligação que Proudhon fazia entre funcionalismo público e improdutivos era
de tal modo direta que, na sua crítica ao comunismo, um dos pontos por ele levantado
seria de que, em tal regime, a distinção dos trabalhadores em produtivos e improdutivos
seria suprimida, uma vez que todos se tornariam funcionários públicos129. Na sua última
obra, publicada postumamente, aponta o “desenvolvimento de funções improdutivas”
como uma das características intrínsecas e nocivas do comunismo130. A princípio,
revela-se uma contradição afirmar que o comunismo suprime a distinção entre
produtivos e improdutivos e também afirmar que ele faz desenvolver funções
improdutivas. Proudhon não aprofunda esses pontos, lançados em meio a frases, e que
formalmente se colocam como contradição lógica. De onde podemos concluir que, a
rigor, uma análise e definição precisa de trabalho produtivo e improdutivo nunca esteve
entre suas preocupações centrais, embora estivesse a transformação social que
subordinaria os improdutivos aos produtivos.
Assim como Hodgskin considerava os merchants produtivos, Proudhon, para
além de considerar o transporte como trabalho produtivo como Marx, considerava o
comércio em si produtivo. Em Manuel du spéculateur, aponta que a produção, no
sentido econômico da palavra, não é criação de matéria, mas criação de utilidade131,
sendo assim:
Tudo aquilo que acrescenta utilidade à matéria, seja a fazendo, seja a entregando, seja a deslocando, é verdadeiramente produtivo. Se o condutor que faz o transporte dos produtos pode e deve ser dito legitimamente produtor, o comerciante que o
128 Cf. Proudhon (1923).129 Cf. Proudhon (1923, p.283).130 Proudhon (1924 p. 126).131 Cabe lembrar que, de acordo com as acepções proudhonianas, um trabalho útil não necessariamente cria utilidade.
Teorias da Mais-Valia Difusa
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armazena, de seus riscos e perigos, e os conserva à disposição do consumidor, o é igualmente. Mão-de-obra, transporte, comércio, empreendimentos, empréstimos ou comanditas, operações de câmbio e de desconto, são igualmente formas diversas do mesmo fato econômico, a PRODUÇÃO132
Anos depois, em Ideé générale de la révolution au XIXe siècle, ele retoma o
tema, deixando claro que o comércio seria uma causa da produção, um princípio de
criação de valor, já pelo simples fato de estimular o consumo. Indo mais além,
argumenta que o ato de troca, assim como o trabalho, é produtor de realidade e de
riqueza; terminando por salientar que todo trabalho, e todas as forças criadoras, são
imateriais.
Provei em algum lugar, no Confessions d’um révolutionnaire133, que o comércio, independentemente do serviço feito pelo fato material do transporte, é por si próprio um estímulo direto ao consumo, portanto, uma causa da produção, um princípio de criação de valores. (...) O ato metafísico da troca, assim como o trabalho, mas de um outro modo que o trabalho, é produtor de realidade e de riqueza. De resto, essa asserção não tem nada de espantosa, se se refletir que a produção ou criação significa apenas mudança de formas, e que por conseqüência as forças criadoras, o próprio trabalho, são imateriais134
Podemos dizer que, no pensamento proudhoniano, a atividade que cria
utilidade (diretamente) é qualificada de produtiva, porém nem toda atividade qualificada
de produtiva criaria utilidade (ao menos diretamente). Esse último seria o caso do ato de
troca e em algumas funções comerciais, por exemplo. Temos na perspectiva
proudhoniana a Produção como um conjunto de atividades: mão-de-obra (a fábrica),
transportes, comércio, operações de troca etc. Há uma indissociabilidade da fabricação e
circulação, onde uma das formas do fato econômico da produção não tem um privilégio
hierárquico sobre outra. Proudhon enxerga portanto, diferentemente de Marx, a
produção e a criação de valor como fenômeno ou processo mais amplo e difuso135.
132 “Tout ce qui ajoute de utilité à la matérie, soit en la façonnant, soit en la livrant, soit en la déplaçant, est véritablement productif. Si le voiturier qui fait le transport des produits peut et doit être dit légitimement producteur, le commerçant qui les emmagasine, à ses risques et périls, et les tient à la desposition du consommateur, l’est egalement. Main-de’ouvre, transports, commerce, enterprises, prêts ou commandites, operations de change et d’escompte, sont autant de formes diverses du meme fait économique, la PRODUCTION” (Proudhon, 1857, p.3-4).133 Aqui ousamos corrigir Proudhon quanto a essa sua auto-referência. O tema não foi tratado por ele em Confessions, como ele aponta, mas em Manuel du spéculateur.134 “J’ai prouve quelque part, dans les Confessions d’um révolutionnaire, que le commerce, independamment du service rendu par le fait matériel du transport, est par lui-même une excitation directe à la consommation, partant, une cause de production, un principe de creátion des valeurs. (...) L’acte métaphysique de l’échange, aussi bien que le travail, mais d’une autre manière que le travail, est producteur de réalité et de richesse. Au reste, cette assertion n’aura plus rien qui étonne, si l’on réfléchit que production ou création ne signifie que changement de formes, et qu’em conséquence les forces créatices, le travail lui-même, sont immatérielles” (Proudhon, 18-?, p. 80).135 Podemos enxergar também em Proudhon um sentido estrito de produção (quando afirma por exemplo que o comércio é uma causa de produção) e um sentido amplo (quando afirma por exemplo que o comércio é forma diversa do mesmo fato econômico: a produção).
Teorias da Mais-Valia Difusa
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A antinomia da necessidade como força produtiva
Tanto em Manuel du spéculateur quanto em Ideé générale, a visão de que o
consumo é produção no sentido próprio da palavra, criadora de valor e riqueza, se faz
presente. Seja afirmando que a criação de novas necessidades multiplicam a riqueza136,
seja afirmando que o comércio é um princípio de criação de valor, uma causa da
produção por estimular diretamente o consumo137. Se chamarmos a produção em
sentido amplo (além da fabricação) encontrada em Proudhon, de sistema de produção,
podemos perceber mais facilmente que o pensamento proudhoniano se mostra paradoxal
na medida em que se perde o referente externo de riqueza, um referente que não seja a
própria reprodução e ampliação do sistema de produção.
O francês afirma em La guerre e la paix que a produção tem sua razão e sua
flutuação na necessidade138. A necessidade seria portanto algo externo à produção, que
lhe serviria de referente. A necessidade seria a razão, o motivo, da produção. Isso
significa dizer que a razão da produção não é ela própria, mas algo que lhe é exterior ao
qual ela é chamada a aplacar, a dar resposta. A produção viria responder à necessidade
através da criação de utilidade, qualidade que aplacaria, satisfaria a necessidade.
Portanto, se o próprio sistema de produção estimula o consumo e cria as
necessidades, as próprias necessidades e o próprio consumo passam a ser elementos
internos do sistema de produção: produzidos por ele e para ele, e não elementos
externos que o evocam e o motivam a responder. Nesse estágio, é apenas uma ilusão,
uma falsa interpretação, afirmar que a produção tem sua razão na necessidade. Muito
mais correto seria afirmar o oposto: a necessidade tem sua razão no sistema de
produção.
O pensamento de Proudhon se torna paradoxal à medida que afirma ora a
necessidade como externa ao sistema de produção – produtora do sistema de produção –
ora como produto do sistema de produção; ora como razão, ora como conseqüência.
Nesse último caso, que caracteriza o desenvolvimento da economia e da sociedade
capitalista em relação a formações sociais anteriores, há uma circularidade interna ao
136 Cf. Proudhon (1857, p.5).137 Cf. Proudhon (18-?, p.80).138 Cf. Proudhon (1927b, p.332).
Teorias da Mais-Valia Difusa
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sistema. Não há mais referente ou elemento externo: riqueza, necessidade, e por
conseqüência a própria produção, tornam-se um simulacro, como diria Baudrillard139.
Produzindo o sistema de necessidades140, o que o sistema de produção produz não é
mais riqueza em sentido genuíno141, mas sua própria ampliação e reprodução.
Se Proudhon ainda podia afirmar que as necessidades poderiam ser divididas
em básicas e de luxo142, era porque em grande parte a necessidade ainda podia ser
considerada elemento externo ao sistema de produção, naquele estágio ainda precoce do
capitalismo. A criação de novas necessidades e o estímulo ao consumo implica, em
grande parte, a relativização do luxo e do que seria básico, a tal ponto que essa
separação se torna inoperante mesmo teoricamente. Como Mészáros aponta, a
relativização do luxo e da necessidade se encontra no âmago do desenvolvimento
capitalista de modo à reprodução do capital. O capital pôde emergir e triunfar sobre
sistemas de metabolismo social prévios, justamente deixando de lado as considerações
às necessidades humanas como ligadas a “valores de uso”143. Em outras palavras,
desvinculando-se de um referente externo à sua própria reprodução.
Nossa posição histórica também nos permite ver que, longe de multiplicar a
riqueza, a criação de novas necessidades a serem satisfeitas pelo sistema de produção
multiplica a pobreza e a miséria. Quanto a isso a obra de Ivan Illich é particularmente
reveladora. Essa criação pode ocasionalmente fazer aumentar o Produto Interno Bruto,
mas em termos concretos tende a significar perda de autonomia da população para
reprodução de sua vida, perda da capacidade de auto-satisfação, desvalorização de
saberes e fazeres vernáculos e dependência de produtos industriais e institucionais;
quadro esse próprio para multiplicação da pobreza e da miséria, ou, mais corretamente,
quadro que significa sua criação. Seguindo o percurso metodológico proudhoniano de
expor as antinomias que comporiam a realidade, faltou-lhe ao menos apontar a criação
de novas necessidades como um processo antinômico, que se multiplica a riqueza em
um sentido e por um lado, multiplica a pobreza por outro.
139 Cf. Baudrillard (1996).140 Sobre o sistema de necessidades como produto do sistema de produção cf. Baudrillard (1995a).141 Sobre o fim da produção genuína cf. Mészáros (2002).142 Cf. Proudhon (1927b, p.332; 347).143 Cf. Mészáros (2002).
Teorias da Mais-Valia Difusa
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Capítulo III
Marx: antinomias sobre trabalho produtivo
Trabalho produtivo e trabalho improdutivo
Diferentemente de Proudhon, Marx formulou definições rigorosas e claras de
trabalho produtivo e improdutivo, embora sua relação com esses conceitos ou noções
não estivesse livre de ambigüidades.
Ele desenvolve mais extensamente seus conceitos de trabalho produtivo e
improdutivo na obra inacabada Teorias da Mais-Valia. Sua definição também está
sistematizada no conhecido Capítulo VI não publicado do Capital. Ademais, em
passagens ao longo dos três volumes do Capital e no Grundrisse pode-se encontrar
referências às suas definições. De certo modo, tais definições marxianas não são objeto
de grande controvérsia entre os estudiosos do tema, pois, como dissemos, foram
elaboradas de forma suficientemente sistemática e clara.
Ao contrário dos economistas que o precederam, incluindo aí também
Proudhon, Marx buscou uma definição de trabalho produtivo que fugisse da referência
ao produto, ao resultado do trabalho, à sua utilidade ou não-utilidade. Marx buscou a
referência no processo de trabalho, ou melhor, no modo de produção. Com a distinção
de trabalho produtivo/improdutivo, segundo ele próprio, buscou “apreender o caráter
específico de um modo de produção social”144.
144 Marx (1980b, p.278).
Teorias da Mais-Valia Difusa
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A definição marxiana de trabalho produtivo pode ser resumida através do
subtítulo do Capítulo IV de Teorias da Mais-Valia: “trabalho produtivo no sentido da
produção capitalista: trabalho assalariado que produz mais-valia”145. Trabalho produtivo
para Marx é somente aquele que produz mais-valia, que produz capital. É trabalho “que
se troca de imediato por capital”. Trabalho improdutivo, por conseqüência, seria aquele
“que não se troca por capital, mas diretamente por renda, ou seja, por salário ou lucro”146. Como Marx salienta:
As definições consideradas, portanto, não decorrem da qualificação material do trabalho (nem da natureza do produto nem da destinação do trabalho como trabalho concreto), mas da forma social determinada, das relações sociais em que ele se realiza. Desse modo, um ator, por exemplo, mesmo um palhaço, é um trabalhador produtivo se trabalha a serviço de um capitalista (o empresário), a quem restitui mais trabalho do que dele recebe na forma de salário, enquanto um alfaiate que vai à casa do capitalista e lhe remenda as calças, fornecendo-lhe valor de uso apenas, é um trabalhador improdutivo. O trabalho do primeiro troca-se por capital, o do segundo por renda. O primeiro trabalho gera mais-valia; no segundo, consome-se renda.Trabalho produtivo e improdutivo são sempre olhados aí do ângulo do dono do dinheiro, do capitalista e não do trabalhador147 .
O conceito, portanto, é concebido da perspectiva do capital, da reprodução de
um modo de produção específico. Marx deixa claro que o trabalho só é produtivo
quando absorvido no capital, quando este é a base e comando da produção, e que,
portanto, o trabalho na sua forma imediata, independente do capital, não seria
produtivo148.
Na categoria de improdutivos, derivada das suas definições, Marx incluía os
funcionários públicos (Estado), os capitalistas, serviçais, proprietários, advogados,
professores, médicos etc.149, e também os comerciantes (merchants)150 e trabalhadores
do comércio. Diferentemente do que achava Proudhon, para Marx o comércio não
alterava o valor das mercadorias, não criava valor. Em relação a Proudhon, portanto,
Marx reduz ainda mais o escopo social dos produtivos: se o comércio entrava para
Proudhon nas atividades produtivas, e este considera também os trabalhadores fora da
relação entre capitalista e trabalho assalariado como produtivos, Marx irá excluir ambos 145 Marx (1980b, p.132).146 Marx (1980b, p.137).147 Marx (1980b, p.137).148 Cf. Marx (1973).149 Evidentemente Marx não qualificava de improdutiva uma profissão, mas uma relação de trabalho que caracterizava um modo de produção social. Quando dizemos que Marx considerava médicos, professores e advogados improdutivos, se deve ao fato dessas profissões, ao menos na época, se realizarem fora de uma relação trabalho-capital que para Marx caracterizaria o modo de produção capitalista. Em suma, se realizavam não como trabalho assalariado empregado por um capitalista.150 No caso dos merchants, Marx os analisou sob duas perspectivas no Capital, a primeira como trabalhadores improdutivos, a segunda como capitalistas.
Teorias da Mais-Valia Difusa
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da categoria de trabalho produtivo, pelo menos, como veremos, na sua análise do modo
de produção capitalista, que consumiu praticamente todo o seu esforço de crítica à
economia política.
No entanto, na indústria do transporte, diferentemente do comércio, seria
produzido, segundo ele, uma “alteração material do objeto de trabalho – alteração
espacial, de lugar”, no caso do transporte de mercadorias. Haveria uma alteração do
valor de uso e do valor de troca pelo trabalho efetuado. No caso do transporte de
pessoas, Marx não trata como produção de mercadoria, mas como serviço prestado, e
parece atribuir menor ou nenhuma importância a ele na sua análise, embora se
enquadrasse na sua definição de trabalho produtivo151. A preocupação da sua obra é
com o processo de produção material, de mercadorias, ou de mercadorias materiais, se
se preferir. Podemos dizer mais precisamente que seu interesse era analisar as relações
em que estava envolvida a classe trabalhadora que formava o movimento operário
concreto, e uma vez estando ela ligada à produção material, ou de mercadorias
materiais, seu foco terminava por ser esse.
A antinomia da produção material e manual
Embora no rigor do seu conceito o trabalho produtivo não esteja ligado à
materialidade do produto, ou à atividade física ou manual do trabalho, é constante na
obra de Marx referência à materialidade do trabalho ou do produto, o que, se não cria
uma ambigüidade nas suas formulações, ao menos indica que o trabalho considerado
nas suas formas materiais – objetivação em produto material pela manipulação física do
trabalhador – possuía uma centralidade implícita na sua análise e crítica da economia
política. O trecho que segue, do Capítulo XIV do volume I do Capital, é ilustrativo:
No Capítulo V, estudamos o processo de trabalho em abstrato, independentemente de suas formas históricas, como um processo entre o homem e a natureza. Dissemos: “Observando-se todo o processo do ponto de vista do resultado, do produto, evidencia-se que meio e objeto de trabalho são meios de produção, e o trabalho é trabalho produtivo”. Na nota 7, acrescentamos: “Essa conceituação de trabalho produtivo, derivada apenas do processo de trabalho, nao é de modo nenhum adequada ao processo de produção capitalista”. Mais algumas observações sobre o assunto. (...) O produto deixa de ser o resultado imediato da atividade do produtor individual para tornar-se produto social, comum, de um trabalhador coletivo, isto é, de uma combinação de trabalhadores, podendo ser direta ou indireta a participação
151 Cf. Marx (1980b, p. 405).
Teorias da Mais-Valia Difusa
51
de cada um deles na manipulação do objeto sobre que incide o trabalho. A conceituação de trabalho produtivo e de seu executor, o trabalhador produtivo, amplia-se em virtude desse caráter cooperativo do processo de trabalho. Para trabalhar produtivamente não é mais necessário executar uma tarefa de manipulação do objeto de trabalho; basta ser órgão do trabalhador coletivo, exercendo qualquer uma das suas funções fracionárias. A conceituação anterior de trabalho produtivo, derivada da natureza da produção material, continua válida para o trabalhador coletivo, considerado em conjunto. Mas não se aplica mais a cada um de seus membros, individualmente considerados.Ademais, restringe-se o conceito de trabalho produtivo. A produção capitalista não é apenas produção de mercadorias, ela é essencialmente produção de mais valia. O trabalhador não produz para si, mas para o capital. Por isso não é mais suficiente que ele apenas produza, ele tem que produzir mais valia. Só é produtivo o trabalhador que produz mais valia para o capitalista, servindo à auto-expansão do capital.152
Importante no momento é perceber que Marx, mesmo com a divisão do
trabalho, no modo de produção capitalista, afirma que a definição de trabalho produtivo
vinda da natureza da produção material de objetos continuaria válida para o trabalhador
coletivo, embora não para o trabalhador tomado individualmente. Ou seja, Marx
considerava dessa forma que um processo de trabalho coletivo era produtivo ou não de
acordo com a natureza da produção material de objetos. Tomado coletivamente, o
trabalho, no modo de produção capitalista, tinha ainda no seu resultado, no seu produto,
a determinação de ser produtivo ou não. Considerando que ele está visualizando o
trabalhador coletivo como o conjunto de trabalhadores de uma empresa, de uma fábrica,
segundo o trecho acima o suposto critério de qualificação de uma empresa ser produtiva
ou não, seja ela capitalista ou não, refere-se assim ao produto que ela produz (e não às
relações sociais, de produção, no seu interior), o que nos parece contraditório com sua
abordagem sobre trabalho produtivo/improdutivo. Afinal, do ponto de vista do capital,
ou do capitalista, uma empresa é produtiva se produz capital, se produz mais-valia,
independente do produto e seu valor de uso.
Como podemos ver também, Marx deixa a entender no trecho citado que, em
certa altura, em um estágio anterior ou inicial da divisão do trabalho, o trabalho manual
era condição de um trabalho ser produtivo. E que, uma vez no modo capitalista de
produção, a noção de trabalho produtivo vindo da natureza da produção material de
objetos se torna limitada, uma vez que no capitalismo se trata essencialmente de
produzir mais-valia, e não mercadorias153.
152 Marx (1980a, p.583-4). Com o título “O Problema do Trabalho Produtivo Visto do Ângulo do Processo Global de Produção Material”, em Teorias da Mais-Valia, Marx apresenta a mesma idéia, como veremos adiante.153 Também é interessante atentar que, na citação anterior, Marx relaciona mercadoria a objeto material.
Teorias da Mais-Valia Difusa
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Quando G.D.H. Cole sumariamente afirma que para Marx somente os que
fabricavam coisas ou as transportavam adicionavam valor, e por isso eram
produtivos154, é difícil censurá-lo. A sucinta descrição de Cole aponta o grupo social
abarcado pela definição explícita e rigorosa de trabalho produtivo de Marx – embora
nem todos os que fabricavam coisas e as transportavam fossem considerados produtivos
para Marx – e pode ser sustentada pelas diversas passagens na obra marxiana que
deixam claro que, para ele, trata-se de definir como produtivos os trabalhadores da
fábrica capitalista e os do transporte de mercadorias sob o comando capitalista.
Podemos perceber uma antinomia com sua definição de trabalho produtivo na
forma como citamos anteriormente. Marx frisava que o ator e o palhaço, trabalhando
para uma empresa capitalista, seriam por isso produtivos – por gerarem mais-valia.
Marx tentava com isso frisar que a qualidade de produtivo nada tinha a ver com a
materialidade do resultado do trabalho. Entretanto, também como vimos, ele aponta que
a natureza da produção material de objetos é verdadeira como definidora da qualidade
de produtivo ao trabalhador tomado coletivamente, e não individualmente. A antinomia
fica assim explícita. Marx vislumbrava tal antinomia em Smith, e pretendia estar livre
dela, algo que nos parece não ter conseguido totalmente.
Significativo que ele tenha acrescentado à sua definição de trabalho produtivo
como trabalho assalariado que produz mais-valia a “definição acessória” de trabalho
produtivo como “trabalho que se realiza em riqueza material”.
Ao observar as relações essenciais da produção capitalista podemos portanto supor o mundo inteiro das mercadorias, todos os ramos da produção material – da produção da riqueza material – estão sujeitos (formal ou realmente) ao modo de produção capitalista (pois, essa tendência se realiza cada vez mais, e é, por princípio, o objetivo, e só com aquela sujeição se desenvolvem ao máximo as forças produtivas do trabalho. (...) Pode-se então caracterizar os trabalhadores produtivos, isto é, os trabalhadores que produzem capital, pela circunstância de seu trabalho se realizar em mercadorias, em produtos do trabalho, em riqueza material. E assim ter-se-ia dado ao trabalho produtivo uma segunda definição, acessória, diversa da característica determinante, que nada tem a ver com o conteúdo do trabalho e dele não depende155.
A primeira pergunta que nos vêem à cabeça é: qual o objetivo, a necessidade
ou o interesse de Marx em dar uma “definição acessória” à sua definição de trabalho
produtivo? Ainda mais especificamente: qual seu objetivo, necessidade ou interesse em
dar essa definição acessória?
154 Cf. Cole (1955, p.13).155 Marx (1980b, p.403).
Teorias da Mais-Valia Difusa
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Marx trata de dar tal definição acessória para logo em seguida, ou ao mesmo
tempo, afirmar, frisar, que o conteúdo dessa definição acessória nada tem a ver com a
característica determinante do trabalho considerado por ele, segundo sua definição
rigorosa, como produtivo. Ou seja, Marx traz uma definição acessória para dizer logo
em seguida que ela nada tem a ver com a definição precisa, fundamental, de trabalho
produtivo. Portanto, dentro de um rigor científico, para quê tal definição acessória? Ela
seria apenas elemento de confusão, e justamente para tentar impedir qualquer confusão
vinda dessa definição acessória, que ele logo a distancia da definição fundamental.
Podemos concluir que o objetivo de tal definição acessória não é epistêmico, mas,
levantando a hipótese, em certo sentido o objetivo seria político, ou pragmático.
Em Teorias da Mais-Valia ele não gasta mais do que uma página para tratar da
“Presença do Capitalismo no Domínio da Produção Imaterial”. Ao cabo conclui que
“todas essas manifestações da produção capitalista nesse domínio, comparadas com o
conjunto dessa produção, são tão insignificantes que podem ficar de todo
despercebidas”156. Ou seja, guiado pela observação de seu tempo, Marx considera
desprezíveis para a análise do modo de produção capitalista, da sociedade capitalista de
então, e para sua crítica da economia política, a produção imaterial. Ele está
considerando como produção imaterial o produto artístico, intelectual, objetificável ou
não em mercadorias (livros, quadros), o que além do trabalho de atores, escritores,
pintores, inclui o de professores, médicos, padres etc. Ele está preocupado com a
produção material, no sentido estrito da expressão. Embora seu conceito duro de
trabalho produtivo não leve em consideração a materialidade do resultado do trabalho, a
todo momento ele nos faz lembrar que sua preocupação e a base de sua análise parte da
produção material – aquela que está subsumida formal ou realmente ao capital quase em
sua totalidade, ou tendendo a isso. Certamente aquela da onde parte a revolta, já
concreta, e que possivelmente mediaria a passagem a um novo modo de produção.
A dualidade do trabalho produtivo
Michael Lebowitz chama atenção para uma dualidade do conceito de trabalho
produtivo em Marx. Ao lado do conceito de trabalho produtivo no capitalismo como
156 Marx (1980b, p.404).
Teorias da Mais-Valia Difusa
54
trabalho que produz mais-valia, haveria um segundo conceito de trabalho produtivo que
estaria escondido e latente na obra marxiana. Esse segundo conceito seria o de trabalho
produtivo para o trabalhador157. Podemos dizer que essa dualidade apontada relaciona-
se à distinção que Marx faz, em Teorias da Mais-Valia, entre produtividade absoluta e
produtividade relativa do trabalho. A existência do capital e da classe capitalista se
basearia na produtividade relativa do trabalho.
Por exemplo: se um dia de trabalho só desse para manter vivo o trabalhador, isto é, para reproduzir sua força de trabalho, o trabalho, em termos absolutos, seria produtivo, uma vez que seria reprodutivo, ou seja, substituiria sempre os valores por ele consumidos (iguais ao valor da própria força de trabalho). Mas, não seria produtivo no sentido capitalista, por não ter produzido mais-valia. (...) A produtividade no sentido capitalista baseia-se na produtividade relativa (...)158.
Essa produtividade absoluta a qual se refere Marx, é a mesma produtividade
que fazia Hodgskin afirmar como trabalho produtivo aquele que simplesmente mantinha
o trabalhador, independente de mais-valia, lucro ou acumulação gerada a um capitalista.
Quando Marx afirma em Crítica ao Programa de Gotha159 que combinar
desde cedo o trabalho produtivo com a instrução seria um dos meios poderosos de
transformação da sociedade presente, ou quando no mesmo texto afirma que o trabalho
produtivo é o único meio de correção dos criminosos de direito comum, podemos crer
que ele não está sugerindo que trabalhar sob o comando do capital, e que produzir mais-
valia seja um meio de correção de “criminosos comuns”, ou que as crianças deveriam,
ao lado da instrução, produzir mais-valia e trabalhar sob comando do capital desde
cedo, e que isso seria um poderoso meio de transformação em um sentido socialista.
Parece certo que Marx estava nesse caso usando a expressão trabalho produtivo em um
sentido outro que da sua definição como trabalho que produz mais-valia. Podemos crer,
até mesmo por ele não se dar o trabalho de precisar o seu uso, que se trata de um uso
mais corrente e comum à época: trabalho que cria valor de uso, basicamente o trabalho
de manufatura de então. Parece claro também que, embora Marx na sua crítica da
economia política tenha dado uma definição de trabalho produtivo (sob o capitalismo),
não pensava ele que se tratava de uma definição que excluísse outras possibilidades de
definição conforme o contexto e o interesse.
157 Cf. Lebowitz (1992).158 Marx (1980b, p.133).159 Disponível em <http://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm>
Teorias da Mais-Valia Difusa
55
Quando Engels afirma no Anti-Duhring160 que o trabalho produtivo é uma
“condição natural da existência humana”; que o trabalho produtivo cria “produtos
positivos”, e que com “a revolução do modo de produção” ele se transformaria em
“meio de emancipação”, podemos crer que era a essa concepção de trabalho produtivo
que Marx se referia em Crítica ao Programa de Gotha, e que, assim como em outros
momentos de sua obra, acaba deixando implícita a dualidade levantada por Lebowitz.
Essa concepção é no mínimo bastante próxima da concepção de trabalho
produtivo como simplesmente aquele que produz valor de uso, próxima a que Proudhon
utilizava, sendo portanto sua qualidade de produtivo definida pelo resultado do trabalho.
Savran e Tonak enxergam em Marx uma concepção de trabalho produtivo em
geral – o que de certa forma temos apontado nesta seção – a qual seria independente do
modo de produção. Sendo o trabalho produtivo no sentido capitalista uma subcategoria
do trabalho produtivo em geral.
A qualidade de ser trabalho produtivo em geral é uma condição necessária (embora não suficiente) para o trabalho ser produtivo para o capital. Isso significa que qualquer atividade que não é diretamente necessária ao intercurso da humanidade com a natureza de modo a transformar aspectos dela de acordo com as necessidades humanas não pode ser considerada trabalho produtivo em geral, nem, portanto, como trabalho produtivo sob o capitalismo. Em outras palavras, essa dupla determinação do conceito de trabalho produtivo implica que o trabalho produtivo sob o capitalismo é uma subcategoria do trabalho produtivo em geral161
No entanto, o esquema exposto por Savran e Tonak, de considerar o trabalho
produtivo no sentido capitalista (da perspectiva do capital) como uma subcategoria do
trabalho produtivo em geral, cria ou explicita uma antinomia no pensamento de Marx.
Seria algo como afirmar que a produtividade relativa é uma subcategoria da
produtividade absoluta.
Podemos concordar parcialmente com Harry Braverman quando dizia que
Marx não julgava a natureza dos processos de trabalho ou sua utilidade para os homens
ou à sociedade quando fazia a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo,
interessando-se tão somente pelo papel do trabalho no modo de produção capitalista162.
Mas Marx vai além de dizer que a definição de trabalho produtivo sob o capitalismo
nada tem a ver com a utilidade do processo de trabalho ou do produto. Ao afirmar que a 160 Disponível em <http://www.marxists.org/archive/marx/works/1877/anti-duhring/ch25.htm>161 “[T]he quality of being productive labour in general is a necessary (though not sufficient) condition for labour to be productive for capital. This means that any activity which is not directly necessary for humanity’s intercourse with nature in order to transform aspects of it in accordance with human needs cannot be regarded as productive labour in general, nor, therefore, as productive labour under capitalism. In other words, this doublé determination of the concept of productive labour implies that productive labour under capitalism is a subset of productive labour in general”. (Savran; Tonak 1999, p. 144).162 Cf. Braverman (1987, p.348).
Teorias da Mais-Valia Difusa
56
produção capitalista é essencialmente produção de mais-valia, Marx aponta na direção
da perda de um referente externo à própria produção capitalista; a utilidade e a
necessidade, por exemplo. A utilidade assim não seria condição necessária para um
trabalho ser produtivo no sentido capitalista. Sendo assim, esse trabalho produtivo (que
produz mais-valia) não poderia ser uma subcategoria de um trabalho produtivo geral,
dado pela utilidade e satisfação de uma necessidade independente do modo de
produção. Em uma passagem de Crítica ao Programa de Gotha, Marx deixa a entender
que o modo de produção capitalista se descola da utilidade, não sendo essa, portanto,
condição necessária para o trabalho produtivo no sentido capitalista: “Do mesmo modo
se poderia ter dito que só na sociedade é que o trabalho inútil, e até socialmente
prejudicial, pode chegar a ser um ramo de indústria”163.
Antinomia da divisão do trabalho
Outra antinomia que podemos encontrar nas formulações de Marx sobre
trabalho produtivo/improdutivo relaciona-se com as implicações da divisão do trabalho
sobre a constituição dessa distinção. No Capítulo VI não publicado do Capital, no
Capítulo XIV do Capital (em trecho visto na página 50), assim como em Teorias da
Mais-Valia, Marx aponta que mesmo aquele trabalhador que não desempenha a função
manual no processo de trabalho, mas que executa alguma função na fábrica, na oficina,
é trabalhador produtivo. Sumariamente, a divisão do trabalho implicaria num
alargamento do trabalho produtivo considerado individualmente, uma vez que a
cooperação, o processo de trabalho, englobaria diversos trabalhos parcelares que
constituiriam a produção e a produtividade.
Com o desenvolvimento da subordinação real do trabalho ao capital ou do modo de produção especificamente capitalista não é o operário individual que se converte em agente real do processo de trabalho no seu conjunto mas sim uma capacidade de trabalho socialmente combinada; e, como as diversas capacidades de trabalho que cooperam e formam a máquina produtiva total participam de maneira muito diferente no processo imediato de formação de mercadorias, ou melhor, neste caso, de produtos – um trabalha mais com as mãos, outro mais com a cabeça, este como diretor, engenheiro, técnico etc., aquele como capataz, aqueloutro como operário manual ou até como simples servente – temos que são cada vez em maior número as funções da capacidade de trabalho incluídas no conceito imediato de trabalho produtivo, diretamente explorados pelo capital e subordinados em geral ao seu processo de valorização e de produção. Se se considerar o trabalhador coletivoconstituído pela oficina, a sua atividade combinada realiza-se materialmente e de
163 Disponível em <http://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm>
Teorias da Mais-Valia Difusa
57
maneira direta num produto total que, simultaneamente, é uma massa total de mercadorias e aqui é absolutamente indiferente que a função deste ou daquele trabalhador, mero elo deste trabalhador coletivo, esteja mais próxima ou mais distante do trabalho manual direto. Porém, então, a atividade desta capacidade de trabalho coletiva é o seu consumo direto pelo capital, ou por outra, o processo de autovalorização do capital, a produção direta de mais-valia e daí, como se há de analisar mais adiante, a transformação direta da mesma em capital.164
Em Teorias da Mais-Valia, sob o subtítulo “O Problema do Trabalho
Produtivo Visto do Ângulo do Processo Global de Produção Material”, Marx relaciona
da mesma forma a divisão do trabalho e a complexidade do processo de trabalho a um
alargamento da qualidade de produtivo ao trabalhador tomado individualmente.
Com o desenvolvimento do modo de produção especificamente capitalista, onde muitos trabalhadores operam juntos na produção da mesma mercadoria, tem naturalmente de variar muito a relação que seu trabalho mantém diretamente com o objeto de produção. Por exemplo, os serventes de fábrica mencionados antes, nada têm a ver diretamente com a transformação da matéria-prima. (...) Mas o conjunto desses trabalhadores (...) produz resultado que, visto como resultado do mero processo de trabalho, se expressa em mercadoria ou num produto material; e todos juntos, como órgão operante, são a máquina viva da produção desses produtos; do mesmo modo, considerando-se o processo global de produção, trocam trabalho por capital e reproduzem o dinheiro do capitalista como capital, isto é, como valor que produz mais-valia, como valor que acresce.É mesmo peculiar ao modo de produção capitalista separar os diferentes trabalhos, em conseqüência também o trabalho mental e o manual – ou os trabalhos em que predomina um qualificativo ou outro – e reparti-los por diferentes pessoas, o que não impede que o produto material seja o produto comum dessas pessoas ou que esse produto comum se objetive em riqueza material; tampouco inibe ou de algum modo altera a relação de cada uma dessas pessoas com o capital, a de trabalhador assalariado e, no sentido eminente, a de trabalhador produtivo. Todas essas pessoas estão não só diretamente ocupadas na produção de riqueza material, mas também trocam seu trabalho diretamente por dinheiro como capital e, por isso, reproduzem de imediato, além do próprio salário, mais-valia para o capitalista165.
Marx pensa nas diversas funções e trabalhos na fábrica capitalista,
subordinadas ao mando do capital. Sua proposição de trabalho produtivo envolveria a
“subsunção direta do trabalho ao capital”166, embora não fique claro o que seria
exatamente uma subsunção direta ou indireta do trabalho ao capital.
Tomando a defesa do ponto de vista de Adam Smith, no entanto, ele parece
compartilhar do ponto de vista que considera produtivo mesmo aquele que trabalha fora
do estabelecimento industrial, fora de uma subordinação direta a um capitalista:
E os serviços, desde que entrem diretamente na produção, considera-os A. Smith materializados no produto, tanto o trabalho dos obreiros manuais, quanto o do gerente, caixeiro, engenheiro e mesmo do cientista como inventor, trabalhando
164 Marx (s/d, p.110). Cabe salientar que, nesse trecho do Capítulo VI não publicado do Capital, assim como no trecho citado anteriormente do Capítulo XIV do Capital, a lógica da argumentação de Marx deixa transparecer que o trabalho manual teria por si a qualidade de ser produtivo, o que denota uma antinomia em seu pensamento que já apontamos, vinda de uma inescapável influência do sentido comum de trabalho produtivo à época, relacionado ao trabalho físico, manual, às artes mecânicas.165 Marx (1980b, p.404-5).166 Marx (1980b, p.394).
Teorias da Mais-Valia Difusa
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dentro ou fora do estabelecimento industrial. Smith explica como, na divisão o trabalho, essas operações se repartem por diversos indivíduos, e que o produto, a mercadoria, resulta do trabalho cooperativo e não do trabalho de um entre eles167.
Se, em geral, Marx se apóia na divisão do trabalho para afirmar a
produtividade (a produção de mais-valia) do trabalhador que contribui na produção de
mercadorias, mesmo que indiretamente, como o faxineiro da fábrica, ele no entanto se
apoiará antinomicamente na mesma divisão do trabalho para afirmar a própria distinção
entre produtivos e improdutivos de modo a delimitar os produtivos à classe
trabalhadora. Ao refutar, por exemplo, que o magistrado seja reputado como produtivo
pela produção supostamente ser quase impossível sem ele, Marx irá afirmar que:
Esse trabalho com participação indireta na produção (e constitui apenas parte do trabalho improdutivo) é o que chamamos de trabalho improdutivo. Ou, do contrário, ter-se-ia de dizer que o camponês é um produtor direto de justiça e assim por diante, pois sem ele o magistrado não poderia absolutamente viver. Sandice!168.
Do mesmo ponto de vista, tentando refutar a qualificação de produtivos a
governantes e outras categorias, ele aponta que:
Por isso, de modo algum se suprime a diferença entre trabalho produtivo e improdutivo; pelo contrário, essa diferença se revela resultado da divisão do trabalho e até aí incentiva a produtividade geral dos trabalhadores, tornando o trabalho improdutivo função exclusiva de uma parte dos trabalhadores, e o produtivo função exclusiva da outra169.
Em uma passagem de Teorias da Mais-Valia em que tenta refutar a
produtividade de, por exemplo, um soldado, acrescenta ainda algumas idéias bastante
subjetivas e relativas à distinção entre produtivos e improdutivos: a de custos eventuais
de produção, de relações sociais deficientes, e de males da sociedade.
Smith diria que a atividade do soldado produz defesa, mas não cereais. Restabelecida a ordem no país, o lavrador continuaria a produzir cereais, sem ser constrangido a produzir, de quebra, a vida, isto é, a manutenção dos soldados. O soldado faz parte dos custos eventuais de produção, como grande parte dos trabalhadores improdutivos que nada produzem eles mesmos, nem intelectual, nem materialmente, mas só são úteis, necessários, em virtude das relações sociais deficientes, devendo sua existência a males da sociedade170.
Não é preciso dizer que do ponto de vista do capitalista, que é o ponto de vista
a partir do qual Marx formula sua definição fundamental de trabalho produtivo, os
próprios trabalhadores considerados produtivos não estão imunes a serem tidos como
custos eventuais de produção, uma vez que seu emprego na produção ou na fábrica não
seja mais necessário (pensemos hipoteticamente no faxineiro que não tem mais o que
167 Marx (1980b, p.277).168 Marx (1980b, p.276).169 Marx (1980b, p.280).170 Marx (1980b, p.271).
Teorias da Mais-Valia Difusa
59
limpar pelo processo produtivo não espalhar mais pó, por exemplo). A idéia de custos
eventuais e de relações sociais deficientes parte implicitamente de um referente do que
seriam os custos de produção em absoluto e de relações sociais não deficientes, sendo
que ambos são historicamente constituídos, e os custos eventuais de produção estão em
relação direta com as técnicas de organização de trabalho e de produção que existem e
são possíveis num dado momento. Sendo assim, todo custo de produção é eventual,
porque relativo ao nível de organização do trabalho e evolução das técnicas, assim como
só faz sentido falar em relações sociais deficientes se se possui um modelo consensuado
moralmente de relações sociais não-deficientes – trata-se de matéria política, algo
instituído pela vontade humana (doxa), e não uma lei social que seria matéria de uma
objetividade científica como implicitamente deixa a entender Marx no referido trecho.
Se tomarmos em conjunto a posição de Marx diante do faxineiro da fábrica
capitalista e do magistrado podemos chegar a algumas conclusões: o faxineiro teria
participação direta na produção (uma vez que este é considerado produtivo e o
magistrado é considerado improdutivo por não ter participação direta). Mas, de fato, o
que diferenciaria os dois em relação ao processo de produção é que o faxineiro é
empregado (direto) do capitalista e dele recebe salário, enquanto o magistrado vive de
impostos e não está subordinado (diretamente) ao capitalista. Sendo assim, existiria uma
correlação direta entre produção e subordinação ao capital em Marx, a tal ponto que a
produção, ou a esfera da produção, acabaria sendo definida implicitamente por essa
subordinação. A divisão do trabalho torna o magistrado improdutivo, ao mesmo tempo
em que é a causa do faxineiro continuar sendo produtivo. Por um caminho diferente,
podemos então concordar com João Bernardo, e em última análise a distinção entre
trabalhador produtivo e improdutivo distingue aqueles que participam do controle das
instituições do capitalismo (Estado amplo e restrito nos conceitos de Bernardo) e
aqueles que não participam do controle delas171. Capitalistas, governantes, homens do
poder, de comando, acabam por ser os improdutivos para Marx. Os diretamente
subordinados ao capitalista são os produtivos. Embora Marx não utilize esse critério
para distinguir produtivos de improdutivos, em última análise essas duas categorias se
distinguem pela relação de comando e subordinação (excetuando os trabalhadores
improdutivos considerados assim por seu processo de trabalho se dar num modo de
produção pré-capitalista).
171 Cf. Bernardo (1991b, p.182).
Teorias da Mais-Valia Difusa
60
Pode-se argumentar, tomando os mesmos exemplos que utilizamos
anteriormente, que o faxineiro produz mais-valia, e o magistrado não. Mas qual seria
afinal a comprovação empírica de que o faxineiro produziria mais-valia?
João Bernardo argumenta que “o trabalho produtivo obedece às pressões para
o aumento da produtividade, em sistema de mais-valia relativa, ou para aumento da
intensidade de trabalho e/ou extensão da jornada de trabalho, em sistema de mais-valia
absoluta”, portanto, seria a “organização do trabalho, os seus ritmos, os tipos de
disciplina impostos que permitem distinguir o trabalho produtivo da atividade
improdutiva”172. Para o argumento ser completamente válido, restaria saber se os
trabalhadores improdutivos (que não produzem mais-valia) na empresa capitalista
também não poderiam estar submetidos a processos de racionalização e disciplina iguais
aos dos produtivos; e se não haveria produção de mais-valia fora da organização de
trabalho disciplinar capitalista. Ou seja, João Bernardo parte de pressupostos que
tornam sua proposta de comprovação empírica no mínimo lacunar. Ela remete à
necessidade de uma comprovação empírica de que certas formas de disciplina e
organização do trabalho estariam vinculadas somente à extração de mais-valia e de que
a produção de mais-valia estaria necessariamente vinculada a determinadas formas de
disciplina e organização do trabalho.
Na abordagem de Harry Braverman, com o aumento da produtividade a massa
de trabalho improdutivo, na busca de uma parte do excedente, teria aumentado
enormemente. E esse trabalho improdutivo no âmbito do capital, trabalho também
assalariado, estaria submetido às mesmas formas de racionalização e disciplina do
trabalho produtivo (logo a organização e ritmos de trabalho não determinariam
empiricamente quem produziria mais-valia, quem seria produtivo). Se Marx dizia que
era uma infelicidade ser trabalhador produtivo justamente pelos produtivos estarem
submetidos a uma disciplina e ritmo opressivos, enquanto os improdutivos não, para
Braverman essa distinção não existiria mais, e a infelicidade estaria em ser
simplesmente trabalhador assalariado, pois grande parte dos improdutivos estaria
submetida à mesma organização e ritmos opressivos173.
Porém, o que mais nos interessa é indicar que a observação empírica proposta
por João Bernardo para determinar quem produz e quem não produz mais-valia seria
ainda assim aplicável apenas em nível de unidade de produção, e tendo-se uma
172 Bernardo (1991b, p.191)173 Cf. Braverman (1987).
Teorias da Mais-Valia Difusa
61
definição restrita desta, legada à formalidade jurídica, a qual pensamos não ser a
concepção de unidade de produção dele. Tal observação empírica deixa de fora uma
gama de atividades, cada vez mais expressivas e significativas, que produziriam valor e
mais-valia, a maioria delas não remuneradas – como o próprio João Bernardo aponta ao
afirmar que através da sua opinião os consumidores são integrados gratuitamente no
sistema de controle de qualidade da empresa174 – , e que os pós-operaístas têm
relacionado a conceitos como trabalho imaterial, intelectualidade de massa, general
intellect, fábrica difusa; e com a idéia de que no pós-fordismo a vida é posta a
trabalhar. Alguns exemplos, apenas a título ilustrativo, seguem abaixo.
O coolhunt175 além de trazer um exemplo bastante nítido da idéia da vida posta
a trabalhar, talvez seja a melhor ilustração do empreendimento capitalista como captura
de fazeres e atividades constituídos externamente à empresa capitalista e ao próprio
tempo de trabalho. Ele pode ser considerado um irmão mais novo da atividade de caça-
talentos, própria da indústria cultural. Mas diferentemente de seu irmão mais velho, o
cool acaba sendo uma noção claramente mais despersonalizada e social do que o
talento. Encontrar ou descobrir o cool significa encontrar um fluxo semiológico (de
objetos-signo) em seu estado inicial, para capturá-lo a fim de extrair lucro dele. Mesmo
que encontrá-lo signifique, como alguns coolhunters afirmam176, encontrar a pessoa
cool, esta, ao contrário do “artista” que porta o “talento”, não pode ser e não é posta a
“trabalhar” para a empresa... exatamente porque ela não passa, na melhor das hipóteses,
do ponto inicial de um fluxo, e é esse fluxo que é necessário ser capturado e posto a
“trabalhar”. O valor é “produzido” assim, em grande parte, fora do âmbito da empresa,
nas ruas, nos bairros, nos espaços de socialização, mesmo nos guetos. Como aponta
Malcom Gladwell, já foi o tempo que o cool era produzido pela indústria da moda num
processo de cima para baixo. Agora essa “produção” é feita nas ruas... Uma empresa
pode acelerar o fluxo, mas não fabricar o cool. Ela não tem controle sobre ele, estando
muitas vezes à mercê de um grupo qualquer de adolescentes. O coolhunt mostra
também de forma bastante nítida como o processo de feedback do consumidor não é
mais do que uma forma metódica de incorporação do “consumidor” no “processo
produtivo”. Consumo e produção se misturam de tal forma que torna a hipótese de
produção de valor em um lócus ou esfera específica praticamente insustentável. E se
174 Cf. Bernardo (2004).175 Para uma explicação bastante didática do que é coolhunt ver Klein (2002).176 Cf. Gladwell (1997).
Teorias da Mais-Valia Difusa
62
quisermos tratar em termos de “unidade de produção”, o coolhunt mostra que ela vai
além das atividades remuneradas. Enquanto os coolhunters são empregados ou
trabalhadores autônomos remunerados, os negros dos guetos ou os jovens que nas ruas
ou em qualquer lugar produzem o cool não recebem qualquer remuneração.
Adam Arvidsson nos fornece outro exemplo no seu estudo de caso do
lançamento de um novo modelo Fox da Volkswagen, que ficou conhecido como Projeto
Fox. O projeto consistia no que é chamado em publicidade e marketing de event bureau,
eventos que reúnem pessoas e os produtos em um mesmo ambiente, como festas,
exibições, competições esportivas etc. No caso, o Projeto Fox duraria vinte dias em três
distintas locações de Copenhagen, Dinamarca: um hotel, um restaurante e boate, e um
estúdio. A idéia era explorar – e aqui usamos essa expressão propositalmente – a
imagem da criatividade urbana underground de Copenhagen, que se tornara notória.
Para tanto, muito resumidamente, contrataram artistas e pessoas-chaves do underground
de Copenhagen e, logicamente, financiaram os eventos. Como Arvidsson mostra muito
bem, o Projeto Fox se apropriou da criatividade, do estilo, da cultura, da linguagem
produzidos pelo underground de Copenhagen, na qual os remunerados funcionavam
como uma espécie de classe administrativa dessa economia de criatividade, formada
por uma rede de produção imaterial não remunerada177. O objetivo era ligar as formas
de produção criativa (relativamente) autônomas do underground aos circuitos de valor
da economia capitalista, o que o projeto conseguiu com sucesso. O que é importante
frisar é que apenas uns poucos eram remunerados, enquanto o valor era extraído de uma
rede underground muito mais vasta, e da própria vida do ambiente urbano posta em
movimento. O Google e principalmente o Youtube são também exemplos bastante
nítidos de empreendimentos capitalistas cuja “unidade de produção” abarca o tempo de
não-trabalho, a atividade não-remunerada dos próprios usuários. Ao colocar um vídeo
no Youtube um usuário está “trabalhando” para ele.
Nas periferias francesas, em meio às semanas de revolta protagonizadas pela
juventude local entre outubro e novembro de 2005, os próprios jovens filmavam e
gravavam os acontecimentos (pois eles melhor do que ninguém sabiam onde iriam
ocorrer), criavam equipes de segurança para os jornalistas circularem e agências de
entrevistas onde colocavam em contato o jornalista e o perfil que estes buscavam para
entrevistar. Tudo cobrado, evidentemente178. Um embrião de “controle operário” do
177 Cf. Arvidsson (2007).178 Ver “Jovens tiram proveito de distúrbio”, Estado de São Paulo, 11/11/2005, p.A18.
Teorias da Mais-Valia Difusa
63
espetáculo ou a formação de uma classe gestora vinda da base? Ou apenas uma histórica
tomada de consciência de que sua rebeldia e suas práticas produzem valor? Na década
de 1960, o Provos179 – um movimento de juventude holandês de influência anarquista e
situacionista – cobrava para dar entrevista à imprensa e forjava atividades, entre outras
coisas, para cobrar ingresso da imprensa. Jogavam com as regras da sociedade do
espetáculo, e pareciam ter plena consciência do valor que produziam180.
Até mesmo o “ativismo político” começa a ser incorporado diretamente ao ciclo
de produção de valor, em geral valor da marca, de empresas e produtos. Ilustrativo o
caso do artista italiano Graziano Cecchini, que despejou 500 mil bolas de plástico
coloridas em um ponto turístico de Roma para protestar contra o problema da coleta de
lixo na Itália. Ação patrocinada por uma empresa que vende músicas para celular, com o
valor de 20 mil euros181.
Talvez a questão principal em se considerar grande parte das atividades referidas
nos exemplos acima como trabalho produtivo ou não, e que fogem de uma noção
restrita e jurídica de unidade de produção não esteja em se elas produzem mais-valia
(eventualmente), mas sim se se trata de trabalho! Ou seja, se existiria atividade
produtiva, e significativa, mesmo em sentido marxiano, fora do trabalho e da
subordinação direta ao capital. Essa questão abre outras plenamente novas e estranhas à
crítica clássica da economia política. A sociedade e a vida estariam subsumidas ao
capital, não apenas o trabalho. É por isso que vários autores pós-operaístas insistem que
a produção seria também biopolítica, e a passagem da organização do trabalho para a
179 Sobre o Provos, ver Guarnaccia (2001).180 Poder econômico que, sem superestimá-lo, também se mostrou presente em alguma medida no Movimento Passe Livre, pela sua própria atividade. O MPL em Florianópolis conseguiu se constituir em uma força política muito expressiva. A qual acorreram políticos durante as eleições de 2004, e da qual mesmo o Judiciário não se mostrou imune. O espaço que lhe é dado na mídia local, e particularmente o que lhe foi dado após a suspensão da Lei do Passe-Livre no caderno AN Capital do jornal A Notícia, torna plausível a hipótese de que em Florianópolis, uma cidade em que a “produção de fatos” é bastante escassa, o poder constituinte do MPL não seja apenas imediatamente político, mas que também exista como poder econômico, se tornando conseqüentemente poder político... Um jornalista afirmara durante uma manifestação do MPL-Distrito Federal, ocorrida no dia 15 de agosto de 2005, que não era do interesse deles prejudicar o movimento porque, afinal, o movimento fazia vender muitos jornais. O relato foi feito por um militante do MPL de Distrito Federal, com as seguintes palavras: “O J.P. e o L. tinham acabado de ser presos, e tínhamos, consciente e taticamente, ido com o bloco de estudantes pra delegacia mais próxima (...). Quando chegamos à delegacia tava cheio de repórteres lá. Fizemos uma assembléia pra decidir o que fazer. Aí eles ficaram filmando e tirando fotos. Então chegamos pra eles e dissemos -não filma o rosto das pessoas, nem tira fotos da galera agora. Aí ele disse “ok ok”. E nós ficamos pressionando eles. Até que o cara, meio que de supetão, falou: “olha, eu não vou sacanear vocês. Quanto mais manifestações vocês fizerem mais dinheiro nós ganhamos vendendo jornais””.181 “Ativista lança 500 mil bolinhas de alto de escadaria em Roma”. Folha Online, 16/01/2008. Em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u364102.shtml>
Teorias da Mais-Valia Difusa
64
organização da vida seria aquela de um sistema disciplinar a um sistema de controle,
tomando os conceitos de Deleuze e Guattari.
Antinomias entre o presente e o porvir
G.D.H. Cole ressalta que na teoria de Marx o relevo é dado à relação de cada
classe com as forças produtivas, não somente como se encontravam, como existiam,
mas como em processo de vir a ser. A teoria seria dinâmica, assentada numa concepção
da evolução das forças econômicas como destino182. O trecho seguinte do Grundrisse é
bastante ilustrativo a respeito:
Assim como o sistema de economia burguês se desenvolveu para nós apenas por estágios, também o foi sua negação, a qual é seu resultado derradeiro. Estamos ainda interessados no momento com o processo direto de produção. Quando consideramos a sociedade burguesa em longo prazo e como um todo, então o resultado final do processo de produção social sempre aparece como a própria sociedade, isto é, o próprio ser humano nas suas relações sociais. Tudo que tem uma forma fixa, tal como o produto etc., aparece meramente como um momento, um momento que se esvai, nesse movimento. O próprio processo direto de produção aqui aparece apenas como um momento. As condições e objetificações do processo são elas próprias igualmente momentos dele, e seus únicos sujeitos são os indivíduos, mas indivíduos em relações mútuas, as quais eles igualmente reproduzem e produzem em nova forma. O processo constante do seu próprio movimento, no qual eles se renovam ao renovarem o mundo da riqueza que eles criam183.
Marx não pensa apenas a condição econômica presente, mas projeta a
evolução das forças econômicas. Ele foi aquele socialista no seu tempo que, de certo
modo, tudo entreviu sobre o futuro do capitalismo, embora muitas vezes sem levar suas
reflexões às últimas conseqüências. O intensamente utilizado pelos pós-operaístas
“Fragmentos sobre as Máquinas” do Grundrisse sendo talvez o exemplo mais claro hoje
em dia de uma reflexão que antecipou uma evolução do capitalismo, a qual Marx
182 Cf. Cole (1955).183 Em <http://www.marxists.org/archive/marx/works/1857/grundrisse/ch14.htm#iii4>. “As the system of bourgeois economy has developed for us only by degrees, so too its negation, which is its ultimate result. We are still concerned now with the direct production process. When we consider bourgeois society in the long view and as a whole, then the final result of the process of social production always appears as the society itself, i.e. the human being itself in its social relations. Everything that has a fixed form, such as the product etc., appears as merely a moment, a vanishing moment, in this movement. The direct production process itself here appears only as a moment. The conditions and objectifications of the process are themselves equally moments of it, and its only subjects are the individuals, but individuals in mutual relationships, which they equally reproduce and produce anew. The constant process of their own movement, in which they renew themselves even as they renew the world of wealth they create” (Marx, 1973).
Teorias da Mais-Valia Difusa
65
abandonou e não levou às últimas conseqüências. Talvez, nesse caso, por ter percebido
que esse futuro que ele antevira levaria a formulações que se chocariam com conceitos-
chaves para analisar o capitalismo de seu tempo, e, mais importante, para reforçar a luta
da classe com a qual ele se identificava no seu presente – a escolha acertada era sem
dúvida agir no mundo em que vivia, e tentar formular uma teoria crítica compatível com
o imaginário da classe trabalhadora existente em seu tempo.
Enquanto a teoria e o pensamento de Proudhon partia da e se voltava mais
diretamente para a classe trabalhadora que formava o movimento operário do seu
tempo, que na França mais do que nos outros países tinha nos artesãos sua força
quantitativa e qualitativa, e que até mesmo aumentara em número depois da Revolução
Industrial, Marx, concebendo mais dinamicamente as relações de classe, partia do
processo de extinção dos artesãos, resultado do desenvolvimento das forças produtivas e
do modo de produção capitalista. Sua teoria e pensamento se voltavam mais diretamente
para o proletariado industrial em processo de formação enquanto classe. Uma certa
diferença de idade entre Proudhon e Marx certamente também ajuda a explicar a teoria
proudhoniana ser mais compatível com os trabalhadores de ofícios e oficinas ainda
artesanais – e compatível porque partia da prática e do imaginário destes. Marx, como é
sabido, analisa o modo de produção capitalista como força dominante, hegemônica,
embora ainda minoritária quantitativamente.
Já em Miséria da Filosofia Marx expunha algumas características do
capitalismo que viriam a se tornar mais evidentes e dominantes com a emergência do
chamado capitalismo monopolista, no decorrer do século XX. A fórmula
baudrillardiana de que o sistema de necessidades é produto do sistema de produção184,
vinda da sua análise do capitalismo monopolista, já era antecipada em muito por Marx:
O consumidor não é mais livre que o produtor. Sua opinião repousa sobre seus meios e suas necessidades. Uns e outros são determinados por sua situação social, que depende ela mesma da inteira organização social. (...) O sistema inteiro de necessidades está fundado sobre a opinião ou sobre toda a organização da produção? No mais das vezes as necessidades nascem diretamente da produção, ou de um estado de coisas baseado na produção. O comércio do universo rola quase inteiramente sobre as necessidades não do consumo individual, mas da produção185.
184 Ao contrário de outros autores que apontaram a existência de necessidades como sendo fruto da produção, Baudrillard ressalta que se trata de algo diferente: “o sistema das necessidades é que constitui o produto do sistema de produção” (Baudrillard, 1995a, p.74). Dito de outro modo, a consumatoriedade seria um modo estrutural da produtividade. Consumo e produção aparecem como esferas homólogas em termos de modalidades estruturais, cuja estrutura é a do modo de produção, uma vez que o consumo é concebido como produção (de signos) também em vias de sistematização na base da generalização do valor de troca (dos signos). Cf.Baudrillard (1995b).185 Marx (2004, p. 36).
Teorias da Mais-Valia Difusa
66
E ainda:
O que é que mantinha a produção em proporções justas ou aproximadamente justas? Era a demanda que comandava a oferta, que a precedia. A produção seguia passo a passo o consumo. A grande Indústria, forçada pelos próprios instrumentos que possui a produzir em escala cada vez maior, não pode mais esperar a demanda. A produção precede o consumo, a oferta força demanda186.
Esses apontamentos em Miséria da Filosofia são parte da apreciação de que no
capitalismo o fim da produção é a própria produção – a produção pela produção como
diria no Capital187. A acumulação pela acumulação, a riqueza pela riqueza, e a produção
pela produção marcariam o capitalismo, em relação aos “modos de produção”
anteriores.
No entanto Marx não leva às últimas conseqüências, ou à última análise, essas
observações. Essa especificidade cria um rasgo radical entre o capitalismo e outros
“modos de produção”188. Afirmar que no capitalismo a produção tem fim nela mesma é
perceber que nele, como tendência que se realiza, a produção perde um referente – um
fim – externo. Dizer que o sistema de necessidades ou o consumo é função ou produto
do sistema de produção, implica em admitir a perda de referente (de um fim exterior a si
mesmo) que estaria presente nos outros modos de produção – e que os faziam
exatamente por isso serem modos de produção no sentido integral, genuíno, da
expressão. Ora, o capitalismo desse ponto de vista não é assim outra coisa que a
autonomização da produção, significando que ela produz seus próprios supostos
referentes (fins externos). Esses referentes (riqueza, valor de uso, necessidades, etc.)
passam a ser da ordem do simulacro189, uma vez produzidos pelo próprio sistema de
produção para se fundamentar, justificar e legitimar. Mais precisamente, para se 186 Marx (2004, p. 63).187 “Mas, ao personificar o capital, o que o impele não são valores de uso de sua fruição e sim o valor de troca e sua ampliação. Fanático da expansão do valor, compele impiedosamente a humanidade a produzir por produzir, a desenvolver as forças produtivas sociais e a criar as condições materiais de produção, que são os únicos fatores capazes de constituir a base real de uma forma social superior, tendo por princípio fundamental o desenvolvimento livre e integral de cada indivíduo. O capitalista é respeitável apenas quando personifica o capital. Nessa função, partilha com o entesourador a paixão da riqueza pela riqueza. Mas, o que neste é mania individual, é naquele uma resultante do mecanismo social. O capitalista é apenas uma das rodas motoras desse mecanismo. (…) Acumulação pela acumulação, produção pela produção é a fórmula com que a economia clássica expressou a vocação histórica do período burguês. Em nenhum momento ela se iludiu a si mesma a respeito das dores que causa o nascimento da riqueza”(Marx, 1980a, pp. 688; 691-2). Ou ainda no Grundrisse: “aumentar a riqueza é um fim em si mesmo” [“growing wealthy is an end in itself”].188 Podemos falar de um modo de produção quando a produção se torna fim em si mesma?189 Como explica Baudrillard, dissimular é fingir não ter aquilo que se tem. Simular é fingir ter aquilo que não se tem. Mas simular não é simplesmente fingir. Quem simula uma doença determina em si alguns sintomas, não deita simplesmente na cama fingindo estar doente. Como percebe Baudrillard, fingir ou dissimular deixa intacto o princípio de realidade, a diferença é apenas disfarçada, mas permanece clara. A simulação, ao contrário., coloca em xeque a diferença entre o “verdadeiro” e o “falso”, entre o “real” e o “imaginário”, uma vez que o sintoma produzido é “verdadeiro”. Cf. Baudrillard (1981).
Teorias da Mais-Valia Difusa
67
fundamentar, justificar e legitimar enquanto produção! Para se apresentar como
produção, como processo chamado a satisfazer necessidades, externas a si. Entretanto,
os referentes passarem à ordem do simulacro – uma vez que a produção de fato passa a
ser seu próprio fim – , significa que a própria produção passa à ordem da simulação. Já
não se trata mais de produção ou de “modo de produção” no sentido pleno. É por isso
que Mészáros, percebendo como a produção no capitalismo se descolou do valor de uso
e das necessidades humanas, tem afirmado que não se trata mais de “produção
genuína”190; ou que Baudrillard declarara mais provocativamente o “fim da produção”,
afirmando também o capitalismo antes como um modo de dominação e reprodução do
que um modo de produção191.
O conceito de trabalho produtivo de Marx, como trabalho que produz mais-
valia, como já apontamos, elege como definidor, e essencial, justamente o caráter auto-
referencial da produção capitalista, e nesse sentido aponta essa diferença fundamental
entre esse “modo de produção” e os demais: o valor de uso, o produto, as necessidades,
não são mais referentes na produção capitalista. Mas o sentido social dessa
“autonomização da produção”, da sua libertação de referentes, é o de que a produção –
o seu modo, e o seu fim em si mesmo – passa a subordinar e subsumir o social e o
político. A criação de emprego, produzido por um crescimento, que aparece como uma
das principais questões sociais, ilustra como o social se encontra subsumido na
produção, ou melhor, no simulacro da produção.
Marx iria afirmar também em Miséria da Filosofia que: “O produto que se
oferece não é útil em si mesmo. É o consumidor que nele constata utilidade”192. Aponta
assim que a utilidade e o valor de uso são, em certo sentido, matéria subjetiva. Mais
ainda, a interpretação que nos deixa é a de que o valor de uso não se constitui antes e
nem sem a interação, de alguma ordem, com o consumidor, seja mesmo a interação do
objeto com o consumidor. Isso permite interpretar ou concluir também que a esfera de
produção de valor seria mais ampla do que a atribuída pelo próprio Marx em seus
escritos (e separar produção e realização não passaria de um recurso retórico uma vez
afirmado que um produto não possui valor de uso em si). Ou seja, o valor seria um
produto social em um sentido muito mais amplo do que produto de uma relação social
190 Cf. Mészáros (2002).191 Cf. Baudrillard (1996).192 Marx (2004, p.35).
Teorias da Mais-Valia Difusa
68
entre patrão e empregado ou fruto da cooperação de trabalhadores num processo de
trabalho.
Como Marx constata já na década de 1840, a grande Indústria “força a
demanda”. Ela precisa constituir a demanda, criar o próprio mercado. E criar o próprio
mercado significa também produzir o consumidor193. O marketing surge dessa
necessidade, e da tentativa de conquistar uma posição ideal monopolista. Sendo a
demanda a principal área de incerteza das empresas, o marketing aparece como tentativa
de reduzir o seu caráter autônomo, ou aleatório, e nos anos 1970 já era o segundo setor
das empresas em dimensão, perdendo apenas para a fábrica194. Setor que continua a
crescer, deixando até mesmo de ser setor e se tornando uma própria indústria. Nos anos
1990 ganha predominância tal, que empresas subcontratam fábricas, sendo a etapa
fundamental da sua produção, da produção de valor, o design, a concepção e o
branding195. Cresce a tendência da empresa, do negócio, se constituir inicialmente pelas
relações com o cliente/consumidor, ou seja, o estratégico e principal do
empreendimento capitalista sendo nesses casos – e não só nesses – a produção de
relação social; é nela que primordialmente se encontraria o valor196.
Ora, usando os termos de Marx, se uma das funções do marketing é reduzir a
autonomia da demanda, ou melhor, diminuir sua aleatoriedade, poderíamos dizer que
uma das suas funções é fazer o consumidor constatar utilidade. Ora, se a “utilidade” é
criada/produzida (também) no marketing – já que ela não existe per se no produto e a
grande indústria demanda a demanda – ela é uma espécie de ilusão do valor de troca,
um simulacro, não é externa à necessidade de reprodução do capital e do sistema de
produção.
O pensamento de Marx é antinômico à medida que ele concebe a perda de
referência externa ao sistema de produção sob regime capitalista – a produção pela
produção, o advento da indústria do inútil e socialmente nocivo – porém continua
utilizando os conceitos que buscavam identificar os referentes da produção considerada
193 A obra de Ivan Illich é em grande parte uma análise crítica da produção do consumidor, da perda da capacidade e habilidade das pessoas e comunidades constituírem suas vidas autonomamente, de autodeterminar suas interrelações com o mundo. Processo de produção do consumidor requerido pelo capitalismo monopolista, em que o indivíduo e a comunidade se tornam dependentes de respostas industrializadas, heterônomas, para sua reprodução e sobrevivência.194 Cf. Braverman (1987).195 Cf. Klein (2002); Fontenelle (2002).196 Cf. Rifkin (2001). Poderíamos muito bem dizer, invertendo o discurso mais comum, que a produção de valor se daria assim na constituição dessa relação social que produz o cliente/consumidor e que a realização do valor se daria na fabricação do produto ou na prestação de serviço decorrente.
Teorias da Mais-Valia Difusa
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trans-historicamente (valor de uso, riqueza, necessidades), como se a posição deles no
sistema de produção fosse a mesma – a externalidade desses referentes desaparece no
capitalismo e passam a ser criações do mesmo, simulacros.
Como Harry Braverman constatou, a idéia de riqueza das nações havia sido
trocada no meio empresarial e de gestores políticos pela idéia de prosperidade, que por
sua vez nada tinha a ver com a produção de bens úteis e serviços197. Riqueza, no
capitalismo monopolista, já não poderia ter o mesmo sentido social, o mesmo
significado que na época de Smith; foram-se os referentes do valor de uso e utilidade
que lhe preenchiam o significado198. Mas o próprio Braverman não escapa à antinomia
de Marx, e a contradição aparece em um intervalo de poucas páginas. Ele aceita e
incorpora a definição de trabalho produtivo de Marx, afirmando que a análise de
trabalho produtivo e improdutivo empreendida por ele não implicava julgamento quanto
à natureza dos processos de trabalho ou quanto à sua utilidade para os indivíduos ou à
sociedade em geral, como já vimos anteriormente. Mas poucas páginas após descrever
desse modo a definição de trabalho produtivo de Marx a tomando para si, numa crítica
ao capitalismo monopolista e a seus ideólogos contemporâneos ele usa como referência
para essa crítica a noção de “trabalho socialmente útil”:
E a própria idéia de “riqueza das nações” desapareceu, suplantada pelo conceito de “prosperidade”, noção que nada tem a ver com a eficácia do trabalho na produçãode bens úteis e serviços, mas que se refere à velocidade do fluxo dentro dos circuitos do capital e mercadorias do mercado.Por conseguinte, as enormes quantidades de trabalho socialmente inútil que entram nesta circulação, estão nas mentes dos modernos ideólogos do capital misturadas com os processos gerais do trabalho, assim como estão misturadas nas mentes dos administradores. Todos os processos de trabalho são considerados igualmente úteis – inclusive aqueles que produzem, concretizam ou desviam o excedente. As formas de trabalho produtivo e improdutivo estão confundidas, nas firmas individuais e na Economia como um todo, em igual nível199.
Ora, se os capitalistas estivessem confundindo trabalho produtivo (que produz
mais-valia) com improdutivo dentro de suas empresas, tanto pior para eles, e não
haveria motivo para criticá-los de uma perspectiva anticapitalista. Braverman os critica
por serem indiferentes ao trabalho produtivo e improdutivo no que o primeiro seria
socialmente útil e o segundo não. Ou seja, corrobora uma concepção de trabalho
produtivo relacionada de alguma forma à utilidade e com alguma referência a um social,
197 Cf. Braverman (1987).198 Sobre riqueza e valor de uso, Marx, em sua Crítica ao Programa de Gotha, se contradiz ao afirmar ora que “valor de uso é riqueza real” e ora que “o trabalho isolado pode criar valores de uso, mas não riqueza nem cultura”. Cf. Marx (1875).199 Braverman (1987, p.352).
Teorias da Mais-Valia Difusa
70
o que se choca com o que afirmara anteriormente sobre a definição marxiana de
trabalho produtivo assumida por ele.
Poderíamos perguntar, fazendo certo coro com Baudrillard, que se o capital se
mostra indiferente entre um “trabalho produtivo” e um “improdutivo”, como aponta
Braverman, não seria porque o essencial é que eles sejam ambos, antes de tudo,
“reprodutivos”?200
Um pragmatismo em Marx
Marx escreve para uma classe. Mais do que no sentido de ser lido por essa
classe, ele escreve para os interesses e segundo as perspectivas dessa classe. Isso é
notório. Menos notório é que a autoproclamada cientificidade da sua obra não
implicava, para ele, uma suposta “neutralidade”, digamos que política, da mesma.
Contrapunha a sua ciência à ciência da classe burguesa, desenvolvida pelos
economistas, como indicado em Miséria da Filosofia:
Os economistas como Adam Smith e Ricardo, que são os historiadores desta época, não têm outra missão se não a de demonstrar como a riqueza se adquire nas relações de produção burguesa, se não formular tais relações em categorias e em leis e demonstrar o quanto estas leis e estas categorias são, para a produção deriquezas, superiores às leis e categorias da sociedade feudal201.(...)Da mesma forma como os economistas são os representantes científicos da classe burguesa, da mesma forma os socialistas e os comunistas são os teóricos da classe proletária202.
Achava que os teóricos socialistas e comunistas ainda não haviam alcançado o
nível científico, de modo a contrapor uma ciência da classe proletária à ciência da classe
burguesa. Foi a essa tarefa que quis se entregar. Tratava-se de transformar o mundo, e
não de interpretá-lo, ao mesmo tempo em que se colocava em defesa e na perspectiva da
classe operária. Pode-se dizer que assim como para Proudhon, para Marx também se
tratava de dar a sanção científica à emancipação da classe trabalhadora – embora a
200 Cf. Baudrillard (1996). Como Naomi Klein aponta, o Banco Mundial considerava “improdutivos” os pescadores atingidos pelo tsunami ao longo do oceano Índico em dezembro de 2004; aqueles que eram improdutivos no conceito marxiano por estarem fora do modo de produção capitalista. “Improdutivos”, do ponto de vista do capital corporativo transnacional, ou dos gestores do capital global, são aqueles que não estão a seu serviço, ou não da forma mais eficiente. No primeiro caso, “improdutivos”, hoje, da perspectiva do capital, são aqueles que não são “reprodutivos”, que não estão a seu serviço, subordinados. Cf. Klein (2007, p.401).201 Marx (2004, p.140).202 Marx (2004, p.141).
Teorias da Mais-Valia Difusa
71
episteme dos dois pudesse ser diversa. O raciocínio e o discurso científicos
sancionariam o poder da burguesia que chegara ao domínio político e social, e poderiam
sancionar também a emancipação do proletariado. Um pragmatismo de Marx aparece
assim na concepção de que as ciências se constroem a partir de interesses de classes e
grupos sociais, o que implica que um dos critérios necessários de verdade é que uma
proposição seja boa, tenha valor prático, para tal grupo ou classe. Seu engajamento
intelectual, científico, portanto não se posiciona de forma estranha, oposta, antinômica
ou paradoxal a seu engajamento mais diretamente político, como na formação da I
Internacional. É em um texto de atuação diretamente política, voltado à constituição de
uma organização de luta dos trabalhadores, o Parti Ouvrière francês, que ele usará a
expressão classe produtiva:
Considerando:Que a emancipação da classe produtiva é aquela de todos os seres humanos sem distinção de sexo e raça;Que os produtores podem ser livres somente quando tiverem posse dos meios de produção;Que há somente duas formas sob as quais os meios de produção podem pertencer a eles1. A forma individual a qual nunca existiu em um estado geral e a qual é eliminada cada vez mais pelo progresso industrial;2. A forma coletiva cujos elementos materiais e intelectuais são constituídos pelo próprio;Considerando,Que essa apropriação coletiva pode surgir somente da ação revolucionária da classe produtiva – ou proletariado – organizada em um partido político distinto,203
Evidentemente, para os trabalhadores, assim como para Marx, classe produtiva
era sinônimo de classe trabalhadora; e classe trabalhadora na sua forma concreta,
sociológica, em movimento, era a classe constituída por trabalhadores que produziam
riquezas materiais, valores de uso, mercadorias, através de uma atividade
caracteristicamente física ou manual.
203 “Considering, That the emancipation of the productive class is that of all human beings without distinction of sex or race; That the producers can be free only when they are in possession of the means of production; That there are only two forms under which the means of production can belong to them: 1. The individual form which has never existed in a general state and which is increasingly eliminated by industrial progress; 2. The collective form the material and intellectual elements of which are constituted by the very development of capitalist society; Considering, That this collective appropriation can arise only from the revolutionary action of the productive class – or proletariat - organized in a distinct political party”. Trecho retirado do Preâmbulo do Programa para um Partido Operário francês (Parti Ouvrier). Esse programa foi redigido em 1880, por Marx e Jules Guesde, com auxílio de Engels e Paul Lafargue. O Preâmbulo foi todo ditado por Marx. Disponível em: <http://www.marxists.org/archive/marx/works/1880/05/parti-ouvrier.htm>. Em uma mensagem do Conselho Geral da Internacional, encabeçado por Marx, publicada em 3 de fevereiro de 1866 no jornal inglês The Workman’s Advocate, se lê como pauta de discussão proposta: “Standing armies: their effects upon the interests of the productive classes”. Mensagem que foi redigida por Cremer, sob instrução e aprovação do comitê do Conselho, ou seja, sob instrução e aprovação de Marx. Disponível em: <http://www.marxists.org/history/international/iwma/documents/1866/appeal-british.htm>.
Teorias da Mais-Valia Difusa
72
Quando discute trabalho produtivo e improdutivo extensamente nas centenas
de páginas de Teorias da Mais-Valia, nitidamente o esforço de Marx é circunscrever a
qualificação de produtivo e por conseqüência de classe produtiva a essa classe
trabalhadora concreta, formada por trabalhadores assalariados que produziam riqueza
material na forma de mercadorias, apropriadas e postas em circulação pelos capitalistas
para os quais vendiam sua força de trabalho. Em grande parte Marx focava argumentos
contra os economistas que pretendiam fundamentar a produtividade de funcionários e
administradores públicos e de atividades e trabalhos intelectuais e imateriais em geral.
Uma síntese dessa batalha pode ser encontrada na digressão sob título “Concepção
Apologética da Produtividade de Toda Profissão”, em Teorias da Mais-Valia.
Como indica já um subtítulo utilizado por Marx, o “trabalho imaterial”
distinguiria as “classes dominantes”204. Levado pela distinção entre “produção material”
– relacionada ao trabalho caracteristicamente manual e físico, de manipulação e
transformação da matéria – e a “produção imaterial”, que se refletia na oposição entre
classe trabalhadora e aqueles que se beneficiariam, se apropriando de alguma forma do
trabalho dela e tendo um padrão de vida em geral muito superior ao da classe
trabalhadora, Marx acaba sobrepondo à distinção produtivos/improdutivos a distinção
material/imaterial, se desviando assim da sua definição fundamental de trabalho
produtivo como aquele que cria mais-valia, independente de sua materialidade. Algo
claro na sua afirmação: “Todos esses que polemizam contra A. Smith olham com ar de
superioridade a produção material e, além disso, tentam equiparar à produção material a
imaterial, ou mesmo nenhuma produção como no caso dos lacaios”205. A sobreposição
se dá, podemos crer, uma vez que, como ele dizia, o modo capitalista de produção na
produção imaterial era desprezível (muito longe do quadro de greves de roteiristas que
paralisam uma indústria de bilhões de dólares hoje em dia).
Argüindo sobre as considerações do economista russo Henri Storch, segundo o
qual Smith haveria cometido um erro ao “não ter distinguido das riquezas os valores
imateriais”206, Marx afirma que Smith examinaria “a produção da riqueza material e
mais precisamente determinada forma dessa produção, o modo capitalista de produção.
204 O subtítulo é: “Henri Storch. Visão Não-Histórica das Relações entre Produção Material e ProduçãoIntelectual. Sua Concepção de “Trabalho Imaterial” das Classes Dominantes”. Cf. Marx (1980b, p.266).205 Marx (1980b, p.192).206 Marx (1980b, p.266).
Teorias da Mais-Valia Difusa
73
Na produção intelectual, outra espécie de trabalho se revela produtivo. Mas Smith não o
considera”207.
Para Storch, com a concordância de Marx, os produtos do trabalho imaterial –
valores imateriais imediatos e não-permutáveis – não estariam submetidos às mesmas
leis que regeriam os produtos do trabalho material – valores materiais e permutáveis.
Por mais que ele tenha definido trabalho produtivo de forma independente da
materialidade do produto ou da produção, na sua contraposição à produtividade de todas
as profissões (ou mesmo de nenhuma) Marx relaciona a produtividade à riqueza
material, à produção material, aquela efetuada pela classe trabalhadora concreta no seu
tempo. Seu discurso e teoria é para ela.
Duas perguntas sobre trabalho produtivo
Em geral, para aqueles que se debruçam sobre o conceito de trabalho
produtivo em Marx, a questão que se coloca, muito mais do que saber o que seria
trabalho produtivo para ele (aquele que produz mais-valia), é determinar qual trabalho
seria produtivo segundo sua definição, isto é, qual trabalho produz mais-valia.
Bem, a preocupação ou assunção implícita na pergunta qual trabalho produz
mais-valia é de que o modelo teórico é que irá determinar qual grupo ou categoria terá,
ou poderá ter, uma prática antagonista, de insubordinação, anticapitalista. Em outras
palavras, contém o pressuposto de que o modelo teórico da mais-valia, e do conceito
marxiano de trabalho produtivo, é o instrumento que determina, que nos faz descobrir o
sujeito político – sujeito político virtual, ou em outras palavras, a classe-em-si. Ora, é a
prática de questionamento do instituído, ou o questionamento pela prática, que constitui
o sujeito político, e é só a partir desse questionamento de um sujeito que assim se faz
político que se torna possível, que ganha sentido, a produção de uma teoria ou modelo
teórico crítico como, por exemplo, a teoria da mais-valia de Marx. O sentimento e a
significação de exploração, assim como a constituição do sujeito político classe
trabalhadora, são anteriores à formulação de um conceito crítico que conota a idéia de
exploração a ser inserida no campo da ciência econômica. Foi o sujeito político que
determinou a crítica da economia política, e a teoria da mais-valia. Mais do que anterior,
207 Marx (1980b, p.266).
Teorias da Mais-Valia Difusa
74
o sujeito político no sentido dado por Castoriadis208, o sujeito rebelde e insubordinado, é
a origem e a condição de possibilidade da teoria, é o referente desta. A pergunta em
questão revela, dessa perspectiva, a tentativa de reencontrar, de produzir um referente
para a teoria. Em última análise revela um déficit de referente da teoria.
Da mesma forma que Jean Baudrillard afirmou o valor de uso como projeção e
ilusão do valor de troca209, poderíamos levantar que a classe-em-si, esse ente que a
teoria crítica determinaria, é uma projeção da classe-para-si. Mais precisamente a
classe-em-si é uma projeção da teoria crítica marxista e anarquista que só pôde emergir
como idéia e determinação pela existência de uma classe-para-si, de uma classe
sociológica, de uma classe concreta, enquanto movimento de insubordinação
autoconsciente.
A teoria da mais-valia e do trabalho produtivo marxiana ou proudhoniana
surge no quadro teórico que objetiva sancionar cientificamente a emancipação do
proletariado, um sujeito político. Esse sujeito político, na forma de uma classe
sociológica, autoconsciente e que se revolta e luta, era referente de Marx, Hodgskin e
Proudhon, e não a teoria um referente para se determinar uma suposta classe concreta,
um suposto sujeito político potencial e destinado a se revoltar, agir, resistir e
transformar. Os conceitos e formulações de mais-valia e trabalho produtivo eram
primordialmente parte daquela luta de classes.
Assim como Foucault indicava que a pergunta a ser feita diante das tentativas
de estabelecer o marxismo como discurso científico era a quem e a que tipo de saber se
buscava assim “menorizar”210, os conceitos e definições de trabalho produtivo da
economia política e de sua crítica devem ser entendidos da mesma forma numa relação
e objetivo de poder. As definições que limitam o produtivo/improdutivo buscam ao
mesmo tempo valorizar um grupo ou classe e “menorizar” outro. Esse é o objetivo
pragmático por trás dos discursos científicos que buscam fundamentar essas
delimitações.
As antinomias que vimos em Marx, quanto à distinção produtivo/improdutivo,
são antinomias de caráter lógico, formal, mas não se configuram como antinomias da
perspectiva do objetivo da delimitação produtivo/improdutivo como constituinte de uma
representação coletiva de e para um grupo social, ou seja, não da perspectiva de
208 Cf. Castoriadis (1991).209 Cf. Baudrillard (1995b).210 Cf. Foucault (1984).
Teorias da Mais-Valia Difusa
75
constituição de mito no sentido soreliano. A antinomia entre a definição marxiana
rigorosa de trabalho produtivo e a qualidade de produtivo relacionada à materialidade
do produto e do trabalho, assim como a antinomia da divisão do trabalho fundamentar
ao mesmo tempo a qualidade de produtivo e improdutivo são particularmente
ilustrativas quanto a isso. Da perspectiva da delimitação da qualificação de produtivo a
uma classe trabalhadora concreta, isto é, se o objetivo é elevar e reforçar o status de
um grupo social como os produtores da sociedade, tendo assim um valor prático, não
há antinomia211.
A perda de uma classe concreta como referente se por um lado gera a busca
ilusória de recriá-la pela teoria – como a pergunta quem produz mais-valia traz implícita
– , por outro lado leva a autores marxistas mais heterodoxos, normalmente vinculados a
uma perspectiva autonomista, a criarem formulações teóricas que, se analisadas,
espelham essa ausência.
É assim que pode ser lido também o espaço ganho pelo abstrato conceito de
multidão entre pós-operaístas. Ao contrário de classe trabalhadora, que vinha a ser um
conceito mais social e sociológico do que filosófico, o uso da noção ou conceito de
multidão por pós-operaístas antes de tudo reflete e explicita uma ausência social e
sociológica. Ele não se contrapõe ao conceito de classe trabalhadora ou proletariado,
mas, ao passo que pretende explicitar e lidar com a pluralidade desta212, expõe também
a sua indefinição.
Da mesma forma, o conceito de proletariado de Michael Hardt e Antonio
Negri mostra-se vago de modo que, o que podemos apreender dele, antes de tudo, é a
perda de um proletariado concreto como referente. Na definição deles o proletariado é
“uma vasta categoria que inclui todo trabalhador cujo trabalho é direta ou indiretamente
explorado por normas capitalistas de produção e reprodução, e a elas subjugado”213.
Proletariado torna-se apenas um signo de história e de teoria crítica, um signo de sujeito
potencialmente político. A definição de Negri e Hardt é vaga principalmente na medida
em que deixam em aberto o que seria estar subjugado a normas capitalistas de produção
211 João Bernardo entretanto procura mostrar outra antinomia no pensamento de Marx, no que ele acabaria por incluir os gestores da empresa na categoria de produtivos, junto aos trabalhadores. Cf. Bernardo (1977).212 Pluralidade já apontada por Proudhon, não sendo em si um fenômeno pós-fordista. Voltaremos a isso no capítulo VIII.213 “we understand proletariat as a broad category that includes all those whose labor is directly or indirectly exploited by and subjugated to capitalist norms of production and reproduction” (Hardt; Negri (2001, p.52). Deve-se ter claro também que o conceito de trabalho para os pós-operaístas é amplo, incluindo atividades e fazeres que tradicionalmente são postos na esfera da cultura.
Teorias da Mais-Valia Difusa
76
e reprodução. A definição parece tão ampla a ponto de não definir, e abranger dentro do
conceito aquilo que João Bernardo chama de classe capitalista dos gestores214. Mesma
abrangência do conceito de multidão, que como veremos no capítulo VIII, depende de
uma prática que separe gestores e classe trabalhadora. Na teoria da insubordinação de
John Holloway215, por sua vez, a luta de classes se mantém como conceito embora não
existam classes concretas: as classes se tornam apenas a abstração de pólos de um
antagonismo entre o fazer e o feito216.
Partindo de uma leitura pragmática da obra de Marx, assim como de
Proudhon, e sendo conseqüentes com esse pragmatismo, a pergunta que cabe fazermos,
portanto, não é qual trabalho seria produtivo, ou qual trabalho produziria mais-valia
hoje em dia. A questão não é identificar o trabalho ou atividade que produziria mais-
valia, mas muito mais fundamentalmente saber qual a posição e importância da
categoria trabalho produtivo na cultura e imaginário dos atuais movimentos e grupos
sociais que portam uma insubordinação e um antagonismo ao poder constituído. O que
eles apreendem por trabalho produtivo? Essa categoria ou conceito é importante na
articulação do seu imaginário e projeto, ou na sua luta por hegemonia?
David Harvie adverte que a distinção marxiana de trabalho produtivo e
improdutivo, embora não seja falsa, não seria útil para entender a luta de classes
atualmente. Essa luta de classes estaria para ele relacionada à imposição incessante de
trabalho pelo capital, abrangendo cada vez mais esferas da vida. Concomitantemente
haveria a tendência do capital tornar todo trabalho produtivo de valor. Diante dessa
imposição tendencial do capital, a classe trabalhadora, e a humanidade em geral, lutaria
para ser improdutiva, no sentido marxiano do termo, ou seja, ser improdutiva para o
capital217. Harvie apresenta ainda uma visão heterodoxa da distinção marxiana de
trabalho produtivo/improdutivo. Tanto o trabalho produtivo quanto o trabalho
improdutivo conteriam o seu oposto, podendo ser recuperados e absorvidos pelo capital,
ou libertos do mesmo. Ele dá o exemplo de um movimento revolucionário que se torna
um signo absorvido pelo capital, ajudando a produzir um estilo-mercadoria. A atividade
do movimento, a princípio sendo improdutiva e mesmo antagônica ao capital, passaria a
se tornar uma atividade produtiva. Tal perspectiva certamente converge com a máxima
214 Cf. Bernardo (1991b).215 Cf. Holloway (2003).216 Para uma crítica mais extensa da ausência de classes na luta de classes de Holloway, ver Liberato (2006, pp. 16-21).217 Cf. Harvie (2005).
Teorias da Mais-Valia Difusa
77
que sumariza muito dos postulados pós-operaístas sobre o pós-fordismo, o de que a vida
é posta a trabalhar, e com exemplos que apresentamos anteriormente.
Como lembrou Harry Braverman, a transformação de trabalho improdutivo em
trabalho produtivo, no sentido marxiano do trabalho que está fora do âmbito e do
comando do capital em trabalho que produz mais-valia, constitui o próprio processo de
criação da sociedade capitalista218. O que está implícito na dualidade do trabalho
produtivo em Marx apresentada por Lebowitz – trabalho produtivo para o trabalhador
vs. trabalho produtivo para o capital – é por conseguinte a ênfase no antagonismo
trabalhador vs. capital como uma luta de resistência à absorção ou subsunção, ou
mesmo de êxodo do âmbito do capital, fuga da subordinação ao comando do capital.
Mesma ênfase que também está implícita na visão de luta de classes de Harvie – classe
trabalhadora lutando para ser improdutiva (para o capital) e o capital lutando para tornar
todo trabalho produtivo de valor para si.
Esse deslocamento teórico para uma perspectiva de luta em que o trabalho
aparece como poder constituinte fora de uma subordinação ao capital, e fora de uma
suposta centralidade enquanto produtor de mais-valia, reflete o próprio deslocamento da
proeminência de movimentos sociais e lutas anticapitalistas contemporaneamente; fora
de uma dialética do trabalho produtivo, produtor de mais-valia, que colocava em
questão e ameaçava o capital e se posicionava no centro do processo de produção. As
lutas contemporâneas se caracterizam, relativamente, muito mais em criar e manter
externalidades ao capital. Criar ou manter referentes externos ao sistema de produção e
reprodução do capital.
Marx do porvir, Marx do Grundrisse
Os apontamentos feitos no chamado “Fragmento sobre as Máquinas” do
Grundrisse219 refletem o foco de Marx no desenvolvimento capitalista não apenas no
modo existente, mas no modo que ele tenderia vir a ser.
Nessas anotações, que não serão utilizadas ou desenvolvidas no Capital, Marx
aponta importantes transformações no capitalismo à medida que a “grande indústria”
218 Cf. Braverman (1987).219 Tais partes, cujas idéias exporemos aqui, se encontra entre as páginas 651 e 752 da edição que aqui utilizamos do Grundrisse. Cf. Marx (1973).
Teorias da Mais-Valia Difusa
78
ganha espaço e que a ciência e o conhecimento social são postos em seu favor. A
análise de Marx se detém no caso mais concreto da maquinaria como objetificação
desse conhecimento social que se tornaria força produtiva direta. Porém, como veremos,
ele vai além. Nessas condições, que tenderiam cada vez mais a se estabelecer com a
grande indústria – o que para nós tomaria as feições de um capitalismo monopolista – ,
a absorção do processo de trabalho, no seu caráter material, seria reduzido a um mero
momento de realização do capital. O processo de trabalho perderia assim seu status e
centralidade no processo de produção.
O acúmulo de conhecimento, das “forças produtivas gerais do cérebro social”,
na expressão de Marx, seria absorvido no capital, aparecendo como capital fixo à
medida que entraria no processo de produção como meio de produção. Assim o
“trabalho social geral”, como o acúmulo social da ciência, não se apresentaria no
trabalho mas no capital. Nesse estágio a ciência é nomeada por ele como força
produtiva.
Como conseqüência dessas mudanças o trabalho direto, e sua quantidade,
deixariam de ser o princípio determinante da produção, da criação de valores, uma vez
que reduzido quantitativamente e qualitativamente a um momento subordinado, embora
indispensável, do processo de produção, relativamente ao trabalho científico geral e à
“força produtiva geral que emerge da combinação social na produção total”.
Combinação, ou cooperação, se se preferir, que apareceria, segundo ele, como fruto
natural do trabalho social – embora fosse um produto histórico220.
A criação de riqueza passaria assim a depender mais dessas forças postas em
movimento, dependentes do estado geral da ciência e tecnologia, do que do tempo de
trabalho e da quantidade de trabalho empregada. Nesse estágio o trabalho seria reduzido
à “pura abstração”. O trabalho passaria à condição mais de observador e regulador do
processo de produção. Marx acrescenta ainda que o que vale nesse sentido para a
maquinaria valeria também para a combinação de “atividades humanas e o
desenvolvimento de interações humanas”. Aqui devemos destacar duas observações.
Primeiro, como já dissemos, esse estágio da grande indústria que Marx analisa nessas
passagens do Grundrisse não se resumem ao simples emprego de maquinaria como
nova força produtiva que deixa o trabalho direto como momento subordinado e
secundário no processo de produção. Ele aponta também a combinação/cooperação do
220 Para Marx o capital iria assim na direção da sua própria dissolução como forma dominante de produção. No que ele errou. Cf. Marx (1973).
Teorias da Mais-Valia Difusa
79
trabalho e da atividade social como forças produtivas que fazem do trabalho empregado
e do tempo de trabalho algo subordinado ou secundário no processo de produção. A
segunda observação diz respeito à expressão usada por Marx. O que valeria para a
maquinaria valeria para a “combinação de atividades humanas e o desenvolvimento de
interações humanas”. Marx aí não fala de trabalho, e dada a importância da categoria
trabalho na sua obra, podemos supor que o uso de “atividades humanas” e “interações
humanas” não é sinônimo de trabalho. Ou seja, a combinação das atividades sociais, as
interações sociais, para além do trabalho, do tempo de trabalho, tornar-se-ia força
produtiva a ponto de colocar em plano secundário o trabalho empregado.
Ele desenvolve mais esses pontos ao afirmar, por exemplo, que nesse estágio é
o “indivíduo social” que aparece como a grande pedra angular da produção e da riqueza.
A apropriação de tempo de trabalho, na qual a riqueza na época estaria baseada, tornar-
se-ia segundo ele num “miserável fundamento” diante deste novo fundamento criado
pela grande indústria. E à medida que o trabalho na sua forma direta deixaria de ser a
grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixaria de ser sua medida. Ele indica
assim claramente que a lei do valor e sua teoria do valor-trabalho não teriam mais
respaldo diante do processo de produção na fase da grande indústria.
Quando afirma que o mais-trabalho da massa deixa de ser a condição do
desenvolvimento da riqueza geral assim como o não-trabalho de poucos deixa de ser a
condição do desenvolvimento “dos poderes gerais do cérebro humano”, ele quer dizer
ao mesmo tempo que a ciência e a combinação das atividades humanas ganham
proeminência produtiva sobre o mais-trabalho da massa e que as condições de
desenvolvimento dessas novas potências produtivas se massificam – o tempo de não-
trabalho, momento em que essas potências são desenvolvidas, se alargam à sociedade.
Disso Marx supõe que a produção baseada no valor de troca entraria em
colapso. Para ele o capital cairia assim na contradição de despertar forças sociais
gigantescas para a produção e ao mesmo tempo querer usar ainda o tempo de trabalho
como unidade de medida dessas forças, dadas pelos poderes da ciência e da combinação
social e das interações sociais. Forças essas que seriam despertadas de modo a tornar a
criação de riqueza relativamente independente do tempo de trabalho empregado. Ou
seja, o capital exerceria, na visão dele, um movimento de fuga do trabalho empregado,
Teorias da Mais-Valia Difusa
80
do trabalho direto. Como diria Baudrillard, uma fuga da determinação perigosa do
trabalho produtivo221.
Marx usa apenas uma vez a expressão general intellect, tão referida por pós-
operaístas. Porém a passagem em que ela é utilizada é bastante reveladora:
O desenvolvimento do capital fixo indica a que grau o conhecimento social geral se tornou uma força de produção direta, e a que grau, conseqüentemente, as próprias condições do processo da vida social ficaram sob controle do general intellect e são transformadas de acordo com ele. A que grau as forças da produção social são produzidas, não somente na forma de conhecimento, mas também como órgãos imediatos da prática social, do processo da vida real222
O capital fixo se tornaria “força produtiva direta”. O general intellect
controlaria as condições do processo de vida social e seria ao mesmo tempo seu motor
de transformação. Marx afirma ainda nesse trecho que as forças de produção social são
produzidas não apenas na forma de conhecimento, mas também como órgão imediato
do processo de vida real, da prática social. Ele portanto não limita o general intellect ao
conhecimento científico, que resultará em maquinaria propriamente dita (diferentemente
do que PaoloVirno afirma223). Trata-o como um conhecimento geral social e, além
disso, considera o processo de vida real, a prática social, como força de produção social.
Tais asserções de Marx sem dúvida inspiram e indicam que, no capitalismo, a vida é
posta a trabalhar, para além do tempo de trabalho empregado.
À medida que a produção para a satisfação de necessidades imediatas se
tornaria mais produtiva, uma parcela maior da produção poderia ser direcionada para a
própria necessidade da produção, isto é, a produção de meios de produção. Seria assim
na produção de capital fixo que, para Marx, o capital se colocaria como fim em si
mesmo. A economia em tempo de trabalho seria igual a um aumento do tempo livre.
Tempo livre que seria por sua vez sinônimo de tempo para o total desenvolvimento do
indivíduo. É no tempo livre, tempo de não-trabalho, que o conhecimento social geral, e
portanto as forças produtivas relacionadas a ele, se desenvolveriam. Essa força
produtiva constituída no tempo livre (tempo de não-trabalho), relacionada ao total
desenvolvimento do indivíduo, se mostraria por si mesma, diante da força produtiva do 221 Baudrillard (1996).222 “The development of fixed capital indicates to what degree general social knowledge has become a direct force of production, and to what degree, hence, the conditions of the process of social life itself have come under the control of the general intellect and been transformed in accordance with it. To what degree the powers of social production have been produced, not only in the form of knowledge, but also as immediate organs of social practice, of the real life process” (Marx, 1973).223 Para Virno, Marx teria relacionado o general intellect, enquanto saber social geral, somente à maquinaria enquanto capital fixo. Discordamos dessa leitura de Paolo Virno até porque, como veremos adiante, para Marx, na era da Grande Indústria, o próprio homem se tornaria capital fixo. Cf. Virno (2003b).
Teorias da Mais-Valia Difusa
81
trabalho, como uma força produtiva maior. Do ponto de vista do processo direto de
produção, esse processo de desenvolvimento dado no tempo livre poderia ser
considerado segundo ele como produção de capital fixo, “esse capital sendo o próprio
homem”. Dessa afirmação, além da idéia de capital humano como aponta André
Gorz224, se extrai diretamente o conceito de intelectualidade de massa do pós-
operaísmo, no qual esse capital fixo, capital produtivo, se encarna não em máquinas,
mas no próprio indivíduo social, nas combinações e interações das atividades humanas.
Se é na produção de capital fixo que o capital se coloca como fim em si
mesmo, e a característica de produção pela produção do capitalismo melhor se mostra,
podemos concluir que é pois nessa fase em que as atividades e interações humanas, para
além do tempo de trabalho, se tornariam capital fixo que o capital melhor aparece como
fim em si mesmo. É quando engloba e subsume o conjunto das atividades e tempo
social que o capital aparece em seu auge e mais claramente como um fim em si mesmo,
onde já não existe externalidade à produção.
Marx não deixa de dar indicações sobre uma mudança de subjetividade em tal
estágio de desenvolvimento capitalista. Para ele o tempo livre naturalmente
transformaria seu possuidor em um sujeito diferente. E este entraria no processo direto
de produção como tal sujeito diferente. Esse processo, que criaria esse novo sujeito
seria, segundo ele, um processo disciplinar no que se refere ao vir-a-ser desse sujeito, e
ao mesmo tempo seria prática, ciência experimental e criativa materialmente,
relacionada ao ser humano que veio a ser, em cuja cabeça haveria o conhecimento
acumulado da sociedade. Ele então considera a constituição desse sujeito como um
processo direto de produção (o que não surpreende uma vez que ele havia considerado
essa produção no tempo de não-trabalho, no tempo livre, como produção de capital
fixo).
As reflexões de Marx no Grundrisse que acabamos de ver se distanciam da
crítica sintetizada nas duas páginas da digressão “Concepção Apologética da
Produtividade de Toda Profissão”, em Teorias da Mais-Valia. As visões de Marx no
Grundrisse, no mínimo enfraquecem a base dessa crítica a uma ‘apologia burguesa da
produtividade de toda profissão’. Crítica que implicitamente afirma a produtividade
exclusiva de uma classe, a classe trabalhadora, na sua existência sociológica, na sua
224 Cf. Gorz (2005).
Teorias da Mais-Valia Difusa
82
condição de trabalhadores materiais, assalariados, que efetuam trabalho direto no
processo de produção.
A crítica dessa digressão de Marx em Teorias da Mais-Valia, assim como a
totalidade dessa obra, busca demarcar linhas de classe, e afirmar a produtividade única
da classe trabalhadora; em última análise se tratava de reforçar um imaginário
importante na própria constituição da classe trabalhadora.
Se as linhas de produtividade se tornam difusas com o desenvolvimento da
grande indústria a ponto do tempo de trabalho se tornar um momento secundário do
processo de produção, com o processo da vida social ganhando em importância, a
afirmação da produtividade de toda profissão começa a deixar de ser uma mera apologia
burguesa. No entanto, essas linhas difusas de produtividade dificultam traçar linhas de
classe com base na significação de produtivo e, mais importante, quebram a
sobreposição de improdutivo/produtivo e mando/subordinação. Se no conceito de
proletariado de Hardt e Negri em Empire as linhas difusas de produção de valor estão
compreendidas, no entanto não existem linhas que relacionem/separem mandantes e
subordinados. O antagonismo vai ser remetido a um plano macrossocial e abstrato entre
Império e Multidão, ou entre poder constituído e poder constituinte.
Podemos supor que a escolha de Marx ao abandonar suas reflexões sobre o
capitalismo da grande indústria presentes no Grundrisse é a escolha de não se afastar do
objetivo de prover uma teoria de valorização e suporte a uma classe concreta, portadora
de uma revolta em seu tempo. A escolha foi entre uma teoria crítica com valor prático a
um grupo social presente, e uma que não o teria, projeção de um desenvolvimento que
criaria novas subjetividades.
Mais-valia como conceito político?
Se o trabalho direto tende a dar lugar à combinação das atividades e interações
humanas e ao conhecimento social geral como principal força produtiva, criadora de
riqueza e de valor, logo a reprodução e acumulação de capital não se assenta mais
apenas na mais-valia relativa e absoluta, as formas dadas pelo tempo de trabalho
empregado e sua produtividade. Como vimos anteriormente, como no caso dos rebeldes
nas periferias francesas em novembro de 2005, quando agentes da revolta buscaram
tomar controle e se apropriar do valor que produziam, apreendido pela indústria de
Teorias da Mais-Valia Difusa
83
entretenimento e informação, havia uma produção de valor fora do comando e
subordinação capitalista, e que não estava submetida a seus imperativos de
produtividade. Uma produção de mais-valia que não corresponderia aos critérios de
mais-valia relativa ou absoluta. O fundamento empírico dessa produção de mais-valia,
que não é nem relativa nem absoluta, e que iremos chamar de mais-valia difusa, está na
própria tentativa de reapropriação e tomada de controle por parte dos “produtores”. Essa
mais-valia difusa corresponderia portanto à produção de valor no tempo de não-
trabalho, através da prática social e do processo de vida real. Produção de valor essa que
busca ser identificada, capturada e posta a serviço do empreendimento capitalista, sem
no entanto estar subordinada a seu mando, à sua disciplina e organização.
Pode-se questionar sobre a validade de expandir o conceito de mais-valia além
da forma trabalho assalariado, mais precisamente para uma atividade não remunerada.
Atividade que nem sequer seria propriamente trabalho. No caso dos revoltosos franceses
de que falamos, a partir do momento que filmam eventos e agenciam jornalistas com o
objetivo de remuneração essa atividade passa a ser reconhecida como trabalho. O
mesmo no caso das atividades remuneradas do Projeto Fox, da Volkswagen, em
Copenhagen. A questão que se coloca então é se o conceito de mais-valia se refere à
produção de (sobre)valor ou a uma relação contratual entre capital e trabalho. Se o
conceito de mais-valia só é aplicável às atividades remuneradas, e não às atividades
não-remuneradas que participam do processo de produção de valor, o conceito de mais-
valia, antes de ser um conceito econômico, seria um conceito político (de poder),
definido antes por um contrato entre capital e trabalho – contrato esse que até mesmo
distinguiria tal atividade como trabalho – , e portanto definido por algum nível de
mando do capital e de correspondente subordinação dessa atividade à vontade
capitalista. O entendimento da mais-valia como conceito que revelaria uma relação
política por trás de relações econômicas iria assim ao encontro da possível conclusão
que se chega analisando algumas antinomias de Marx quanto ao conceito de trabalho
produtivo: a relação determinante implícita nas versões antinômicas da sua
conceptualização de trabalho produtivo é a relação de mando e subordinação.
Teorias da Mais-Valia Difusa
84
Parte 2
Teorias da Mais-Valia Difusa:
a hegemonia do trabalho imaterial e a
multidão
Teorias da Mais-Valia Difusa
85
Introdução
A crítica da economia política feita por Proudhon e por Marx foi antecipada e
determinada por um sujeito político, o movimento operário histórico, e sua experiência
vivida. Esse sujeito, que resistia e lutava, era o referente dessas teorias críticas da
economia política. Conceitos e noções como os de trabalho produtivo e classe
produtiva tinham um propósito político, e buscavam ter uma função prática para esse
sujeito: fundamentar e legitimar seu poder político – a subversão de poderes na
sociedade – , e trazer-lhes autoconfiança, tendo em última análise uma função
mobilizadora. Partiam e iam ao encontro da experiência vivida desse sujeito. Hoje,
quando esse sujeito político desaparece, deixa de existir, essa teoria crítica perde seu
referente e, ao invés de ser determinada pela luta e pelos grupos sociais que se
insubordinam, ela busca determinar um sujeito político, ou revolucionário.
O pós-operaísmo, surgido na Itália em meios às fortes lutas sociais naquele
país na década de 1970, em grande parte como continuidade do operaísmo da década
anterior, pode ser considerado como uma corrente filosófica e sociológica que tem
buscado, em detrimento de uma ortodoxia marxista, construir conceitos determinados
por lutas e condições sociais contemporâneas. Em outras palavras, constituir uma teoria
referida a novos ou a um novo sujeito político.
A perda de um protagonismo da classe operária, do trabalhador formal e de
fábrica nas lutas sociais, e o estranhamento desses com um novo sujeito que emergia,
formado por jovens desempregados, precários e trabalhadores do terciário, esteve no
âmago do desenvolvimento dos conceitos e teorias pós-operaístas. Emergência de um
“novo sujeito” e estranhamento presentes no Brasil do século XXI, capturado com
muita felicidade por Edson Miagusko225, através de um acontecimento por demais
ilustrativo: a simultaneidade, proximidade física e distanciamento político da ocupação
de sem-tetos num terreno da Volkswagen em São Bernardo do Campo e da luta dos
operários da empresa contra demissões. As lutas ou questões sociais apareciam
225 Nos referimos à tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, em 2008: Movimentos de Moradia e Sem-Teto em São Paulo: experiências no contexto do desmanche.
Teorias da Mais-Valia Difusa
86
separadas não somente por estarem em cadernos diferentes dos jornais, mas no próprio
imaginário dos operários e sem-tetos, embora na fábrica se debatesse o destino dos
desempregados. Podemos dizer que o pós-operaísmo procura inicialmente dar respostas
políticas a esse estranhamento, além de teorizar a emergência dos novos sujeitos e de
novos terrenos de conflito abertos.
A relevância de se discutir teorias e conceitos pós-operaístas reside também na
visibilidade, difusão, destaque e relativa influência que ele ganhou mundo afora,
inclusive no Brasil, principalmente através da obra de Antonio Negri e o lançamento de
Empire em 2001, de co-autoria com Michael Hardt.
Tratamos de analisar em particular os conceitos de multidão e de hegemonia
do trabalho imaterial, presentes no pós-operaísmo, a partir de uma abordagem
essencialmente pragmatista, ou de inspiração pragmatista. Isto é, uma perspectiva na
qual todo conhecimento, descrição e representação são desde sempre instrumentos que
expressariam e encarnariam propósitos e desejos. Buscamos levantar quais seriam
possivelmente os propósitos expressados e subjacentes aos conceitos e descrições de
multidão e hegemonia do trabalho imaterial, relacionando-os a atores e à significação
de (economicamente) produtivo.
Rodrigo Nunes levanta uma hipótese sobre o significado que poderia ser
atribuído concretamente à idéia de hegemonia do trabalho imaterial para o pós-
operaísmo: o de corresponder ao ambiente político e ao público imediato de onde a
teoria falaria, e ao lugar onde se pretenderia que ela produzisse efeitos práticos226; o que
nos faz levantar a questão da relação dessa teoria e seu valor prático a um grupo social e
buscar responder se seria possível apreendê-la fundamentalmente a partir de um valor
prático que teria a um determinado grupo ou movimento social.
Buscamos, portanto, historicizar o operaísmo e o pós-operaísmo, nas suas
relações (ou não-relações) com lutas, sujeitos e movimentos e sociais, e com uma base
social. Historicização que parte da formação do operaísmo nos anos 1960, passando
pela experiência da Autonomia Operaia na década de 1970 e pela virada do milênio,
quando Antonio Negri acabou sendo identificado como ideólogo, ou intelectual, do que
ficou então conhecido como movimento antiglobalização ou de resistência global, tendo
seu pensamento a princípio relação ou penetração principalmente na rede formada pelos
chamados Centros Sociais na Itália.
226 Cf. Nunes (2007a).
Teorias da Mais-Valia Difusa
87
Embora saibamos que o pós-operaísmo não se reduz ao pensamento de
Antonio Negri, havendo diversas divergências conceituais entre pensadores dessa
escola, nos concentramos nas obras de Negri devido a ser ele o que possui mais vasta
obra e ser o mais influente. No entanto, não descartamos atenção a outros autores pós-
operaístas, como Sergio Bologna, Yan Moulier-Boutang, Christian Marazzi e
principalmente Maurizio Lazzarato, Michael Hardt e Paolo Virno, na análise e
discussão dos conceitos a que nos propusemos227.
Os capítulos seguem uma cronologia, separados internamente em seções que
descrevem as lutas sociais do período (focando naquelas que influenciaram os
operaístas e pós-operaístas), e na teorização realizada por Negri e pelos (pós)operaístas.
Assim, no capítulo IV nos detemos no período de formação do operaísmo nos anos
1960, do surgimento da revista Quaderni Rossi até o fim da revista Classe Operaia. O
capítulo V se refere ao período de existência do grupo político operaísta Potere Operaio,
no final da década de 1960 e início da década seguinte. O capítulo VI traz o restante dos
anos 1970, quando a fluida organização Autonomia Operaia substituiu o Potere
Operaio, marcando a passagem, podemos dizer, do operaísmo a pós-operaísmo. O
capítulo VII trata da década de 1980, na qual Negri esteve preso e no exílio. No capítulo
VIII tratamos das duas últimas décadas, quando os conceitos de trabalho imaterial e
multidão foram propriamente formulados, embora suas gêneses se reportem aos anos
1970. Nesse capítulo analisamos mais detidamente esses conceitos, e pontuamos
algumas antinomias observadas, procurando explicá-las com base em uma leitura
pragmatista. Deixamos o capítulo IX para expormos os pontos de contato entre o
pragmatismo e o pensamento de Negri e dos (pós)operaístas.
227 Utilizamos como material de pesquisa todos os volumes publicados até aqui por Antonio Negri, sejam eles coletâneas de textos ou livros propriamente ditos, assim como todos os seus artigos publicados na revista Futur Antérieur (1989-1998), na qual Lazzarato e Negri formularam o conceito de trabalho imaterial. Utilizamos também diversos livros de entrevistas com Negri até hoje publicados, assim como artigos dele publicados em jornais, entrevistas na internet, entre outros.
Teorias da Mais-Valia Difusa
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Capítulo IV
A Formação do Operaísmo
Contexto histórico
Começamos nossa trajetória histórica ao surgimento do operaísmo, nos anos
1950, quando tem início o chamado “milagre econômico” italiano. Em menos de duas
décadas a Itália passaria de um país de produção essencialmente agrícola a uma das
maiores economias industriais do Ocidente. Em 1961 o número de empregados na
indústria já era superior ao do setor de serviços e agrícola. A rápida mudança produtiva
ocorrida entre 1958 e 1963 foi acompanhada de um massivo fluxo de imigrantes vindos
do sul da Itália ao norte industrializado. No entanto, o aumento da população urbana no
norte não foi acompanhado pelo aumento da infra-estrutura pública das cidades,
deixando essa nova população de imigrantes em precárias e insuficientes condições de
saúde, educação, habitação, transporte etc.228
A década de 1950 foi de reestruturação produtiva nas principais empresas
italianas. A autonomatização e a implantação de mais linhas de montagem levaram a
uma mudança da força de trabalho na fábrica. Os operários qualificados, que
costumavam ser os mais ativos politicamente, diminuíram em número e ficaram mais
228 Cf. Ginsborg (1990, p.212; 216).
Teorias da Mais-Valia Difusa
89
isolados. Em contrapartida, o número de operários semi ou não-qualificados,
executando movimentos repetitivos na linha de produção, aumentou229.
O influxo de imigrantes de procedência rural nos centros urbanos e nas fábricas
do norte da Itália significava a introdução de um trabalhador com uma diferente
subjetividade, com diferentes costumes e tradições em relação ao operariado que até
então era majoritário. Esse novo operário via a fábrica como espaço-tempo que lhe
negava a vida. Havia um repúdio aos ritmos e atividades requisitadas pela linha de
produção taylorista. Aliada às condições objetivas da falta de escola, moradia e de
outras estruturas de bem-estar nas cidades, abriu-se uma era de ações coletivas e lutas
dos trabalhadores que duraria cerca de vinte anos.
O operaísmo tem sua gênese na revista Quaderni Rossi (QR), dirigida por
Raniero Panzieri e cujo primeiro número foi publicado em 1961. Como Negri aponta, o
operaísmo teria surgido acima de tudo como tentativa de dar uma resposta política à
crise do movimento operário oficial durante os anos 1950230. Fugindo do que
considerava ser uma identidade absurda entre classe trabalhadora e partido, e buscando
contrapartidas à crise dos sindicatos e partidos, à separação e distância entre o
movimento real e as organizações representativas da classe trabalhadora, Panzieri
propunha com o QR uma renovação do marxismo a partir da investigação das
condições, estruturas e movimento da base operária, e através da participação nas suas
lutas. A proposta de Panzieri buscava reafirmar o princípio da ação de base como
autonomia das classes exploradas e oprimidas na luta por sua libertação231. Embora
negligenciando o fator migratório232, era essa nova classe operária, com seus
comportamentos e necessidades que seria investigada e apresentada no QR233.
A Fiat, por ser a maior empresa industrial italiana, e pela sua centralidade na
economia do país234, atraía a atenção da esquerda italiana e dos operaístas. Tal atenção
transparecia nas pesquisas apresentadas já no QR. Turim, a cidade-fábrica, sede da Fiat,
em meados dos anos 1960 tinha 60% da população trabalhadora empregada em fábricas.
A Fiat de Mirafiori, nos arredores de Turim, era a maior fábrica do mundo, chegando a
229 Cf. Barkan (1984, p.54).230 Cf. Negri (1980).231 Cf. Wright (2002, p. 18; 21).232 No final dos anos 1970, em retrospecto, Negri afirmaria que a riqueza desse componente migratório no comportamento de classe na Itália fora totalmente subvalorizado pelo operaísmo. Cf. Negri (1980, p.96).233 Além de Panzieri, fariam parte do coletivo editorial Antonio Negri, Mario Tronti, Romano Alquati, Alberto Asor Rosa, Sergio Bologna, entre vários outros nomes.234 Em 1963 e 1964 cerca de 20% do volume total de investimentos na Itália derivavam das escolhas de investimento feitas pela Fiat.
Teorias da Mais-Valia Difusa
90
ter 60 mil trabalhadores, e não sendo sequer a única fábrica da Fiat em Turim235. Nas
próprias palavras de Negri, a Fiat Mirafiori era objeto de fascinação de todos os grupos
de esquerda extraparlamentar nos anos 60 e também 70236. Evidentemente a enorme
concentração operária era um dos motivos que justificavam tal fascínio e atenção.
Indústrias como a Fiat e Olivetti – cujos operários foram estudados por Alquati
e os resultados publicados no QR – não eram exatamente as típicas indústrias italianas.
Mas seus modernos processos produtivos e de valorização, que marcavam uma possível
tendência geral, além de seus tamanhos, as transformaram em um pólo de poder
capitalista. Acrescentado a isso, a tradicional militância dos empregados da Fiat parecia
impermeável à influência das organizações de esquerda, o que era simbólico da crise do
movimento operário oficial na virada dos anos 1950 para 1960. Embora não tenha
ocorrido na Fiat, os conflitos industriais mais agudos de 1959 e 1960 se deram nas
empresas mais avançadas tecnologicamente237.
Em 1960 e 1961 ocorreram intensas lutas trabalhistas na Itália, mas foi em
1962 que se alcançou o recorde do pós-guerra até então, com quase 378 milhões de
horas de trabalho perdidas em greves. O ano de 1962 também viu os trabalhadores da
Fiat reemergirem como protagonistas no movimento operário italiano. O ciclo de lutas
operárias de 1960-1963 rompeu com o padrão da década anterior, em termos de
reivindicações e da natureza de participação de base. Ações começavam
espontaneamente no chão da fábrica, e em alguns casos os trabalhadores nem
informavam os sindicatos sobre a interrupção de uma linha de produção, agindo de
forma autônoma a eles e aos sindicalistas238.
Segundo o historiador Paul Ginsborg o ressurgimento do conflito de classes
nas indústrias do norte da Itália no início dos anos 1960 teria entre as causas: i) a
condição próxima ao pleno emprego na região, o que proporcionava segurança aos
trabalhadores; ii) o repúdio ao ritmo e às condições de trabalho na linha de produção
taylorista; iii) os trabalhadores imigrantes teriam encontrado na fábrica um foco para a
ação coletiva que não havia na comunidade, trazendo à fábrica todo ressentimento sobre
suas precárias condições de vida (moradia, educação, transporte etc.)239.
235 Cf. Bascetta; Bonsignori; Carlini; et al. (2001).236 Cf. Negri (2005d, p.13).237 Cf. Wright (2002, p.35; 47).238 Cf. Barkan (1984, p.56-7).239 Cf. Ginsborg (1990, p.250).
Teorias da Mais-Valia Difusa
91
Um conflito deflagrado em Gênova em julho de 1960, encabeçado por
estivadores e jovens operários, contra o congresso do partido fascista (MSI), realizado
na cidade, teve uma especial importância naquele ano. As ruas de Gênova viraram por
horas um campo de batalha entre a polícia e os manifestantes. O congresso do MSI foi
então suspenso pelo prefeito, mas as manifestações e confrontos se espalharam pela
Itália. A principal central sindical, a CGLI, convoca uma greve que paralisa a Itália,
após manifestantes serem mortos em diferentes cidades. Esses jovens trabalhadores que
protagonizaram a revolta também serão os protagonistas da revolta de Piazza Statuto,
em Turim, em 1962.
Para Negri a revolta dos trabalhadores de Gênova teria demonstrado um
potencial de movimento de massa que seria um incentivo à vontade de investigação e de
organização. Do ponto de vista dele, a revolta de 1960 teve importância excepcional
para construir o clima em que o QR nasceria240.
O ano de 1962 foi o da renovação contratual dos metalúrgicos em nível
nacional. Os trabalhadores da Fiat acabaram aderindo aos chamados de greve, que já
paralisavam outras empresas. No dia 7 de julho a paralisação teve sucesso, e fora da Fiat
Mirafiori e de outras fábricas houve confrontos com a polícia, carros virados e gerentes
agredidos. Naquele mesmo dia havia sido anunciado que a central sindical UIL e a
direção da Fiat haviam feito um acordo separado. Foi o bastante para cerca de 7 mil
trabalhadores se concentrarem na frente do escritório da UIL, na Piazza Statuto, no
coração de Turim. Seguiu-se uma batalha nas ruas por cerca de três dias, com mais de
mil manifestantes sendo presos pela polícia. A composição novamente era de jovens
trabalhadores, grande parte deles imigrantes do sul.
Os eventos de Piazza Statuto foram de imensa importância para os operaístas.
Uma nova classe operária aparecia em luta aberta e de massa, de forma autônoma e
contra o capitalista, mas também contra o sindicato e os partidos. Não à toa as centrais
sindicais, o Partido Socialista Italiano (PSI) e o Partido Comunista Italiano (PCI)
afirmaram que os confrontos de Piazza Statuto foram causados por agentes
provocadores241. Em 1973, a organização operaísta Potere Operaio, da qual Negri fazia
240 Cf. Negri (1980, p.58).241 Cf. Ginsborg (1990, p.252).
Teorias da Mais-Valia Difusa
92
parte, iria dizer metaforicamente que Piazza Statuto havia sido seu congresso de
fundação242.
Greves selvagens e lutas operárias continuaram em 1963 na Fiat e em outros
centros industriais, como em Porto Marghera, um pólo de indústrias químicas no qual
Negri começou a militar em 1963.
Para ele, e de forma geral na leitura dos operaístas na época, o ciclo de lutas de
60-63 agitara todos os maiores setores industriais italianos, assim como as maiores
cidades. Tinham a característica de serem em maior ou menor grau espontâneas e
eventos de massa243. As lutas eram espontâneas no sentido de serem em grande parte
independentes do controle e comando dos sindicatos. As reivindicações salariais e as
formas de luta (greves selvagens, sabotagens, absenteísmo), faziam com que Negri e os
operaístas enxergassem nelas uma classe trabalhadora que via sua libertação não através
do trabalho, mas como libertação do trabalho, e para a qual o capital fixo (as máquinas,
a fábrica) já não possuíam um estatuto positivo – a idéia socialista de autogestão
operária já não encontraria assim correspondência no comportamento dessa nova classe
trabalhadora.
Na visão de Negri a concepção de recusa do trabalho foi um dos elementos que
levou à ruptura do QR. Concepção que seria melhor desenvolvida à época por Mario
Tronti, e tida por alguns como “irrealista e loucura teórica”244.
Tronti, Negri, Bologna, Rosa, entre outros, fundaram outra publicação,
chamada Classe Operaia (1964-1967), após romperem com Panzieri. É com ela que o
operaísmo propriamente dito aparece em todos os seus contornos. Já no seu primeiro
número, em 1964, é publicado o artigo Lenin in Inghilterra, de Mario Tronti, seminal ao
operaísmo e à caracterização de sua perspectiva. Tronti seria o teórico operaísta mais
influente nos anos 1960.
Alguns pontos de identificação ligavam os operaístas de Classe Operaia (CO),
entre eles: a identificação da classe trabalhadora com o trabalho subsumido ao processo
imediato de produção; uma ênfase sobre a luta salarial como terreno chave do conflito
político; e a perspectiva de que a classe trabalhadora era a força motora da sociedade
capitalista245.
242 Cf. Potere Operaio (1977). Sobre os eventos em Piazza Statuto ver Bascetta; Bonsignori; Carlini et al.(2001).243 Cf. Negri (1988, p.204-5).244 Cf. Negri (1980, p.68).245 Cf. Wright (2002, p.63).
Teorias da Mais-Valia Difusa
93
Negri também vê em CO a fundação/consolidação do operaísmo246. Na leitura
de Christian Marazzi, enquanto o QR tinha um objetivo mais investigativo do
comportamento e subjetividade da classe trabalhadora, CO por outro lado tinha como
foco formular uma nova estratégia política, cunhada por Tronti como “dentro e contra”,
através da “recusa do trabalho”: La strategia del rifiuto, que seria título de um dos
artigos mais importantes de Tronti ao operaísmo247.
Para Sergio Bologna, um dos feitos de CO teria sido colocar em ação novas
experiências políticas nas cidades em que havia grande quantidade de militantes ligados
ao grupo248. Em Milão, em 1964, os panfletos de CO eram distribuídos e discutidos em
vários centros fabris, fomentando diretamente algumas lutas249.
Negri nos anos 1960
Filho de comunista – assassinado por fascistas – Negri só começou a se
envolver com política propriamente em 1958, aos 25 anos de idade, embora já estivesse
filiado ao PSI. Segundo o próprio, sua curta passagem pelo catolicismo, de forte
influência social e política na Itália, havia lhe mostrado a possibilidade de ligar
pensamento e ação250. Em 1960 ele é eleito para a assembléia municipal de Pádua, pelo
PSI. Tendo, como ele diz, se tornado comunista antes de ler Marx, e embora já fosse
estudioso de Hegel, Negri só iria ler e estudar sistematicamente Marx no início dos anos
1960.
No QR, inicialmente teve participação individual, mas aos poucos foi
constituindo um grupo em Vêneto na linha da publicação. Negri entra em diversos
projetos de investigação, sem no entanto escrever ou publicar entre 1962 e 1969.
Morando em Veneza entre 1963 e 1971, começa a militar na zona petroquímica de
Porto Marghera, panfletando em porta de fábrica, organizando comitês de base,
promovendo greves. Suas descobertas e investigações, segundo ele mesmo, se
centravam nessas fábricas de Porto Marghera. Sua rotina no período consistia em chegar
à porta de fábrica às cinco da manhã, panfletar e conversar com os trabalhadores até as
246 Cf. Casarino; Negri (2008, p.56).247 Cf. Lotringer; Marazzi (1980, p.17).248 Cf. Altamira (2008); Bologna (s/d).249 Cf. Altamira (2008).250 Cf. Casarino; Negri (2008).
Teorias da Mais-Valia Difusa
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oito, então colocar a gravata e dirigir até Pádua para dar aulas na universidade,
retornando a Porto Marghera às cinco da tarde para encontrar novamente os
trabalhadores e escrever o panfleto para o dia seguinte251.
As duas frentes que os operaístas buscavam avançar simultaneamente, segundo
ele, eram o trabalho político na fábrica e o trabalho teórico sobre a fábrica, insistindo
exaustivamente em ligar os dois. Tal obsessão é exemplificada por ele ao lembrar que
nenhuma reunião jamais era iniciada sem uma prévia análise do que estava ocorrendo
nas fábricas naquele dado momento, tornando-se jargão comum entre eles a sentença:
“aquele que não conduz investigações na fábrica não tem direito de falar”252.
Conceitos e idéias centrais do operaísmo
Fábrica social
Na segunda edição do QR, Tronti publica um artigo que seria de grande
influência e importância para o operaísmo: La fabbrica e la societá. Nele, afirma que as
relações de produção seriam antes de mais nada relações de poder, reforçando o caráter
primariamente político das relações econômicas. Mas mais importante foi a elaboração
do conceito de fábrica social. Com ele Tronti buscava apontar que toda sociedade
passava a existir como função da fábrica. Em outras palavras, a produção e reprodução
social, fora da fábrica, não poderiam ser separadas da produção na fábrica, pois eram
extensões dela, incorporadas a ela. A relação social passava a ser um momento da
relação de produção.
Não sem motivos o estudioso do operaísmo Steve Wright enxerga uma
contradição entre a idéia de fábrica social – a extensão das relações de produção para
além da fábrica – e a restrição do conceito de classe trabalhadora e de classe dos
produtores aos operários, aos empregados fabris envolvidos com o trabalho manual253.
A centralidade dada aos operários de fábrica das grandes indústrias no norte da Itália,
deixando de lado as questões sociais de outros grupos ou até mesmo aquelas que
concerniam à vida dos operários fora da fábrica (moradia e serviços públicos em geral)
251 Cf. Casarino; Negri (2008).252 Cf. Casarino; Negri (2008, p.55).253 Cf. Wright (2002).
Teorias da Mais-Valia Difusa
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era tal que até mesmo entre os operaístas surgia uma autocrítica, nos anos de CO,
designando-os de “fabriquistas”.
Operário massa e composição de classe
Na revista Classe Operaia se produziu também o conceito de operário massa:
novo sujeito operário caracterizado pelo trabalho não-qualificado – em oposição ao
paradigma anterior que seria do operário profissional – , submetido a um processo de
produção taylorista na fábrica, a uma organização do dia-a-dia e das relações salariais
fordista e a relações político-econômica keynesianas254. Quanto à subjetividade, o
operário massa, segundo o entendimento dos operaístas, apreendia o trabalho como
controle social, como perda da vida, em contraponto também à ética do trabalho do
operário profissional, o operário qualificado pré-fordismo. A estratégia de recusa do
trabalho, teorizada e proposta pelos operaístas, teria nessa subjetividade operária sua
base e referente255. Ela englobaria a recusa das obrigações na produção, através de
greves, sabotagens, absenteísmo etc., e reivindicações salariais cada vez mais altas. A
interpretação operaísta dessas práticas de luta operárias do início dos anos 1960 via
nelas um meio e tendência dos trabalhadores buscarem a satisfação de suas necessidades
independentemente dos requisitos ou necessidades do capital256.
A noção de operário de massa, assim como a de operário profissional e a
posterior de operário social desenvolvida por Negri, são conseqüência de uma
abordagem operaísta codificada no conceito de composição de classe, considerado por
Negri um conceito metodológico chave257. Nas palavras dele, e no seu entendimento do
conceito, ela é:
254 Cf. Negri (1988, p.205).255 A recusa do trabalho é pedra de toque no pensamento de Negri até os dias de hoje, aparecendo para ele como tendência que caracteriza o comportamento dos trabalhadores: “Eu procedo da “recusa do trabalho”, da resistência ao trabalho porque considero que a organização capitalista do trabalho é uma autêntica escravidão. No entanto, nós nos libertamos da escravidão do trabalho em termos produtivos, sempre o fizemos. Mandando à escola os nossos filhos, como o fizeram, por exemplo, meu pai e meu avô, desenvolvendo as capacidades mentais, produzindo mais e trabalhando menos, até romper a jaula do tempo de trabalho e reconhecer que o trabalho é uma miséria na qual estamos bloqueados” [“Yo procedo del “rechazo del trabajo”, de la resistência al trabajo porque considero que la organización capitalista del trabajo es uma auténtica esclavitud. Sin embargo, nosostros nos liberamos de la esclavitud del trabajo en términos productivos; siempre lo hemos hecho. Mandando a la escuela a nuestros hijos, como lo hicieron, por ejemplo, mi padre o mi abuelo, desarrollando las capacidades mentales, produciendo más y trabajando menos, hasta romper la jaula del tiempo de trabajo y reconocer que el trabajo es uma miséria en la que estamos bloqueados”] (Negri, 2007a, p.47).256 Cf. Lumley (1990b, p.37).257 Cf. Negri (1988, p.209).
Teorias da Mais-Valia Difusa
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a combinação de características políticas e materiais – ambas históricas e físicas – a qual reúne: a) por um lado, a estrutura da força de trabalho historicamente dada, em todas as suas manifestações, como produzida por um dado nível de forças e relações de produção; e b) por outro lado, a classe trabalhadora como um nível determinado de solidificação de necessidades e desejos, como um sujeito dinâmico, uma força antagonística, tendendo a sua própria identidade independente em termos histórico-políticos258.
Negri também ressalta como a composição de classe varia no tempo, e depende
de tradições e de aspectos culturais:
A composição da classe trabalhadora não é simplesmente o resultado de uma fase ou de uma forma de desenvolvimento capitalista, da marcha do capital constante sob essas relações, é também uma realidade continuamente modificada não só pelas necessidades, mas pelas tradições de luta, as modalidades de vida, de cultura etc., em suma, por todos aqueles fatos políticos, sociais, morais, que acabam por determinar, junto com a estrutura do salário, a estrutura da relação de reprodução dessa classe trabalhadora. A composição de classe muda com o tempo e com as lutas, e pode fazê-lo de maneira substancial259.
A determinação dessa variável, a composição de classe, que os operaístas
teriam visto se modificar de forma tão nítida na passagem da década de 1950 para 1960
em Turim, permitiria que se começasse a definir seu correlato em termos de ação
política260.
O conceito de composição de classe implica também o processo, na luta entre
capital e trabalho, de decomposição de classe, efetuada pelo capital, utilizando-se por
exemplo da reestruturação produtiva; e o processo de recomposição de classe, dentro do
novo paradigma produtivo. A composição de classe se constituiria na relação de outros
dois conceitos: a composição técnica e a composição política de classe. A abordagem
operaísta enfatiza a relação entre a estrutura material da classe trabalhadora
(composição técnica) e seu comportamento como sujeito autônomo ao capital e às
organizações trabalhistas oficiais.
Cada ciclo de lutas, formado pelos processos de decomposição-recomposição
daria lugar a uma figura operária característica – como no caso do operário massa – que
258 “that combination of political and material characteristics – both historical and physical – which makes up: a) on the one hand, the historically given structure of labour-power, in all its manifestations, as produced by a given level of productive forces and relations; and b) on the other hand, the working class as a determinate level of solidification of needs and desires, as a dynamic subject, an antagonistic force, tending towards its own independent identity in historical-political terms” (Negri, 1988, p.209).259 “La composición de la clase obrera no es simplemente el resultado de uma fase o de uma forma de desarrollo capitalista, de la marcha del capital constante bajo estas relaciones, es también una realidad continuamente modficada no solo por las necesidades, sino por las tradiciones de lucha, las modalidades de vida, de cultura, etc., en suma, por todos aquellos hechos, políticos, sociales, morales, que acaban por determinar, junto con la estructura del salário, la estructura de la relación de reproducción de esta clase obrera. La composición de clase cambia con el tiempo y con las luchas, y puede hacerlo de manera sustancial” (Negri, 1980, p.70).260 Cf. Negri (1980, p.70).
Teorias da Mais-Valia Difusa
97
teria uma posição hegemônica no processo de luta contra o capital261. Abrindo um
parêntese, cabe apontar que a hegemonia política da classe operária sobre outras
categorias de trabalhadores e o povo em geral viria, para Tronti, da sua condição de
trabalhador produtivo262. Para ele, somente aqueles que produziriam mais-valia
poderiam bloquear sua acumulação e a reprodução da relação do capital. Mas se para
Tronti era inconcebível que técnicos pudessem se afirmar como produtores de mais-
valia apenas “apertando botões”, para outros como Sergio Bologna os setores
politicamente avançados não poderiam ser deduzidos a priori da estrutura do processo
de trabalho263.
Em Negri, a composição de classe determina até mesmo as possibilidades de
formação social e política futuras. A prefiguração só faria sentido partindo de uma
determinada expressão de composição de classe dada nas lutas, como ele aponta em um
texto de 1976:
A prefiguração em abstrato é impossível, não tem nenhum sentido perguntar-se o que pode substituir à democracia representativa. O “como” e o “quem” do processo revolucionário são o mesmo. Não há um sujeito revolucionário que não submeta a si mesmo as modalidades e o conteúdo do projeto revolucionário; a prefiguração –quando é possível – é tão somente enquanto expressão de uma composição de classe dada nas lutas264
Para o operaísmo a luta de classes deslocava o antagonismo de classe para um
nível maior e mais socializado265. Dentro dessa tendência, ou teleologia, Negri afirmaria
a partir de meados dos nos 1970 que a hegemonia do operário massa seria transitória no
processo de crescente abstração do trabalho (sua hegemonia seria substituída pela do
operário social, como veremos mais adiante). O estágio de subsunção real seria o da
completa abstração e socialização de todos os segmentos de trabalho produtivo e
reprodutivo266.
261 Cf. Altamira (2008, p.208).262 Cf. Tronti (2001).263 Cf. Bologna (1965).264 “La prefiguración en abstracto es impossible, no tiene ningún sentido preguntarse qué puede sustituir a la democracia representativa. El “cómo” y el “quién” del processo revolucionário son lo mismo. No hay um sujeto revolucionário que no someta a sí mesmo las modalidades y el contenido del proyecto revolucionário, la prefiguración – cuando sea possible – lo es tan solo en tanto que expressión de una composición de classe dada en las luchas” (Negri, 2003b, p. 391).265 Cf. Wright (2002, pp.37; 78).266 Cf. Negri (1988, p.217).
Teorias da Mais-Valia Difusa
98
Classe trabalhadora como pólo ativo
Outro postulado central e característico do operaísmo ficou conhecido como
“inversão de perspectiva” – que seria válida ou operacional no estágio de total
socialização do capital – lançada por Tronti em Lenin in Inghilterra. Ao invés de
conceber a classe trabalhadora como elemento que reage ao poder do capital, a
acumulação, suas formas e o desenvolvimento capitalista são vistos como resposta à
insubordinação e luta da classe trabalhadora. A classe trabalhadora, através de sua
resistência e luta é posta no centro da análise, como força motora, enquanto o capital é
concebido como pólo meramente reativo. Em um dado nível de desenvolvimento
capitalista a classe trabalhadora teria se tornado uma polaridade independente, a cujo
comportamento e lutas o desenvolvimento capitalista estaria subordinado.
Antecipação e anti-terceiromundismo
Raniero Panzieri e Mario Tronti escreveram algumas teses em 1962, nas quais
podemos apreender algumas características da abordagem teórica operaísta. Nelas é
expresso que a verificação de uma hipótese está sempre dada na luta, sendo: a) a luta
entendida como antecipação; b) a hipótese entendida como provocação; c) a teoria
entendida como pensamento da revolução267. Podemos dizer que esses três elementos se
fazem presentes ainda hoje em Negri, como se poderá verificar mais adiante. Ainda
nessas teses, Tronti e Panzieri afirmam que a insubordinação revolucionária, enquanto
estratégia e como terreno de verificação, deve possuir caráter global e determinado, isto
é, ser generalizável e específica quanto à sociedade capitalista. Além disso, consideram
que a transformação do capitalismo na Itália o assinalava como um lugar significativo a
nível internacional.
Quanto à antecipação, exposta nessa tese, ela significaria para Tronti ir mais
além das lutas. Como admite o próprio, tal método seria metade previsão do futuro,
metade controle sobre o presente, em parte antecipando, em parte seguindo. Trata-se de
apreender as tendências:
Antecipar quer dizer pensar, ver diversas coisas em uma, vê-las em desenvolvimento, observar tudo, com olhos teóricos, desde o ponto de vista da própria classe. Seguir quer dizer atuar, mover-se na realidade das relações sociais, medir o estado material das forças presentes, captar o momento, aqui e agora, para
267 Cf. Panzieri; Tronti (1962).
Teorias da Mais-Valia Difusa
99
se preparar com a iniciativa das lutas. Nesse sentido, são certamente necessárias grandes antecipações estratégicas do desenvolvimento capitalista, mas necessárias como conceitos-limite dentro dos quais fixar as tendências do movimento objetivo. Nunca colocá-las no lugar da situação real, e jamais as tomar como um destino do mundo do qual não se pode fugir e ao qual se há que obedecer268.
Perceber a tendência, prever o desenvolvimento capitalista não significaria se
submeter às suas leis de ferro, mas sim obrigá-lo a tomar um caminho e o esperar em
um ponto com armas mais potentes, para atacá-lo e destruí-lo, escreveria Tronti269.
Assim, para ele, a história do movimento operário nos países mais avançados não
constituiria um destino fatal, mas conhecê-la serviria para a impedir, para se encontrar
as formas e forças para que não acontecesse. Tal pensamento se contrapunha, e visava
se contrapor, ao entendimento, de um marxismo considerado vulgar, de que seria da
classe trabalhadora dos países mais desenvolvidos, no caso, dos Estados Unidos, que
viria uma ruptura, ou a revolução. Por outro lado, Tronti também contrapunha aqueles
que, por Lênin ter dito que a cadeia capitalista iria romper no elo mais fraco, olhavam
aos países subdesenvolvidos como epicentro da revolução. Para ele “o ponto no qual o
grau de desenvolvimento político da classe trabalhadora tenha ultrapassado, por um
acúmulo de razões históricas, o nível econômico de desenvolvimento capitalista resulta
todavia o lugar mais favorável à abertura imediata de um processo revolucionário”270.
É nesse sentido que segue sua muito citada e quase paradigmática tese de que
a cadeia capitalista teria que romper não onde o capital fosse mais fraco, mas onde a
classe operária fosse mais forte271. Portanto, se por um lado Tronti e o operaísmo
rejeitavam a idéia de que a revolução estaria (somente) com a classe trabalhadora da
localidade de capitalismo mais avançado (os Estados Unidos), por outro lado, também
rejeitavam o terceiromundismo. Uma ruptura revolucionária poderia ter lugar em
diversos níveis de desenvolvimento capitalista, sem ter que esperar a conclusão da
história do capital para se começar a organizar o processo de sua dissolução272. Ora, tais
268 “Anticipar quiere decir pensar, ver diversas cosas en una, verdas en desarrollo, observar todo, con ojos teóricos, desde el punto de vista de la própria clase. Seguir quiere decir actuar, moverse en la realidad de las relaciones sociales, medir el estado material de las fuerzas presentes, captar el momento, aqui y ahora, para hacerse con la iniciativa de la lucha. En este sentido, son ciertamente necesarias grandes anticipaciones estratégicas del desarrollo capitalista, pero necesarias como conceptos-limite dentro de los que fijar las tendências del movimiento objetivo. Nunca intercambialas con la situación real, y jamás tormarlas como un destino del mundo del que no se puede huir y al que hay que obedecer” (Tronti, 2001, p.22).269 Cf. Tronti (2001, p.26).270 “el punto en el que el grado de desarrollo político de la clase obrera há sobrepasado, por un cúmulo de razones históricas, el nivel económico de desarrollo capitalista resulta todavía el lugar más favorable parala apertura inmediata de un proceso revolucionario” (Tronti, 2001, p.28).271 Cf. Tronti (2001, p.28).272 Cf. Tronti (2001, p.71).
Teorias da Mais-Valia Difusa
100
teses serviam antes de tudo para fundamentar a possibilidade revolucionária da classe
operária italiana, a quem eles estavam próximos e poderiam influenciar. A Itália, na
época, podia ser considerada um ponto médio de desenvolvimento capitalista. Isso fica
ainda mais claro quando Tronti afirma que seria a partir de um ponto médio de
desenvolvimento, que seria o ponto mais interno a este, que estaria possivelmente,
naquele momento histórico, a única via que permaneceria aberta para derrubar o
desenvolvimento em todo seu conjunto273.
Podemos dizer, no entanto, que a ênfase dada por Tronti e pelos operaístas era
em favor da classe operária no capitalismo mais avançado, indo assim ao encontro da
leitura de Steve Wright, segundo a qual para o operaísmo o único ponto de partida
válido para uma teoria revolucionária seria a análise do comportamento da classe
trabalhadora nos setores mais avançados da economia274. Tal ênfase aparece, por
exemplo, quando Tronti afirma que quanto mais avançaria o desenvolvimento do
capitalismo, mais a classe operária poderia se tornar autônoma ao capitalismo275; ou que
seria na organização social do capitalismo mais desenvolvido que deveria se produzir o
enfrentamento histórico decisivo entre a classe operária e o capital276. Panzieri já
afirmava que a força subversiva, a capacidade revolucionária da classe trabalhadora
apareceria potencialmente mais forte nos pontos mais avançados do capitalismo
(explicando no entanto tal fenômeno como resultado da preponderância do capital
constante sobre o trabalho vivo nesses pontos mais avançados, o que colocaria para os
trabalhadores mais fortemente a questão da sua subordinação e escravização)277.
Liga-se a essa ênfase uma característica importante do operaísmo, e que
particularmente nos interessa: um rechaço e oposição ao terceiromundismo, à idéia
bastante difundida na esquerda da época de que a luta anticapitalista teria lugar e
perspectiva de vitória essencialmente no Terceiro Mundo, nas margens, na periferia do
mundo capitalista. O próprio Negri iria afirmar que o terceiromundismo era a besta
negra de Classe Operaia278. E uma vez que para o operaísmo o desenvolvimento do
capitalismo é função do antagonismo da classe trabalhadora, disso decorreria também,
como aponta Yan Moulier-Boutang, que a revolução e a subversão seriam
273 Cf. Tronti (2001, p.184).274 Cf. Wright (2002).275 Cf. Tronti (2001, p.38).276 Cf. Tronti (2001, p.36).277 Cf. Panzieri (1980).278 Cf. Negri (1980, p.95).
Teorias da Mais-Valia Difusa
101
possibilidades permanentes existentes no próprio âmago do sistema do capital – e não
nas suas margens, como por exemplo, nos excluídos da relação salarial279.
Concordando com o exposto pelo Centro di Ricerca per l’Azione Comunista,
podemos dizer que sobre alguns aspectos o operaísmo procurou se impor como
reconstrução da teoria revolucionária partindo da realidade material dos novos
comportamentos subversivos da classe trabalhadora ocidental, rompendo com a lógica
terceiromundista presente em grande parte da nova esquerda280.
Foi exatamente essa identificação com a realidade do Primeiro Mundo que
atraiu Michael Hardt ao pós-operaísmo e à tradição do movimento Autonomia italiano
dos anos 1970, rompendo com o terceiromundismo que dominava as perspectivas
revolucionárias no meio militante norte-americano dos anos 1980281.
No final dos anos 1970 continuaria como parte do pensamento de Negri a idéia
de que o capitalismo romperia onde a classe trabalhadora fosse mais forte. Porém isso
não significava para ele que a classe trabalhadora mais forte devesse ser a das grandes
fábricas; a classe trabalhadora mais forte seria aquela que dominaria seus mecanismos
de reprodução com uma força não menor com a que conseguiria condicionar ou
expressar contrapoder com respeito aos processos de produção282. Como veremos
279 Cf. Moulier-Boutang (2005, p.25).280 Cf. Centro di Ricerca per l’Azione Comunista (2002).281 “Eu estava frustrado com todo o paradigma dos jovens norte-americanos atuando na América Central. Sentia como se não fosse nossa luta política, mas deles. Éramos meros observadores. Estávamos na maioria das vezes na estrada. E aquilo não se relacionava realmente à nossa política. (...) As lutas italianas pareciam ter mais a ver conosco nos EUA do que os Salvadorenhos, não importa quão inspiradores os Salvadorenhos fossem. (...) Os problemas sociais e possibilidades de atividade política italianos tinham muito mais a ver conosco do que os salvadorenhos. Lembro de colocar... havia um amigo próximo que tinha vindo ao norte, um Guatemalteca que esteve nas montanhas por vários anos com as guerrilhas e tinha vindo com o metrô a Seattle, onde eu estava naquela época, e eu dizia a ele minhas frustrações. Ele disse: “Veja, vocês têm montanhas aqui. Vá às montanhas. É o que fazemos, vamos às montanhas”. Eu pensei, “Ok...” Tínhamos montanhas em volta de Seattle, mas não era isso... (...) Haviam lutas urbanas [na Itália] que tinham a ver não apenas com a questão da transformação do trabalho, lutas de gênero, desemprego. Eram muito mais próximas das possibilidades de luta nos EUA, e aquilo era algo que me parecia valer a pena perseguir, ou me parecia ser uma avenida aberta. Então é por isso que busquei Toni”[“I was frustrated with the whole paradigm of U.S. young people working in Central America. I felt like it wasn't our political struggle, it was theirs. We were merely observers. We were mostly in the way. And it really didn't relate to our politics.(…) The Italian struggles seemed to have more to do with us in the U.S. than the Salvadorans' did, however inspirational the Salvadorans were. (…)The Italian social problems and possibilities of political activity had a lot more to do with us than the Salvadorans did. I remember posing ... there was a close friend who had come north, a Guatemalan who had been in the mountains for several years with the guerillas and had come with the underground railroad to Seattle, where I was at the time, and I was telling him my frustrations. He said, "Look, you have mountains here. Just go to the mountains. That's what we do, we go to the mountains." I thought, "Okay ... " We had mountains around Seattle, but that wasn't what was ... (…)There were urban struggles that had to do not only with the questions of transformation of labor, gender struggles, unemployment. It was much closer to the possibilities of struggle in the U.S., and that's something that seemed to me worth pursuing, or it seemed to me an open avenue. So that's why I sought out Toni”] (Hardt, 2004).282 Cf. Negri (1980, p.96).
Teorias da Mais-Valia Difusa
102
adiante, o postulado de que o capitalismo romperá onde a classe trabalhadora for mais
forte (e não onde ele for mais fraco), permanece parte do pensamento de Negri até os
dias de hoje.
Teorias da Mais-Valia Difusa
103
Capítulo V
Durante o Potere Operaio (1967-1973)
As lutas no período
O ciclo de lutas de 1967 a 1969 na Itália teve como catalisador a revolta
estudantil, semelhantemente a outros países no período. Manifestações estudantis e
ocupações de universidades ocorreram em meados dos anos 1960, mas o ciclo de lutas
iniciado em 1967 foi bem maior em escala, envolvendo em seu auge milhares de
estudantes universitários e secundaristas, paralisando grande parte do sistema
educacional. O contingente estudantil havia sofrido significativo acréscimo durante os
anos 1960, assim como sua composição se alterado com relevância. Em 1960, 82 mil de
311 mil estudantes deixaram a escola para trabalhar, enquanto que em 1968 apenas
91.700 de 507.000. E o número de novos secundaristas dobrara, enquanto o número de
estudantes vindos da classe trabalhadora ingressando nas universidades passara de 14%
em 1960-1 para 21% em 1967-8283. Junto com a força apresentada pelos trabalhadores
técnicos, a ação estudantil fez os operaístas repensarem questões relativas à composição
de classe.
Embora a influência operaísta tenha sido limitada nesse ciclo de lutas, e em
termos teóricos sua penetração maior fosse entre os estudantes, Negri via o discurso
operaísta começando a se realizar através da prática em que eles estavam envolvidos,
283 Cf. Lumley (1990b, p.55).
Teorias da Mais-Valia Difusa
104
como em agosto de 1967 numa primeira grande greve em Porto Marghera, onde 15 mil
operários eram empregados, e posteriormente na indústria de calçado em Riviera del
Brenta, e também em intervenções em pequenas fábricas de Pádua, na Alfa Romeo em
Milão e na Pirelli284.
Em 1967 as greves em Porto Marghera tiveram como motivo a toxidade das
substâncias e a falta de segurança para a saúde dos trabalhadores. Em 1968 começam
greves por redução da jornada e aumento igual, de 5 mil libras, para todos os
empregados, sob influência dos operaístas reunidos no grupo Potere Operaio285. Ali, em
Porto Marghera, que primeiro apareceu a reivindicação de aumento igual para todos,
independente do posto de trabalho, que logo se generalizaria e seria característica do 68-
69 italiano. Em Porto Marghera e na Pirelli em Milão, em 1968, foram levadas adiante
formas de luta “selvagem”, por fora do aparato sindical, prática que se tornaria
generalizada e comum no ano seguinte. Insatisfeitos com os sindicatos e partidos, os
trabalhadores da Pirelli de Milão formaram em 1968 o primeiro Comitato Unitário di
Base (CUB), que também se disseminaria por outras indústrias. A diretriz dos CUBs,
“começar diretamente das condições dos trabalhadores na fábrica”, já presente no QR,
refletia a influência operaísta286.
Diferentemente de outros países, os estudantes do 68 italiano viam a
necessidade de se ligarem à classe operária. Saíam assim das universidades em direção
aos trabalhadores, nos quais enxergavam o verdadeiro potencial revolucionário287. Ao
mesmo tempo, os jovens trabalhadores eram mais atraídos pelas subculturas juvenis e
pelo feminismo do que pela esquerda extraparlamentar288.
Se os estudantes foram os catalisadores, no entanto os protagonistas das lutas
trabalhistas nesse ciclo de lutas foram os operários não-qualificados ou semi-
qualificados, aqueles submetidos ao regime de trabalho taylorista, localizados no
processo imediato de produção, ou seja, o operário massa de acordo com o vocabulário
operaísta. Mas o movimento foi além deles, englobando trabalhadores de escritórios,
técnicos, agricultores e funcionários de grandes estabelecimentos comerciais289.
284 Cf. Negri (1980,p.103).285 Cf. Lumley (1990b, p.174).286 Cf. Lumley (1990b).287 Cf. Ginsborg (1990, p.309).288 Cf. Lumley (1990b, p.134).289 Cf. Barkan (1984, p.70).
Teorias da Mais-Valia Difusa
105
Além da igualdade do aumento salarial, no centro das demandas estava o
controle dos ritmos e normas de trabalho e as relações de poder na empresa, e a
desvinculação de salário e produtividade.
Uma característica normalmente apontada desse ciclo de lutas, seja pelos
operaístas seja por historiadores como Joanne Barkan, foi o abalo da chamada ética do
trabalho, tradicional nas organizações de esquerda e no movimento operário até décadas
antes. Na nova geração de trabalhadores – ou no operário massa – o trabalho e a
produção já não apareciam como valores290. O trabalho era visto como tempo de perda
da vida mais do que como base sobre a qual emergiria o socialismo. O taylorismo
levando ao ápice o estranhamento entre o trabalhador e o conteúdo do seu trabalho teria
feito, na leitura do grupo Lotta Continua (de tendência operaísta), os trabalhadores
entenderem que a liberdade não residiria na exaltação do “trabalho produtivo”, mas na
abolição do trabalho assalariado. A revolta dos trabalhadores, com suas sabotagens e
paralisação da produção em vez de autogestão da produção, de acordo com essa leitura
expressava uma rejeição da disciplina da fábrica e um antagonismo radical à própria
fábrica como instituição291.
As lutas dos trabalhadores de 68-89 foram basicamente acontecimentos do
norte (industrializado) da Itália. Em Porto Marghera ou em Nápoles, onde também
ocorreram lutas operárias, o movimento ficou isolado, pela menor concentração
industrial292. As primeiras lutas operárias de 1968 se deram nas maiores fábricas
italianas, mas em áreas mais periféricas, em termos geográficos e de produção, e acima
de tudo onde os sindicatos eram mais fracos293.
As lutas de 1969, que culminaram no chamado “outono quente” – a terceira
maior greve da história em termos de horas de trabalho perdida – teve como principal
palco a Fiat em Turim. Maior indústria italiana, possuindo a maior fábrica do mundo e
uma enorme concentração de dezenas de milhares de operários numa metrópole
industrial, com a abertura de novas fábricas em Turim ela atraiu ainda mais imigrantes
do sul em 1967. Além da imigração ter continuado durante os anos 1960, os problemas
de habitação e serviços públicos nas cidades industriais persistiam.
A luta na Fiat em 1969 começou em março pela recusa dos trabalhadores da
fábrica de Mirafiori a aumentar a velocidade da produção. Após cinqüenta dias de lutas
290 Cf. Barkan (1984).291 Cf. Lumley (1990b, p.211-3).292 Cf. Lumley (1990b, p.209).293 Cf. Lumley (1990b, p.311).
Teorias da Mais-Valia Difusa
106
contínuas, em 3 de julho ocorreu o que ficou conhecido como a batalha de Corso
Traiano, que aparece como presságio da década seguinte, na qual a correlação de forças
dentro das fábricas seria favorável aos trabalhadores. Os sindicatos haviam resolvido
chamar uma greve geral em Turim contra os altos aluguéis, com o intuito de dispersar as
energias das lutas “não-oficiais” dentro da fábrica. Mas o que se seguiu foi uma intensa
batalha de rua entre polícia e trabalhadores na região de Corso Traiano. A partir de
setembro a agitação operária em Turim, Porto Marghera e na Pirelli de Milão se
espalhou pelo país, dando início ao “outono quente”: mais de um quarto do total da
força de trabalho italiana se envolveu nas greves; 520 milhões de horas de trabalho
foram perdidas no outono de 1969, e em 19 de novembro 20 milhões aderiram a uma
greve geral que obrigou o governo a reformar o sistema previdenciário294. O outono
quente terminou em vitória para os trabalhadores, em termos de reivindicações
atendidas295 e correlação de forças instituída. Terminou também com a leitura operaísta
de que a prática das lutas foi ao encontro das suas tendências e slogans de recusa do
trabalho, e da centralidade do operário massa das grandes e modernas fábricas296. Os
sindicatos souberam “cavalgar o tigre” e capitalizar o ciclo de lutas, com considerável
aumento de filiados até meados dos anos 1970297, ganhando também em legitimidade.
Em 1970 e 1971 lutas pela melhoria das condições de trabalho e por maior
controle no local de trabalho se alastraram por vários setores da produção: metalúrgicos,
trabalhadores da indústria química, ferroviários, operários da construção civil. As lutas
chegaram ao terciário e envolveram carteiros, professores, servidores públicos,
trabalhadores de hospitais298. Como de praxe é reportado, o 68 italiano duraria uma
década.
O período de 1969 a 1973 também viu revoltas no sul da Itália, as quais
refletiram a natureza fragmentada da sociedade na região e a precariedade da
modernização299. A maior revolta ocorreu em 1970 em Reggio Calabria, a partir da não
escolha da cidade como sede do novo governo regional. Greves, barricadas, explosões,
bloqueios de estradas foram algumas das formas de manifestação que se estenderam por
um ano. Porém o movimento em Reggio Calabria teve em neofascistas a na direita seus
principais líderes.
294 Cf. Abse (1985).295 Sobre as reivindicações ver Abse (1985).296 Cf. Wright ( 2002, p.127).297 Cf. Ginsborg (1990, p.320); Lumley (1990, pp.243; 266).298 Cf. Ginsborg (1990, p.318).299 Cf. Ginsborg (1990).
Teorias da Mais-Valia Difusa
107
No norte da Itália as lutas em torno de moradia foram também bastante
expressivas no ciclo de lutas do final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Grandes
greves de pagamento de aluguéis ocorreram no norte, em Milão e Turim, e no sul, em
Roma e Nápoles. Em Milão, entre 1968 e 1970, estima-se que 40% das 100 mil famílias
que viviam em moradias estatais entraram em greve de pagamento dos aluguéis total ou
parcialmente300.
No início dos anos 1970 o absenteísmo aumentou, provavelmente como
resultado da autoconfiança e segurança dos trabalhadores após as lutas vitoriosas de
1969. Se em 1965 o absenteísmo estava entre 5 a 6% na Fiat, em 1970 chegou a 12,5%.
As taxas eram maiores nos trabalhos mais enfadonhos e perigosos301.
Em 1972 reemerge o conflito nas fábricas no norte, em torno dos contratos de
trabalho. Aproximadamente 4,5 milhões de trabalhadores se envolveram, e em 1973
esse número cresceu para 6,1 milhões, só superado pelo número de 1969.
As lutas mais significativas de 1973 se deram em Porto Marghera e na Fiat em
Turim. Em Porto Marghera, onde as lutas costumavam prescindir mais que em outros
lugares dos sindicatos, intensas batalhas de rua, e bloqueio de estradas ocorreram por
três dias, após uma greve geral302.
A renegociação dos contratos levou à ocupação da Fiat de Mirafiori, em meio a
seis meses de lutas. A ocupação da Fiat desencadeou uma onda de ocupações. A recusa
do trabalho era bem explicitada pela declaração de um operário da Mirafiori:
Essa ocupação é diferente da que os trabalhadores fizeram em 1920. Em 1920 eles disseram ‘vamos ocupar mas vamos trabalhar. Vamos mostrar a todos que podemos gerir a produção’. As coisas são diferentes hoje. Na nossa ocupação, a fábrica é o ponto de partida para a organização revolucionária dos trabalhadores –não um lugar para trabalhar303.
O ano de 1973 se encerrou com a certeza de que o movimento operário estava
mais sólido e forte que nunca. No entanto, a resposta das grandes empresas a essa
militância seria uma reestruturação produtiva, descentralizando a produção, de modo a
fragmentar os trabalhadores e quebrar os centros de militância304.
300 Cf. Ginsborg (1990, p.324).301 Cf. Ginsborg (1990, p.88).302 “Havíamos montado barricadas por toda parte nas aldeias, para impedir o fluxo dos turistas alemães que vinham para o sul. Em Veneza, acabamos incendiando um trem de mercadorias que estava no meio da confusão, foi uma das coisas mais incríveis que eu vi na vida, e Deus sabe o que vi! Hoje eu acho graça, mas era freqüente um clima de violência extrema em Porto Marghera, a dois quilômetros da mais linda cidade do mundo, centenas de operários morriam de câncer, literalmente envenenados pelo trabalho...” (Negri. 2006, p.201).303 In: Katsiaficas (1997, p.43).304 Cf. Ginsborg (1990).
Teorias da Mais-Valia Difusa
108
O Potere Operaio
Em 1967 a revista Classe Operaia tem fim, devido a divergências entre aqueles
que, como Mario Tronti e Asor Rosa, entrariam no PCI, e aqueles que, como Negri,
defenderiam a participação nas organizações autônomas dos trabalhadores. Também em
1967 os partidários de Negri criariam o grupo Potere Operaio (PO) na região do veneto-
emiliano, que viria a se tornar organização nacional em 1969. A militância de cinco ou
seis anos dos operaístas em Porto Marghera começou a render frutos em 1967, como
vimos. Nesse mesmo ano o jornal Potere Operaio se tornou o jornal dos operários da
localidade.
Em 1968 e 1969 surgem os chamados grupos da esquerda extraparlamentar.
Entre eles Lotta Continua, que seria o maior, mais inovador e libertário dos grupos de
influência operaísta. De certa forma esses grupos, entre eles o PO nacional de Negri,
seriam resultado das revoltas estudantis, uma vez que esses movimentos estudantis
popularizaram as idéias precursoras (operaísmo entre elas) e proveriam de quadros esses
grupos. No entanto as questões estudantis dentro desses grupos eram subordinadas às
questões da classe trabalhadora305.
Negri também participou do semanário La Classe, lançado em maio de 1969,
tendo se tornado o periódico da luta na Fiat naquele ano. O PO nacional nasce em
setembro de 1969, após uma conferência nacional dos CUBs chamada por La Classe.
De tendência leninista, chegou a contar com 3 mil a 4 mil militantes, tendo se
consolidado principalmente em Vêneto, Bologna, Florença, Roma e Nápoles.
No entendimento de Negri, foram nas lutas de 1969 na Fiat que acabou por se
constituir a ideologia e a teoria política que dominou os grupos da esquerda
extraparlamentar, e posteriormente e em parte também da Autonomia Operaia306.
Embora os estudantes pudessem ser considerados objetivamente como parte da
classe trabalhadora pelos operaístas307, a centralidade dada pelo PO era aos operários, e
a aliança estudantes-operários era vista sempre com os primeiros subsumidos pelos
últimos. Ao mesmo tempo, as lutas dos trabalhadores técnicos colocavam uma questão
305 Lumley (1990b, p.116).306 Cf. Negri (1980, p.120).307 Cf. Lumley (1990b, p.65).
Teorias da Mais-Valia Difusa
109
teórica ao PO, que em 1971 foi respondida afirmando que os técnicos, como todo
trabalho industrial, executavam trabalho simples, tendo no entanto que escolher se opor
ao poder capitalista ou ser seu agente na fábrica308.
As revoltas nas regiões não industriais e no sul da Itália, em especial a de
Reggio Calabria, não foram suficientes para o PO negar a centralidade dos
trabalhadores de fábrica na luta de classes, embora fosse possível perceber uma
crescente adequação para tomar na sua profundidade a noção de fábrica social e
entender a relação do capital para além do salário309.
Em 1971 e 1972 a posição do PO sofreu uma modificação. A subjetividade
revolucionária era vista como estando fora e contra o capital, já não tendo relação
necessária com o processo de trabalho. A questão central da recomposição política
sendo então a da relação entre operários e o crescente número de desempregados. A
demanda unificadora não seria a de empregos, mas deveria ser uma renda garantida para
todos (salário político). Se nos anos 1960 a leitura que se fazia das reivindicações e
lutas operárias era de que eles lutavam para separar o salário da produtividade, agora o
slogan da renda garantida resumia uma estratégia de separação entre salário e trabalho,
afirmando as necessidades dos proletários sobre as exigências do capital e o assalto
direto sobre a riqueza social, a luta contra o custo de vida e o uso político dos
desempregados: o enfrentamento contra o capital que deixara a fábrica para se tornar
‘capital social’310.
Crisi dello Stato-piano, escrito por Negri para a terceira conferência do PO em
1971, é o documento da época teoricamente mais elaborado em que aparece essa ênfase
numa noção de proletariado mais alargada prevalecendo sobre a mais restrita de
operários de fábrica.
Esse suposto abandono da centralidade dos operários de fábrica pelo PO foi
criticada pelo grupo Lotta Continua, através de Adriano Sofri, sua principal liderança. A
resposta do PO afirmou que sua crítica ao “fabriquismo” não negava a “função
hegemônica que os trabalhadores das grandes fábricas devem ter – como guia, como
ponto de referência e direção – sobre todo o movimento”311. Importante ressaltar que
Lotta Continua acabou tendo grande inserção na Fiat em Turim, com a vanguarda dos
operários aderindo ao grupo, ao contrário do Potere Operaio, o que explicaria por
308 Cf. Wright (2002, p.106).309 Cf. Wright (2002).310 Cf. Wright (2002, p.138).311 Cf. Potere Operaio (1972, p.6).
Teorias da Mais-Valia Difusa
110
conseqüência a maior ênfase teórica dada por Lotta Continua ao papel dos operários das
grandes fábricas na ocasião.
Com a reemergência das lutas nas fábricas em 1972, por conta dos contratos de
trabalho, Negri retornaria a colocar em posição privilegiada na luta de classes os
trabalhadores das grandes fábricas. Algo que aparece no texto Partito Operaio contro il
Lavoro, redigido em 1972. Nele, Negri afirma que os operários das grandes fábricas,
como sujeitos privilegiados da exploração, continuariam absolutamente hegemônicos
política e teoricamente em relação ao resto da classe.
Vemos que as posições de Negri, no curto período de existência do PO (1969-
1973), quanto ao sujeito histórico, oscilava conforme as lutas emergiam ou diminuíam
entre diferentes sujeitos sociais. Sergio Bologna irá até mesmo afirmar que os militantes
do PO, quando marginalizados das lutas nas fábricas, vagavam sem direção em busca de
novos pontos de referência, como a luta dos negros norte-americanos ou dos
desempregados no sul da Itália312.
Em 1973 o PO é dissolvido. Divididos sobre o significado do comportamento
de classe e a função da organização política, grande parte de seus integrantes iriam fazer
parte da rede de grupos que formariam então a Autonomia Operaia, que teve um de seus
núcleos fundadores num grupo da Alfa Romeo, onde Negri militava desde 1971 após ter
se mudado para Milão.
O fato é que no ciclo de luta que se estendeu até 1973, a penetração e
influência dos grupos extraparlamentares, como o PO, foi relativamente pequena na
sociedade italiana. Mesmo nas regiões mais modernas e industrializadas ela esbarrava
na tradição do PCI e dos sindicatos, que ainda era traduzida em lealdade por parte dos
trabalhadores. Em outras regiões esbarrava em empresas ainda familiares e estruturas
que minimizavam o enfrentamento direto entre o capital e o trabalho313.
Em 1972 Negri começa a repensar a relação entre organização e composição de
classe, através de uma releitura de Lênin que seria publicada posteriormente (La
Fabbrica della Strategia). De acordo com essa leitura, uma determinada subjetividade
da classe trabalhadora, uma determinada composição de classe, determinaria uma forma
de organização adequada a ela314. Muito a partir dessa perspectiva, e do entendimento
da existência já de uma composição de classe diferenciada, que Negri participaria da
312 Cf. Bologna (s/d).313 Cf. Ginsborg (1990, p.341).314 Cf. Negri (2004a). Sobre o entendimento do pensamento de Lênin por Negri, ver também Hardt (2005c).
Teorias da Mais-Valia Difusa
111
dissolução do PO e da formação da Autonomia Operaia. Essa nova formação
corresponderia de maneira mais adequada a uma nova subjetividade e composição de
classe.
A teorização
Em 1968 Negri explicitava com suas próprias palavras a tese operaísta
fundamental de que a luta da classe trabalhadora é o motor do desenvolvimento
capitalista. O sistema funcionaria não porque a classe trabalhadora estaria sempre
contida nele, mas por ser capaz de se colocar fora dele. A questão da política seria a de
como conter e absorver essa ameaça, essa recusa, absorvê-la em níveis cada vez mais
elevados315. Em outro artigo de 1968 (Marx sul ciclo e la cris), ele deixa claro a tese
operaísta e anti-terceiromundista de que só o capital plenamente desenvolvido verá a
revolução da classe trabalhadora. No mesmo artigo ele aponta que a espiral de
antagonismo (decomposição – recomposição – decomposição), eterna e estável, deveria
ser quebrada pela insurgência do poder da classe trabalhadora, pré-condição da
derrubada da realidade do desenvolvimento capitalista. E o projeto para destruir o
desenvolvimento capitalista deveria atingir o que seria seu ponto mais fraco, a forma-
estado316.
Em Crisi dello Stato-piano, a luta por renda, por salário social e contra o
trabalho aparece estendida a toda “fábrica social”. A luta por serviços públicos é vista
como luta pelo salário social, como parte da luta salarial, desvinculado da
produtividade, uma luta por apropriação direta. Negri salienta que as indicações
presentes nesse texto buscam sua verificação na atividade geral da prática
revolucionária, se aproximando assim, podemos dizer, de uma perspectiva pragmatista,
na qual a prática se torna o critério da verdade317. Em Crisi dello Stato-piano, ele já se
apóia no Grundrisse para afirmar que a tendência ali apontada, do trabalho imediato e
do tempo de trabalho deixar de ser a base da produção, se tornara realidade318.
315 Cf. Negri (1988, p.28).316 Cf. Negri (1988, pp.76; 79; 81).317 Nesse período Negri abandona a dialética, vista como lógica de recuperação do capital ligada ao socialismo e comunismo institucionais. No seu lugar ele concebe um antagonismo direto, de uma unidade contra outra.318 Cf. Negri (1988, p.100-101).
Teorias da Mais-Valia Difusa
112
Ainda em Crisi dello Stato-piano, Negri expõe que a teoria da organização que
tinha como referência o operário profissional estaria inadequada e logicamente perderia
a referência numa situação de nova composição de classe, a qual ele observava. Da
mesma forma inadequada estaria a ideologia do trabalho produtivo e do operário
profissional como “produtor”, além da própria ideologia do trabalho, uma vez estando
ligadas àquela composição de classe, à subjetividade e comportamento daquela figura
operária, e à teoria da organização (autogestão operária, conselhos operários) a ela
referida319. A mudança do ponto de referência, ele argumenta, deveria implicar portanto
em mudança na teoria da organização. Tal abordagem o acompanhará até os dias de
hoje, na relação entre multidão e democracia/comunismo, ou, em outras palavras, entre
a composição de classe e a organização. E em relação à questão da organização, ele
frisaria também que o que importaria não seria a tendência apreendida pela teoria, mas o
processo de sua realização como atividade320.
O comunismo era tido por ele, já naquele período, como uma tendência
presente, uma força ativa operando. A assertiva certamente tinha uma função política, e
pragmática, pois servia para negar a noção de estágios intermediários de transição ao
comunismo, presente nas ideologias reformistas supostamente comunistas321.
Em Crisi dello Stato-piano Negri apresenta pela primeira vez uma crítica da
política pré-figurativa de estilo de vida, da idéia de possibilidade de liberação individual
de cunho subcultural, que de certa forma ele iria retomar no final dos anos 1970, após o
movimento de 77.
Quanto ao conceito de trabalho produtivo, afirmará em Crisi dello Stato-piano
que a ele também deve ser dada uma definição totalmente política, não podendo mais
ser definido em termos de sua direta ou imediata determinação no processo de trabalho,
mas dentro da sobredeterminação do ciclo de reprodução do capital como um todo e do
desenvolvimento do antagonismo a esse nível322. Já na época do PO, portanto, Negri
expande a definição de trabalho produtivo. Restaria, no entanto, nos perguntarmos se o
conceito seria operativo desse antagonismo, nesse nível do capital social/fábrica social,
uma vez que, como especificado por ele, na nova composição de classe a “ideologia do
trabalho produtivo” já não seria operativa, não teria referência numa subjetividade e
estrutura técnica, nem portanto valor prático.
319 Cf. Negri, (1988, p.108-109).320 Cf. Negri (1988, p.112).321 Cf. Negri (1988, p.112).322 Cf. Negri (1988, p.139).
Teorias da Mais-Valia Difusa
113
A gênese do general intellect dentro da teoria operaísta (e pós-operaísta) pode
ser traçada a partir desse período. De acordo Negri, os operaístas teriam percebido a
potência do general intellect em 1968, uma vez que a revolta estudantil teria aberto o
discurso sobre a força de trabalho intelectual323. Tal discurso aparece nas Teses de Pisa,
produzida pelo PO e importante ao movimento estudantil do período. Nela salienta-se a
existência de uma nova figura trabalhadora à margem da classe operária, cujo trabalho
intelectual entraria no circuito de reprodução do capital. Posteriormente, como ressalta
Negri, o general intellect passaria a ser apreendido menos como paradigma da
intelectualização da produção e mais como sintoma de sua socialização324.
323 Cf.Negri (2003a).324 Cf. Negri (2003a, p.160).
Teorias da Mais-Valia Difusa
114
Capítulo VI
Da Autonomia Operaia à Prisão
As lutas no período
Em 1974 o movimento operário do centro e norte da Itália ainda demonstrava
força. Quando o governo anunciou um aumento substancial do preço dos combustíveis e
dos alimentos, trabalhadores de várias fábricas fizeram passeatas espontaneamente,
durante uma semana. Nesse mesmo ano as chamadas auto-reduções se difundem.
Prática que ocorria esporadicamente em 1968 e 1969 entre estudantes e trabalhadores
através da recusa em pagar as tarifas de transporte. Em 1971 jovens em Milão forçaram
a redução de preços de apresentações musicais ameaçando sabotá-las. Contudo, foi
somente com a participação de delegados de conselhos de fábrica, de comitês de bairro
e de sindicatos que as auto-reduções se tornaram uma prática de resistência viável e
difundida entre 1974 e 1975. Tiveram início em Turim quando grupos de trabalhadores
da Fiat de Rivolta se recusaram a pagar o aumento de 25 a 50% para as empresas de
ônibus que os levavam ao trabalho. O sindicato dos metalúrgicos organizou “delegados
de ônibus” para recolher o dinheiro à tarifa antiga e enviá-lo para as empresas. As auto-
reduções também foram feitas sobre as tarifas de energia elétrica. Cerca de 150 mil
contas de energia elétrica foram auto-reduzidas em Piemonte. As auto-reduções se
espalharam por outras cidades italianas, especialmente em Roma, e atingiram também
Teorias da Mais-Valia Difusa
115
as contas de telefone e os aluguéis. Note-se que elas se centravam nas tarifas de serviços
prestados pelo Estado, mais fáceis de resistir do que as de serviços privados325.
Em 1975 começam a surgir os chamados círculos da juventude proletária,
precursores dos Centros Sociais326, formados por jovens trabalhadores de pequenas
empresas para articular lutas em diferentes firmas, mas que se engajaram também em
auto-reduções, através da entrada em massa em cinemas, apresentações musicais e
outras atividades culturais327. Em 1975-1976, para Steve Wright, só as práticas de auto-
redução forneciam alguma ligação entre os setores cada vez mais diferenciados da
classe trabalhadora italiana328.
Negri e pelo menos boa parte dos autonomistas que vieram do operaísmo,
interpretavam as auto-reduções inicialmente como uma prática de renda garantida, de
salário social, de extensão da luta salarial da fábrica ao terreno social329. Viam também
na passagem de 1975 para 1976 a evolução de uma prática defensiva e de resistência – a
auto-redução – para uma luta ofensiva de “apropriação”, levada a cabo por muitos
grupos autonomistas e jovens através de “expropriações” e do não pagamento de
entradas e tarifas330.
Em 1974 eclodiu também um movimento de estudantes secundaristas contra os
cortes no orçamento da educação, realizando manifestações e ocupações. Uma nova
onda de ocupações de moradias também teve início, se espalhando de Roma a Turim331.
Em 1976, em Milão, havia 1500 ocupações de unidades de moradias públicas e 37 de
moradias privadas332.
Nápoles, no sul da Itália, foi palco de diversas lutas coletivas em 1975 e 1976,
sendo o movimento de desempregados o mais significativo, mobilizando milhares de
pessoas e se tornando referência para a atividade militante na região. As auto-reduções e
ocupações de moradias também se tornaram práticas expressivas em Nápoles333.
325 Sobre as auto-reduções, particularmente em Turim, ver Cherki e Wleviorka (1980).326 Os Centros Sociais, base dos movimentos autônomos que deram origem à fração do “movimento antiglobalização” italiana, consistem em casas, prédios ou fábricas abandonados que foram ocupados e transformados em centros políticos e culturais autônomos e autogeridos. Existem mais de cem por toda a Itália. Formados desde o início da década de 1980, o maior e mais antigo deles, Leoncavallo, em Milão, têm capacidade para abrigar milhares de pessoas em eventos.327 Cf. Wright (2002, p.165).328 Cf. Wright (1996).329 No final dos anos 1970 Negri não interpretaria mais as lutas fora da fábrica como extensão das lutas fabris, mas como resultado de uma composição de classe em uma produção difusa no terreno social.330 Cf. Negri (1988, p.237).331 Cf. Wright (2002).332 Cf. Lumley (1990b).333 Cf. Ginsborg (1990; Wright (2002).
Teorias da Mais-Valia Difusa
116
O caráter espontâneo das contínuas lutas de fábrica fizeram as grandes fábricas
da Fiat serem consideradas ingovernáveis por volta de 1974. Além das greves
selvagens, e a intimidação a supervisores, o absenteísmo chegava a 28% em certas
semanas334.
A resposta dada durante os anos 1970 às lutas nas fábricas foi a reestruturação
produtiva, a automatização e descentralização do processo produtivo, com o aumento do
setor informal da economia335.
Em 1980 a Fiat impõe uma derrota marcante aos operários, mudando a
correlação de forças na fábrica. A retomada do pleno poder da Fiat nas suas fábricas foi
um marco do fim de uma era de lutas que durava dez anos. Em outubro de 1979 a Fiat
demitia 60 trabalhadores, todos lideranças operárias. No ano seguinte demitiria milhares
de operários, entre eles aqueles com participação política mais ativa. Após 34 dias de
greve, uma marcha composta por supervisores, gerentes, técnicos e trabalhadores de
escritório atravessou as ruas de Turim, demandando o direito de trabalhar, contra os
operários em greve e os piquetes. Tal marcha teve grande impacto e determinou a
derrota dos operários e a vitória política da direção da empresa, que havia calculado sua
ofensiva contra os trabalhadores em termos políticos mais que econômicos.
No final da década de 1970, a nova geração de trabalhadores apresentava uma
subjetividade diferente da geração precedente. Socializados numa Itália já
industrializada, com meios de comunicação como a TV, e permanecendo mais tempo na
escola – até os 16 ou 18 anos – , a qual constituía um espaço-tempo para o
florescimento de uma cultura juvenil. Para esses jovens o local de trabalho não era mais
o centro de sua existência (havia de fato uma rejeição ou desgosto pelo trabalho), a
própria identidade como trabalhador se enfraquecia. Ao mesmo tempo portavam um
anti-autoritarismo e uma desilusão com o sistema político, com o PCI ou mesmo com os
grupos da esquerda extraparlamentar. Os antigos trabalhadores viam a nova geração que
chegava no final dos anos 1970 como preguiçosos e irresponsáveis336. O slogan “recusa
do trabalho”, presente entre os operaístas desde os anos 1960, ganhava mais faticidade
que nunca com essa geração que chegava ao mercado de trabalho.
No final dos anos 1960 surgiram os primeiros grupos feministas da esquerda
italiana. Mas seria nos anos 1970 que o movimento feminista se desenvolveria e
334 Cf. Katsiaficas (1997, p.41).335 Cf. Ginsborg (1990; Wright (2002).336 Cf. Barkan (1984).
Teorias da Mais-Valia Difusa
117
acabaria se tornando o mais influente na sociedade italiana, na esquerda italiana, e
mesmo nas práticas e na teoria dos grupos da esquerda extraparlamentar.
Do final de 1975 em diante o movimento feminista ganhou proporções
nacionais, alcançando seu auge em 1976. Além de colocar o pessoal como político, a
ênfase em formas não autoritárias e não hierárquicas de organização foram
características do movimento feminista italiano que exerceram grande influência na
esquerda italiana, embora não sem conflitos com suas organizações políticas. Essa
influência é explicitada por Negri e outros membros da Autonomia Operaia num texto
escrito em 1983:
O movimento feminista, com suas práticas de comunalismo e separatismo, sua crítica da política e das articulações sociais de Poder, sua profunda desconfiança de qualquer forma de “representação geral” de necessidades e desejos, seu amor pelas diferenças, deve ser visto como a forma arquetípica mais clara dessa nova fase do movimento. Ele forneceu a inspiração, quer explícita ou não, aos novos movimentos da juventude proletária da metade dos anos 1970337.
Junto a campanhas nacionais e vitoriosas pelo direito ao divórcio e pela
descriminalização do aborto, os grupos feministas estabeleceram uma série de espaços
para mulheres, de clínicas médicas a locais para troca de informações e encontros. Mais
do que outro movimento, as feministas enfatizavam a importância da organização em
pequenos grupos autônomos, ligados horizontalmente, ao contrário da organização em
comitês centrais, comum na esquerda338.
A reivindicação de salário para o trabalho doméstico, alicerçado na idéia de
que as mulheres eram exploradas fora da fábrica, teve influência sobretudo entre os
operaístas e pós-operaístas. Reivindicação que teve como uma das precursoras a
operaísta Maria Dalla Costa, que no início dos anos 1970, ao tentar mostrar que o
trabalho doméstico executado pelas mulheres produziria mais-valia, foi dos primeiros
operaístas a afirmar de forma coerente o trabalho produtivo para além daquele
envolvido no processo direto de produção339.
Em 1977 irrompeu um processo de lutas, ou de acirramento delas, tendo como
ponto de partida a ocupação da Universidade de Roma pelos estudantes. Embora os
conflitos nas fábricas não estivessem de todo ausentes, as lutas que caracterizaram a
337 “The feminist movement, with its practices of communalism and separatism, its critique of politics and the social articulations of Power, its deep distrust of any form of “general representation” of needs and desires, its love of differences, must be seen as the clearest archetypal form of this new phase of the movement. It provided the inspiration, whether explicitly or not, for the new movements of proletarian youth in the mid-1970s” (Negri, 1988, p.236).338 Cf. Katsiaficas (1997, p.49-50).339 Cf. Wright (2002, p.135).
Teorias da Mais-Valia Difusa
118
segunda metade dos anos 1970 na Itália, e que ficou genericamente conhecido por
‘movimento de 77’, foram protagonizadas principalmente por uma juventude que,
diferentemente da de outros países, unia a contracultura a um imaginário comunista e
proletário. Ao contrário, por exemplo, da Inglaterra, onde no mesmo período a
depressão econômica e o desemprego resultaram em expressões culturais como o punk,
na Itália a resposta dessa juventude teve vieses bem mais políticos. Embora tardia, a
contracultura na Itália era muito mais politizada340.
O heterogêneo movimento de 77 teve características de movimento de massa,
e, à diferença de 1969, que havia sido fruto de um boom econômico, 1977 foi
conseqüência de uma crise econômica e de elevado desemprego juvenil341. Para muitos,
se tivesse havido uma revolta operária como em 1969 ou 1973, uma situação
revolucionária teria ocorrido em 1977342. Os principais palcos de confrontos e conflitos
sociais em 1977 foram Roma e Bologna (governada pelo PCI): cidades sem muitas
indústrias e caracterizadas por uma produção descentralizada.
O espírito anti-hierárquico e anti-sexista era típico também do movimento de
77. No período, as auto-reduções não visavam contas de energia elétrica, mas tarifas de
transporte, entradas para cinema e apresentações musicais. Inúmeras rádios livres foram
postas no ar, e as ocupações de imóveis visavam não apenas moradia, mas um local para
atividades políticas e culturais. Era o surgimento dos chamados Centros Sociais. Em
Milão, por exemplo, havia 55 deles em 1977, envolvendo milhares de pessoas,
sobretudo jovens343. Dezenas de milhares se envolveram em manifestações e batalhas de
rua pelo país, com uma forte resposta repressiva chegando a fazer vítimas fatais, o que
levou a uma espiral de violência que acabou deixando pouco espaço para intervenções
não-violentas e facilitou a estratégia repressiva e de criminalização estatal.
A “desafecção do trabalho” por parte da juventude era tema debatido na
imprensa. O comportamento da juventude autônoma e comunista que formava o
‘movimento’ expressava um repúdio ao trabalho344. Sua subjetividade e prática se
orientavam para a satisfação de desejos e necessidades sem passar pelo mundo do
trabalho, que como vimos anteriormente, era encarado por essa geração como espaço-
tempo roubado da vida. Essa expressão antitrabalho, no entanto, vinha acompanhada em
340 Cf. Lumley (1990a).341 Cf. Abse (1985); Red Notes (1978).342 Cf. Katsiaficas (1997).343 Cf. Lumley (1990b); Ginsborg (1990).344 Cf. Lumley (1990b).
Teorias da Mais-Valia Difusa
119
geral de elevada politização, de um desejo comunista explícito, e até mesmo de uma
identidade proletária.
Cesare Battisti é um personagem típico da juventude militante que
protagonizou os conflitos sociais na segunda metade da década de 1970 na Itália. De
família de tradição comunista, entretanto rompeu com o stalinismo da geração anterior.
Envolveu-se com “expropriações” (assaltos e furtos) em meados dos anos 1970, lhe
rendendo dois anos de prisão. Foi então morar em um prédio ocupado por outros jovens
do ‘movimento’. A ocupação era espaço de discussão política, mas também de
socialização e de relações afetivas345. Em 1977 entra para o Proletários Armados pelo
Comunismo (PAC), uma das centenas de grupos da extrema-esquerda italiana da época,
e que fazia parte do arquipélago que compunha a Autonomia, da qual Negri fazia parte,
como membro do Grupo Gramsci. O PAC, como muitos grupos formados por ativistas
anticapitalistas e ambientalistas que surgiram na Europa e EUA nas décadas seguintes,
era na verdade um nome, uma bandeira, que poderia ser usado por qualquer um que se
identificasse com certos propósitos e princípios. Antes do PAC, Battisti costumava ir a
manifestações da Lotta Continua346 (que se dissolveu em 1976 em parte pelo choque
entre sua estrutura ainda por demais hierárquica e não-participativa com a subjetividade
que emergia através do feminismo e da nova geração).
O movimento de 77 se caracterizou também por um antagonismo explícito,
direto e até mesmo inevitável com o PCI, como partido da ordem, e pela condenação e
repressão ao movimento por parte do PCI (o que só aumentava a percepção de ser o PCI
partido da ordem vigente). O PCI na década de 1970 seguiu o caminho de acordo com a
Democracia Cristã (DC), que ficou conhecido como Compromisso Histórico. Nele,
teoricamente tentando evitar um golpe à direita como acontecido no Chile, o PCI
compartilharia o governo com a DC, no que isso implicava também em ter um papel de
repressão aos movimentos sociais e manutenção da ordem, isto é, da normalidade
econômica, social e política estabelecidas. O PCI e os sindicatos, representantes de uma
classe trabalhadora formalmente empregada, se opunham aos estudantes,
desempregados e “marginalizados” que protagonizavam o movimento de 77 fazendo
uso de um discurso, entre outros, que apontava uma oposição entre os que seriam os
produtores, o trabalho produtivo, ou seja, os operários (aqueles os quais o partido e os
345 Cf. Battisti (2008).346 Usar o jornal Lotta Continua (que sobreviveu à dissolução do grupo) no bolso de trás da calça era moda entre os jovens, e Battisti não fazia diferente.
Teorias da Mais-Valia Difusa
120
sindicatos representariam politicamente) e os setores parasitários. A separação
explicitava um apego a uma ética do trabalho, determinando a oposição entre aqueles
que participariam conscientemente do processo de produção e aqueles que se oporiam
ao processo produtivo. Ou seja, o discurso da circunscrição de classe produtiva aos
operários representados institucionalmente pelo PCI e pelos sindicatos, e a conseqüente
extensão das classes parasitárias a todos os demais, incluindo os sujeitos que davam
vida ao movimento de 77, com todo seu caráter subversivo e proposição anticapitalista,
era, nessas circunstâncias, um discurso conservador, que buscava legitimar a existência
do partido e das burocracias sindicais e cumprir o papel de combater ideologicamente o
movimento347. Discurso esse que se chocava frontalmente com o dos autonomistas,
como veremos mais adiante.
A derrota do movimento autônomo no final dos anos 1970 levou à
sobrevivência residual e marginal, ou subterrânea, de suas experiências e práticas.
A Autonomia Operaia
A AO, surgida da dissolução do PO em 1973, era inicialmente uma rede
formada principalmente por estudantes e jovens proletários, baseada sobretudo na
militância na fábrica348. Naquele ano, em Partito operaio contro il lavoro, Negri
conclamava a luta do proletariado contra o Estado, sob a promoção e liderança dos
trabalhadores das grandes fábricas349. Porém a AO foi perdendo sua base nas fábricas
devido à própria desafecção do trabalho e às dispensas de trabalhadores pelas
empresas350. E foi entre os jovens formados nos ciclos de auto-reduções e nas batalhas
de rua com a polícia e com os fascistas que ela começou a ganhar mais adeptos351. A
AO acabaria tendo como integrantes, como base, muitos jovens desempregados e
trabalhadores marginalizados politicamente, como, por exemplo, os trabalhadores do
347 Cf. Red Notes (1978).348 Cf. Bologna (s/d).349 Cf. Negri (2005a).350 Em 1974 se explicitaram divergências na AO entre operários da Alfa Romeo, para os quais o salário garantido (renda garantida) deveria significar garantia de emprego, e outros setores para os quais o salário garantido deveria significar a recusa do trabalho. Cf. Wright (1996).351 Cf. Wright (2002).
Teorias da Mais-Valia Difusa
121
serviço de saúde em Roma352. No seu relato autobiográfico, Cesare Battisti dá uma
descrição dos autônomos:
Descobri então que os Autônomos não eram exatamente iguais aos outros. Eram cabeças delinqüentes – como a minha, aliás – mas com um discurso coerente, argumentações inteligentes. Era jovens e velhos, ricos e pobres, héteros e homos, pés-rapados e intelectuais. Para eles, esquerda e direita pertenciam ao passado, pareciam ser os protótipos de um mundo que acabava de nascer. Loucos, um assunto novo, terrível e fascinante. Gostava deles. Com eles participei das “reapropriações proletárias”: uma definição que nos permitia enfeitar com uma conotação política os roubos e pequenos assaltos, esse autofinanciamento não reivindicado, mas maciçamente praticado pelos milhares de jovens insurretos, autônomos ou não, que se espalhavam então pelas ruas da Itália353.
O discurso teórico dos autonomistas também ia ao encontro da subjetividade
daqueles jovens comunistas, como Battisti, que declara ter ficado fascinado “pelos
discursos dos membros do PAC sobre uma “nova composição social”, em que o
centralismo operário já não era o incontornável motor revolucionário”354.
A AO era na verdade uma organização fluida e dispersa, que congregava vários
grupos autônomos, e que começaria a se desintegrar tão logo havia ganho hegemonia na
esquerda italiana355. No movimento de 77, diferentemente das experiências dos grupos
extraparlamentares de 68-69, segundo a percepção se Sergio Bologna, ela não teria sido
um elemento vindo de fora do movimento, mas constituído parte dele, principalmente
dentro dos segmentos “expropriados de poder político”356. Ilustrativo da posição
predominante na AO, em termos teóricos e de composição social, foi o evento ocorrido
em 1975 nos portões da Alfa Romeo, quando Negri e os autonomistas levaram jovens
desempregados até lá, de modo a tentar retirar os operários da fábrica de uma posição
concebida pelos autonomistas como corporativa – por terem, por exemplo, aceitado
trabalhar aos sábados para manter a produção. Mas o que ocorreu, ao invés de uma
unificação, foi um enfrentamento entre as duas partes357.
O desenvolvimento dos argumentos de Negri sobre a nova figura “operária”, o
operário social, era inseparável da AO como nova tendência política358. Até porque,
para Negri, cada composição de classe corresponderia a uma forma de organização
política. A forma de organização política da AO era assim imanente aos
352 Cf. Abse (1985).353 Battisti (2008, p.35-6).354 Battisti (2008, p.38).355 Cf. Wright (2002).356 Cf. Bologna (1978).357 Cf. Negri (2003d, p.38).358 Cf. Wright (2002).
Teorias da Mais-Valia Difusa
122
comportamentos de luta359. Para Negri e outros autonomistas, a AO expressava uma
nova subjetividade do movimento, e uma rejeição da política formal e dos mecanismos
de representação360. Por rejeitarem qualquer perspectiva de gestão alternativa do Estado,
não haveria sentido a existência de uma liderança centralizada do movimento. Cada
coletivo local que era parte da “área da Autonomia” possuía suas características
particulares de composição e interesse de classe, sendo essas diferenças entendidas não
como uma limitação, mas como sua razão de ser.
Na avaliação de Sergio Bologna, a AO teve a habilidade de casar a composição
de classe com um programa político, antecipando comportamentos de massa361. Mas já
enfraquecida devido a milhares de militantes presos, condenados ou exilados, Negri
rompe com a AO em 1981, a acusando de ainda carregar demasiado apego a concepções
organizativas bolcheviques anacrônicas e ao operário massa362.
Negri nos anos 1970
O operário social
Na década de 1970 poucas pessoas se autodenominavam operaísta363. Negri
deixara de se dizer operaísta em 1973, com o fim do PO. Viveu boa parte dos anos 1970
em Milão, onde teve a experiência de ver bairros “libertados”, nos quais não se
pagavam impostos, aluguéis, transportes364. Será em 1975, no texto Proletari e Stato
que ele apontará pela primeira vez a emergência de uma nova figura operária, o
operário social. A expressão já havia sido usada antes por Romano Alquati, para
designar o trabalho massificado que ia além da fronteira das fábricas, o relacionando ao
trabalho intelectual. Para Negri, no entanto, o operário social representaria mais o
conjunto do proletariado, resultado da generalização das lutas e crescente abstração e
socialização do trabalho, como bem pontua César Altamira365. Podemos entender o
operário social como a figura operária resultante de uma hegemonia do general
359 Cf. Cocco e Pilatti (2002).360 Cf. Negri (1988, p.236-237).361 Cf. Bologna (1977).362 Cf. Wright (1996).363 Cf. Bologna (s/d).364 Cf. Negri (2006, p.29).365 Cf. Altamira (2008, p.194).
Teorias da Mais-Valia Difusa
123
intellect, da crescente abstração e socialização do trabalho, e que seriam fenômenos
fundamentais que também levariam, posteriormente, nos anos 1990, ao conceito de
multidão.
A linha vermelha da abstração do trabalho se materializa cada vez mais. Depois do proletário de tornar operário, agora o processo é o inverso: o operário se torna operário terciário, operário social, operário proletário, proletário. Mas a figura se vê aufgehoben. Porque, nesse caso, nesse novo proletário, o específico não é a exclusão da prestação do trabalho capitalista; o que resulta fundamental, pelo contrário, é sua inclusão na totalidade do processo produtivo social e na extensão variável de suas condições366
No mesmo texto, Proletari e Stato, Negri aponta que a passagem do operário
massa ao operário social é uma passagem a um “novo horizonte de necessidades”, com
a “rebeldia proletária cobrindo todo o tecido da composição e do sistema de
necessidades”367. O operário social, na concepção de Negri, é produtor mediato e
imediato de mais-valia. Segundo ele, a temática do operário social foi se afirmando
através de uma determinada experiência do movimento, de lutas específicas de
proletários, principalmente nas grandes cidades do norte da Itália368.
Enquanto “verdade elementar marxista” as condições de luta do proletariado da
época imporiam se falar do operário social como algo central, já que o trabalho como
fonte de valor, revelado pelo ato de exploração teria se estendido à circulação369. O
operário social, portanto, não surge como proposição teórica deslocada das lutas do
movimento com o qual Negri se identificava. Ao contrário, está inexoravelmente ligado
ao movimento, aos grupos insubordinados e suas formas de luta e rebeldia.
A noção do operário social também operava em termos teóricos o conflito
prático do movimento de 77 com o PCI que apontamos anteriormente, ficando claro nas
palavras de Negri:
Quando nós afirmamos a natureza social do trabalho produtivo hoje, quer dizer, a eminência da figura do operário social como centro da organização revolucionária frente ao capitalismo desenvolvido, não estamos afirmando uma verdade sociológica, mas uma verdade dinâmica, uma verdade tendencial que já tem pernas para caminhar e, sobretudo, capacidade de desenvolvimento, isto é, de nos fazerver como vai se desenvolver hoje o processo de recomposição operária. Quando, por outro lado, se diz centralidade operária hoje, utilizando centralidade operária
366 “La línea roja de la abstracción del trabajo se materializa cada vez más. Después de que el proletariado se haya echo obrero, ahora el proceso es el inverso: el obrero se hace obrero terciário, obrero social, obrero proletário, proletário. Pero esta figura se ve aufgehoben. Porque, en esto caso, en esto nuevo proletariado, lo específico no es la exclusión de la prestación del trabajo capitalista; lo que resulta fundamental, por el contrario, es su inclusión en la totalidad del proceso productivo social y en el desenvolvimiento variable de sus condiciones” (Negri, 2004b, p.181).367 Negri (2004b, p.205-6).368 Negri (1980, p.18).369 Negri (1980, p.20).
Teorias da Mais-Valia Difusa
124
entre aspas como fazem os teóricos do PCI, essa afirmação não é na realidade outra coisa que a redução do projeto político operário à defesa, no melhor dos casos, dos interesses produtivos da classe operária enquanto classe operária de fábrica e, por conseqüência, à defesa do interesse burocrático de um setor político de manter sua participação corporativa na produção. (...) Dizer centralidade operária é dizer o contrário da centralidade operária efetiva, porque a centralidade operária efetiva é um processo de recomposição na qual o trabalho produtivo se estende socialmente, reconhece suas características de trabalho abstrato370
Como ressalta Giuseppe Cocco, o conceito de operário social rejeitava a
separação entre produtivos e improdutivos, concebendo a produtividade (e a de mais-
valia) independente de inserção numa relação salarial371. A preocupação de Negri com a
teoria do operário social, e com sua teoria em geral, era a “fundação do antagonismo”, e
não uma mera descrição supostamente objetiva da realidade372. Em um posfácio escrito
em 2003, ele deixa claro que a nova realidade subjetiva do operário social surge nas
análises da época como novo referente da análise materialista, ligada ao projeto
antagonista373. Para ele a centralidade do operário social apareceu tardiamente na Itália
em relação aos países capitalistas mais avançados. Nos EUA e Alemanha, por exemplo,
o 68 já teria sido produzido e conduzido pelo operário social, enquanto na Itália ele teria
sido a figura de 77. No entanto, na Itália, ao contrário do que ocorrera em outros países,
a passagem do operário massa ao operário social não teria se dado dentro de uma
derrota política, mas dentro da continuidade do movimento. Enquanto em outros países
essa passagem teria sido vivida como guetização e divisão, e até teorizada como tal, na
Itália ela teria ganho uma concretude política374. Podemos dizer que o operário social
tardio da Itália (em relação a outros países do chamado Primeiro Mundo) encontra
paralelo com a contracultura tardia italiana, e sua politização, junto à continuidade do
movimento de 68 a 77, teria evitado, a princípio, sua guetização.
370 “Cuando nosostros afirmamos la naturaleza social del trabajo productivo hoy, es decir, la eminencia de la figura del obrero social como centro de la organización revolucionaria frente al capitalismo desarrollado, no estamos afirmando uma verdad sociológica, sino uma verdad dinámica, uma verdad tendencial que ya tiene piernas para caminar y, sobre todo, capacidad de desarrollo, eso es, de hacernos ver cómo va desarrollándose hoy el proceso de recomposición obrera. Cuando, en cambio, se dice centralidad obrera hoy, utilizando centralidad obrera entre comillas como hacen los teóricos del PCI, esta afirmación no es en realidad otra cosa que la reducción del proyecto político obrero a la defensa, en el mejor dos casos, de los intereses productivos de la clase obrera en tanto que clase obrera de fábrica y, por consequiente, a la defensa del interes burocrático de um sector político en sostener su participación corporativa en la producción. (...) Decir centralidad obrera es decir lo contrario de la centralidad obrera efectiva, porque la centralidad obrera efectiva es un proceso de recomposición en el cual el trabajo productivo se extiende socialmente, reconece sus características de trabajo abstracto” (Negri, 1980, p.21).371 Cf. Cocco (2001, p.21).372 Cf. Negri (1980, p.65).373 Cf. Negri (2003c, p.122).374 Cf. Negri (2003c, p.33).
Teorias da Mais-Valia Difusa
125
Se a teoria do operário social surge a partir de conflitos e antagonismos
concretos e explicitados na sociedade italiana, ou seja, das lutas sociais dos anos 1970,
no entanto, como lembra Giuseppe Cocco, as conseqüências da teoria do operário social
teriam sido maiores a longo prazo do que no plano imediato das lutas que se davam
naquela mesma época375. Nela está a gênese dos atuais conceitos usados pelos pós-
operaístas.
A concepção de operário social de Negri, como novo retrato da composição de
classe, não era recebida sem críticas entre os próprios autonomistas de formação
operaísta, como Sergio Bologna, para o qual ao inventar uma nova figura social a qual
imputar o processo de libertação contra a exploração, Negri estaria jogando para baixo
do tapete as dificuldades que apresentavam naquela altura o operário massa376. Para
outros, como Roberto Battagia, o operário social de Negri era apenas análogo ao
operário massa, faltando no entanto características centrais que sustentavam este último,
como a estreita ligação entre as condições materiais de exploração e os comportamentos
políticos. O operário social seria assim uma coleção de diferentes sujeitos com
motivações completamente autônomas e portanto de limitado valor heurístico377.
Evoluções das posições de Negri
O texto de Negri Partito operaio contro il lavoro, de 1973, apresenta os
operários das grandes fábricas como hegemônicos teórica e politicamente, certamente
sob influência da retomada das lutas operárias naquele ano, em especial a ocupação da
Fiat de Mirafiori.
Em um posfácio a Crisi dello Stato-piano, escrito em 1974, Negri afirma que a
atualidade do comunismo, talvez pela primeira vez, se apresentava não como uma
questão de prefiguração, como visão de futuro, mas como uma prática material visível
no desenvolvimento da época. Se tal asserção pode ser vista como uma espécie de mito
soreliano, também parece querer se opor à idéia de transição, comum aos partidos
comunistas e ao marxismo dito ortodoxo.
Em Proletari e Stato ele apresenta uma visão da posição que representaria para
ele a classe trabalhadora italiana relativamente a dos outros países. Ela representaria um
375 Cf.Cocco (2001, p.21).376 Cf. Bologna (1976).377 Cf. Battagia (1981).
Teorias da Mais-Valia Difusa
126
ponto médio, de grande força e sugestão tanto às lutas nos países desenvolvidos quanto
nos subdesenvolvidos. Enquanto força produtiva, constituía-se em pólo de atração para
a revolução nos países subdesenvolvidos, e enquanto objetivos e capacidade de luta,
pelo seu comportamento de recusa do trabalho e apropriação, constituiria uma
referência na luta de classes nos países avançados.
Ao longo dos anos 1970 uma das preocupações de Negri era a unificação do
proletariado, isto é, dos operários das fábricas, do movimento das mulheres, dos
desempregados do sul, dos estudantes. No entanto essa aproximação, em termos gerais,
não ocorreu, chegando mesmo a haver estranhamento entre esses grupos sociais como
no episódio da Alfa Romeo que reportamos anteriormente. Em 1975, em Proletari e
Stato, texto que para ele seria uma formalização das experiências de luta de 1973 a
1977378, ele defende a reivindicação de um salário social (garantido) que unificaria o
proletariado. O salário garantido deveria ser utilizado para uma recomposição da frente
social de luta, da mesma forma que o seguro-desemprego (cassa integrazione) era usado
para garantir os comportamentos de recusa do trabalho. Serviria como forma de
neutralizar as tentativas de divisão salarial do proletariado, entre assalariados,
estudantes, mulheres e desempregados.
Em Proletari e Stato a demanda por salário garantido (como feita pelas
mulheres no trabalho doméstico) expunha o reconhecimento e valorização da extensão
do trabalho produtivo pelos proletários, a partir da prática da recusa do trabalho. Esses
grupos sociais, os quais era preocupação de Negri buscar unificar, principalmente na
segunda metade dos anos 1970 apareciam separados por comportamentos e
subjetividades, além de serem separados teoricamente pelo PCI. Asor Rosa, um dos
fundadores do operaísmo, aderindo depois ao PCI com Tronti, teorizou essa separação
em seus artigos sobre as “duas sociedades” em 1977. A “primeira sociedade” seria
aquela formada pela classe trabalhadora organizada (os trabalhadores teoricamente
representados pelos sindicatos e pelo PCI), e a “segunda sociedade” seria aquela
formada pela juventude “marginalizada” e desempregada, ou seja, grande parte da base
social dos autônomos, que se chocavam contra o PCI. Para Rosa, e para o PCI, os
sindicatos e o PCI representavam a “primeira sociedade”, sendo identificados como os
setores produtivos. A teoria e o discurso do PCI se direcionavam à separação entre os
operários e a juventude desempregada e “marginalizada”, procurando desqualificar essa
378 Cf. Negri (1980).
Teorias da Mais-Valia Difusa
127
última também através do conceito econômico de “improdutivos”, uma vez que só a
“primeira sociedade” seria produtiva (e organizada)379.
Negri e os autonomistas evidentemente se opunham a tal interpretação. Para
eles o movimento de 77, as auto-reduções, ocupações, apropriações e expropriações não
eram produto dos grupos, estratos ou setores “marginais” ou improdutivos. Tratava-se
de um fenômeno resultante de uma nova composição de classe, que estaria se tornando
a “primeira sociedade” (usando os termos de Rosa) do ponto de vista da sua capacidade
produtiva, da sua inteligência técnico-científica e das suas formas avançadas de
cooperação social380. Nessa discussão teórica com representantes do PCI já se via,
portanto, os traços do que nos anos 1990 os pós-operaístas chamariam de hegemonia do
trabalho imaterial. Sergio Bologna argumentava, por exemplo, que a “marginalização”
desses setores que formavam o movimento de 77 não era uma marginalização
produtiva, mas política, pela falta de representatividade nas organizações instituídas
(partidos e sindicatos) e pela ausência de legitimidade que essas organizações da classe
trabalhadora davam às necessidades e reivindicações expressadas por esses setores381.
Em Partito operaio contro il lavoro, de 1973, Negri se refere a um ciclo de
lutas por apropriação que deveria ser iniciado, no qual “todo potencial de trabalho
produtivo” estaria agrupado382. A qualificação de “produtivo” aparece de forma positiva
e, mesmo que não seja de uso central ou extensivo por Negri e pelos autonomistas, ela é
sempre estendida àqueles grupos sociais que lutam, que se insubordinam e com os quais
eles se identificam.
Em Il dominio e il sabotaggio, de 1977, Negri combate a separação e
hierarquização do proletariado feita com base numa concepção de produtivos, operada
pelo Estado e pelo PCI. Na sua crítica, ele se direciona a afirmar o salário como variável
independente da produção, como categoria política; a lei do valor seria imposta
politicamente, ato direto de dominação e violência. O salário não seria indício de
produtividade, mas meio de comando, de subordinação e hierarquização:
De fato, o que é o trabalho produtivo? Do ponto de vista do capital, aquela parte do trabalho social que se encontra sindicalizada, corporativizada e colocada na separação da hierarquia estatal. A indiferença com respeito ao valor produzido é, desse ponto de vista, igual à atenção prestada aos coeficientes de fidelidade ao sistema. (...) Incidir no mercado de trabalho para dividi-lo, para segmentá-lo, para hierarquizá-lo, quando precisamente nesse âmbito que o trabalho produtivo se
379 Cf. Rosa (1977).380 Cf. Negri (1988, p. 239).381 Cf. Bologna (1978).382 Negri (2005a, p.106).
Teorias da Mais-Valia Difusa
128
generalizou, “a pequena circulação” se tornou independente, a reprodução quer ser autovalorização, incidir, pois, nessa realidade acarreta um máximo de violência e de mistificação383.
Na segunda metade dos anos 1970, a leitura de Negri era de que o salário,
através da hierarquização da renda, era utilizado para quebrar a unidade do “trabalho
produtivo social”. A luta sobre o gasto público, e pelo salário social, seria a base para
essa unidade. O reconhecimento da unidade do trabalho social, de todo o trabalho
social, constituiria, naquele momento, “a única definição possível da produtividade do
trabalho”384.
Em 1975 Negri já questionava explicitamente a definição marxiana de trabalho
produtivo, no que ela excluiria diversas categorias (como até mesmo a dos policiais):
Contudo, continua tendo sentido, a tal grau de integração capitalista (através do Estado) da sociedade civil, essa compartimentação? São verdadeiramente improdutivos os trabalhadores que contribuem à produção da “harmonia social”? Ou, pelo contrário, não se deve modificar o conceito mesmo de trabalho produtivo em relação à definição marxiana, mas no sentido da tendência marxiana (“com o caráter cooperativo do processo de trabalho se amplia necessariamente o conceito de trabalho produtivo e do seu agente, isto é, do trabalhador produtivo. Para trabalhar produtivamente já não é necessário realizar pessoalmente um trabalho, basta ser um órgão do trabalhador global, desempenhar qualquer de suas funções subordinadas”), ao objeto que possa corresponder melhor – ampliando seu alcance conceitual – à extensão do domínio e do modo capitalista de produção hoje?385.
A tarefa subversiva do proletariado, então, seria “reconhecer a sociedade como
fábrica, o Estado como patrão, romper com o fetichismo da produtividade como
legitimação e remeter a legitimação às necessidades globais do proletariado”386. O
conjunto do trabalho vivo seria explorado, porém seria expulso às margens da
insignificância social toda vez que se representava como trabalho produtivo. Seria
383 “En efecto, ¿qué es el trabajo productivo en el Estado-renta? Desde el punto de vista del capital, aquella parte del trabajo social que se halla sindicalizada, corporativizada y colocada en la separación de la jerarquía estatal. La indiferencia con respecto al valor producido es, desde este punto de vista, igual a la atención prestada a los coeficientes de fidelidad al sistema. (...) Incidir en el mercado del trabajo para dividirlo, para segmentarlo, para jerarquizarlo, cuando precisamente en este ámbito que el trabajo productivo se ha generalizado, "la pequeña circulación" se ha vuelto independiente, la reproducción quiere ser autovalorización, incidir, pues, en esta realidad acarrea un máximo de violencia y de mistificación” (Negri, 2004b, p.300).384 Negri (2004b, p.302).385 “Sin embargo, ¿sigue tienendo sentido, a tal grado de la integración capitalista (a través del Estado) de la sociedad civil, esta compartimentación? ¿Son verdaderamente improductivos los trabajadores que contribuyen a la producción de la “armonía social”? ¿O, por el contrario, no habrá que modificar el concepto mismo de trabajo productivo com respecto a la definición marxiana, pero en el sentido de la tendência marxiana (“con el carácter cooperativo del proceso de trabajo se amplia necesariamente el concepto de trabajo productivo e del vehículo de este, es decir, del trabajador productivo. En lo sucesivo, para trabajar productivamente ya no es necesario acometer personalmente un trabajo, basta con ser el órgano del trabajador global, desempeñar cualquiera de sus funciones subordinadas”), al objeto de que pueda corresponder mejor – ampliando su alcance conceptual – a la extensión del domínio y del modo capitalista de producción hoy?” (Negri, 2003b, p.344-345).386 Negri (2003b, p.353).
Teorias da Mais-Valia Difusa
129
preciso, portanto, se reapropriar da produtividade social contra a sua expropriação
estatal, e reconhecer o novo sujeito da produção como sujeito revolucionário – ou,
muito mais provavelmente, podemos dizer, reconhecer o novo sujeito revolucionário
como sujeito da produção!
No ano seguinte ele iria afirmar que a máquina jurídica não se limitaria a ter
uma função essencial e improdutiva. Tratar-se-ia de função necessária e produtiva,
produção de poder e de mando: “Magistrados e peritos do Direito se encontram, no
preciso momento em que seu trabalho se torna produtivo, implicados na odiosa posição
de funcionários do mando capitalista direto no sistema de extorsão de trabalho vivo”387.
E em 1977 iria afirmar que o trabalho administrativo se torna trabalho
produtivo:
Quando, no capital social, a direção capitalista se transformou plenamente em Administração, isto é, quando a relativa (e/ou tendencialmente absoluta) deterioração da “sociedade civil” fez com que “a força produtiva social do trabalho vivo” se apresente por conseguinte “como força produtiva possuída por natureza pelo capital, como força produtiva imanente” no âmbito da organização de toda a sociedade, chegando a esse ponto temos a identidade despótica entre Administração e processos de produção social388.
Negri e os autonomistas operam um alargamento nada parcimonioso da
concepção de trabalho produtivo. E como para eles, citando Marx, o processo de
produção não se extingue na mercadoria389, quanto mais com a reestruturação
capitalista, o terreno da reprodução estaria dominado pelas categorias antagonistas da
produção e o trabalho necessário teria cada vez menos relação com os processos de
valorização. Era no terreno da reprodução que todo o proletariado estaria se
recompondo, ou deveria se recompor390. O que há de tentativa de descrição e o que há
de projeto de recomposição nessas afirmações de Negri é praticamente impossível
precisar.
Em 1978, numa série de aulas que iriam ser publicadas no ano seguinte como
Marx oltre Marx, Negri faz uma crítica à concepção de trabalho produtivo de Marx.
387 “Magistrados y expertos del derecho se encuentran, en el preciso momento en que su trabajo se torna productivo, implicados en la odiosa posición de funcionarios del mando capitalista directo en el sistema de extorsión del trabajo vivo” (Negri, 2003b, p.402).388 “Cuando, en el capital social, la direción capitalista se há transformado plenamente en Administración, es decir, cuando el relativo (y/o tendencialmente absoluto) deterioro de la “sociedad civil” hace que “la fuerza productiva social del trabajo vivo” se presente en lo sucesivo “como fuerza productiva poseída por naturaleza por el capital, como su fuerza productiva inmanente” en el âmbito de la organización de toda la sociedad, llegados a este punto tenemos la identidad despótica entre Administración y procesos de producción social” (Negri, 2003b, p.443).389 Cf. Negri (2003b, p.420-1).390 Cf. Negri (1980; 2003b).
Teorias da Mais-Valia Difusa
130
Para ele, Marx carregaria o peso do seu contexto histórico ao dar uma definição de
trabalho produtivo tão limitada, de modo a “exaltar o trabalho dos operários”391. Negri
apreende portanto a função política e historicamente situada da definição marxiana: a
concepção de trabalho produtivo de Marx sofreria assim os limites do movimento
operário de seu tempo, da axiologia socialista do trabalho manual. Concordando que
trabalho produtivo seria aquele que produz mais-valia, Negri no entanto argumenta que
em uma situação em que produção e reprodução estariam tão misturados não seria mais
possível fazer distinção entre trabalho produtivo e reprodutivo. Tal axiologia socialista
do trabalho manual, a qual estaria ligada a concepção de trabalho produtivo de Marx,
tornaria estéril tal concepção para se definir a “classe revolucionária”392. Ora, para
Negri tratava-se, do ponto de vista da classe trabalhadora, após a resposta capitalista da
descentralização da produção e do isolamento político do operário massa na fábrica às
lutas de 68-69, de insistir e lutar pela mais ampla definição de unidade de classe, de
alterar e estender o conceito de trabalho produtivo e eliminar o isolamento teórico do
conceito de operário massa393. Na sua visão havia uma crescente compreensão da
interconexão entre o trabalho produtivo e o trabalho de reprodução, compreensão essa
que seria expressada em uma grande gama de comportamentos e lutas sociais,
principalmente nos movimentos de massa da juventude e das mulheres.
Em Il dominio e il sabotaggio394, texto que segundo o próprio se dirigia aos
militantes da primavera de 1977, quando “o proletário juvenil se reconheceu como
sujeito revolucionário”395, Negri parece teorizar eventos como o do encontro de
operários e jovens desempregados na porta da Alfa Romeo em 1975. Partes do trecho
abaixo foram usados pelos seus críticos para tentar mostrar que ele possuía uma posição
a favor dos desempregados e, acima de tudo, anti-operária. Mas de fato a crítica de
Negri era conjuntural, centrada principalmente às burocracias sindicais e à posição
relativamente corporativa dos operários, que aos seus olhos eram pouco abertas às lutas
e expressões de outros setores proletários:
Convém não esquecer, não obstante, que alguns grupos operários, alguns estratos da classe operária permanecem ligados à dimensão do salário, a seus termos mistificados. O que significa que vivem das rendas. Na medida em que vivem das
391 Cf. Negri (1984, p.65).392 Cf. Negri (1984, p.183).393 Cf. Negri (1988, p.208-9).394 Em Il dominio e il sabotaggio Negri afirma entender a história do capital como uma história de contínuas operações de reordenação de modo a contrapor uma contínua ruptura que o movimento real do proletariado traria (Negri, 2005a, p.238).395 Negri (s/d).
Teorias da Mais-Valia Difusa
131
rendas, também dentro das grandes fábricas, roubam mais-valia proletária e se apropriam da mesma, são partícipes do racket do trabalho social ao mesmo título que seus patrões. Essas posições – e sobretudo a prática sindical que as nutre – hão de ser derrotadas, se for preciso usando a violência. Não será a primeira vez que uma manifestação de desempregados entra nas grandes fábricas e destrói, além da corrupção da aristocracia, a arrogância das rendas! Assim atuavam os desempregados ingleses na década de 1920, por exemplo, e com razão. No entanto, em nosso caso não se trata somente de desempregados. Aqui se trata de todos os protagonistas da produção social de valor que rechaçam a operação de destruição de sua unidade posta em marcha pelo capital: é preciso que os operários das grandes fábricas se reincorporem a essa frente de luta. É algo fundamental. A maioria social do proletariado, da força de trabalho socialmente produtiva, deve impor o tema e a prática da unidade, voltando a propô-la aos operários das grandes fábricas. As vanguardas de massas das grandes fábricas devem lutar, em conexão ao movimento proletário, para destruir nas fábricas o lixo parasitário que os sindicatos celebram e asseguram. (...) Com isso – ouço já a réplica dos chacais –não se afirma que o operário da Mirafiori não seja explorado: isso é a única coisa que interessa ler ao chacal para entrar em polêmica! Se sustenta que “o partido da Mirafiori” deve viver hoje a política da maioria proletária e que toda posição que se circunscreva à luta de fábrica (cuja necessidade não se coloca em juízo) e não se vincule à maioria proletária resulta fútil. A luta de fábrica deve viver dentro da maioria proletária. Por conseqüência, o lugar ocupado pelo salário na continuidade das lutas proletárias se estende hoje à luta sobre o gasto público. Só essa luta permite o pleno autorreconhecimento396
Nos anos 1970 foi especialmente importante no pensamento de Negri o
entendimento da contracultura como expressão de necessidades proletárias, de novas
exigências proletárias, que remeteriam continuamente ao processo produtivo397. Durante
esse período, de 1973 a 1977, afirmaria que a recusa do trabalho, concebida
anteriormente, segundo ele, quase sempre em termos totalmente teóricos, teria se
convertido em comportamento. Comportamento não só ligado ao absenteísmo e
resistência ao fluxo laboral, mas como algo cotidiano. Esses comportamentos eram por 396 “Conviene no olvidar, no obstante, que algunos grupos obreros, algunos estratos de la clase obrera permanecen ligados a la dimensión del salario, a sus términos mistificados. Lo que significa que viven de las rentas. En la medida que viven de las rentas, também dentro de las grandes fábricas, roban plusvalor proletario y se apropian del mismo, son partícipes del racket del trabajo social al mismo título que sus patrones. Estas posisciones – y sobre todo la práctica sindical que las nutre – han de ser derrotadas si es preciso usando la violencia. ¡No será la primera vez que una manifestación de parados entra en la grandes fábricas y destruye, amén de la corrupción de la aristocracia, la arrogancia de las rentas! Así actuaban los parados ingleses en la década de 1920, por ejemplo, y con razón. Sin embargo, en nuestro caso no se trata tan sólo de parados. Aquí se trata de todos los protagonistas de la producción social de valor que rechazan la operación de destrucción de su unidad puesta en marcha por el capital: es preciso que los obreros de las grandes fábricas se reincorporen a este frente de lucha. Es algo fundamental. La mayoría social del proletariado, de la fuerza de trabajo socialmente productiva, debe imponer el tema y la práctica de la unidad, volviendo a proponérsela a los obreros de las grandes fábricas. Las vanguardias de masas de las grandes fábricas deben luchar, en conexión al movimiento proletario, para destruir en las fábricas la basura parasitaria que los sindicatos celebran y garantizan. (...) “Con esto – me escuchar ya la réplica de los chacales – no se sostiene que el obrero de Mirafiori no esté explotado: ¡esto es lo único que les interesa leer al chacal para entrar en polémica! Se sostiene que el "partido de Mirafiori" debe vivir hoy la política de la mayoría proletaria y que toda posición que circunscriba a la lucha de fábrica (cuya necesidad no se pone en tela de juicio) y no se vincule a la mayoría proletaria resulta fútil. La lucha de fábrica debe vivir dentro de la mayoría proletaria. Por consiguiente, el lugar ocupado por el salario en la continuidad de las luchas proletarias se extiende hoy a la lucha sobre el gasto público. Sólo esta lucha permite el pleno autorreconocimiento” (Negri, 2004b, p.302-303).397 Cf. Negri (1980).
Teorias da Mais-Valia Difusa
132
sua vez entendidos como potencial linha política a adotar, como indicação de luta, como
possibilidade de se tornarem generalizadas, como tendência.
Retrospectivamente e usando conceitos atuais no seu pensamento, Negri
concebe que a questão nos anos 1970 era a de “passar da hegemonia da classe
trabalhadora na fábrica à hegemonia das multidões na metrópole”398. Essa
multiplicidade ou pluralidade do sujeito revolucionário, que seria incorporado mais
enfaticamente através do conceito de multidão nos anos 1990, já era enaltecido e
apreendido por ele como parte da experiência do 77 italiano. Ao lado da contraposição
de classe haveria a contraposição da multiplicidade à unidade do poder, à unidade que
trivializaria as diferenças. Seriam essas as duas forças estrategicamente direcionadas
contra o poder399. O indivíduo social de Marx no Grundrisse, seria multilateralidade. O
mais alto grau de diferença seria a mais alta proximidade ao comunismo. Essa
multiplicidade e diferenças seriam um atributo substancial para o desenvolvimento da
riqueza do proletariado. O comunismo seria portanto a negação de uma homogeneidade
imposta pelo capital400.
Em Marx oltre Marx ele buscará numa interpretação do Grundrisse uma base
para a teorização dos conflitos sociais presenciado por ele nos anos 1970. Nele, ele
reafirma a autonomia da classe trabalhadora em relação ao desenvolvimento do capital e
a imanência da luta de classes para a estrutura do capital, tanto para o crescimento
quanto para a crise. E irá encontrar no Grundrisse o suporte para defender que a partir
de um certo ponto de desenvolvimento o comando capitalista deixaria de ser necessário.
E o comunismo, por sua vez, entendido como imanente, dado de modo inverso nas
categorias do capital401, definido como uma práxis constituinte cujo conteúdo seria a
abolição do trabalho.
O movimento de 77 teria implicado uma crise teórica, da qual ele também não
teria escapado. Segundo ele, aquele que “depois de 1977 fala em termos velhos, está
morto”402. Porém, o novo vocabulário de Negri se desenvolve pouco a pouco...
Para ele, portanto, era importante tentar reabsorver a riqueza e a novidade que
os movimentos conseguiram determinar e não interpretá-las com as mesmas categorias
398 Negri (2007a; p.190).399 Cf. Negri (1980, p.159).400 Cf. Negri, 1984).401 Cf. Negri (1984, p.216).402 Cf. Negri (1980, p. 162).
Teorias da Mais-Valia Difusa
133
de antes403. Ao mesmo tempo, uma questão no pós-77 seria saber se essa nova realidade
admitiria uma leitura em termos marxistas, isto é, referida a uma concepção de classes
em luta. E nesse sentido ele faz uma autocrítica, tendo a impressão de que até então
havia recuperado textos de Marx e os havia esticado até cobrir os novos fenômenos,
quando a questão seria a partir desses novos fenômenos voltar a verificar a temática
marxista404. A prática coletiva do proletariado seria o “motor teórico”405, havendo a
necessidade de experiências de organização e luta para a investigação teórica406.
403 Cf. Negri (1980).404 Cf. Negri (1980).405 Negri (1984, p.182).406 Cf. Negri (1980).
Teorias da Mais-Valia Difusa
134
Capítulo VII
A Década de 1980
Antonio Negri foi preso em abril de 1979 com outros professores da
Universidade de Pádua, resultado da forte repressão do Estado contra o movimento
social, a AO, e os grupos da esquerda extraparlamentar em geral. Do final dos anos
1970 ao início dos 1980 dezenas milhares de militantes foram presos, milhares
condenados, e milhares tiveram que se exilar.
Negri foi mantido em prisão preventiva até 1983, quando foi eleito deputado
pelo Partido Radical para que ganhasse liberdade através da imunidade parlamentar.
Mas essa imunidade foi cassada pelos próprios deputados, o levando a fugir para a
França. Só retornaria à Itália em 1997, para cumprir o resto da pena a que foi condenado
após a fuga. Enfrentou diversas acusações enquanto esteve preso preventivamente entre
1979 e 1983, sendo condenado por insurreição armada contra o Estado e por
responsabilidade moral pelos confrontos que ocorreram de 1973 a 1977 entre militantes
e a polícia em Milão.
Nos anos 1980 houve um claro declínio dos movimentos sociais na vida
pública italiana407. A vitória da direção da Fiat sobre os operários em outubro de 1980
foi um marco da reconquista capitalista, mudando a correlação de forças como não se
via há mais de dez anos. O custo relativo da força de trabalho voltou a níveis anteriores
a 1968. A classe trabalhadora voltou à defensiva, ao mesmo tempo em que o peso
407 Cf. Lumley (1990b).
Teorias da Mais-Valia Difusa
135
numérico dos trabalhadores de fábrica diminuía frente ao aumento do terciário. Junto a
isso, aumentava a diferença entre setores com garantias sociais e os sem garantia, ou
seja, os precarizados. Enfim, nos anos 1980, em termos de expansão e difusão de um
modelo de produção e de regulação social pós-fordista, a Itália seguiu a tendência da
maioria dos países de capitalismo avançado. No entanto, as condições sociais e de
inferiorização encontradas pelos imigrantes do sul da Itália nos anos 1950 e 1960
passariam a partir dos anos 1980 a serem enfrentadas por imigrantes estrangeiros, em
grande parte africanos408.
Os autonomistas e a Autonomia como tendência política ficaram reduzidos na
sua prática aos Centros Sociais, ganhando aspecto subcultural mais acentuado, algo que
se modificaria em parte, ganhando novo fôlego político nos anos 1990, sob influência
do levante zapatista409.
Segundo o próprio Negri, seus escritos na prisão e logo após sua fuga traziam a
inquietação em descobrir “como perder e não ser derrotado”, e a ansiedade em
identificar o paradigma do pós-moderno410.
Em Crisi dello Stato-crisi411, de 1980, Negri discute que a pluralidade subjetiva
que compunha o movimento dos anos 1970 fracassou em conseguir uma expressão
política comum que fosse além de seus fragmentos, tornando o movimento mais
facilmente dividido, seletivamente reprimido ou guetizado. Na Alemanha,
especialmente, a guetização do próprio movimento autônomo do final dos anos 1970412
teria sido, para ele, uma das causas da sua derrota. A produtividade dos movimentos de
autovalorização413 (evidente principalmente no gueto underground) teria sido
recuperada pela segregação do mercado de trabalho, e a autovalorização assim reduzida
a negócio414.
A essa altura, já afirmava que com a subsunção real do trabalho, o tempo de
trabalho social se tornaria o próprio tempo de vida, e a análise portanto deveria sair da
fábrica para a metrópole. E quando o tempo de produção se torna o tempo de vida, o
408 Cf. Ginsborg (1990).409 Cf. Bull (2001).410 Cf. Casarino; Negri (2008).411 Nesse artigo Negri deixa transparecer uma influência baudrillardiana, ao afirmar que a reprodução capitalista do simulacro (político, econômico e informacional) seria então a arma básica de dominação.412 Sobre o “movimento autônomo” na Alemanha, ver Katsiaficas (1997).413 O conceito de autovalorização, usado principalmente por Negri desde os anos 1970, se refere a formasde organização social relativamente autônomas das relações de produção capitalistas e do controle do Estado. Seria o conjunto de processos sociais que constituem uma subjetividade coletiva alternativa e autônoma, dentro e contra a sociedade capitalista.414 Cf. Negri (1988).
Teorias da Mais-Valia Difusa
136
capitalista só mediria aquilo que ele comanda. Propõe uma “volta à Fiat”, como faziam
os velhos operaístas, mas dessa vez para provar a “hegemonia e o status majoritário
(tanto quantitativa quanto qualitativamente) dos movimentos de recomposição do
operário social sobre todos os outros setores ou estratos da classe”415.
Em Macchina tempo, de 1981, ele procura mostrar que na situação de
subsunção real o tempo não poderia mais medir o valor. A externalidade do valor
acabaria, e sem externalidade o processo de valorização se tornaria circular, tautológico,
e a forma da equivalência – que foi a medida do tempo de trabalho – se tornaria
simplesmente um efeito da coerção. O valor e a mais-valia se tornariam comando. E
quando, como na subsunção real, a produtividade se tornaria sistêmica, a distinção entre
os mecanismos de extração de mais-valia absoluta e relativa entrariam em crise. Haveria
apenas a abstração da mais-valia tendo como base a cooperação funcional de todo
trabalho social; somente a organização da exploração como comando que se expressaria
sobre todo o trabalho social416.
Segundo o próprio Antonio Negri, Macchina tempo e o estudo sobre Spinoza
L’anomalia selvaggia417 tentavam, em um momento de derrota, identificar e escapar do
que havia de errado no marxismo418. Negri foi leitor de Spinoza na adolescência, e o
retorno ao filósofo holandês àquela altura, era visto por ele também como uma tábua de
salvação do revolucionário em meio à crise do marxismo. O retorno a Spinoza viria da
necessidade de tentar descrever a recomposição do poder na época, assim como a
expansão das lutas sobre todo o terreno social419.
Em Spinoza, ele irá se deparar com o conceito de multidão, que inspirará seu
próprio desenvolvimento do conceito duas décadas depois. Na interpretação de Negri, a
democracia para Spinoza seria a política da multidão organizada na produção420.
Multidão que teria por base a universalidade humana, constituindo um conjunto de
singularidades e o fundamento das liberdades universais. Ele observa, no entanto, que o
conceito de multidão de Spinoza, por ser ambíguo e como esquema de imaginação, seria
insuficiente para definir um sujeito político concreto. Mas talvez o mais importante
apoio que a releitura de Spinoza forneceu a ele tenha sido a assimilação da ontologia
spinoziana. Nela, ele apreendeu a impossibilidade de destruição da revolução sem a
415 Negri (1988, p.197).416 Cf. Negri (2003c).417 Publicado em 1981.418 Cf. Casarino; Negri (2008).419 Cf. Negri (2000).420 Cf. Negri (2000, p.15).
Teorias da Mais-Valia Difusa
137
destruição do ser, remetendo assim a uma ontologia do sujeito revolucionário421. O que
para o PCI, no início dos anos 1980, seria incorporado ao conceito de classe média, para
Negri, retrospectivamente, seria a existência de “novas multidões”422, as quais o PCI
mistificaria ao associá-las àquela classe.
Morando na França a partir de 1983, encontrou um país, segundo ele, sem
lutas, sendo a única possibilidade de movimento ao qual participar a “marcha dos
Beurs”423, em dezembro de 1983, que reuniu 100 mil Beurs – descendentes de africanos
muçulmanos – numa passeata de Marselha a Paris.
Principalmente nos anos 1980, Negri parece ter dado pouca importância às
lutas que ocorriam fora da França, e particularmente as que envolviam os “velhos”
trabalhadores, como por exemplo a dos mineiros ingleses em 1984424, como salienta
César Altamira425. Ou seja, aqueles estratos da classe, mais próximos às características
do operário massa, pareceram importar menos a ele, ou ele se sentir menos identificado
com suas lutas. Possivelmente por conta da sua teoria, uma vez constituída a partir de
comportamentos e de lutas – que o fizeram formular a tese do operário social – , se
voltar desde então a determinar qual seriam os setores mais avançados, em termos
históricos, tirando daí conclusões políticas. Atenção que não lhe faltou aos quinze dias
de lutas dos estudantes universitários e secundaristas franceses contra as propostas de
reforma educacional do governo, no final de 1986. Talvez por essas o ajudarem a
teorizar e confirmar a emergência de um sujeito que seria ao mesmo tempo intelectual,
produtivo e rebelde426. Se em 1968 os estudantes buscavam a legitimação de suas lutas
nas organizações operárias e nas fábricas, na leitura de Negri, agora eram os
trabalhadores que olhavam para os estudantes427. A liderança e legitimidade estariam
com os últimos. Tal entendimento pode explicar a maior atenção que Negri dava às
lutas desse “novo sujeito”, em relação à dos “velhos” trabalhadores: em certo sentido
esse novo sujeito estaria associado a setores considerados “avançados”, que portariam
uma tendência histórica. Escrevendo após as lutas estudantis de 1986 na França, ele
diria que os estudantes seriam “aforismos da nova natureza do trabalho produtivo,
421 Cf. Negri (2000).422 Negri (2007a, p.195).423 Cf. Negri (2006).424 A greve durou um ano, e sua derrota marcou o avanço da agenda neoliberal no Reino Unido.425 Cf. Altamira (2008).426 Cf. Negri (2005d, p.47-8).427 Cf. Negri (2005d).
Teorias da Mais-Valia Difusa
138
traços dos novos processos de uma formação intelectual do proletariado”428. Os
estudantes representariam assim a tendência da nova qualidade do proletariado e do
trabalho. E é nessa tentativa de relacionar sua produção teórica com a luta estudantil de
1986 que ele utilizará pela primeira vez a idéia de hegemonia do trabalho imaterial,
embora usasse a essa altura o termo intelectual em vez de imaterial:
Como operadores intelectuais (como funções sempre cambiantes do trabalho intelectual e de suas condições materiais), e como protagonistas de um movimento geral e irresistível que leva à hegemonia do trabalho intelectual, os estudantes são, através do seu movimento, a manifestação de uma nova formação de subjetividade429
Em carta a Félix Guattari em 1984, Negri aponta que o método de verificação
na prática imediata, que teria sido usado anteriormente por ele e pelos operaístas para
ajustar o programa político com a prática, não seria mais realista430. Antes, por exemplo,
o critério da verdade da recusa do trabalho era paralisar a fábrica. No entanto ele deixa
de apontar qual teria passado a ser então o método e o critério de verdade. Teria esse
método empirista ou pragmatista perdido a validade pelo refluxo nas lutas e a
dificuldade de verificação prática? Seria pela dificuldade de verificação prática através
de um sujeito, o operário social – tão difuso e sem lócus específico, diferentemente do
operário massa em sua fábrica?
Nessa mesma carta – publicada em The Politics of Subversion – Negri
apresenta uma concepção histórico-evolutiva de formas de organização e consciência de
classe. Concepção essa com aspecto linear e determinista. Considerando essa ótica,
desenvolvida pelo operaísmo, e considerada por ele insuperada e insuperável, enxerga a
história da organização de classe, nas suas formas anarquista, social-democrata,
socialista e leninista como seguindo uma direção evolutiva dada pela composição de
classe. Nesse sentido, o leninismo teria ido além do anarquismo e da social-democracia,
os superando. Da mesma forma, ele prevê então que, as lutas por libertação atingindo
um ponto crítico, o “trabalhador da automação e computadorização social” iria, numa
nova forma social de organização e luta de libertação, ir além do leninismo, o
superando431. Idéia que confluiria na década seguinte ao conceito de multidão.
428 Negri (2005d, p.52).429 “As intellectual operators (as ever changing functions of intellectual labour and of its material conditions), and as the protagonists of a general and inarrestable movement towards the hegemony of intellectual labour, the students are, through their movement, the manifestation of a new formation of subjectivity” (Negri, 2005d, p.50).430 Cf. Negri (2005d).431 Negri (2005d, p.163).
Teorias da Mais-Valia Difusa
139
Em The Politics of Subversion – livro escrito na segunda metade da década de
1980 – dá prosseguimento à sua tese do operário social, como desenvolvida na segunda
metade da década de 1970. A passagem do operário massa ao operário social
corresponderia à da hegemonia da produção da fábrica à hegemonia da produção
socializada432, e à “hegemonia do operário social sobre toda a sociedade”433. Essa
produção socializada significaria que a sociedade seria explorada pelo capital como tal.
Aqui, mais do que um proletariado difuso no terreno social, é a sociedade como tal, na
sua totalidade, que aparece como objeto de exploração.
Ainda em The Politics of Subversion ele ressalta que o operário massa foi
concebido e se tornou realidade só quando seu período já estava para acabar, e, ao
contrário, a concepção do operário social teria sido uma antecipação, tanto cognitiva
quanto política. Mas podemos dizer que uma vez teorizado o operário social como novo
sujeito revolucionário, como novo paradigma da composição de classe, Negri nessa
obra faz desse sujeito o agente histórico numa concepção teleológica de história
semelhante a de Marx. E de modo semelhante como Marx chegou a apoiar e justificar o
expansionismo capitalista, às custas de injustiças e mortes, por estarem se acordo com
um telos434, Negri apoiou a desregulamentação trabalhista em curso, contra o que ele
chamava de lideranças de um movimento de trabalhadores corporativista, de modo a
facilitar a luta de classe do operário social, e a criar as condições necessárias para um
novo modo de produção435.
Antecipando o que seria mais extensamente desenvolvido anos depois, através
do conceito de trabalho imaterial, Negri já apontava que a característica mais aparente
do trabalho produtivo do operário social consistia no fato de ser organizador da
cooperação social. E essa cooperação social é que seria expropriada pelo capital no
capitalismo avançado. O trabalho produtivo se encontraria em todo lugar, e a produção,
a circulação e a reprodução teriam se tornado uma rede uniforme e indiferenciada. E se
para o operário massa o capital gerava adequadas condições salariais, para o operário
social o capital tentaria estabelecer as condições sociais nas quais a comunicação
432 Cf. Negri (2005d, p.74).433 Negri (2005d, p.50).434 Quanto a isso, ver, por exemplo, o artigo de João Bernardo, Marxismo e Nacionalismo, em <http://passapalavra.info/?p=4140>.435 Cf. Negri (2005d).
Teorias da Mais-Valia Difusa
140
pudesse acontecer. Assim, a comunicação seria para o operário social o que a relação
salarial teria sido para o operário massa436.
Nos anos 1980 Negri continuaria propondo o salário social (renda garantida e
serviços sociais públicos gratuitos/subvencionados) como forma de unificação dos
estratos da classe trabalhadora, juntando empregados e desempregados.
436 Cf. Negri (2005d).
Teorias da Mais-Valia Difusa
141
Capítulo VIII
De 1990 a 2009:
a hegemonia do trabalho imaterial e a multidão
As lutas no período
Negri participa em 1989 da criação da revista Futur Antérieur. Será em meio
ao grupo de pesquisadores em torno dela que nascerão e se desenvolverão os conceitos
de hegemonia do trabalho imaterial e de multidão ao longo dos anos 1990.
No segundo número da revista, em 1990, Negri afirma que as lutas agora não
seriam mais no interior e contra o modo de produção, mas do exterior e contra. A
autonomia seria um pressuposto e não mais o fim.
Já com o conceito de trabalho imaterial construído, ele leria em 1996 as lutas
estudantis francesas de dez anos antes como “as primeiras manifestações de revolta do
trabalho imaterial”437.
Elicio Panteleo escrevendo em Futur Antérieur em 1994, destacava lutas que
aconteceram na França da década de 1980 até então, apontando a criação das
coordenações de ferroviários, assistentes sociais e enfermeiros entre 1987 e 1990. Em
1989 ocorreu uma luta na Peugeot-Sochaux, que teria como protagonistas trabalhadores
técnicos e novos operários “reestruturados”. Luta que obteve vitória parcial, mas que na
437 Negri (1996d).
Teorias da Mais-Valia Difusa
142
leitura de Pantaleo teria sido importante por um novo sujeito que começaria a aparecer:
esse trabalhador “reestruturado”, que ele chamaria também de “imaterial”, e que estaria
presente na empresa, nos serviços, assim como na universidade e na formação contínua.
Uma luta dos trabalhadores da Air France em 1992 foi lida por ele como nascida sobre o
terreno da organização autônoma do trabalho imaterial, conduzida pelos técnicos da
manutenção, da logística, funcionários bilíngües do atendimento e da tripulação, em
suma, os que formariam segundo ele a cadeia de comunicação e de terceirização
comercial que estariam no âmago do trabalho imaterial. Em 1992, na França, também
irromperam lutas de agricultores, trabalhadores da Renault-Cléon, o movimento dos
enfermeiros, trabalhadores da saúde, caminhoneiros, entre outros. Mas foi a luta dos
estudantes universitários e secundaristas, de março de 1994, contra o contrato de
inserção profissional (CIP)438 que teria sido para ele a primeira manifestação madura de
luta vitoriosa do “trabalhador imaterial” e também “a demonstração de sua hegemonia
social contra a estratégia do capitalismo coletivo pós-fordista”439
Entre 1991 e 1992 se deu também a luta dos trabalhadores intermitentes do
teatro, cinema e televisão (intermitentes do espetáculo como se dizia). Na interpretação
de Corsani, Lazzarato e Negri, nessa luta pela primeira vez essa nova força de trabalho
(imaterial) teria se reconhecido como sujeito coletivo – embora as clivagens entre as
profissões fossem ainda muito profundas – e como ator social440.
O ano de 1994 seria também o do levante zapatista no México. Luta que,
segundo o próprio Negri, teria exercido grande impacto no grupo em torno de Futur
Antérieur441. Mas a luta dos anos 1990 que exerceu maior influência sobre Negri no seu
exílio francês e, de maneira geral, sobre os pós-operaístas reunidos em Futur
Antérieur442, foi a ocorrida em novembro e dezembro de 1995 contra o Plano Juppé, que
previa uma série de reformas econômicas estruturais e orçamentárias, no sentido da
desregulamentação e liberalização da atividade econômica. O Plano afetava a
seguridade, previa congelamento salarial e de efetivos para o funcionalismo público,
privatização de serviços como energia elétrica, ferrovias, correios, telecomunicações
etc. As greves e mobilizações tiveram nos ferroviários da estatal SNC e nos
trabalhadores do transporte de Paris (da RATP) seus principais pilares. Os transportes
438 O CIP consistia na redução do salário mínimo para novos ingressantes no mercado de trabalho.439 Pantaleo (1994).440 Cf. Corsani, Lazzarato e Negri (1996, p.142).441 Cf. Negri (2007a).442 Importante frisar que nem todos da revista Futur Antérieur vinham da tradição operaísta.
Teorias da Mais-Valia Difusa
143
ficaram paralisados em Paris por semanas, assim como outros serviços públicos. As
paralisações tiveram grande apoio popular, se constituindo no maior movimento de
massa na França desde maio de 68. Negri viu nessa luta uma unificação da metrópole
em torno do interesse coletivo, do caráter público e comunitário dos serviços, o caminho
para o estabelecimento do conceito de comum – conceito que busca definir uma idéia de
público não-estatal443. No entanto, diante de um fenômeno político de vulto, ele e seus
companheiros se viram impotentes para agir politicamente. Impotência que ele descreve
como uma experiência de solidão; pois só restava a possibilidade de continuar um
trabalho sociológico444. Na década seguinte ele apontaria algumas limitações da luta
parisiense de 1995: primeiro, ela teria precisado encontrar uma dimensão de circulação
global, sustentada por potências materiais445; segundo, ele reveria até certo ponto sua
interpretação de que teria se tratado de uma luta dissociada de corporativismo446.
Nos anos 1990 houve uma expansão dos Centros Sociais pela Itália, em relação
à década anterior. Em 1997 havia cerca de 130 deles447. Considerados sobreviventes
residuais do movimento de 77, inclusive por Negri448, foi nesse meio social e político,
considerado um dos mais dinâmicos da esquerda italiana449, que as idéias pós-operaístas
e os conceitos de trabalho imaterial e multidão encontraram maior receptividade e
tiveram maior influência. Em 1996, sob influência do zapatismo, vários Centros Sociais
formaram a rede ou associação Ya Basta. No ano seguinte surgem os Tute Bianchi, ou
“Macacões Brancos”, que, como o nome diz, se vestiam de branco e usavam formas de
enfrentamento não-violento em manifestações de rua. Os Tute Bianchi acabariam se
tornando anos depois a fração italiana mais conhecida e ativa do que ficou conhecido
como movimento antiglobalização450. Surgidos dos Centros Sociais, os Tute Bianchi se
443 Cf. Negri (2001b; 2008). Sobre o conceito de comum, ver Negri (2008) e Hardt e Negri (2005).444 Cf. Negri (2001b).445 Cf. Negri (2003a).446 Cf. Negri (2007a).447 Cf. Wright (2000).448 Cf. Negri (2007a).449 Cf. Wright (2000).450 Os Tute Bianchi se tornaram uma das frações mais proeminentes do movimento antiglobalização. Tiveram origem nos centros sociais italianos, confundindo-se com a rede Ya Basta, de solidariedade aos zapatistas. Sua forma de ação acabou sendo copiada em outros países, como na Espanha e na Inglaterra. Seu nome deriva dos macacões brancos que vestiam nas manifestações. Outra característica visual eram as proteções que usavam, como capacetes, espumas, escudos, canos, todos utilizando materiais cotidianos. Os Tute Bianchi assim procuravam ter uma atitude de confronto não-violento com a polícia, procurando mostrar da onde partia a violência. Sua origem remonta a meados dos anos 1990 em Milão. No outono de 1994 o prefeito de Milão comandou o despejo do centro social e squat Leoncavallo afirmando que dali em diante os squatters não seriam mais do que fantasmas vagando pela cidade. A idéia foi utilizada contra ele, e durante uma grande manifestação inúmeros “fantasmas” em macacões brancos atacaram a polícia e causaram um distúrbio no centro da cidade. Após esse episódio, os “tute bianchi” se
Teorias da Mais-Valia Difusa
144
confundiam com a própria Ya Basta. A influência das idéias pós-operaístas no Ya
Basta/Tute Bianchi fica clara a partir da declaração de ativistas desses grupos, ou
mesmo pelo discurso em seus documentos e pelas suas reivindicações, como a de renda
básica, tema recorrente entre os pós-operaístas. Essa proximidade entre a visão política
predominante nos Centros Sociais e as teorias pós-operaístas é até mesmo natural, uma
vez que ambos possuem descendência do movimento de 77. O próprio Negri considera
ligados historicamente, como sujeito que atravessa o tempo, os militantes do movimento
de 77, os dos Centros Sociais, passando pelo movimento Pantera (de ocupações de
universidades italianas no início da década de 1990) até os Tute Bianchi e o movimento
antiglobalização451.
Wu Ming 1, pseudônimo de um dos responsáveis por escrever os comunicados
dos Tute Bianchi, considera que os conceitos de Negri e do que chamamos aqui de pós-
operaísmo tiveram enorme influência nos setores de esquerda vindos dos Centros
Sociais desde os anos 1980452. Ao mesmo tempo, as teorias pós-operaístas iam ao
encontro do perfil e subjetividade dos que formavam os Centros Sociais: em sua maioria
jovens desempregados, precarizados com trabalhos temporários e que desenvolviam
atividades culturais e comunicativas. O ativista Hobo, dos Tute Bianchi, chega até
mesmo a afirmar que a experiência dos Tute Bianchi teria se iniciado a partir das
pesquisas desenvolvidas por Negri e Lazzarato sobre trabalho imaterial, e que havia um
contínuo feedback entre os intelectuais e o movimento453.
O fato é que até os dias de hoje existe uma convergência do programa político
dos intelectuais pós-operaístas e de grande parte dos militantes dos Centros Sociais
italianos. Além disso, conceitos e idéias pós-operaístas como de produção biopolítica,
trabalho imaterial, multidão, entre outros, são lugar-comum no discurso desses
militantes454, e transparecem através de suas práticas, como a da tentativa de estruturar e
difundir o que eles chamam de bio-sindicalismo.
O fenômeno da confluência de movimentos sociais e de manifestações em
cúpulas de organismos gestores da ordem econômica global na virada da década de
1990 para 2000, que acabou sendo mais conhecido por “movimento antiglobalização” tornariam uma sub-seção organizada do Leoncavallo, servindo de segurança nas manifestações e defendendo o centro social de outros ataques.451 Cf. Negri (2007b).452 Cf. Wu Ming 1 (2001).453 Cf. Keir (2004).454 Esse lugar-comum desses conceitos e idéias nos seus discursos pude apreender, por exemplo, através das discussões que se desenrolaram na lista de e-mail Radical Theory Forum quando da convocação de um encontro europeu de Centros Sociais na virada de 2008 para 2009.
Teorias da Mais-Valia Difusa
145
após a cobertura midiática, fez com que o pensamento de Antonio Negri, já de volta à
Itália, ganhasse novamente proeminência, e desta vez em nível global. Empire, escrito
com Michael Hardt, coincidindo não somente em lançamento mas também em temática
com o auge das manifestações “antiglobalização”, fez com que seus autores fossem
alçados ao patamar de intelectuais ou teóricos do movimento. Em grande medida eles
encontraram respaldo nas tendências que apresentava o “movimento dos movimentos”.
Certamente por já possuírem proximidade e aceitação dentro da fração italiana do
movimento, que era uma das mais ativas e influentes da Europa, o nome de Antonio
Negri acabou, até devidamente, bastante associado a esse movimento. Catapultado do
passado, como ele mesmo nota, pelo movimento que apareceu midiaticamente no plano
mundial em Seattle e pelo sucesso também mundial de Empire, Negri voltou à “linha de
frente”, o que finalmente o fez se sentir de volta do exílio455. E foi nesse ciclo global de
lutas que constituíram esse “movimento de movimentos” que Negri e Hardt viram o
exemplo político mais plenamente realizado do conceito de multidão456. Cada luta ou
movimento mantendo sua singularidade e se conectando em rede com os outros, sem
um centro. Os movimentos ou eventos de Seattle e Gênova, respectivamente em 1999 e
2001, expressaram para Negri uma “recomposição multitudinária” (de diversidade,
singularidade): uma recomposição social e política, e que não seria movimento
estudantil ou de classe (em sentido identitário)457.
Após o ciclo antiglobalização, Negri vê o novo ciclo de lutas que se abre como
sendo o dos trabalhadores precários458. Protestos de 1° de Maio focando questões
relativas à precariedade têm ocorrido em diversas cidades européias, sendo expressão do
que seria esse novo ciclo de lutas. O 1° de Maio dos precários surgiu em 2001 em
Milão, impulsionado por militantes de Centros Sociais, os mesmos que, comungando as
perspectivas pós-operaístas, tentam dar impulso ao bio-sindicalismo, a uma organização
de luta que se adéqüe à produção biopolítica (produção estendida à vida, para além do
trabalho) e à precariedade, que caracterizariam o pós-fordismo.
455 Cf. Negri (2006, p.182).456 Cf. Hardt e Negri (2005).457 Cf. Negri (2007a).458 Cf. Negri (2007a).
Teorias da Mais-Valia Difusa
146
O conceito de trabalho imaterial
Trabalho imaterial foi um conceito usado pela primeira vez em 1990, por
Maurizio Lazzarato, embora sem uma definição mais rigorosa além da que poderia ser
apreendida pela leitura do artigo em que ele aparece. Em Les caprices du flux - les
mutations technologiques du point de vue de ceux qui les vivent, publicado em Futur
Antérieur, Lazzarato analisa as mudanças no trabalho no interior da fábrica, procurando
evidenciar a centralidade da comunicação e da subjetividade dos operários no processo
de trabalho. Já nesse artigo, o trabalho imaterial aparece incorporado à idéia de
tendência à sua centralidade na produção. Ou seja, o que aparece como primordial não é
o entendimento simplesmente da natureza do trabalho imaterial, mas antes de tudo da
tendência à sua hegemonia. Algo que fica claro também no artigo Travail immatériel et
subjectivité, publicado por Negri e Lazzarato em 1991, já no subtítulo do mesmo: “Na
direção da hegemonia do trabalho imaterial”. Em toda a obra de Negri, no uso do
conceito de trabalho imaterial, claramente o que lhe interessa, tornando-se portanto seu
foco, é a tendencial hegemonia do trabalho imaterial, e só a partir desse interesse que a
investigação sobre a natureza e características do trabalho imaterial ganha sentido.
Hegemonia que teria se iniciado com a reestruturação produtiva nos anos 1970, a partir
da qual a personalidade e subjetividade do trabalhador tenderiam a se tornar cada vez
mais importantes à produção, tendo que ser organizada e controlada459.
Foi em 1992, no artigo Le concept du Travail Immatériel, que Lazzarato deu
uma primeira definição, mais rigorosa e bem delimitada, de trabalho imaterial, o
trabalho que produz o conteúdo informacional e cultural da mercadoria:
A quantidade importante de pesquisas empíricas sobre as novas formas de organização do trabalho, e uma rica reflexão teórica sobre a questão, começam a fazer emergir um novo conceito de trabalho e das novas relações de poder que ele implica. Uma primeira síntese desses resultados, conduzido segundo um ponto de vista particular (aquele da definição da composição técnica e subjetivo-política da classe trabalhadora), poderia ser expresso pelo conceito de trabalho imaterial, o trabalho imaterial sendo o trabalho que produz o conteúdo informacional e cultural da mercadoria. Esse conceito faz referência a duas fenomenologias diferentes do trabalho: de um lado, no que concerne o “conteúdo informacional” da mercadoria, ele faz alusão diretamente às modificações do trabalho operário nas grandes empresas da indústria e do terciário onde as tarefas de trabalho imediato são cada vez mais subordinadas à capacidade de tratamento da informação e de comunicação horizontal e vertical. Por outro lado, no que concerne a atividade que produz o “conteúdo cultural” da mercadoria, ele faz alusão a uma série de atividades que, normalmente, não são codificadas como trabalho. Isto é, todas as atividades que pretendem definir e fixar normas culturais e artísticas, as modas, os
459 Cf. Lazzarato; Negri (1991).
Teorias da Mais-Valia Difusa
147
gostos, os padrões de consumo e mais estrategicamente a opinião pública. Antigamente reservadas à burguesia e a seus filhos, elas têm sido investidas, desde o final dos anos 70, pelo que se tem chamando de “intelectualidade de massa”460.
No ano seguinte, em Le cycle de production immatérielle, Lazzarato reforçaria
que o valor de uso do trabalho imaterial estaria essencialmente no conteúdo informativo
e cultural da mercadoria produzida por ele. Frisando também no mesmo artigo que o
trabalho imaterial produziria acima de tudo relação social (de inovação, de produção, de
consumo). A mercadoria produzida por ele criaria o ambiente ideológico e cultural do
consumidor.
Em 1994, Negri e Hardt associam o trabalho imaterial ao trabalho intelectual,
afetivo e técnico-científico: “O trabalho nas nossas sociedades tende, de fato, a
configurar-se de maneira cada vez mais precisa, como trabalho imaterial – trabalho
intelectual, afetivo e técnico-científico, o trabalho do ciborgue”461. Se nesse trecho
podemos perceber um vínculo forte entre trabalho imaterial e trabalho intelectual, essa
aproximação parecerá ainda mais forte em artigo de Negri publicado no ano seguinte
em Futur Antérieur:
É evidente que nossos “miseráveis” não são aqueles que uma intelectualidade separada deveria libertar nos séculos passados. Enquanto força de trabalho intelectual, flexível e móvel, somos freqüentemente os miseráveis: o trabalho intelectual é o trabalho produtivo e explorado. Nós, intelectuais, somos uma força de trabalho – mas uma força de trabalho mais rica e mais potente que nunca. Seremos capazes de resultar a transformação da intelectualidade de massa em sujeito revolucionário, de enriquecer politicamente a produção de subjetividade?462
460 “La quantité désormais importante des recherches empiriques sur les nouvelles formes d’organisation du travail, et une riche réflexion théorique sur la question, commencent à dégager un nouveau concept de travail et les nouvelles relations de pouvoir qu’il implique. Une première synthèse de ces résultats, conduite selon un point de vue particulier (celui de la définition de la composition technique et subjectivo-politique de la classe ouvrière), pourrait être exprimée par le concept de travail immatériel, le travail immatériel étant le travail qui produit le contenu informationnel et culturel de la marchandise. Ce concept fait référence à deux phénoménologies différentes du travail: d’un côté, pour ce qui concerne le "contenu informationnel" de la marchandise, il fait allusion directement aux modifications du travail ouvrier dans les grandes entreprises de l’industrie et du tertiaire où les tâches de travail immédiat sont de plus en plus subordonnées à la capacité de traitement de l’information et de communication horizontale et verticale. De l’autre côté, pour ce qui concerne l’activité qui produit le "contenu culturel" de la marchandise, il fait allusion à une série d’activités qui, normalement, ne sont pas codifiées comme travail. C’est-à-dire toutes les activités qui essayent de définir et de fixer les normes culturelles et artistiques, les modes, les goûts, les standards de consommation et plus stratégiquement l’opinion publique. Autrefois réservées à la bourgeoisie et à ses enfants, elles ont été investies, depuis la fin des années 70, par ce qu’on a appelé l’ "intellectualité de masse"” (Lazzarato, 1992).461 Hardt; Negri (2004a, p.22-3).462 “Il est évident que nos "miséraux" ne sont pas ceux qu’une intellectualité séparée devait libérer dans les siècles passés. En tant que force de travail intellectuel, flexible et mobile, nous sommes souvent les miséreux: le travail intellectuel est le travail productif et exploité. Nous, intellectuels, nous sommes une force de travail - mais une force de travail plus riche et plus puissante que jamais. Serons-nous capables de suivre la transformation de l’intellectualité de masse en sujet révolutionnaire, d’enrichir politiquement la production de subjectivité?” (Negri, 1995).
Teorias da Mais-Valia Difusa
148
Podemos perceber também que Negri nesse artigo buscava associar a
qualidade de produtivo, e até mesmo de forma exclusiva, ao trabalho intelectual, ou
imaterial.
O trabalho afetivo teria aparecido, de certa forma, como contraponto à ênfase
da idéia de trabalho imaterial como trabalho intelectual, até então presente nos autores
pós-operaístas, como apontam Negri e Hardt numa autocrítica em Empire. E se em
meados dos anos 1990 o trabalho afetivo aparece já como um dos tipos de trabalho
imaterial, no entanto será ao longo da década de 1990 e na seguinte que ele ganharia
mais espaço na teorização de Negri e Hardt. Com o conceito de trabalho afetivo eles
visavam também o aspecto corporal da produção e do trabalho imateriais. O trabalho
afetivo seria aquele relacionado à interação e contato humano, particularmente presentes
nos serviços de saúde e na indústria de entretenimento: “Esse trabalho é imaterial,
mesmo se ele é corporal e afetivo, no sentido que seu produto é intangível, um
sentimento de relaxamento, bem-estar, satisfação, excitação ou paixão”463. Em 1994,
Hardt e Negri já ressaltavam que o trabalho do general intellect não era menos corporal
que intelectual464.
Em Le Bassin de travail immatériel, produzido entre 1991 e 1994, Antonio
Negri, Maurizio Lazzarato e Antonella Corsani apresentam uma definição de trabalho
imaterial:
De maneira preliminar, pode-se definir trabalho imaterial como a atividade que produz o conteúdo cultural e informativo da mercadoria e de seu ciclo de produção. O trabalho imaterial constitui a atividade de uma força de trabalho que obriga a questionar as definições clássicas de trabalho e de força de trabalho, pois a qualificação de produtor de trabalho imaterial resulta de uma síntese de diferentes tipos de saber-fazer: aqueles das profissões liberais no que concerne o conteúdo “culturo-informativo” de criatividade, imaginação, e de trabalho manual e técnico, aquele do precário que sabe recorrer inteligentemente ao mesmo tempo ao trabalho oficialmente remunerado, ao trabalho informal e aos benefícios para desempregados465.
Nessa nova definição eles incluem explicitamente o trabalho artesanal e aquele
do trabalhador precário. Inclusões que discutiremos mais adiante, no que elas parecem
463 “This labor is immaterial, even if it is corporeal and affective, in the sense that its products are intangible, a feeling of ease, well-being, satisfaction, excitement or passion” (Hardt; Negri, 2001, p.292).464 Cf. Hardt; Negri (2004a).465 “De façon préliminaire, on peut definir le travail immatériel comme l’activité produisant le contenu culturel et informatif de la marchandise e de son cycle de production. Le travail immatériel constitue l’activité d’une force de travail qui oblige à mettre en cause les définitons classiques du travail e de la force de travail, car la qualification du producteur de travail immatériel resulte d’une synthèse de différents types de savoir-faire: celui dês professions libérales pour ce qui concerne le contenu “culturo-informatif” de créativité, imagination et travail manuel et technique, celui du précaire qui sait recourir intelligmment à la fois au travail officiellement remunere, au travail au noir et aux allocations de chômage” (Corsani; Lazzarato; Negri, 1996, p.29).
Teorias da Mais-Valia Difusa
149
ser ad hocs de modo a estender o conceito para se adequar a categorias de trabalhadores
que de outra forma se veriam excluídas da abrangência do mesmo. Ao longo da mesma
obra os autores apontam também outras aproximações a uma definição de trabalho
imaterial. Frisam que o conceito não reenvia a uma essência espiritual, mas à atividade
de trabalho que se aplica à materialidade da produção através de instrumentos
intelectuais, de conteúdos culturais e informativos. O trabalho imaterial, segundo eles,
seria informação e comunicação, e portanto linguagem. As redes de trabalho imaterial
constituiriam antes de tudo redes lingüísticas. Ele produziria mercadorias, a moda e
fundamentalmente nossa maneira de ver, de sentir, de pensar, de consumir. Produziria,
portanto, em outras palavras, subjetividade; um produto para o consumidor e um
consumidor para o produto466. Importante notar, contudo, que Corsani, Lazzarato e
Negri salientam que o trabalho imaterial enquanto aquele que produz o conteúdo
cultural das mercadorias seria ainda um conceito limitado467.
Em 1997, Negri faria questão de frisar que, quando falava de trabalho
imaterial, não falava simplesmente de trabalho intelectual. Buscaria assim se distanciar
da limitação do conceito e com a forte associação ao trabalho intelectual que o conceito
possuía, principalmente nos primeiros anos de seu uso. Assim, segundo ele, falar de
trabalho imaterial era falar também de trabalho corporal, trabalho que compreenderia o
intelecto em sua “plasticidade”, em sua “capacidade de se inserir em qualquer
situação”468. Ele iria tentar esclarecer posteriormente que essa “nova face do trabalho
produtivo (intelectual, relacional, lingüístico e afetivo mais do que físico, individual,
muscular, instrumental) não atenua, mas acentua a corporalidade e materialidade do
trabalho”469.
Em Empire, Hardt e Negri definem o trabalho imaterial como o “trabalho que
produz um bem imaterial, como um serviço, um produto cultural, conhecimento, ou
comunicação”470. Destacando o setor de serviços, elevado ao topo da economia
informacional pelo trabalho imaterial, eles distinguem basicamente três tipos de
trabalho imaterial no setor: i) o envolvido na produção industrial informatizada; ii) o de
tarefas analíticas e simbólicas; iii) o da produção e manipulação de afetos, que requer
contato humano virtual ou real.
466 Cf. Corsani; Lazzarato; Negri (1996).467 Cf. Corsani, Lazzarato e Negri (1996).468 Negri (2001b, p.47).469 Negri (2005e).470 Hardt; Negri (2001, p.290).
Teorias da Mais-Valia Difusa
150
Em Cinque lezioni su Impero, de 2003, Negri apresenta a seguinte definição de
trabalho imaterial: “por “trabalho imaterial” se considera o conjunto de atividades
intelectuais, comunicativas, afetivas expressas pelos sujeitos e pelos movimentos
sociais”471. Vê-se que nesse caso o trabalho imaterial se encontra referido muito além de
termos exclusivamente econômicos. Há uma clara indistinção do econômico e social, ou
do econômico e cultural, na própria definição. Os agentes do trabalho imaterial não são
referidos como “trabalhadores”, nem o trabalho imaterial como atividade executada no
tempo de trabalho. Os agentes são simplesmente “sujeitos” e até mesmo “movimentos
sociais”. E foi com o intuito de enfatizar que a produção imaterial não possui um
sentido estritamente econômico, que ela estaria além do tempo de trabalho (tanto como
resultado quanto como explicação), englobando o conjunto da vida nas suas dimensões
sociais, culturais e políticas, assim como para enfatizar seu caráter corporal, que Negri e
Hardt passariam com mais freqüência a adotar a expressão produção biopolítica, como
explicam em Multitude.
Obra seguinte de Negri e Hardt após o muito lido, comentado e criticado
Empire, em Multitude os autores buscam, numa linguagem mais clara e acessível que
nunca – incorporando assim as críticas que consideravam Empire escrito em linguagem
pouco acessível – , esclarecer conceitos, e melhor edificá-los, provavelmente como
resposta e absorção das críticas dirigidas a Empire. O trabalho imaterial, em Multitude,
é definido como aquele que “cria produtos imateriais, como o conhecimento, a
informação, a comunicação, uma relação ou uma reação emocional”472. Com a
pretensão de apenas ser uma abordagem inicial do conceito em Multitude, Hardt e Negri
concebem o trabalho imaterial como o conjunto formado pelo trabalho primordialmente
intelectual e lingüístico (como a solução de problemas, as análises e expressões
lingüísticas) e pelo trabalho afetivo (como o de comissários de bordo e atendentes,
trabalhos que produzem e manipulam sensações). O trabalho no setor de serviços, o
trabalho intelectual e o trabalho cognitivo remeteriam a aspectos do trabalho imaterial,
mas nenhum deles o apreenderia em sua generalidade473.
Como Michael Hardt enfatiza, o que é imaterial no trabalho imaterial é o
produto do trabalho e não o trabalho474. E nesse sentido Hardt e Negri demonstram a
consciência de que a expressão “trabalho imaterial” é ambígua, e que seria melhor
471 Negri (2003a, p.92).472 Hardt; Negri (2005, p.149).473 Cf. Hardt; Negri (2005).474 Cf. Hardt (2003).
Teorias da Mais-Valia Difusa
151
chamá-lo por “trabalho biopolítico”475. Como bem aponta Cesare Casarino, a expressão
“trabalho imaterial” cria facilmente interpretações errôneas, levando a um debate
desfocado sobre o conceito. Além disso, reproduz uma oposição binária entre
material/imaterial476. Com certa freqüência Negri irá usar a expressão “trabalho
material” para se reportar ao trabalho taylorista, na fábrica, como se pode notar quando
ele aborda a relação entre trabalho material e trabalho imaterial na China e nos países
avançados477. E nessa relação é importante notar também que Negri afirma que quanto
mais se avança na construção de produtos do trabalho imaterial e no desenvolvimento
tecnológico, mais se necessita de substratos de abastecimento de trabalho material478.
Paolo Virno, filósofo e também ex-militante da Autonomia nos anos 1970,
possui uma importante contribuição dentro do pensamento pós-operaísta, sobre os
mesmos temas e interesses que Negri, Hardt, Lazzarato e outros abordam utilizando o
conceito de trabalho imaterial. Porém, Virno pouco faz uso desse conceito, utilizando
com freqüência, em vez dele, diretamente o conceito de general intellect ou de
intelectualidade de massa. Para ele, o general intellect não deveria ser confundido ou
reduzido à aplicação das ciências naturais ao processo produtivo, e nem a obras do
pensamento. Ele deveria ser compreendido como a simples habilidade de pensar elevada
ao patamar de recurso público; ou seja, as mais genéricas potencialidades da mente:
“faculdade de linguagem, disposição ao aprendizado, capacidade de abstrair e
correlacionar, e tendência à auto-reflexão. Por general intellect é preciso compreender,
ao pé da letra, intelecto em geral”479.
A intelectualidade de massa, para Virno, seria o general intellect enquanto
trabalho vivo480. Se na leitura de Virno o general intellect em Marx estaria mais
associado à sua incorporação e expressão no capital fixo, isto é, na maquinaria, por
outro lado ele e os pós-operaístas enfatizam que o principal aspecto do general intellect
no pós-fordismo seria existir na forma do próprio trabalho vivo. Assim que, para Negri,
o general intellect se constituiria em um corpo lingüístico tornado máquina
biopolítica481. Virno esclarece que, no seu uso, a intelectualidade de massa é depositária
dos saberes não divisíveis das pessoas, de sua cooperação lingüística. Seria, portanto,
475 Cf. Hardt; Negri (2005).476 Cf. Casarino; Negri (2008).477 Cf. Negri (2007a).478 Cf. Negri (2007a, p.86).479 Virno (2008b, p.97).480 Cf. Virno (2003b).481 Cf. Negri (2003c).
Teorias da Mais-Valia Difusa
152
segundo ele, um erro entender a intelectualidade de massa como um conjunto de
funções (informáticos, pesquisadores, empregados da indústria cultural)482. Por
intelectualidade de massa, ao contrário, buscar-se-ia designar uma qualidade e sinal
distintivo de toda força de trabalho da era pós-fordista, isto é, da era em que a
informação e a comunicação teriam um papel essencial no processo de produção.
Características do trabalho imaterial
Tão importante quanto apreender as definições de trabalho imaterial é
apreender suas características gerais. Na verdade, pode-se dizer que seus aspectos e
características são fundamentais para uma apreensão integral do conceito.
No segundo número de Futur Antérieur, em 1990, Negri apontava algumas
características do trabalho no que ele vislumbrava ser um novo modo de produção (pós-
fordismo). Características essas que seriam incorporadas ao conceito de trabalho
imaterial: o trabalho no pós-fordismo se manifestaria principalmente como trabalho
abstrato e imaterial (quanto à forma), como trabalho complexo e cooperativo (quanto à
quantidade) e cada vez mais como trabalho intelectual e científico (quanto à
qualidade)483. Podemos perceber, a partir desses apontamentos de Negri, como, no
início da sua formulação o conceito de trabalho imaterial estava realmente ligado a uma
idéia de imaterialidade do trabalho (e não apenas de seu produto) e a atividades mais
propriamente intelectuais e científicas. Nesse mesmo artigo ele irá indicar pela primeira
vez uma característica que estará contida no conceito de trabalho imaterial, de suma
importância dentro do pensamento pós-operaísta por suas potencialidades políticas, ou
mesmo míticas, no sentido que aqui usamos. A organização do trabalho vivo seria agora
pré-constituída, isto é, independente do poder capitalista. A cooperação produtiva seria
cada vez mais, hoje em dia, prévia e independente da função do empresário.
Conseqüentemente o capital não seria mais organizador da força de trabalho, mas gestor
da organização autônoma da força de trabalho.
Em artigo anteriormente referido de Lazzarato e Negri, eles defendem que o
trabalho imaterial possuiria um lugar estratégico na organização global da produção,
sendo central no ciclo social de produção da fábrica difusa (produção descentralizada,
482 Cf. Virno (2003b).483 Cf. Negri (1990).
Teorias da Mais-Valia Difusa
153
terceirizada). E será também nesse artigo, seguindo o já exposto por Negri, que irão
ressaltar a tese de que “o ciclo do trabalho imaterial é pré-constituído por uma força de
trabalho social e autônoma, capaz de organizar o próprio trabalho e as próprias relações
com a empresa”484. Em outras palavras, o ciclo do trabalho imaterial se caracterizaria
por uma “independência da atividade produtiva em face à organização capitalista”485. O
trabalho imaterial seria assim um tipo de trabalho ao mesmo tempo, nos dias de hoje,
autônomo e hegemônico, que “não precisa mais do capital e da sua ordem social, mas se
põe imediatamente como livre e constitutivo”486. No ano seguinte, 1992, Lazzarato
colocará a mesma hipótese, segundo ele tirada da fenomenologia de uma pesquisa
sociológica, nos seguintes termos:
O caráter social do trabalho não aparece mais como capitalista, mas como resultado e pressuposto do próprio trabalho. Da mesma forma as condições sociais da produção não aparecem mais como capitalistas pois o capital as encontra como “determinações” que são constituídas independentemente da sua vontade e de sua ação, paradoxalmente quando o capitalismo se tornou o único modo de produção planetário e na impossibilidade de representar a “produção” como sua “produção”. O capital não pode mais se apresentar como sujeito da produção social. Ele pode se apresentar somente como seu comandante. O capitalista é obrigado a promover, encorajar, desenvolver a subjetividade do trabalhador e sua cooperação pois a chave da produtividade está no trabalho coletivo e autônomo487.
O capitalista apareceria assim como parasitário (ou mais parasitário que
nunca), diante de uma cooperação produtiva pré-constituída. O trabalho imaterial
existiria em forma imediatamente coletiva de rede e fluxos488. E esse aspecto
cooperativo seria imanente ao trabalho imaterial, não seria algo imposto ou organizado
de fora. Nesse sentido a força de trabalho não seria “capital variável”, organizada e
ativada pelo capital. As mentes e corpos se ligariam em cooperação, mas essa outra
mente e corpo ao qual se ligar já não seria fornecido pelo capital489. Disso decorreria
que o trabalho imaterial já não necessitaria de comando (o comando do capital)490. A
484 Lazzarato; Negri (2001, p.26).485 Lazzarato; Negri (2001, p.31).486 Lazzarato; Negri (2001, p.36).487 “le caractère social du travail n’apparaît plus comme capitaliste, mais comme résultat et présupposé du travail même. De la même façon les conditions sociales de la production n’apparaissent plus comme capitalistes car le capital les trouve comme “déterminations” qui se sont constituées indépendamment de sa volonté et de son action, paradoxalement quand le capitalisme est devenu le seul mode de production planétaire est dans l’impossibilité de représenter la “production” comme sa “production”. Le Capital ne peut plus se présenter comme sujet de la production sociale. Il peut se présenter seulement comme son commandement. Le capitaliste est obligé de promouvoir, encourager, développer la subjectivité ouvrière et sa coopération car la clef de la productivité est dans le travail collectif et autonome” (Lazzarato, 1992).488 Cf. Lazzarato (1993); Corsani; Lazzarato; Negri (1996).489 Cf. Hardt; Negri (2001).490 Cf. Negri (2003a, p.153).
Teorias da Mais-Valia Difusa
154
criação da cooperação no paradigma da produção imaterial teria se tornado interna ao
trabalho, e portanto externa ao capital491.
Lazzarato e Negri apontam outra importante característica do trabalho
imaterial, ou melhor, uma importante conseqüência de sua natureza: sua diferença em
relação à categoria clássica do trabalho, implodindo a distinção entre trabalho e não-
trabalho, entre produção e consumo, entre produção e reprodução:
A categoria clássica de trabalho se demonstra absolutamente insuficiente para dar conta da atividade do trabalho imaterial. Dentro desta atividade, é sempre mais difícil distinguir o tempo de trabalho do tempo da produção ou do tempo livre. Encontramo-nos em tempo de vida global, na qual é quase sempre impossível distinguir entre o tempo produtivo e o tempo de lazer. Em outras palavras, pode-se dizer que quando o trabalho se transforma em trabalho imaterial e o trabalho imaterial é reconhecido como base fundamental da produção, este processo não investe somente a produção, mas a forma inteira do ciclo “reprodução-consumo”: o trabalho imaterial não se reproduz (e não reproduz a sociedade) na forma de exploração, mas na forma de reprodução de subjetividade492.
Em Le Bassin de Travail Immatériel, argumentam que o trabalho imaterial não
apenas desfaz a separação entre tempo de trabalho e tempo de vida, mas também a
oposição entre trabalho manual e intelectual. Isto é, o trabalho (imaterial) passa a ser
manual e intelectual, corporal e mental, fazendo uso do corpo e da subjetividade,
diferentemente do trabalho taylorista:
As formas que tomam a atividade produtiva pós-fordista integram e modificam as oposições entre trabalho manual e trabalho intelectual. O trabalho imaterial, paradigma do pós-fordismo, pode ser definido justamente como ultrapassagem dessa divisão/separação493.
Outro ponto característico do trabalho imaterial a se destacar está no fato de ele
constituir muito do que em economia se chama externalidades positivas494.
Conhecimentos, redes sociais, linguagens – produção imaterial – acabariam se
constituindo numa espécie de matéria-prima utilizada pela empresa capitalista, como
externalidades positivas, presentes principalmente nos centros urbanos. Essa produção
imaterial enquadrada como externalidades é o que Hardt e Negri chamarão de comum,
aquilo que é produzido de forma colaborativa e que cria novos meios de colaboração,
aquilo que está presente em todos, e produto de todos495.
491 Cf. Hardt; Negri (2001).492 Lazzarato; Negri (2001, p.30).493 “Les formes que prend l’activité productive post-fordiste intègrent et modifient les oppositions entre travail manuel et travail intellectuel. Le travail immatériel, paradigme du post-fordisme, peut être defini justement comme dépassement de cette division/separation” (Corsani; Lazzarato; Negri, 1996, p.151).494 Cf. Corsani; Lazzarato; Negri (1996); Hardt; Negri (2005).495 Cf. Hardt e Negri (2005).
Teorias da Mais-Valia Difusa
155
Em Multitude, a obra mais recente em que Negri discute o trabalho imaterial
com certa profundidade, a característica que é considerada como principal dele é a de
produzir comunicação, relações sociais e cooperação.
O conceito de hegemonia do trabalho imaterial
Como já dissemos anteriormente, para Negri e os pós-operaístas o conceito de
trabalho imaterial só ganha importância e interesse na medida em que, na percepção
deles, essa forma de trabalho ou de atividade produtiva seria hegemônica ou tenderia à
hegemonia na atual configuração do modo de produção. Em um posfácio escrito em
2003, Negri explica, nesse sentido, que o conceito de trabalho imaterial foi formulado
como função hegemônica do capitalismo que surgia (o de uma sociedade de serviços e
produção descentralizada)496. Do início dos anos 1990 até hoje, hegemonia do trabalho
imaterial tem sido uma expressão que aparece com importante freqüência em artigos,
livros e falas de Lazzarato, Negri e Hardt. Tentaremos precisar a que esses autores se
referem ao falar de hegemonia do trabalho imaterial, e com qual propósito.
No segundo número de Futur Antérieur, antes de Lazzarato ter cunhado o
termo trabalho imaterial, Negri utiliza “hegemonia social do trabalho técnico-
científico”, sem no entanto defini-la mais rigorosamente. Hegemonia essa que seria
fenômeno recente, correspondente a uma nova forma de trabalho social, de acordo com
ele497. No sexto número de Futur Antérieur, Negri e Lazzarato começam a usar a
expressão hegemonia do trabalho imaterial, afirmando por exemplo que “o trabalho
imaterial tende a tornar-se hegemônico, de forma totalmente explícita”, a partir da
reestruturação produtiva que teve início nos anos 1970. Ao mesmo tempo, essa
hegemonia é apontada como tendência. O trabalho tenderia a se tornar imaterial, e sua
“hegemonia social” se manifestaria “na constituição do General Intellect” 498.
Em 1996, Negri apresenta a tese de que a genealogia do trabalho imaterial
poderia ser traçada a partir de 1968, com a emergência de uma subjetividade que teria
alimentado as lutas que caracterizaram o período499. No ano seguinte Lazzarato deixa
mais claro um dos possíveis significados do uso da expressão hegemonia do trabalho
496 Cf. Negri (2003c).497 Cf. Negri (1990).498 Lazzarato; Negri (2001, pp.27; 35).499 Cf. Negri (1996c).
Teorias da Mais-Valia Difusa
156
imaterial. Afirma ele que: “não é o peso quantitativo de um modo de produção ou de
uma relação social, mas a sua posição estratégica e tendencial na divisão internacional
do trabalho que define o dinamismo e hegemonia dela”500. Lazzarato parte de um
entendimento de Sergio Bologna, segundo o qual o capitalismo sempre teria sido
caracterizado pela coexistência de diversos modos de produção, comandados,
organizados e explorados pelo mais desterritorializado (abstrato) dentre eles. É esse
elemento qualitativo (e não quantitativo) que definiria a hegemonia de um processo ou
modo de produção, e que Hardt e Negri irão procurar explicar em Empire. Quando a
revolução industrial determinou o paradigma industrial, a agricultura pode ter diminuído
quantitativamente, em termos de trabalhadores e valor produzido, mas o fundamental
seria que ela teria se tornado sujeita às pressões financeiras e sociais da indústria, e que
ela própria teria se tornado industrializada. A indústria teria tomado posição hierárquica
superior, comandando a agricultura e disseminando sua forma própria, modificando o
próprio processo de produção agrícola. A disciplina, as relações salariais, a tecnologia
da fábrica teriam transformado e redefinido a agricultura. E esses elementos
característicos da forma de produção industrial teriam redefinido a própria sociedade.
Nesse sentido, de domínio qualitativo, é que se deve entender a hegemonia de uma
forma de produção para os pós-operaístas. De acordo com essa idéia de hegemonia, por
conseqüência, e por exemplo, uma fábrica de automóveis de Detroit nos anos 1930 não
poderia ser comparada com uma fábrica de automóveis no Brasil nos anos 1990.
Enquanto no primeiro caso aquela indústria se encontrava no ponto mais alto da
hierarquia do ciclo de produção de valor, uma fábrica de automóvel nos anos 1990
ocuparia uma posição subordinada à economia informacional dentro da economia
global. E, desse modo, as diferenças geográficas na economia global representariam
linhas da nova hierarquia global da produção, e não a co-presença de diferentes estágios
de desenvolvimento501.
Em termos práticos, a hegemonia do trabalho imaterial significaria também,
por exemplo, que na constituição da produção e distribuição o trabalho imediato seria
cada vez mais secundário, pois seriam organizados cada vez mais pela cooperação
tecnológica e comunicativa502.
500 Lazzarato (2001, p.106).501 Cf. Hardt; Negri (2001).502 Cf. Negri (2001a).
Teorias da Mais-Valia Difusa
157
Em artigo publicado na Folha de São Paulo em 1998, embora ressalvasse se
tratar de uma simplificação do seu pensamento, podemos perceber que Negri relaciona a
hegemonia do trabalho imaterial à posição de uma forma de trabalho na determinação
do excedente de produtividade, na criação de mais-valia. Essa hegemonia do trabalho
imaterial implicaria também que esse excesso de produtividade não estaria mais nas
fábricas, mas nas redes sociais:
A força de trabalho que, criando mais-valia, hoje se coloca, hegemonicamente, no centro do sistema produtivo, já é essencialmente imaterial: vale dizer, trabalha de modo intelectual, com empreendimento autônomo e com fortes e independentes capacidades de cooperação. Simplificando ao máximo: o trabalhador que, ao determinar excedente de produtividade, toma o lugar que ontem era do ''metalúrgico'', é o técnico da informação e dos serviços, é o produtor de saber e de linguagens: eles trabalham entre ''redes'' cooperativas, mas, ao mesmo tempo, são autônomos na criação de valor. Por conseguinte, o lugar onde se produz o excedente de produtividade já não é a fábrica, nem o sistema da grande indústria, mas o conjunto de ''redes'' sociais por meio das quais essa massa de trabalhadores imateriais aprende, coloca-se em contato, comunica, inventa, produz mercadorias — e faz tudo isso reproduzindo subjetividades503.
Em 2001, Negri relaciona mais claramente a hegemonia do trabalho imaterial à
posição superior desse trabalho como fonte de valor504. A hegemonia do trabalho
imaterial também possui, portanto, o significado de posição dominante na hierarquia de
constituição do valor: “hoje, na era da produção biopolítica, é que a invenção intelectual
e/ou afetiva se tornou a fonte principal de valor e riqueza na sociedade”505. Nesse
mesmo sentido, em palestra concedida em 2003, Negri relaciona as mudanças do pós-
fordismo à emergência do trabalho imaterial como elemento central da criação de
valor506. Significação semelhante também é apresentada em Commonwealth, publicado
em 2009507.
Em Káiros, Alma Venus, Multitude, Negri afirma que a cooperação
(lingüística) produtiva, na nossa era pós-moderna, teria sido imposta pela
intelectualidade de massa, enquanto na era moderna a cooperação produtiva teria sido
imposta através da apropriação do capital e/ou do Estado. E a passagem dessa era
moderna para a pós-moderna teria se dado em 1968, quando a intelectualidade de massa
teria se apresentado pela primeira vez como forma hegemônica. Vemos que Negri nessa
503 Negri (1998a).504 “forças produtivas intelectuais e afetivas se tornaram hegemônicas e a fonte principal da valorização do mundo” (Negri, 2003c, p.192).505 Hardt; Negri (2006, p.104).506 Cf. Negri (2009).507 “a produção imaterial se torna hegemônica sobre todos os outros processos de valorização”[“immaterial production becomes hegemonic over all the other valorization processes”] (Hardt; Negri, 2009, p.25).
Teorias da Mais-Valia Difusa
158
obra relaciona a hegemonia da intelectualidade de massa como causa da cooperação
(lingüística) produtiva e não essa cooperação como fenômeno que mostraria uma
hegemonia da intelectualidade de massa508. Hegemonia da intelectualidade de massa
não seria assim um conceito descritivo do fenômeno da produtividade da cooperação
lingüística, mas sim explicativo da sua causa. Além disso, mais uma vez ele deixa claro
que a cooperação produtiva nos dias de hoje, sob essa hegemonia, prescindiria
totalmente do capital509. E ao longo dos anos 1970 o trabalho material imediatamente
produtivo teria perdido sua centralidade no processo produtivo, emergindo no lugar o
operário social, que como vimos, tornar-se-ia central e hegemônico no processo de
produção510.
Em Cinque lezioni su Impero, Negri usa ainda por uma vez a expressão
hegemonia do trabalho intelectual em vez de imaterial, o que pode indicar que, de fato,
o trabalho intelectual (mais que o afetivo e outras formas de trabalho imaterial) tenha
uma “hegemonia” dentro da sua própria concepção de hegemonia do trabalho imaterial,
mesmo na atual década. Na mesma obra, ele fornece outras pistas para se entender a
hegemonia do trabalho imaterial e suas implicações. Ao afirmar que “todo processo
laboral se dirige para o trabalho imaterial” num caminho para a unificação do
trabalho, podemos interpretar que se trata da própria expressão da hegemonia do
trabalho imaterial, no que ela significa também a disseminação de uma forma de
trabalho e produção a todos os setores e à sociedade. A hegemonia do trabalho imaterial
toma o lugar da hegemonia do trabalho material511, tratando-se portanto de uma
mudança de paradigma e uma passagem histórica.
Outro possível significado para hegemonia do trabalho imaterial transparece
quando afirma que o trabalho imaterial ganhou “hegemonia na organização social do
trabalho”, e que não necessitaria de comando512. Podemos crer que a hegemonia do
trabalho imaterial também significa, ou ao menos implica, numa hegemonia sobre a
organização social do trabalho, e, devido sua natureza, dispensaria a necessidade de
comando nessa organização. Outra implicação, ou significado, seria a “hegemonia da
cooperação”513, isto é, que “o trabalho, hoje, para ser criativo deve ser “comum”, ou
508 Cf. Negri (2003c).509 Cf. Negri (2003c).510 Cf. Negri (2003a).511 Cf. Negri (2003a, pp.113; 243).512 Negri (2003a, p.153).513 Negri (2003a, p.237).
Teorias da Mais-Valia Difusa
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seja, produzido por redes de cooperação”514. Negri, coerentemente com sua abordagem
fundada em alguns pressupostos operaístas, aponta que foi a libertação do trabalho, a
recusa do trabalho das lutas dos anos 1960 e 1970, que teria levado à hegemonia do
trabalho imaterial515.
Outro aspecto relacionado à hegemonia do trabalho imaterial seria a hegemonia
do nível social na produção. Hegemonia essa que sintetizaria o fato do sistema
econômico captar o valor no terreno social, uma vez que seriam elementos culturais,
relacionais, afetivos, intelectuais que constituiriam a valorização do trabalho516.
Em videoconferência realizada em dezembro de 2002, podemos apreender nas
palavras de Negri mais claramente o que seria, provavelmente, o significado principal
da hegemonia do trabalho imaterial: a forma de trabalho que comanda o
desenvolvimento organizativo e as formas de desenvolvimento organizacional da
sociedade: “o trabalho social, intelectual, é hegemônico, o que modera sociedade,
comanda o desenvolvimento organizativo e as formas de desenvolvimento
organizacional”517.
Em debate no Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em 2003, Michael
Hardt apresenta de forma bastante clara o que ele e Antonio Negri buscariam significar
com a hegemonia do trabalho imaterial. Basicamente o que eles haviam enunciado em
Empire sobre a posição hierárquica em termos de influência e comando de uma forma
de trabalho sobre outras formas de trabalho, sobre a produção e sobre a sociedade em
geral. Hardt procura esclarecer que numa economia capitalista haveria uma forma de
trabalho que atuaria de maneira hegemônica sobre as outras, isto é, que teria o poder de
transformar outras formas de trabalho518. O mesmo que Negri procura expressar
afirmando que a produção imaterial, cognitiva e cooperativa recupera de maneira
hegemônica outras formas de produção519. A hegemonia do trabalho industrial
significaria/implicaria que o trabalho agrícola teve que se industrializar, assim como
outros setores da produção e a própria sociedade. Hardt salienta ainda que essa
hegemonia não significaria hegemonia política de uma categoria de trabalhadores sobre
outras, mas sim que, no caso da hegemonia do trabalho imaterial, todos os setores da
514 Negri (2003a, p.153); Negri, (2003d).515 Cf. Negri (2003a).516 Cf. Negri (2003d).517 “le trabajo social, intelectual, es el hegemônico, el que templa a la sociedad, comanda el desarrollo organizativo y las formas de desarrollo organizacional” (Negri, 2003d, p.38).518 Cf. Hardt (2003).519 Cf. Negri (2008).
Teorias da Mais-Valia Difusa
160
economia estariam se informatizando e dependendo de redes de informação e
comunicação520.
Será na obra mais clara e mais madura de Antonio Negri e de Michael Hardt,
Multitude, que o conceito de hegemonia do trabalho imaterial ganhará uma definição
mais rigorosa, mais detalhada, e o conceito será melhor explicado e desenvolvido.
Frisam eles nessa obra que a hegemonia do trabalho imaterial não diz respeito à
quantidade de trabalhadores empregados em qualquer setor da economia ou
desenvolvendo certo tipo de atividade – lembram até mesmo que os trabalhadores
basicamente envolvidos na produção imaterial constituem uma minoria no conjunto
global. O que a hegemonia do trabalho imaterial significa “é que as qualidades e as
características da produção imaterial tendem hoje a transformar as outras formas de
trabalho e mesmo a sociedade como um todo”521. A explicação do que eles procuram
indicar com o conceito de hegemonia do trabalho imaterial se estende por cerca de dez
páginas de Multitude. O cerne sendo que:
Em qualquer sistema econômico, numerosas formas de diferentes trabalhos coexistem, mas há sempre um tipo de trabalho que exerce hegemonia sobre os outros. Essa forma hegemônica funciona como um vórtice que gradualmente transforma as outras formas, fazendo-as adotarem suas qualidades centrais. A forma hegemônica não é dominante em termos quantitativos, e sim na maneira como exerce um poder de transformação sobre as outras. A hegemonia aqui designa uma tendência522.
A divisão cada vez mais indefinida entre tempo de trabalho e de lazer, com a
alteração portanto da idéia de jornada de trabalho, seria uma implicação da hegemonia
do trabalho imaterial, da posição preponderante das qualidades – da natureza do
trabalho imaterial523.
Na agricultura, a hegemonia do trabalho imaterial se verificaria pelo uso, por
exemplo, de meios informáticos e científicos cada vez mais sofisticados, como na
análise de sementes, o uso da engenharia genética e nas análises climáticas524. Essa seria
uma das formas pelas quais a agricultura estaria sendo informacionalizada, e que levaria
Hardt e Negri à tese fundamental de que o processo de transformação agrícola e a luta
por direitos nesse campo dependeriam cada vez mais do controle e da produção de
informação, principalmente da informação genética525.
520 Cf. Hardt (2003).521 Hardt; Negri (2005, p.100).522 Hardt; Negri (2005, p.148).523 Cf. Hardt; Negri (2005).524 Cf. Negri (2008); Hardt; Negri (2005).525 Cf. Hardt; Negri (2005).
Teorias da Mais-Valia Difusa
161
Eles apontam três fatos para dar sustentação à tese da atual hegemonia do
trabalho imaterial, ou da sua tendência: i) nos países dominantes seria um elemento
central das ocupações que mais crescem (atendentes, vendedores, engenheiros de
computação, professores, trabalhadores da saúde), com a concomitante tendência de
transferência da indústria e agricultura para partes subordinadas do mundo; a hegemonia
do trabalho imaterial surgiria assim em coordenação com as atuais divisões globais de
trabalho e poder; ii) outras formas de trabalho e produção estariam adotando as
características da produção imaterial (informacionalização e uso de mecanismos de
comunicação); iii) a forma disseminada em rede, que seria típica da produção imaterial
estaria surgindo em todas as manifestações da vida social526. No entanto, frisam que a
hegemonia de uma forma de produção não implicaria em hegemonia política de
nenhuma categoria de trabalhadores527, e afirmam que o objetivo deles em apontar a
hegemonia do trabalho imaterial e o “devir comum” das formas de trabalho conseqüente
dessa hegemonia é “estabelecer que as condições contemporâneas estão tendendo a
formar uma comunicação e uma colaboração gerais do trabalho que podem constituir a
base da multidão”528.
Os conceitos de trabalho imaterial e hegemonia do trabalho imaterial, como já
podemos perceber, possuem um objetivo não só filosófico, mas também político. A
seguir, procuraremos mostrar que esse objetivo político, na verdade, é a preocupação
principal na formulação e uso desses conceitos pelos pós-operaístas.
A política no trabalho imaterial e na sua hegemonia
O interesse de Negri e dos pós-operaístas durante a década de 1990 não era
substancialmente diferente do interesse dos operaístas durante as décadas de 1960 e
1970. Era voltado a uma prática, e, antes de tudo, a uma prática transformadora, à
construção ou constituição do comunismo, mesmo que o comunismo, como no
entendimento de Negri, possa ter seu conteúdo modificado de acordo com as
subjetividades e possibilidades históricas. Podemos dizer que acima de tudo, o interesse
não era sociológico ou filosófico, mas político. Em Empire, Negri e Hardt explicitam
526 Cf. Hardt; Negri (2005).527 Cf. Hardt; Negri (2005; 2006).528 Hardt; Negri (2005, p.288).
Teorias da Mais-Valia Difusa
162
que o projeto teórico da centralidade do trabalho imaterial visaria desenvolver uma nova
teoria do valor e seus mecanismos de exploração, mas também visaria a questão das
novas figuras da subjetividade, da sua exploração e potencial revolucionário. Quando
afirmam já em 1991 que se a força de trabalho se transforma em intelectualidade de
massa, e esta por sua vez poderia se transformar em um sujeito social e politicamente
hegemônico, Lazzarato e Negri deixam já relativamente claro que a preocupação e
objetivo deles nas análises é antes de tudo político529. Algo que pode ser apreendido
pelo enfoque e desenvolvimento de suas obras. Aqui destacaremos as passagens em que
isso fica particularmente nítido ou explícito.
No seu artigo sobre o conceito de trabalho imaterial, em 1992, Lazzarato
expunha que tal conceito era um instrumento que permitiria compreender a passagem de
uma normatividade taylorista a uma comunicativa, mas que também poderia ajudar a
compreender como a cooperação produtiva (que só poderia ser atualmente cooperação
social) estaria “além” do capitalismo, e como ela poderia e deveria buscar sua forma
política530. Essa preocupação com a forma política desse sujeito produtivo, dessa
cooperação produtiva e social, da intelectualidade de massa, é explicitada também por
Negri em outro artigo em Futur Antérieur, no ano seguinte, apontando que o problema
da constituição radicaria em determinar como se poderiam construir os “soviets da
intelectualidade de massas”. E as condições para essa construção estariam dadas por
uma característica ou implicação da hegemonia do trabalho imaterial, que seria a
“reapropriação cada vez mais completa do saber técnico-científico pelo proletariado”531.
Essa característica do trabalho imaterial, ou da sua hegemonia, a de que a cooperação
produtiva seria autônoma e pré-constituída em relação à organização empresarial
capitalista, e que o principal instrumento produtivo – o intelecto, as capacidades
cognitivas e comunicativas – seriam de posse dos sujeitos produtivos (do proletariado),
é o que definitivamente parece interessar aos pós-operaístas na década de 1990 ao
fazerem uso do conceito de hegemonia do trabalho imaterial. Negri chega mesmo a
afirmar que as classes submetidas hoje teriam um capital fixo – o general intellect, suas
relações e capacidades lingüísticas por exemplo – mais rico que o dos patrões532. O
conceito de hegemonia do trabalho imaterial busca apenas apontar a condição
sociológica que seria base para essa nova condição ou possibilidade política, isto é, de
529 Cf. Lazzarato e Negri (1991).530 Cf. Lazzarato (1992).531 Negri (1993b).532 Cf. Negri (2007a).
Teorias da Mais-Valia Difusa
163
poder de um sujeito social. Ele serve assim para sustentar nas próprias forças
produtivas, dentro de uma tendência no capitalismo atual, um comunismo latente, já
que, como dizem Hardt e Negri, a força de trabalho não seria mais organizada pelo
capitalismo, formando uma comunidade socialmente produtiva533. Dessa forma, o que
eles observam através do conceito de hegemonia do trabalho imaterial é menos a
descrição de uma realidade do que a afirmação de uma possibilidade, uma vez que o
“trabalho imaterial parece fornecer o potencial para um tipo de comunismo espontâneo
e elementar”534. É por conta dessa perspectiva que para eles o que diferenciaria o
trabalho imaterial do trabalho taylorista seria menos a imaterialidade da prestação do
trabalho e mais a independência da forma de cooperação535. Essa autonomia da
cooperação produtiva, sua pré-constituição, é a característica fundamental, e a que lhes
interessa mais da hegemonia do trabalho imaterial ou da sociedade sob a hegemonia do
trabalho imaterial. Não à toa afirmariam que o conceito de trabalho imaterial deveria ser
apreendido antes de tudo como categoria política – capaz de dar conta do
aprofundamento da socialização da produção e do desenvolvimento das forças
produtivas536. Negri vê a intelectualidade e imaterialidade da força de trabalho produtiva
como possíveis potências de libertação, que através da flexibilidade e mobilidade
espacial poderiam liquidar progressivamente a capacidade de comando capitalista537. A
inexigibilidade de comando do trabalho imaterial, a autonomia das forças produtivas é o
que, em última análise, lhe interessa na tese da hegemonia do trabalho imaterial. A
utopia marxiana do trabalho consistiria assim em deixar evidente a tendência da
hegemonia produtiva da força-saber social (intelectual e cooperativa) e em dotá-la da
vocação de destruir o desenvolvimento da sociedade capitalista e de construir uma
sociedade de individualidades ricas e cooperantes538.
Em Multitude, outro interesse político em torno da idéia de hegemonia do
trabalho imaterial aparece claramente, remetido ao conceito de comum. A hegemonia de
uma forma de trabalho levaria a um “devir comum” do trabalho, de todos os trabalhos.
Hardt e Negri argumentam que a produção de comunicação, relações afetivas e
conhecimentos (trabalho imaterial), diferentemente do trabalho material taylorista, da
produção de carros ou de outras máquinas, seria capaz de expandir o campo do que as
533 Cf. Hardt; Negri (2004a).534 Hardt; Negri (2001, p.294).535 Cf. Corsani; Lazzarato; Negri (1996, p.59).536 Cf. Corsani; Lazzarato; Negri (1996, p.149).537 Cf. Negri (1996b).538 Cf. Negri (1996c).
Teorias da Mais-Valia Difusa
164
pessoas compartilham (o comum). Seria esse “devir comum” propiciado pela
hegemonia do trabalho imaterial, como vimos, uma “condição que possibilita a
existência da multidão”539. Importante ressaltar que apesar do devir comum do trabalho
conseqüente da hegemonia do trabalho imaterial, para Negri esse novo trabalho
produtivo (o trabalho imaterial) não demonstraria tendência para unificação política540.
A característica do trabalho imaterial de se constituir na forma de “redes
colaborativas” e sua hegemonia investindo a sociedade dessa forma-rede apresenta para
eles também um potencial para a transformação positiva. Essa forma de redes
colaborativas é vislumbrada por eles na “composição social da multidão” que animou o
movimento antiglobalização541.
Características do pós-fordismo
Apontaremos agora, resumidamente, algumas características gerais do modo de
produção pós-fordista, de acordo com autores pós-operaístas como Negri, Hardt,
Lazzarato542, Moulier-Boutang, entre outros.
No pós-fordismo, como já vimos, o empreendimento capitalista tenderia a se
caracterizar como captura de fluxos que constituem o valor, pré-constituídos à empresa.
Essa cooperação, autônoma à empresa, seria a qualidade explorada da nossa existência
atualmente (a exploração não se basearia mais no tempo de trabalho, mas na
cooperação). A marca se torna meio de gestão da empresa (mais do que vínculos
disciplinares). Podemos dizer também que a tendência do valor do produto se constituir
cada vez mais pela marca também seria uma expressão da hegemonia do trabalho
imaterial.
Em termos produtivos, trabalho e não-trabalho se tornariam indistintos, até
mesmo pelas qualidades postas em ação em ambos. A produção de valor se estenderia
por todas as relações sociais, englobando todo o tempo de vida. A produção de valor
estaria em redes fora da empresa, nas formas de vida, em relações sociais543. E todo tipo
539 Hardt e Negri (2005, p.159).540 Cf. Negri (1998a).541 Cf. Hardt e Negri (2005).542 Podemos dizer que nos anos 1990 Lazzarato abandona o marxismo, e passa a seguir como referência teórica a sociologia de Gabriel Tarde, como pode-se apreender no seu livro Revoluções do Capitalismo.Portanto nos referiremos apenas aos escritos de Lazzarato dos anos 1990.543 Cf. Corsani; Lazzarato; Negri (1996).
Teorias da Mais-Valia Difusa
165
de atividade social seria trabalho em termos de produção de valor544. No limite, Hardt
chega mesmo a afirmar que se é produtivo quando se toma chá e se assiste à
televisão545. A cultura gera valor, o trabalho tenderia a se tornar ação cultural e o
trabalho na cultura a se tornar paradigma da produção546. E quando a produção se torna
intelectual, a vida é posta a trabalhar547.
O crescimento dos ativos intangíveis seria indicativo de que o capital fixo
tenderia a se tornar o conjunto das relações sociais. Quanto ao orçamento público, os
gastos correntes e os investimentos de capital teriam sua lógica invertida no pós-
fordismo – o que se considera como gastos correntes passariam na verdade a ser
investimentos, e vice-versa548.
O trabalho não deixaria de ser a fonte de valor, mas a lei do valor – a lei da
medida do valor – perderia sua validade, conseqüência do fim da externalidade do valor
de uso, do fim da existência de uma externalidade que sirva de referente de medida, do
tempo servir como essa medida do valor, uma vez que este passaria a ser produzido pelo
conjunto das relações sociais, por redes comunicativas e lingüísticas fora da
subordinação à empresa. A hegemonia dos EUA, para Negri549, não residiria na sua
capacidade de produzir, mas de destruir toda referência social e produtiva de riqueza.
Outra característica do pós-fordismo seria a expansão da relação de serviço (mais do
que a expansão do mercado de serviço). E o capitalismo atual seria mais do produto
(consumidor ativo) do que da produção. O território social (distrito industrial, região,
conjunto de países) que definiria no pós-fordismo – na natureza lingüística do trabalho –
o limite do crescimento e da produtividade550. Nos termos de Negri, a cidade seria
produtiva hoje como antes era a terra trabalhada551.
Sobre a mais-valia, em 1994 Lazzarato iria afirmar que só na conjunção de
diversos fluxos (de produção, circulação, consumo, desejo) que haveria sua produção552.
No mesmo sentido segue a afirmação de que a empresa apropriaria a mais-valia da
cooperação produtiva (externa a ela) desenvolvida no “tanque de trabalho imaterial”553.
544 Cf. Negri (2008).545 Cf. Hardt (2005a).546 Cf. Cocco; Negri (2003a).547 Cf. Negri (2003d).548 Cf. Marazzi (2003).549 Cf. Negri (2007a).550 Cf. Marazzi (2008).551 Cf. Negri (2007a).552 Cf. Lazzarato (1994).553 Cf. Corsani; Lazzarato; Negri (1996).
Teorias da Mais-Valia Difusa
166
Negri chegaria a afirmar que a exploração teria voltado a ser extração de mais-valia
absoluta, uma vez que para produzir, o capital utilizaria apenas o comando554. Talvez
contraditoriamente com esse pensamento, ele relaciona a questão da privatização dos
saberes à “extração de mais-valia relativa” da cooperação do general intellect555.
Quanto à qualificação de produtivo, ou ao trabalho produtivo, Lazzarato
afirmaria que, no ciclo do trabalho imaterial, o conjunto das relações sociais que seria
produtivo556. Negri diria que o trabalho produtivo não seria mais aquele que diretamente
produz capital, mas aquele que reproduz a sociedade557. Não haveria criação de valor
que não fosse valor imaterial regido por cérebros livres capazes de inovação558. E com o
general intellect como capital fixo incorporado ao trabalho vivo, passar-se-ia a ser
produtivo fora da relação com o capital559. Se a distinção de trabalho
produtivo/improdutivo de Marx já seria ambígua, hoje ela deveria ser totalmente
descartada560, embora Negri também diga que se deveria reconhecer o não-trabalho
como novo trabalho produtivo561.
A amadorização de massa, expressão já utilizada no campo da administração,
cuja organização em rede se colocaria como um desafio para as empresas562, de certa
forma é o equivalente à intelectualidade de massa já anteriormente utilizada pelos pós-
operaístas. Nesse paradigma da amadorização de massa, a questão posta é extrair o
valor da interação dos clientes, o equivalente a extrair valor da cooperação e das
relações sociais independentes, pré-constituídas. A tendência da forma-rede para se
manifestar e exercer sua hegemonia (já nos indistintos planos social, econômico e
político) seria o que definiria o período atual para Hardt e Negri563; algo que eles
chamam de isomorfismo. Mas se se trata de caracterizar o pós-fordismo de acordo com
os pós-operaístas, acima de tudo é preciso pontuar que o fordismo só teria perdido
hegemonia na produção de mercadorias, continuando hegemônico na organização
social: como relação (embora inadequada) entre trabalho e não-trabalho, entre produção
554 Cf. Negri (2003a).555 Negri (2007a).556 Cf. Lazzarato (1993, p.51).557 Cf. Negri (1996a).558 Cf. Negri (2007a, p.112).559 Cf. Negri (2007a).560 Cf. Hardt; Negri (2005).561 Cf. Negri (2003a).562 Cf. “Capacidade de organização em rede desafia empresas” em: <http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080614/not_imp189273,0.php>563 Cf. Hardt; Negri (2005).
Teorias da Mais-Valia Difusa
167
e forma de renda e garantias sociais, entre trabalho industrial e organização territorial
etc.564.
Considerações sobre o pensamento de Paolo Virno
Por Paolo Virno ter uma obra relativamente original e influente dentro do pós-
operaísmo nas últimas duas décadas e por seu pensamento, embora convergindo com a
dos outros pós-operaístas a que nos referimos, possuir algumas especificidades e até
mesmo divergências em relação a eles, torna-se mais apropriado tratá-lo separadamente
nas suas linhas gerais e nesses pontos divergentes.
Virno considera a intelectualidade de massa uma qualidade da força de
trabalho pós-fordista. Ele procura mostrar que os requisitos ou qualidades exigidas dos
trabalhadores hoje em dia seriam fruto da socialização e não de uma disciplina fabril, ao
menos nos pontos onde a inovação estaria mais avançada relativamente à economia
global. O pós-fordismo se caracterizaria pela convivência de modelos produtivos muito
diferentes – por exemplo, com enclaves de operários massa e operários profissionais –
e, por outro lado, uma socialização extra-laboral essencialmente homogênea565. Não
haveria nada em comum, por exemplo, entre um técnico de software e um operário da
Fiat, no que se refere aos modos e conteúdos do processo produtivo, mas tudo no que se
refere aos conteúdos e modos de socialização. Nesse sentido Virno não vê, como Negri
e Hardt, um devir comum do trabalho. Enxerga uma socialização comum, mas
experiências vividas no trabalho completamente distintas. E esse ethos homogêneo da
socialização delinearia perfis profissionais e seriam incluídos na produção para os
setores mais avançados. Já para os setores tradicionais, atravessaria apenas o tempo de
não-trabalho566.
Para Virno o principal recurso produtivo do capitalismo contemporâneo seriam
as atitudes lingüísticas e relacionais dos seres humanos, tese que influenciou bastante
Negri e Hardt. Também argumenta que a Indústria Cultural teria pré-figurado o pós-
564 Cf. Negri (2007a, p.88).565 Cf. Virno (2003a; 2003b).566 Cf. Virno (2003b).
Teorias da Mais-Valia Difusa
168
fordismo, se tornando seu paradigma, com seus procedimentos tornando-se exemplares
e invasivos a outros setores567.
No pós-fordismo, Paolo Virno vê a mais-valia sobretudo no que é extraído da
diferença entre o tempo de produção (que seria composto pelo tempo de trabalho e de
não-trabalho) e o tempo de não-trabalho568. De modo bastante original, ele procura
mostrar também como a distinção aristotélica entre trabalho, intelecto e política se
desfaria no atual contexto pós-fordista. As atividades laboral, intelectual e política
guardariam anteriormente distinção nítida entre si com base em algumas características
e propriedades particulares a cada uma. Mas como procura indicar mais
especificamente, o trabalho pós-fordista teria absorvido muitas características que
seriam típicas da ação política e da atividade intelectual.
Finalmente, Virno busca mostrar também como no pós-fordismo toda a força
de trabalho, incluindo as mais “garantidas” em termos de estabilidade e direitos,
viveriam permanentemente a condição de exército industrial de reserva na concepção
marxiana. Todos se enquadrariam nos conceitos de superpopulação flutuante, latente ou
estagnada, utilizados por Marx569.
O conceito de multidão: quando ser produtivo pode coincidir com ser livre570
Resgatado por Negri de sua leitura de Spinoza, o conceito de multidão acabou
sendo desenvolvido principalmente a partir da segunda metade da década de 1990.
Paolo Virno, Antonio Negri e Michael Hardt sendo aqueles que mais utilizaram o
conceito e mais sistematicamente tentaram precisá-lo.
Multidão em Paolo Virno
Virno deixa claro que o conceito de multidão teria surgido da associação de
leituras (Spinoza, Hobbes) com a experiência vivida dele e de outros militantes dos anos
1970:
567 Cf. Virno (2003a).568 Cf. Virno (2003a).569 Cf. Virno (2003b).570 Proposição de Negri sobre a multidão. Cf. Negri (2007a, p.200).
Teorias da Mais-Valia Difusa
169
E é pensando em si mesmo, em seus amigos, na biografia de cada um de nós, nas coisas que se foram, nas coisas que se fizeram e nas que não se soube fazer, que nasce dizer “multidão” e não mais “povo”. Claro que tem a ver também os livros que lemos, as posições teóricas materialistas, tudo o que se queira, mas conta também uma experiência material, uma experiência direta571.
Ao longo da sua obra, assim como na de Negri e Hardt, a multidão aparece
fundamentalmente como um conceito em oposição ao de povo, e ao de Estado, que se
basearia na idéia una de povo. Se o conceito de povo, em Hobbes e numa certa tradição,
implicaria em uma unidade em correspondência com o Estado, a multidão, ao contrário,
negaria essa unidade política, não alcançaria o status de pessoa jurídica e seria por
característica anti-estatal572. A multidão seria uma pluralidade irredutível a uma vontade
única, a uma “vontade popular”. E é nessa oposição ao conceito de povo que Virno vê o
conceito de multidão como importante instrumento para se pensar a esfera pública
contemporânea, que ajudaria também a explicar uma quantidade de comportamentos
sociais contemporâneos (jogos lingüísticos, formas de vida, propensões éticas,
características essas ressaltadas na produção pós-fordista). Ela seria a forma de
existência social e política dos “muitos enquanto muitos”, e não um enésimo “sujeito
revolucionário”573.
E é como modo de existência que ele deixa claro que a multidão não assinalaria
o fim da classe trabalhadora. Enquanto conceito teórico que indicaria aqueles que
produzem mais-valia, a noção de multidão não se contraporia ao de classe trabalhadora.
Ela expressaria apenas o modo de existência da classe trabalhadora hoje: o trabalho vivo
subordinado de hoje e sua cooperação lingüístico-cognitiva teriam característica de
multidão. A classe trabalhadora – os produtores de mais-valia – ou essa classe
trabalhadora a que Virno estaria se referindo, não teria mais o modo de ser do povo, mas
de multidão. Fato que para ele traria mudanças de mentalidade, de formas de
organização e de conflito. A força de trabalho pós-fordista seria multidão – não-
homogeneidade, multiplicidade – e não povo574. Em suma, multidão, segundo o próprio
Virno, seria um termo utilizado por ele para denominar a forma de vida e jogos
571 “Y es pensando en uno mismo, en sus amigos, en la biografía de cada uno de nosotros, en las cosas que se vieron, en las que se hicieron y en las que no se supieron hacer, que nace decir «multitud» y ya no «pueblo». Claro que tienen que ver también los libros que leímos, las posiciones teóricas materialistas, todo lo que quieran, pero cuenta también una experiencia material, una experiencia directa” (Virno, 2003a, p.137).572 Cf. Virno (2003a; 2008a; 2008b).573 Virno (2003a, p.22).574 Cf. Virno (2003a).
Teorias da Mais-Valia Difusa
170
lingüísticos – principal recurso produtivo no pós-fordismo – que caracterizariam a
contemporaneidade, ou o pós-fordismo575.
Quando fala de multidão hoje, portanto, ele fala do modo de ser da força de
trabalho pós-fordista. Não por menos ele chegará a expressar que intelectualidade de
massa e multidão seriam termos intercambiáveis576, ou que a multidão seria o conjunto
dos “indivíduos sociais”, de acordo com a noção marxiana577. É assim que para ele uma
das condições que definiriam a multidão contemporânea seria o intelecto posto em
primeiro plano, isto é, as estruturas lingüísticas mais gerais e abstratas se tornando
instrumentos para orientar a própria conduta578. A unidade da multidão, portanto, seria o
“intelecto público”:
a nova Multidão não é um vórtice de átomos ainda defeituoso em sua unidade, mas uma forma de existência política que se afirma a partir de um Uno radicalmente heterogêneo ao Estado: o Intelecto público. Os Muitos não fecham acordos, nem transferem direitos aos soberanos, porque já dispõem de uma “partitura” comum: não convergem nunca em “volonté générale” porque já compartilham o “general intellect”579.
Nesse sentido a multidão não se contraporia ao Uno, mas o redeterminaria. A
unidade já não seria o Estado, mas a linguagem, o intelecto, faculdades comuns do ser
humano. Uma unidade que autorizaria a diferenciação, a existência político-social dos
“muitos enquanto muitos”580.
O pós-fordismo, e a multidão – embora ainda numa forma grosseira – teria
feito sua aparição na Itália com o movimento de 77. As figuras do movimento, de
aparente marginalidade, formado por uma força de trabalho escolarizada, precária e
móvel, traziam as características e propensões que seriam recuperadas e postas no
centro da produção. E se a recusa do trabalho era um aspecto da subjetividade de 77,
Virno chama atenção de que a multidão refletiria hoje, em si, a crise da sociedade do
trabalho581. Primeiro porque a riqueza social seria produzida pelo general intellect mais
do que pelo trabalho distribuído individualmente. Segundo porque, como já vimos, toda
força de trabalho se enquadraria na tipologia marxiana do exército industrial de reserva.
Uma característica importante da noção de multidão em Virno, uma vez que
marca uma diferença do conceito ou noção em Negri e em Hardt, é o caráter
575 Cf. Virno (2003a, p.101).576 Cf. Virno (2003a, p.115).577 Cf. Virno (2003a, p.82).578 Cf. Virno (2003a, p.36).579 Virno (2008b, p.137-138)580 Virno (2003a, p.26).581 Cf. Virno (2003a).
Teorias da Mais-Valia Difusa
171
ambivalente, aberto a desenvolvimentos contraditórios: a multidão podendo ser base de
rebelião ou servidão, de esfera pública não-estatal ou de massas de governos
autoritários, da abolição do trabalho subordinado a um patrão ou flexibilização
ilimitada... É assim que ele lê Berlusconi e a Liga do Norte (partido com características
fascistas) como representantes da intelectualidade de massa, dos sujeitos do trabalho
pós-fordista: o partido reacionário da intelectualidade de massa582. A indiferença ou
negação da multidão à democracia representativa, e seu modo de ser, poderiam tanto
alimentar desenvolvimentos libertários quanto fascistas.
Negri diverge desse entendimento de Virno, no qual o fascismo poderia se
nutrir da multidão. Para ele tal idéia seria imprópria, uma vez que se a multidão se
tornasse fascista ela não já não seria mais multidão, tendo sido reconduzida à condição
de massa583. A multidão só poderia se tornar fascista, dessa perspectiva essencialista de
Negri, se esvaziada de sua especificidade, de ser um conjunto de singularidades e uma
multiplicidade de atividades irredutíveis.
Em Multitude, no entanto, Hardt e Negri admitem a existência de uma série de
condicionantes da multidão que seriam ambivalentes, que poderiam levá-la à libertação
ou apanhá-la em um novo regime de acumulação e controle584. A ambivalência da
multidão, nesse caso, não estaria na possibilidade de ela se tornar base para um
fascismo, mas simplesmente na incerteza de sua libertação e na possibilidade de ser
capturada em um novo regime de exploração, o que denota uma diferença substancial
para a ambivalência apontada por Virno. O fato é que ao longo das obras de Negri a
multidão acaba se tornando uma noção quase idílica porque sempre encarna,
necessariamente, uma positividade, um desejo de libertação e de igualdade, como
quando afirma que um mundo onde o sexo e a raça não importem seria um desejo da
multidão585.
582 Cf. Virno (2003a, p.127).583 Cf. Negri (2006).584 Cf. Hardt; Negri (2005, p.275).585 Cf. Hardt; Negri (2005, p.141).
Teorias da Mais-Valia Difusa
172
Multidão em Negri e Hardt
Como já dissemos, e como Negri ressalta, o conceito de multidão emerge entre
os pós-operaístas como contraposição ao conceito de povo e à idéia unitária por trás
dele586.
Em 1997, ou seja, no período em que Empire ainda era escrito, Negri fez um
resumo de suas idéias até então sobre a multidão. Numa perspectiva histórica, o
capitalismo teria transformado a multidão, que o Estado na era moderna tinha que
dominar, em classes sociais. Hoje, na passagem da modernidade à pós-modernidade, a
questão voltaria a ser a da multidão, na medida em que as classes sociais se desagregam
e seu fenômeno de autoconcentração desaparece. Porém, essa multidão pós-moderna já
seria outra, resultado da massificação intelectual, já não poderia ser chamada de plebe
ou de povo, pois seria uma “multidão rica”587. Uma multidão de trabalhadores
intelectuais, cujos instrumentos produtivos teriam sido encarnados nesse sujeitos que
constituem a sociedade, e que possuiria uma realidade afetiva, reprodutiva e de desejos.
Em Empire, na exposição da crítica ao conceito de povo, Negri e Hardt
apontam, entre outros aspectos, que povo seria produto do Estado-Nação, sobrevivendo
nesse contexto específico. Enquanto multidão seria uma multiplicidade, singularidades
não homogêneas, o povo tenderia à identidade e homogeneidade. Toda nação teria que
fazer da multidão um povo, com vontade única, de modo a constituir a soberania588.
Ao longo de Empire, fica claro que a noção de multidão não nega a de
proletariado, ou a de classe trabalhadora em sentido amplo. A multidão seria uma noção
que se aplicaria a uma nova composição do proletariado. Como vimos, por proletariado
Hardt e Negri entendem todos aqueles cujo trabalho é diretamente ou indiretamente
explorado e subjugado por normas capitalistas de produção e reprodução. Levando-se
em conta o conceito de trabalho imaterial, no que ele se direciona às atividades sociais
em geral, então podemos concluir que a definição de proletariado em Empire, na
prática, englobaria o conjunto da sociedade, passando a ter pouca serventia heurística ou
do ponto de vista político. Estar no capital e o sustentando seria o que, para eles,
definiria o proletariado como classe. Bem, nessa nova composição do proletariado a
força de trabalho imaterial ocuparia uma posição central cada vez maior. Se o
586 Cf. Casarino; Negri (2008).587 Negri (2001b, p.31).588 Cf. Hardt; Negri (2005); Negri (2003a).
Teorias da Mais-Valia Difusa
173
operariado industrial perde sua posição hegemônica, o proletariado (conceito que
englobaria esse operariado) estaria se tornando mundialmente, cada vez mais, uma
figura geral do trabalho social, uma figura universal do trabalho.
O fato é que tanto Hardt quanto Negri declararam alguns anos após Empire que
o conceito de multidão havia ficado em um plano terrivelmente não claro, ainda imaturo
e poético: um conceito lançado para ver se funcionaria, no qual faltaria definição
analítica589. Mas seria apenas em Multitude que o conceito ganharia maior clareza e
definição.
Nesta altura podemos já dizer que o conceito de multidão, em Hardt e Negri,
aparece como extensão do operário social ao plano do Império, ou seja, em nível global.
Pode-se dizer que o conceito de multidão marca a passagem do plano de análise do
Estado-Nação para o nível mundial, isto é, da globalização econômica e das
resistências.
Em Kairós, Alma Venus, Multitudo, obra imediatamente posterior à publicação
de Empire, Negri define multidão pós-moderna como um conjunto de singularidades
cuja ferramenta de vida seria o cérebro e cuja força produtiva consistiria na cooperação.
A questão para ele seria como essa massa de singularidades intelectual e cooperativa –
chamada multidão – poderia se autogovernar, expressar governança sobre o comum,
uma vez sendo o poder constituinte do mundo590.
Após Empire, Negri descreve três aspectos da multidão, ou três sentidos em
que o conceito deveria ser entendido. O primeiro, filosófico, como multiplicidade
irredutível, contraposto ao conceito de povo. O segundo como conceito de classe, a
“classe dos operadores do trabalho imaterial; uma classe que não é propriamente uma
classe, mas é o conjunto da força criativa do trabalho”591. Seria assim um conceito
ligado a uma realidade econômica. O terceiro aspecto seria a multidão como potência
ontológica, isto é, ela encarnaria um desejo de transformar o mundo, no sentido de
constituir uma comunidade de homens livres. Essa ontologia, esse caráter imanente e
positivo da constituição do comunismo, fundada no ser, é outro aspecto que diferencia o
conceito de Negri do de Paolo Virno.
Multidão descreveria também uma condição em que não haveria mais um
sujeito da resistência (mas uma multidão de subjetividades). A multidão não seria,
589 Cf. Negri (2003c; 2003a; 2001c); Casarino; Negri (2008).590 Cf. Negri (2003c, p.209).591 Negri (2006, p.130).
Teorias da Mais-Valia Difusa
174
evidentemente, uma identidade ou algo identificável, e nesse sentido Negri afirma que
ela é uma “invenção coletiva e sem nome”592. E se ela é multiplicidade de
singularidades, isso não significaria que ela não teria ou não construiria unidade no
reconhecimento do comum e como unidade na ação593.
Em Cinque lezioni su Impero, publicado em 2003, ele aponta que a
característica do trabalho imaterial, na qual o instrumento (as capacidades cognitivas) é
reapropriado pelo trabalhador, é o que constituiria os trabalhadores em multidão e não
em classe. Nesse caso, ele contrapõe o conceito de multidão ao de classe. Mas pela
perspectiva apreendida ao longo de toda sua obra, podemos concluir que se trata de
classe em um sentido restrito, análogo à forma que teve a classe operária industrial. Até
porque, no mesmo período ele afirmaria que a conceito de multidão teria como uma de
suas fontes uma análise de classe594. Mas será Michael Hardt que dará a senha para se
compreender melhor a preferência deles pelo uso do conceito de multidão em vez do de
classe. O conceito de classe, muito associado ao de classe operária, teria se tornado um
conceito excludente, segundo Hardt, ligado ao corporativismo e às burocracias
sindicais595. O que nos remete à experiência do movimento de 77 na Itália, no que ele
teve de multiplicidade de sujeitos (a tribo das toupeiras como chamara Sergio Bologna
em artigo na época), e de choque com o corporativismo e conservadorismo das
burocracias sindicais que representavam a “classe operária”. O conceito de multidão,
por sua vez, para Hardt, expandiria a noção de proletariado, que por sinal era o que os
teóricos do movimento de 77 e da Autonomia Operaia buscavam fazer à época596.
Podemos encontrar algumas aproximações de um conceito de multidão
também em Cinque lezioni su Impero:
Na fase pós-moderna o conceito de multidão se liga à existência de singularidades definidas por sua capacidade de expressar trabalho imaterial e pela potência de reapropriar-se da produção através do trabalho imaterial (através da atividade). Podemos dizer que a força-trabalho pós-moderna ocorre na forma de multidão 597.
A aparente ambigüidade no discurso de Negri sobre o conceito de multidão se
contrapor ou não ao de classe se desfaz ao esclarecer que multidão seria um conceito de
classe social não-operária598. A multidão seria assim um conjunto de singularidades,
592 Negri (2006, p.145).593 Cf. Negri (2006, p.198).594 Cf. Negri (2002).595 Cf. Hardt (2003).596 Cf. Hardt (2003).597 Negri (2003a, p.145).598 Cf. Negri (2003a, p.145).
Teorias da Mais-Valia Difusa
175
que compõem uma classe social no contexto da hegemonia do trabalho imaterial e capaz
de desenvolvimento autônomo e intelectual599. Multidão seria um conceito de classe, já
que ela seria produtiva, cuja exploração sofrida seria a exploração da cooperação. Como
o próprio Negri salienta, o conceito de multidão não deve ser lido separadamente das
categorias produtivas do trabalho imaterial600. Existe uma indissociabilidade entre o
conceito de multidão e os de trabalho imaterial e hegemonia do trabalho imaterial.
Ainda em Cinque lezioni su Impero ele busca indicar os meios para se
distinguir entre os gestores e trabalhadores dentro do conceito de multidão, uma vez que
enquanto conjunto de singularidades produtivas na hegemonia do trabalho imaterial,
isto é, quando a atividade social como um todo gera valor, ao menos a princípio
aparentemente ele englobaria sem distinção todos na sociedade. A diferenciação entre
“o gerente e o operário”, ou entre o gestor e o trabalhador, seria dada pelo comum:
é somente a afirmação do “comum” que nos permite orientar de dentro dos fluxos de produção e separar os capitalistas, alienantes, dos que recompõem o saber e a liberdade. O problema será então resolvido por uma ruptura prática, capaz de reafirmar a centralidade da práxis comum601.
Em outras palavras, essa separação só se daria na prática, através de uma práxis
que os diferenciaria, na qual os trabalhadores se reconhecessem através do que têm em
comum e produzem em comum, contra a apropriação privada dos capitalistas. Assim
sendo, não se trataria do fim da luta de classes:
Exploração deverá significar de fato, apropriação de uma parte ou de todo o valor que foi construído em comum. (Este “em comum” não quer dizer que, na produção, trabalhadores e patrões estejam juntos: absolutamente não! A luta de classe continua!) A emergência do comum que se dá no processo produtivo não elimina o antagonismo interno à produção, mas o desenvolve – imediatamente – no nível de toda a sociedade produtiva. Trabalhadores e capitalistas se chocam na produção social, porque os trabalhadores (a multidão) representam o comum (a cooperação), enquanto os capitalistas (o poder) representam as múltiplas mas sempre ferozes – vias de apropriação privada602.
Em Multitude, Hardt e Negri discorrem de forma mais clara e extensa sobre as
diferenças e oposições entre os conceitos de multidão e os de povo e de classe operária.
Frisam que o trabalho industrial da classe operária já não teria privilégio em relação às
outras classes de trabalho no interior da multidão. O conceito de multidão “repousa na
tese de que não existe uma prioridade política entre as formas de trabalho: todas as
formas de trabalho hoje em dia são socialmente produtivas, produzem em comum e
599 Cf. Negri (2003a, p.145-6).600 Cf. Negri (2003a).601 Negri (2003a, p.227).602 Negri (2003a, p.266-7).
Teorias da Mais-Valia Difusa
176
também compartilham um potencial de resistir à dominação do capital”603. Mas até que
ponto tal afirmação não seria antinômica a postulados dos mesmos sobre a hegemonia
do trabalho imaterial?
Em Multitude, Hardt e Negri reafirmam a multidão como um conceito de
classe: um conceito não identitário, não homogeneizador e não unitário de classe. A
multidão seria o sujeito comum do trabalho e o sujeito social que agiria baseado no que
há de comum – não uma identidade ou uma unidade. Para Negri, embora multidão seja
um conceito de classe enraizado na hegemonia do trabalho imaterial – na passagem do
fordismo ao pós-fordismo – , “classe” seria um conceito precário, que teria perdido sua
força na pós-modernidade (ou no pós-fordismo)604. O tradicional conceito de classe não
seria mais útil, pois seria baseado na centralização do local de produção e na
homogeneização das formas de reprodução, dos estilos de vida605. Nesse sentido ele
concorda que a multidão seria aquilo que emerge com a abolição da classe
trabalhadora606.
O conceito de multidão, em suma, subsumiria o de classe, abarcando categorias
também exploradas que seriam excluídas do conceito de classe trabalhadora ou
operária: as mulheres, os pobres, os negros etc.607. Ele seria um conceito de classe
alargado, mais inclusivo, abarcando donas de casa, trabalhadores do setor de serviço,
agricultores, estudantes, pesquisadores, entre outros608. A preferência de Negri pelo
conceito de multidão se daria, segundo ele, uma vez que o conceito de classe seria
limitado para definir a intensidade (a imaterialidade) e a extensão (a toda a sociedade)
do trabalho explorado609.
Em Multitude, Hardt e Negri acrescentam ainda que a multidão poderia ser
encarada como uma rede, que proporcionaria os meios de convergência para que se
pudesse trabalhar e viver em comum610. A analogia que fazem é com a internet, que
serviria de modelo para se entender a multidão:
603 Hardt; Negri (2005, p.147).604 Cf. Negri (2008).605 Cf. Casarino; Negri (2008, p.95).606 Cf. Casarino; Negri (2008). Interessante notar que Negri criticara no final dos anos 1970 a substituição do termo “classe” por “forças populares”, e décadas depois ele seria criticado por substituir o termo “classe” por “multidão”. Ver, por exemplo, a crítica feita por Michael Albert, Class or Multitude, disponível em: <http://www.zmag.org/znet/viewArticle/6476>, acessado em julho de 2009.607 Cf. Negri (2007a, p.120).608 Cf. Negri (2009, p.119).609 Cf. Sergi; Tari (2006).610 Cf. Hardt; Negri (2005. p.12).
Teorias da Mais-Valia Difusa
177
Mais uma vez, uma rede distributiva como a Internet constitui uma boa imagem de base ou modelo da multidão, pois, em primeiro lugar, os vários pontos nodais se mantêm diferentes mas estão todos conectados na rede, e além disso as fronteiras externas da rede são de tal forma abertas que novos pontos nodais e novas relações podem estar sendo constantemente acrescentados611.
Em Fabrique de porcelaine, publicado em 2006, Negri afirma que o conceito
de multidão deveria ser entendido como elemento de coesão das multidões resistentes
postas em prática pelas singularidades. Uma definição ou entendimento novo e ao
mesmo tempo pouco elaborado por ele. A unidade de ação da multidão, por sua vez,
seria a multiplicidade das expressões de que seria capaz; algo também que ele deixa por
esclarecer, não passando de assertivas. Outra definição que aparece em Fabrique de
porcelaine, similar a dada em obras anteriores, apresenta a multidão como conjunto de
singularidades, de um tecido cooperativo que entrelaçaria uma infinidade delas612. Uma
definição com características de fórmula é dada por Michael Hardt no mesmo período: a
multidão seria cooperação mais associação, ou singularidade mais cooperação613.
A multidão como multiplicidade social capaz de agir em comum tem como
exemplo concreto – senão paradigmático – apresentado por Hardt, a convergência que
resultou nas manifestações durante a reunião ministerial da Organização Mundial do
Comércio em 1999 em Seattle, quando distintas organizações, categorias e movimentos,
que muitas vezes se supunha serem antagônicas (como sindicalistas e ambientalistas),
agiram em comum mantendo suas diferenças614.
Em muito, a relação entre o conceito de multidão e a hegemonia do trabalho
imaterial em Negri corresponde à sua leitura de Lênin, no que ela sustenta que a forma
dominante de trabalho fornece a forma de organização com maior poder de oposição ao
capital. Ou, em outras palavras, como formula César Altamira, que a organização
revolucionária já estaria prefigurada no próprio processo de trabalho615.
Não obstante, Negri demonstra consciência das insuficiências do conceito de
multidão. Nas suas palavras, só uma “Comuna de Paris”, só uma prática, poderia
resolver os problemas e ambigüidades do conceito616. Conceito que seria ao mesmo
tempo descrição do presente, de uma tendência e de um projeto político.
611 Hardt; Negri (2005, p.14).612 Cf. Negri (2008, p.92).613 Cf. Hardt (2007).614 Cf. Hardt (2003).615 Cf. Altamira (2008).616 Cf. Casarino. Negri (2008).
Teorias da Mais-Valia Difusa
178
Multidão em sentido estrito e amplo
Se a multidão está ligada a uma nova singularidade produtiva – comunicativa e
cooperativa – e assim não sendo formada simplesmente misturando nações e povos
indistintamente, como Hardt e Negri destacam617, no entanto esse critério parece
inobservado em diversas menções que Negri faz de movimentos e lutas concretas, os
relacionando direta ou indiretamente ao conceito de multidão. E em geral isso fica mais
patente quando são evocados movimentos no chamado Terceiro Mundo, sobre os quais
não parece ser fácil elaborar conexões consistentes entre sua constituição e forma e a
hegemonia do trabalho imaterial. Como, por exemplo, quando Cocco e Negri afirmam
que na tragédia da crise econômica e política argentina desencadeada a partir do final de
2001, e nos diversos movimentos e lutas que se seguiram sob o signo do “Que se Vayan
Todos!” é que se poderia encontrar as tramas de uma possível política da multidão618.
Ou mesmo que as lutas depois das ditaduras na América Latina seriam lutas da
multidão619. Para Hardt, seriam movimentos socialmente criativos recentes como os dos
desempregados na Argentina ou o MST no Brasil que estariam inventando os traços do
que ele e Negri chamam de multidão: fazendo uma crítica à hierarquia política entre os
trabalhadores assalariados e não assalariados (como o movimento dos desempregados
na Argentina), experimentando novas formas de associação política não identitária, ou
advogando uma igualdade política dos que eram considerados excluídos ou
subordinados em certas concepções de classe trabalhadora620. Mas em nenhuma dessas
experiências citadas por Hardt transparece a relação delas com a hegemonia do trabalho
imaterial, a cooperação comunicativa social que estaria no centro da produção. Podemos
dizer que o conceito de multidão de Hardt e Negri teria assim dois sentidos: um estrito,
dado pela definição teórica, que remete diretamente à hegemonia do trabalho imaterial –
a uma configuração do trabalho e seu modo de organização – , e outro amplo, que
remete de forma geral a todos os movimentos e lutas no globo que demonstrem
potencial antagônico aos poderes constituídos.
Essa dualidade aparece nitidamente quando Negri aponta que o conceito de
multidão é um conceito de classe, enraizado na hegemonia do trabalho imaterial e que
não pode excluir de seus próprios limites os movimentos de massa dos camponeses
617 Cf. Hardt; Negri (2001).618 Cf. Cocco; Negri (2003b).619 Cf. Cocco; Negri (2005).620 Cf. Hardt (2005b).
Teorias da Mais-Valia Difusa
179
chineses, as lutas anti-racistas no Brasil, as insurgências antiteocráticas iranianas ou
índias etc.621. Não pode excluir mas ele não dá respostas sobre como um conceito
enraizado na hegemonia do trabalho imaterial não excluiria tais lutas e movimentos.
Tal dualidade da multidão, tendo um sentido teórico e estrito e um sentido
prático e amplo, reflete antinomias mais profundas no pensamento de Negri e de Hardt,
que se reportam à perspectiva operaísta inicial, de viés anti-terceiromundista na sua
origem, cuja metodologia de pensamento esteve por vezes contida na expressão quase
axiomática de que o capitalismo romperá onde a classe trabalhadora é mais forte, e não
onde ele seria mais fraco. Tal abordagem é ainda explicitada por Negri em Cinque
lezioni su Impero:
O que interessa em “Lenin além de Lenin” é identificar praticamente aquele ponto da corrente imperial onde seja possível forçar a realidade. Ora, esse não é um “ponto fraco” – não será mais assim: será, pelo contrário, aquele ponto onde são mais fortes a resistência, a insurreição, a hegemonia do General Intellect, em suma, o poder constituinte do novo proletariado. (...) Somente onde o partido da força-trabalho imaterial apresenta uma energia mais alta daquelas das forças de exploração capitalista – somente então será possível um desenho de libertação622.
O conceito de hegemonia do trabalho imaterial tem sua origem, ou sua gênese,
nessa abordagem operaísta – herdada pelo pós-operaísmo – somada ao movimento de
77 italiano, no qual o sujeito político, os grupos sociais que protagonizavam as lutas
expressivas do momento, sustentavam e se refletiram na teoria da hegemonia do
operário social na nova composição de classe (que viria a se desenvolver na teoria da
hegemonia do trabalho imaterial e da multidão). Sem esse sujeito político, e retirada da
sua indissociável gênese metodológica-propositiva anti-terceiromundista, de modo a
tentar englobar distintos movimentos sociais, que partem de distintas experiências
vividas em todo o mundo, a teoria mostra seus limites, se afasta dos seus referentes e de
seu valor prático inicial a um determinado sujeito político – é o próprio Negri que
ressalta que o conceito de multidão aparece das experiências vividas dos anos 1970 e
1990623. E as antinomias surgem principalmente nessa passagem do local (italiano,
francês, de países relativamente “avançados”) ao global.
621 Cf. Negri (2008, p.154).622 Negri (2003a, p.217-9).623 Cf. Negri (2002).
Teorias da Mais-Valia Difusa
180
Antinomia do trabalho imaterial: economia avançada vs. global
Nas duas últimas décadas, quando foram desenvolvidos os conceitos de
hegemonia do trabalho imaterial e de multidão, pode-se perceber ao longo da obra de
Negri uma antinomia entre o trabalho imaterial, a hegemonia do trabalho imaterial – e
por conseqüência a multidão – , como conceitos aplicáveis às economias avançadas, ou
aos pontos avançados da economia, e como conceitos aplicáveis igualmente à economia
global, no sentido de serem universais (ou universalizáveis), que englobariam todas os
pontos da economia e todos os grupos sociais que participariam da produção e da
sociedade. Antinomia entre uma teoria localizada, de abrangência circunscrita a um
determinado contexto sócio-econômico, e uma teoria que se pretende universal, que
mediaria diferentes contextos e condições, ou que os reduziria a essencialmente um
mesmo. É possível também observar que a preocupação e interesse em tornar as teorias
da hegemonia do trabalho imaterial e da multidão globais, ou universais, é
particularmente intensificada por volta do final da década de 1990, a partir de Empire.
Embora o trabalho imaterial, na teoria pós-operaísta, em última análise acabe
incluindo toda atividade social, até mesmo as do tempo de não-trabalho, com certa
freqüência pode-se encontrar nos textos pós-operaístas até 1996 a expressão
“trabalhadores imateriais” e “trabalhadores do imaterial” se referindo a um grupo
específico de profissionais, em geral em funções de marketing, publicidade, da indústria
cultural e da informática. É assim que Lazzarato chama de trabalhadores imateriais os
que trabalham na publicidade, na moda, no marketing, na televisão, na informática
etc.624 Negri fala de uma “fração crescente de trabalhadores imateriais sobre cujo
intelecto repousa hoje toda a determinação de valor agregado”625. Em Le Bassin de
Travail Immatériel os trabalhadores imateriais aparecem como distintos do conjunto dos
atores da nova era de organização do trabalho:
Na experiência da luta, a história e as perspectivas dos sujeitos do trabalho imaterial se conjugam e a demanda que nasce não concerne mais somente aos trabalhadores imateriais, mas o conjunto dos atores da nova era da organização do trabalho626.
624 Cf. Lazzarato (1993, p.47).625 Negri (1995).626 “Dans l’expérience de la lutte, l’histoire et les perspectives dês sujets du travail immatériel se conjuguent et la demande qui en naît ne concerne plus seulement les travailleurs immatériels mais l’ensemble dês acteurs de l’ère nouvelle de l’organisation du travail” (Corsani; Lazzarato: Negri, 1996, p.22).
Teorias da Mais-Valia Difusa
181
É também a uma categoria específica de trabalhadores que Moulier-Boutang se
refere ao utilizar a expressão “trabalhadores do imaterial”627. No caso, designers e
pesquisadores. É o que transparece também quando Negri, ao tentar explicar que a
hegemonia do trabalho imaterial seria um conceito que determinaria uma qualidade e
não uma quantidade, afirma que o trabalho imaterial (aquele que produz bens
imateriais) constitui uma minoria do trabalho global e está concentrado nas regiões
dominantes do planeta628.
A relação estabelecida entre o trabalho imaterial e a metrópole, o urbano,
também demonstra a ligação mais direta e específica do trabalho imaterial com certas
condições geográficas e sociais.
A cidade é a máquina na qual o trabalho imaterial se distribui de maneira operatória. (...) A cidade é um enorme reservatório de trabalho imaterial, de formas de vida. Essas formas de vida se dispõem e ganham aparência no espaço. (...) Na cidade, as formas de vida que elaboram as línguas, os códigos e as formas de expressão se produzem de maneira autônoma. A análise do Sentier deixa já em evidência como, na moda, o trabalho imaterial consiste em captar, transformar, interpretar o modo de vida metropolitano629.
O tanque de trabalho imaterial se enraizaria na metrópole, nos seus circuitos
de informação, de formação e de reprodução. O trabalho imaterial, para se constituir,
como vimos, não teria necessidade da empresa, mas da metrópole630. Em uma frase, “a
atividade imaterial se aglomera e se organiza sobre o território da metrópole”631.
Em Reappropriations de l’espace, em 1996, Negri aponta que o operário social
é um trabalhador imaterial por ser altamente escolarizado, porque seu trabalho e esforço
são essencialmente intelectuais e porque sua atividade é cooperativa. Significativa
também da relação entre escolarização e trabalho imaterial é a consideração das revoltas
estudantis na França, em 1986, como as primeiras revoltas do trabalho imaterial, como
já vimos. A ligação que Negri faz entre trabalho imaterial, metrópole, escolarização e
certas estruturas educacionais e comunicativas acaba vinculando o trabalho imaterial a
certas condições específicas, e a grupos sociais mais particulares e localizados. Para a
comunicação social tender a se identificar à valorização – momento da hegemonia do
627 Cf. Corsani; Lazzarato: Negri (1996, p.176).628 Cf. Negri (2009, p.129).629 “La ville, c’est la machine dans laquelle le travail immatériel se déploie de manière opératoire. (...) La ville est un énorme reservoir de travail immaterial, de formes de vie. Ces formes de vie se déploient et prennent figure dan l’espace. (...) Dans la ville, les formes de vie qui élaborent des langages, dês codes et dês formes d’expression se produisent de manière autonome. L’analyse du Sentier met dèja en évidence comment, dans le mode, le travail immatériel consiste à capter, transformer, interpréter le mode vie metropolitain” (Corsani; Lazzarato; Negri, 1996, p.47-48).630 Cf. Corsani; Lazzarato; Negri (1996, p.57).631 Corsani; Lazzarato; Negri (1996, p.15).
Teorias da Mais-Valia Difusa
182
trabalho imaterial – , ela exigiria tecnologias adequadas (redes de comunicação e
informática)632. É nesse sentido também que Cocco e Negri afirmam que a
produtividade do trabalho imaterial está sujeita aos níveis de socialização e de cidadania
material, isto é, à universalização dos serviços básicos e avançados633. Na era do
capitalismo do conhecimento, segundo eles, é necessário ter educação, moradia e acesso
aos serviços básicos e avançados para ser produtivo634. Em Commonwealth, Hardt e
Negri repetem que na economia biopolítica as capacidades lingüísticas e relacionais
seriam centrais, e embora inatas precisariam ser desenvolvidas, o que tornaria, segundo
eles, a educação básica e a avançada ainda mais importantes que anteriormente635.
Corroborando a crítica de Rodrigo Nunes aos pós-operaístas de que o caráter
emancipatório do trabalho imaterial seria extrapolado de casos muito limitados636, há
uma passagem de Negri em que ele afirma ser no terreno do avanço tecnológico, da
comunicação informática, que estariam os setores mais vulneráveis à autonomia da
cooperação social e portanto onde haveria maior potencial de ruptura637. Tal potencial
se adéqua aos setores mais avançados da comunicação e informática, onde a autonomia
da cooperação social é mais factual ou perceptível.
Se, como vimos, a recusa do trabalho teria estado na gênese da hegemonia do
trabalho imaterial – e a força, recusa e criatividade do proletariado fora das fábricas
(contracultura) teria sido a base da hegemonia norte-americana – Hardt e Negri não
escondem que foi principalmente nos países capitalistas dominantes, em que os
trabalhadores já haviam conquistado uma margem de liberdade maior, que a recusa do
trabalho, da disciplina fabril, teria levado à mudança de paradigma produtivo; onde as
lutas (contra)culturais teriam tido efeitos políticos e econômicos profundos638. E a
passagem do fordismo ao pós-fordismo, com o aparecimento dos “novos cenários
produtivos típicos do general intellect” teriam sido mostrados por estudos empíricos das
lutas no norte da Itália e no Sillicon Valley639, ou seja, localizadas em pontos dos países
dominantes, e onde o proletariado tinha possibilidade maior de recusa. Essa centralidade
632 Cf. Corsani, Lazzarato e Negri (1996).633 Nesse sentido o neoliberalismo, para Cocco e Negri, teria fragmentado a possibilidade de constituir a composição técnica de um novo tipo de trabalho socializado na América Latina. Cf. Cocco e Negri (2003b).634 Cf. Cocco; Negri (2006).635 Cf. Hardt; Negri (2009, p.308).636 Cf.Nunes (2007b).637 Cf. Negri (1996a).638 Cf. Hardt; Negri (2001).639 Cf. Negri (1998b).
Teorias da Mais-Valia Difusa
183
do trabalho imaterial, geograficamente e socialmente localizada, transparece também
quando Negri afirma que os processos de emigração não são apenas movimentos de
fuga da miséria, mas “a caminho da centralidade do trabalho imaterial e que revelam
grande desejo de entrar nesses circuitos”640. E é também nos países dominantes que o
trabalho imaterial seria um elemento central das ocupações profissionais que mais
crescem641. Sendo particularmente na Europa que movimentos e lutas sociais dessas
novas camadas de trabalho produtivo (imaterial) poderiam ser observados642.
Ao contrário de Negri e Hardt, Paolo Virno não demonstra a pretensão de que
sua teoria tenha abrangência universal, não incorrendo assim na antinomia que
pretendemos aqui mostrar estar presente no pensamento de Negri e de Hardt.
Características do pós-fordismo, como as qualidades exigidas do trabalhador serem
fruto da socialização e não da disciplina no trabalho, são para ele válidas apenas nos
pontos onde a inovação estaria mais avançada, enquanto a homogeneidade dos modos e
conteúdos de socialização seria válido nas metrópoles643.
Diferentemente de Virno, Hardt e Negri afirmam um devir comum que
reduziria as diferenças qualitativas do trabalho, apesar de diferentes experiências
vividas de grupos e sujeitos sociais, de modo a levantar a hipótese da composição
técnica que daria origem à multidão, formada pelas mais distintas funções produtivas e
grupos sociais: agricultores, informáticos, trabalhadores de serviços, estudantes,
movimentos étnicos etc.
E se o trabalho imaterial era relacionado principalmente, por um lado, à
metrópole e ao acesso à renda, aos serviços básicos e avançados, à cidadania, por outro
lado, à medida que pretendem que a teoria da hegemonia do trabalho imaterial e da
multidão tenha abrangência global, aparece a necessidade de incluir sob o trabalho
imaterial os excluídos dessa cidadania, os camponeses, entre outros grupos sociais.
Quanto ao que eles chamam de pobres, isto é, os excluídos, os desempregados, não-
assalariados, sem-teto etc., esses estariam incluídos dentro do processo produtivo, pois:
na medida em que a produção social define-se cada vez mais por formas imateriais de trabalhos como a cooperação e a construção de relações sociais e redes de comunicação, torna-se cada vez mais diretamente produtiva a atividades do todos na sociedade, inclusive os pobres644.
640 Negri (2003a, p.111).641 Cf. Hardt; Negri (2005, p.157).642 Cf. Negri (1998a).643 Cf. Virno (2003b).644 Hardt; Negri (2005, p.178).
Teorias da Mais-Valia Difusa
184
Hardt apontava que o trabalho imaterial tenderia a se estender a toda população
ativa, não se restringindo a funções como de informáticos e enfermeiros, tendo maior ou
menor peso como componente de todos os processos laborais645. E Negri chega a ser
assertivo e mais contundente: quase todas as formas de organização do trabalho dos
setores produtivos, inclusive os que há tempo estariam excluídos do tecido de
comunicação e informação social, estariam hoje subsumidos no interior de um conjunto
global no qual as determinações da exploração possuiriam as mesmas características646.
Já apontamos como Hardt e Negri vêem o trabalho dos agricultores também
dentro do conceito de trabalho imaterial647. Mas cabe repetir nas palavras de Cocco e
Negri que:
O trabalho camponês, de fato, torna-se novo quando ele acompanha a lavoura pela utilização de conhecimentos – tradicionais mas também, e cada vez mais, científicos – que valorizam os produtos: quanto mais essa síntese imaterial acontece, mais o trabalho camponês torna-se produtivo648.
Em suma, o devir comum do trabalho e a produção do comum não estariam
circunscritos aos engenheiros de computação em Seattle ou em Hyderbad, mas
caracterizaria também os trabalhadores da saúde no México, em Moçambique, os
agricultores na Indonésia e no Brasil, os cientistas na China e na Rússia e os operários
industriais na Nigéria e na Coréia649. A crítica mais óbvia é a de que Hardt e Negri
inflacionam esse devir comum do trabalho nessas categorias, ou o comum do trabalho –
diferentemente de Virno. E se a hegemonia de uma forma de trabalho faz com que essa
forma se difunda a outros setores e à sociedade, por que o devir comum do trabalho
industrial, quando da sua hegemonia (figura do operário massa), não implicava
igualmente num não privilégio de um sujeito social como sujeito revolucionário e na
postulação da ausência de hegemonia política de uma categoria sobre as outras?
Questão aparentemente sem resposta.
Hardt e Negri explicitam que a tentativa de mostrar que camponeses, pobres e
imigrantes se encontram dentro da tendência para as condições comuns de trabalho e
produção (imaterial) é uma tentativa de responder às críticas de que seriam teóricos do
Primeiro Mundo, teóricos das condições do norte global650. Mas o fato é que a análise e
perspectiva pós-operaísta tem sua origem fundamentalmente nas experiências e práticas
645 Cf. Hardt (1999).646 Cf. Negri (2008, p.82).647 Cf. Hardt e Negri (2005).648 Cocco; Negri (2005, p.133).649 Cf. Hardt; Negri (2005, p.389).650 Cf. Hardt e Negri (2005).
Teorias da Mais-Valia Difusa
185
do norte global. Como já dissemos, o anti-terceiromundismo do operaísmo se transfere
ao pós-operaísmo através de alguns de seus postulados de base. O salto dessa condição
local e setorial para uma suposta condição global e universal se torna pouco convincente
porque lacunar. Algo que pode ser bem percebido na explicação que Cocco e Negri dão
para o movimento argentino de 2001 e dos anos seguintes. Para eles, a recomposição
política entre os piqueteros – desempregados, “excluídos” – e os “incluídos”
poupadores da classe média (que perderam seu dinheiro) só teria sido possível porque
essas figuras sociais teriam muito mais coisa em comum do que a tradicional teoria de
classes suporia.
No movimento argentino de dezembro de 2001, excluídos e incluídos não se encontraram com base em uma improvável aliança tática entre classes médias e proletariado das periferias, mas sim porque formavam as duas faces de uma mesma composição técnica do trabalho: a do trabalho imaterial. (...) No movimento argentino não houve nenhuma aliança, mas sim a constituição de uma nova figura de classe: a multidão651.
A crítica à Negri e a essa abordagem operaísta e pós-operaísta que colocaria
lutas surgidas em condições diferentes dentro de um mesmo paradigma foi bem feita e
detalhada por Holloway652: o que agricultores do MST, camponeses indígenas em
Chiapas e os manifestantes em Seattle teriam em comum, ou os piqueteros e poupadores
argentinos, não seria uma composição de classe, ou uma subjetividade positiva ligada a
um comum do trabalho, mas sim sua luta negativa (de negação) contra o capitalismo, ou
contra um inimigo comum. Tal explicação é mais facilmente constatável empiricamente
do que a metafísica atribuição de uma condição comum de natureza produtiva e laboral
a esses sujeitos.
Hardt e Negri recusam a assunção de que aqueles que estão nas regiões
dominantes poderiam estar prontos para formas democráticas de organização como a
multidão enquanto os que estão nas regiões ou setores subordinados estariam
condenados a formas mais antigas e menos democráticas até que as condições lá
surgissem653. No entanto essa recusa não encontra respaldo na própria teoria, uma vez
que a forma democrática da multidão (para eles mais democrática que as formas de
organização políticas de anteriores composições de classe) estaria dada pela forma de
organização do trabalho, isto é, do trabalho imaterial. Sendo assim, onde as formas
cooperativas e comunicativas de produção – que tipificam o trabalho imaterial –
651 Cocco; Negri (2005, p.171).652 Cf. Holloway (2003).653 Cf. Hardt e Negri (2005).
Teorias da Mais-Valia Difusa
186
estiverem mais disseminadas e desenvolvidas, supõe-se que as condições para a
democracia da multidão também estejam mais maduras ou sejam ao menos mais
prováveis. Novamente, a contradição aparece na inclusão de diferentes experiências e
realidades em um paradigma que é construído a partir de uma experiência e condição
particular.
A antinomia da multidão: o específico vs. o global
A forma-multidão estaria ligada às condições de formação do indivíduo social
de Marx – seria constituída pelo indivíduo social. É o que fica claro quando Negri
declara que a multidão pós-moderna não é a mesma multidão hobbesiana, mas uma
multidão rica, educada, ou que ela é constituída por trabalhadores que possuem os
instrumentos produtivos incarnados no intelecto654. É também o próprio Negri que
assume que a lógica do êxodo, de subtração e esvaziamento do poder, ligada à sua teoria
do poder da multidão, do antagonismo e do poder constituinte nos dias de hoje655, seria
um privilégio só possível em algumas regiões, e provavelmente não possível, por
exemplo, aos africanos656. E será em outra entrevista, realizada também no início da
década de 2000 que ele irá deixar de forma mais clara e explícita que o conceito de
multidão se aplicaria ao Ocidente mas ainda não totalmente à África, à América Latina
e à Ásia, uma vez que ele seria tendencial e seria função dos níveis gerais de formação e
de estruturas sociais (escolarização, redes de comunicação, serviços básicos e
avançados)657. Se “a ação política voltada para a transformação e a libertação só pode
ser conduzida hoje com base na multidão”658, e se regiões, setores ou grupos não
possuem as condições de fazer ou ser multidão, então, ao contrário do que afirma em
Multitude, as regiões subordinadas não estariam ainda preparadas, amadurecidas ou em
plenas condições para a democracia da multidão. Em Commonwealth a habilidade da
multidão de gerir a riqueza comum aparece também como resultado de uma
654 Cf. Negri (2001b).655 Cf. Negri (2003a, p.154).656 Cf. Negri (2006, p.113).657 Cf. Negri (2002).658 Hardt; Negri (2005, p.139).
Teorias da Mais-Valia Difusa
187
metamorfose dos sujeitos sociais através da educação e treinamento em cooperação e
comunicação659.
Se a internet é uma boa imagem ou modelo da multidão660, e uma boa forma de
entender a multidão seria como uma sociedade dos códigos-abertos, ao estilo software
livre, “para que todos possam trabalhar em cooperação na solução de seus problemas e
na criação de novos e melhores programas sociais”661, implica que o conceito ganha
todo seu sentido e correspondência na experiência vivida em torno do mundo
informático e comunicativo, da internet, das novas tecnologias de informação e
compartilhamento de conhecimento, de produção de softwares, de conteúdo etc. Não é
coincidência que Negri e outros pós-operaístas sejam freqüentemente convidados a falar
sobre capitalismo cognitivo, direito de propriedade intelectual e outros temas mais
diretamente relacionados às atividades informáticas. As redes colaborativas
informáticas, entre elas a de produção de software livre, são um modelo (de organização
e produção) da multidão porque são apreendidos como tipo-ideal. Mas à medida que as
experiências vividas se afastam desse tipo ideal, o conceito perde força, e assim sua
universalidade se torna mais e mais precária, assim como a universalidade do potencial
emancipador e libertário da cooperação social produtiva e comunicativa662. Ao mesmo
tempo Hardt e Negri aplicam o conceito a movimentos de todo o mundo, e, como já
vimos, Cocco e Negri descrevem as lutas e movimentos argentinos de 2001/2002 como
constituindo multidão, em todas as suas características, inclusive enquanto “êxodo
constitutivo”663. Para Hardt, como também já vimos, o movimento argentino e o MST
estão entre aqueles que forneceram as práticas para a formulação do conceito. Negri por
sua vez fala em “êxodo zapatista”, o que implica na possibilidade de êxodo, e portanto
de multidão, a camponeses indígenas pobres com pouquíssimo acesso a serviços
básicos, se chocando com o que ele havia afirmado sobre a possibilidade dos africanos
constituírem multidão664. Mas o fato é que, segundo o próprio Negri, foram as lutas na
França em 1995 e Seattle que teriam fornecido o “material” para Empire e Multitude665.
659 Cf. Hardt; Negri (2009, p.311).660 Cf. Hardt; Negri (2005, p.14).661 Hardt; Negri (2005, p.425).662 Não deixa de ser paradoxal que Hardt e Negri argumentem em Multitude que o conceito de multidão exige uma visão não-eurocêntrica – uma vez que a multidão seria uma rede aberta de singularidades únicas com base no que produzem e compartilham em comum. Porém, se o próprio conceito não é totalmente aplicável em regiões do mundo fora da Europa, como poderia ele ser não-eurocêntrico?663 Cocco; Negri (2003b).664 Cf. Negri (2007a).665 Cf. Negri (2003c).
Teorias da Mais-Valia Difusa
188
Embora o conceito de multidão tenha como aspecto essencial a pluralidade, a
singularidade e a manutenção delas, a busca de uma linguagem universal, assim como a
descrição de diferentes experiências vividas ao redor do mundo, a partir de conceitos
que emergiram de experiências específicas, gera uma antinomia interna à teoria. Essa
metanarrativa que busca universalidade acaba por negar a própria existência de
singularidades que seriam intrínsecas ao conceito.
Multidão: passado, presente e projeto
A multidão não seria apenas uma realidade presente. Como já vimos, teria
havido multidão em épocas passadas, embora com algumas características distintas da
multidão pós-moderna666. Mas, além disso, a partir de Multitude eles declaram a
multidão não apenas como algo existente, mas também como projeto político a se
constituir. Com o conceito de multidão eles buscam não apenas nomear o que já estaria
acontecendo, mas entender a atual tendência social e política de modo a desenvolver
ainda mais essa forma política que estaria surgindo667. Nas próprias palavras deles, ela
existe e ao mesmo tempo seria um projeto político. O conceito não se basearia tanto
numa análise empírica atual de classe, mas em suas condições de possibilidade668. A
realidade presente da multidão adviria do seu aspecto ontológico, sendo parte do nosso
próprio ser social. A multidão enquanto projeto por sua vez estaria ligada a ela ser
condicionada historicamente – seria uma “multidão que nunca existiu até hoje”669. Seria
a multidão ontológica, latente, intrínseca ao ser social, que tornaria possível a multidão
como projeto político. Como projeto de organização política, ela só poderia se
concretizar através de práticas políticas, e nesse sentido ninguém ficaria
necessariamente excluído dela, e nem necessariamente incluído670. A expansão e
expressão do comum seria, portanto, “uma questão prática e política”671. Projeto da
666 Sobre multidão no passado, ver Hardt; Negri (2001, p.394); Virno (2003a, p.40); Hardt (2007) e Negri (2005e).667 Cf. Hardt; Negri (2005, p.285).668 Cf. Hardt; Negri (2005, p.146).669 Cf. Hardt; Negri (2005, p.285).670 Por sua vez, a questão de saber se a multidão seria ou não anticapitalista, não teria para Negri uma resposta a partir da análise do conceito. Sendo a multidão não apenas um conceito, mas uma realidade nova, a resposta se encontraria no próprio movimento. Cf. Negri (2008, p.81).671 Cf. Hardt; Negri (2005, p.289).
Teorias da Mais-Valia Difusa
189
multidão que seria a possibilidade de democracia em escala global672. Formar uma
multidão seria assim imediatamente produzir uma democracia673. Esses dois aspectos da
multidão (ontologia e projeto político) aparecem também na distinção entre “ser
multidão” e “fazer multidão”. A primeira, seria a que eles tratariam, a que teorizariam, e
a última seria uma questão de organização, de prática674. Contudo, os conceitos
desenvolvidos por Negri e Hardt – como os de Império e multidão – , na própria ótica
deles, se inseririam também numa importante tarefa política, na medida que buscariam
reconhecer um inimigo comum e inventar uma linguagem comum de lutas675. Por vezes
Negri também usa a diferenciação de “multidão em si” e “multidão para si”676,
explicada como o “conjunto imediato dos movimentos sociais” (multidão em si), e “o
conjunto imediato dos movimentos políticos e da expressão concreta das necessidades e
dos desejos sociais” (multidão para si)677.
Segundo o próprio Negri, sua narrativa parte de um telos: “o risco e a luta dos
homens contra a exploração, para tornar a vida alegre, para eliminar a dor”. Desse telos
ele conclui que o problema político seria “o de propor um espaço adequado para todas
as lutas que partem de baixo”.678 Podemos supor que dessa sua preocupação somada a
concepções herdadas do operaísmo decorre a dualidade que aparece em sua teoria da
multidão, entre um sentido localizado e global, entre um sentido estrito e um sentido
amplo.
Federalismo ontem e hoje
Ao final de Multitude a proposta de Hardt e Negri é a de combinar o
constitucionalismo republicano do Federalist Papers de James Madison com o anti-
estatismo de Lênin em O Estado e a Revolução. E num manifesto escrito com
participação de Paolo Virno (assinado como Immaterial Workers of the World), o
federalismo é proposto como forma de organização política679. Negri propõe um novo
672 Cf. Hardt; Negri (2005, p.9).673 Cf. Negri (2008, p.199).674 Cf. Negri ( 2005b).675 Cf. Hardt; Negri (2001, p.57).676 Cf. Negri, (2007a, p.84; 2005e; 2008, p.80).677 Cocco; Negri (2005, p.177).678 Negri (2003a, p.34).679 Cf. Virno (1999).
Teorias da Mais-Valia Difusa
190
federalismo que principalmente unifique os novos programas do proletariado680. O
estudo das condições de produção e reprodução pós-modernas levam assim a pós-
operaístas proporem formas políticas que remetem indiretamente a Proudhon, como
fundador da combinação de federalismo e anti-estatismo (que seria adotado e
radicalizado por Bakunin e pela tradição anarquista que se seguiu). A aproximação de
propostas proudhonianas – mas sem menção ou influência de Proudhon – se torna
inusitada ainda mais que, nas poucas vezes que Negri menciona Proudhon ao longo de
suas obras, é como anátema que o pensador francês aparece. Mas o fato é que, além de
antecipar a conjunção de federalismo e anti-estatismo, Proudhon antecipou também a
crítica ao conceito de povo – O Uno que convergiria na soberania estatal – presente no
conceito de multidão e que embasaria a proposta federalista e pluralista proudhoniana.
Para o tipógrafo francês a idéia política de povo carregaria consigo a sombra de uma
entidade una e indivisível. A democracia seria também um sistema unitário, baseada
nessa idéia de povo, ser uno e indivisível, sem espaço para as diferenças e pluralidade.
O povo assim encontraria identidade com a forma estatal. O ideal de ambos seria a
“unidade, identidade, uniformidade, concentração”; amaldiçoando como “atentatório da
sua Majestade, tudo o que pode dividir a sua vontade, separar a sua massa, criar nele
diversidade, pluralismo, divergência”681. Quando Negri afirma que a polêmica
luxemburguiana contra o limitado operaísmo da Segunda Internacional teria sido uma
antecipação do nome multidão682, ele deixa para trás toda antecipação nesse mesmo
sentido que já ocorrera no século XIX, fora do marxismo, onde havia um entendimento
da multiplicidade e pluralidade dos sujeitos da revolução, seja por Proudhon ou por
Bakunin, entre outros. Tal redução operaísta, como se sabe, foi operada por Marx e
pelos marxistas, uma vez que, para esses o sujeito histórico da revolução comunista
seria o proletário industrial.
Como vimos, o federalismo e associativismo – que caracterizaram o
pensamento proudhoniano – era uma ideologia vinda de baixo, isto é, surgida da prática
da classe trabalhadora francesa no século XIX. Tratava-se de uma tendência, uma
realidade existente e também de um projeto político, o qual Proudhon foi um de seus
principais formuladores teóricos. Essa coincidência entre formas políticas supostamente
adequadas a um proletariado ou multidão numa economia pós-moderna ou pós-fordista
680 Cf. Negri (2009, p.91; 97).681 Proudhon (2001, p.117).682 Cf. Negri (2003a).
Teorias da Mais-Valia Difusa
191
e numa economia ainda em fase de industrialização parece mostrar que a relação entre
composição técnica e composição política é menos mecânica, evolucionista ou
determinista do que Negri deixa transparecer683. Uma composição política que
prevalece não é determinada apenas pela sua adequação a uma composição técnica, mas
também pelos embates políticos, pelas escolhas e tradições presentes à época. O
elemento cultural do conceito de composição de classe parece assim se perder nas obras
mais recentes de Negri. Não por coincidência naquelas em que ele passa da análise mais
localizada à global, em que busca a universalização da sua teoria. E uma teoria
universalizante ou teria que prescindir e negar aspectos culturais ou teria que afirmar a
existência de uma unidade cultural global, a qual seria antinômica à idéia mesma de
singularidade que compõe o conceito de multidão. A cultura é assim expelida
silenciosamente do conteúdo da composição de classe, e a composição técnica ganha
mais espaço, sendo universalizada através do conceito de hegemonia do trabalho
imaterial. O proletariado com aspecto de multidão não é um fenômeno pós-moderno por
excelência684, mas apreendê-lo como tal é uma mudança de posição teórica e política de
Negri, em direção a se opor a uma concepção unitária e estatista de classe, comum no
marxismo, no qual ele se situa. Em suma, a multidão como modo de existência do
proletariado no pós-fordismo.denotaria sua pluralidade, e diferentes identidades. Esta
última característica define por conseqüência a ausência da classe concreta, em seu
sentido histórico, cultural, sociológico. A pluralidade de movimentos de resistência e
antagonistas ao capitalismo sempre existiu, porém pouco relevada enquanto a classe
trabalhadora concreta e em movimento colocava em questão o capital a partir do que
parecia ser seu âmago: o trabalho direto no modo capitalista de produção. Para ficarmos
no exemplo brasileiro, resistência e lutas indígenas contra o capital sempre existiram685,
e a chamada Guerra do Contestado possui ao menos tanta relevância histórica em
termos de lutas sociais quanto o movimento operário urbano que foi seu
contemporâneo.
683 Cf. Negri (1996a); Hardt; Negri (2001).684 Proudhon já afirmava a pluralidade em contraposição ao conceito unitário de povo, ou seja, via os produtivos como pluralidade e não como unidade. Da mesma forma, o anarquismo de Mikhail Bakunin e a o grosso da tradição anarquista que o seguiu insistem num conceito de classe trabalhadora ou de sujeito revolucionário muito mais amplo que o proletariado urbano ou industrial. Bakunin falará de massas populares, e incluirá como potencial sujeito revolucionário até mesmo o lumpem-proletariado.685 Para uma interessante ilustração de resistência indígena e da opinião sobre ela de anarquistas que integravam o movimento operário brasileiro do início do século XIX, ver Biondi (1998).
Teorias da Mais-Valia Difusa
192
Capítulo IX
Pragmatismo e Mito do Comunismo Maduro
Teleologia e o mito do comunismo imanente e maduro
Da leitura de Lênin feita por Negri de que é da organização do trabalho que
viria a forma de organização mais poderosa de luta, ele e Michael Hardt acabam por
formular uma teleologia das formas de organização anticapitalistas. Assumem uma
relação entre a evolução das formas de resistência e as transformações da produção. O
modelo dominante em uma, seria o modelo dominante na outra. E cada forma de
resistência destinar-se-ia a atacar as qualidades antidemocráticas das formas anteriores,
“criando uma cadeia de movimentos cada vez mais democráticos”686. Temos uma
teleologia das formas de luta e resistência cujo telos é a democracia. Para eles
estaríamos na época da forma-rede, correspondente à hegemonia do trabalho imaterial.
E hoje, diferentemente das formas anteriores, a forma de resistência estaria em sintonia
com os objetivos democráticos das lutas. Diferentemente do que ocorreria em formas
anteriores, haveria hoje a coincidência de três aspectos: a forma-rede hoje seria um
modelo de organização democrática, correspondente às formas dominantes de produção
e também seria a forma de organização mais poderosa contra a estrutura vigente. Temos
então uma teleologia que guarda ao nosso período histórico a possibilidade de termos a
combinação da forma de organização de luta mais democrática e mais poderosa. Depois
686 Hardt; Negri (2005, p.103).
Teorias da Mais-Valia Difusa
193
de uma tal “genealogia das resistências” – dos exércitos populares e dos bandos
guerrilheiros aos movimentos em rede – parece que de nada adianta, ao fim, afirmarem
não querer dar impressão de um determinismo ou evolução natural, uma marcha linear
nas formas em direção à democracia absoluta, pois é exatamente isso que eles fazem na
sua genealogia, que de fato é uma teleologia687.
Negri em palestra no Collége de France, em 2004, não esconde que a
teleologia, a determinação, a concepção progressiva de história, seriam para ele
elementos importantes do marxismo. Seriam neles que se sustentaria a razão de resistir.
Sem eles, não se saberia por que se deveria resistir688. Claro fica que a teleologia
marxista teria para Negri, em última análise, função parecida que Sorel apontava ao
mito: uma função mobilizadora. E se Negri critica aqueles que retiram do marxismo a
teleologia por esse motivo, é evidentemente sinal de que ele procura manter na sua
teoria a teleologia e sua função de, supostamente, dar sentido e razão de resistir.
Se na pós-modernidade a mais-valia seria acima de tudo o bloqueio da
teleologia do comum689, temos em Negri também uma teleologia do comunismo. Se em
Marx a mais-valia se inseria dentro de um processo histórico que teria como fim o
comunismo, em Negri ela aparece como entrave a esse processo. A constituição do
comum seria a única verdadeira continuidade existente através da miríade de altamente
descontínuas e heterogêneas lutas690.
Se nossa leitura diverge da de César Altamira por crermos que há um telos na
teorização sócio-histórica de Negri, ela converge quanto ao comunismo imanente e
latente na sociedade para o filósofo italiano691. Comunismo que é buscado por ele, e até
definido, dentro das relações e tendências existentes na sociedade. É a partir de
estruturas, qualidades ou relações existentes que se deve basear um projeto comunista
para ele. A insistência de Negri em se remeter à ontologia, em parte resulta da
afirmação de que o real não pode ser inventado, o ser é o que é692, o que o afasta assim
de uma perspectiva de construção utópica, no sentido atribuído pelos marxistas a
687 Importa notar também que, ao contrário da proposição de base do operaísmo de que a classe trabalhadora e sua luta são o pólo dinâmico, e o capital o pólo reativo, sendo as inovações e transformações econômicas conseqüência da insubordinação, ação e luta dos trabalhadores, Hardt e Negri em Multitude abordam a relação das formas de organização da resistência e luta como em coordenaçãocom a evolução das formas de produção, e não como as formas de produção sendo conseqüência das formas de organização da luta, em busca de capturar e se adaptar à subjetividade da classe trabalhadora.688 Cf. Negri (2009, p.206).689 Cf. Negri (2003c, p.216).690 Cf. Casarino; Negri (2008 p.81).691 Cf. Altamira (2008).692 Cf. Negri (2003a, p.100).
Teorias da Mais-Valia Difusa
194
socialistas anteriores a Marx. Esse comunismo latente não só estaria presente nas
sociedades capitalistas, como essas se manteriam através da articulação dos elementos
que antecipariam o comunismo693. Um comunismo imanente às formas (democráticas)
de organização de resistência da multidão e à cooperação produtiva na hegemonia do
trabalho imaterial seria parte desses elementos.
Se a teleologia das formas de resistência leva hoje à conjunção pela primeira
vez da forma plenamente democrática com a forma mais poderosa, também seria pela
primeira vez, devido às condições de independência proletárias determinada pela
hegemonia do trabalho imaterial, que existiria a possibilidade de uma ruptura na
reestruturação social e produtiva que não seria recuperável e que seria independente do
amadurecimento da consciência de classe694. A última tese de suas Vinte teses sobre
Marx, portanto, não estranhamente tem como título Hoje a Constituição do Comunismo
está Madura695. Além das condições maduras para a constituição do comunismo, ele
enxerga hoje mais comunismo na sociedade, na medida em que por toda parte
coexistiriam níveis de comunidade e ação comum696. Ele vê os elementos comunitários
prevalecendo sobre a individualização, e os inventores dos novos modelos
comunicativos como socialistas mais do que como capitalistas697. Seguindo sua gradual
mudança de vocabulário, substituindo a palavra comunismo por democracia, seria hoje
pela primeira vez possível a realização da democracia, através da multidão como sujeito
social e pela sua lógica de organização698. As potencialidades comunistas da multidão
seriam infinitamente superiores às potencialidades comunistas da classe operária na
época de Marx699. O comunismo que estaria maduro para ele significaria a
administração social do comum em oposição ao privado e ao estatal700.
Como vimos, a teorização de Negri carrega um telos comunista/democrático,
no qual seria neste momento histórico – de hegemonia do trabalho imaterial – que a
constituição do comunismo ou da democracia estaria madura, ou até mesmo seria pela
primeira vez possível. Questionado sobre essa suposta negação de uma capacidade
693 Cf. Hardt; Negri (2004a, p.141).694 Cf.Negri (1996a).695 Cf. Negri (1996a, p.177).696 No exemplo dado por ele, até mesmo para se escrever um artigo se recorreria a um saber comum ou à internet. Cf Negri (2006, p.43).697 Cf. Negri (2007a). O economista comunista Richard Wolff, possui percepção semelhante, como exposto em palestra que pode ser acessada em: <http://vimeo.com/1962208>.698 Cf. Hardt; Negri (2005, p.283).699 Cf. Hardt; Negri (2004b).700 Cf. Negri; Petras (2004).
Teorias da Mais-Valia Difusa
195
anterior para o comunismo, Michael Hardt procura relativizar, tratando o momento
histórico atual como tendo apenas maior potencialidade para o comunismo, dada por
condições históricas na qual elas próprias seriam conseqüências de lutas passadas701. De
toda forma, o discurso do comunismo maduro de Hardt e Negri guarda semelhança com
a função do mito soreliano, tendo um papel mais de tentativa de criar essas condições do
que de descrição das mesmas.
Invertendo a formulação gramsciana pessimismo da razão e otimismo da
vontade, Negri defende o otimismo da razão, entendendo-a spinozianamente como o ser
como eternidade – algo especialmente reconfortante e estimulante após a derrota do
movimento do qual participou nos anos 1970, segundo ele próprio. A teleologia
comunista e o mito do comunismo maduro em Negri parecem ser os melhores exemplos
do seu otimismo da razão. E assim não surpreende que ele afirme simplesmente que o
comunismo hoje seria esse otimismo da razão702.
O pragmatismo no operaísmo e pós-operaísmo
Negri foi leitor dos pragmatistas (Dewey, Pierce e James) no final dos anos
1950, aos quais ele declara nutrir muita simpatia e afeição até os dias de hoje703. No
entanto, é investigando as proposições operaístas que podemos enxergar traços
pragmatistas e verificar o grau em que a teoria era condicionada a ter um valor prático
ao movimento social. No pensamento de Tronti, seminal ao operaísmo, podemos
encontrar com certa clareza tais traços. Para ele a teoria da revolução significava a
prática direta da luta de classes704. O conhecimento estaria ligado à luta: “conhece
verdadeiramente quem verdadeiramente odeia”705. Baseado no ódio de um grupo social
que tem por desejo e propósito transformar a sociedade, seria construída uma ciência
ligada ao ponto de vista da classe operária706.
Outra aproximação de que o referente, a classe, para o operaísmo é dado pela
luta e não objetivamente por uma análise econômica, pode ser indicada, por exemplo, a
partir da leitura de Altamira, segundo a qual para o operaísmo a classe trabalhadora não
701 Cf. Hardt (2007).702 Cf. Negri (2007a, p.24).703 Cf. Casarino; Negri (2008, p.44).704 Cf. (Tronti, 1965).705 “conoce verdaderamente quien verdaderamente odia” (Tronti, 2001, p.19).706 Cf. (Tronti, 2001).
Teorias da Mais-Valia Difusa
196
seria definida pela sua função produtiva (como produtores ou assalariados), mas por sua
capacidade de disputar o controle social com o capital707. Traço presente na afirmação
de Tronti de que o que é a classe trabalhadora não pode ser separado de como ela
luta708. Algo que também será explicitado no pós-operaísmo de Moulier-Boutang ao
afirmar que a classe é de início “para si”, uma categoria política, e só depois se torna
“em si”, matéria de estudos sociológicos. A composição não sendo assim de classe, mas
em classe antagonista709.
Para Negri, nos anos 1960, a prática da classe trabalhadora era o critério de
verdade sobre a noção de recusa do trabalho: “tínhamos um único método de
verificação – a prática imediata – a verdade da recusa do trabalho era fazer a fábrica
parar”710.
Podemos observar uma convergência com a posição pragmatista, de que a
verdade reside no que é bom de acordo com o que se deseja – e bom de acordo com os
resultados práticos – quando Negri afirma também que não há uma verdade objetiva
esperando por sua descoberta:
Não há nenhuma verdade objetiva dada de início: a verdade tem que ser construída na luta, através da luta, através da transformação da prática. A análise marxista define a realidade com a qual está interessada impondo um ponto de vista de classe desde o começo; ela toma o lado da classe trabalhadora, e suas intenções são revolucionárias. Ela pressupõe acima de tudo um desafio prático (ato de força) em relação à realidade. Sua verdade reside no resultado: a análise toma como ponto de partida o resultado político que é desejado711.
Temos aí, mais que a prática a priori, a verificação pelo valor prático, pelo
resultado, como critério da verdade de um conceito, de um modelo. Nesse sentido
podemos corroborar a leitura de Altamira de que o operaísmo e o pós-operaísmo jamais
se limitaram ao “já vivido e atuado”. A produção do imaginário coletivo teria
constituído para o operaísmo uma espécie de “atitude vital”712.
Um pragmatismo também pode ser apreendido quando Negri, ao fazer
autocrítica do “fabriquismo” operaísta do QR e de CO, aponta entretanto que esse
707 Cf. Altamira (2008, p.209).708 Cf. Tronti (2001).709 Cf. Moulier-Boutang (2006).710 “we had a single method of verification – immediate practice – the truth of the rejection of work was to bring the plant to a halt” (Negri, 2005d, p.156).711 “There is no such thing as objective truth given at the outset: truth has to be constructed in the struggle, through the struggle, through the transformation of practice. Marxist analysis defines the reality with which it is concerned by imposing a class point of view from the start; it takes the side of the working class, and its intentions are revolutionary. It presupposes above all a practical challenge (act of force) in relation to reality. Its truth lies in the result: analysis takes as its starting point the political result that is desired” (Negri, 1988, p.126).712 Cf. Altamira (2008, p. 213).
Teorias da Mais-Valia Difusa
197
fabriquismo não era instrumento ingênuo, mas um instrumento bom no contexto, de
modo a contrapor uma “ideologia preexistente”; era um instrumento que funcionava713.
No prefácio de Marx oltre Marx um certo pragmatismo de Negri é novamente
exposto, quando, para ele, ao contrário do que o “marxismo” apresentava, Marx era
militante e não um professor. E seria especialmente no Grundrisse que ele apareceria
como militante comunista que forçaria os limites teóricos da análise clássica do valor e
que justificaria a esperança comunista714. Temos aí, na apreensão de Negri, a
importância de Marx e do Grundrisse por seu suposto valor prático, na construção de
algo próximo ao mito soreliano.
Uma aproximação do pensamento de Negri com o pragmatismo também
podemos encontrar na sua observação sobre a teoria das “duas sociedades” de Asor
Rosa. Para ele essa teoria era falsa, e sua falsidade teórica se converteria em falsidade
prática uma vez que seria incapaz de apreender os comportamentos da “segunda
sociedade” e transformá-los em ação política, em projeto político715. Podemos dizer,
portanto, que o critério da verdade teórica seria a teoria ser boa, isto é, trazer bons
resultados praticamente, de acordo com alguns propósitos. Podemos crer também que é
neste sentido que se pode entender as afirmações dele de que as “categorias são
verdadeiras se são praticamente verdadeiras”716; e de que “a verdade é uma verdade
prática”717.
As dinâmicas de luta sempre estiveram na base do operaísmo, a partir da
análise do comportamento operário, e como assinala Altamira, exerceram enorme
influência nas indagações e questionamentos de Negri ao longo de sua vida718. E é
Negri que afirma que as categorias que ele e outros autonomistas construíam, partiam de
uma atividade política, partiam de uma prática, de comportamentos, da luta, do
movimento719. O caminho metodológico proposto por ele em Proletari e Stato é o
mesmo dos primórdios do operaísmo, da práxis à teoria e da teoria retornando à práxis.
As lutas sendo, segundo ele, os grandes professores e motores da teoria
revolucionária720. Da prática à teoria, seguindo-se a tentativa de reestruturar a prática a
partir de um ponto de vista teórico, é essa a relação que ele buscaria estabelecer entre a 713 Cf. Negri (1980, p.64).714 Cf. Negri (1984, p.xv).715 Cf. Negri (1980, p.35).716 Negri (1980, p.24).717 Negri (1980, p.112).718 Cf. Altamira (2008).719 Cf. Negri (1980).720 Cf. Negri (2005d, p.xiii).
Teorias da Mais-Valia Difusa
198
teoria e a prática721. Porém, como aponta criticamente Steve Wright, Negri assim como
Tronti partiram dos processos sociais concretos para logo em seguida fazerem a teoria
se debruçar sobre si mesma722; destino que Marx teria evitado ao abandonar o “vôo
conceitual” empreendido no Grundrisse em favor das mais sóbrias e historicamente
situadas passagens do Capital. Crítica que converge com a autocrítica feita por Romano
Alquati, de que uma vez formuladas novas determinações imediatamente a partir dos
movimentos da classe trabalhadora, os operaístas acabavam teorizando muitas
abstrações723. Steve Wright se junta também ao coro de críticos que viam nos operaístas
e pós-operaístas dos anos 1960 e 1970 o costume de escolherem privilegiar certos
comportamentos da classe trabalhadora, com freqüência generalizando essas práticas
minoritárias, julgadas como mais “avançadas”, à classe trabalhadora como um todo724.
Em geral privilegiando o estrato da classe que os interessava mais, os mais próximos à
sua cultura e influência.
Mas é Christian Marazzi que apresenta uma leitura pragmatista de Marx
similar a que procuramos efetuar aqui. Para ele a distinção entre trabalho produtivo e
trabalho improdutivo em Marx e na economia política clássica tinha sempre uma
valência política antes que econômica725. Tratava-se de defender a centralidade do
trabalho industrial diante das forças conservadoras da aristocracia e da economia
agrícola. Marx, na leitura de Marazzi, falaria de classes mais para criá-las do que para
identificá-las, isto é, para que os não privilegiados se vissem como classe. Nas palavras
dele, tratar-se-ia de “ficções necessárias” que deveriam torná-las verdadeiras, e só
seriam verdadeiras quando agissem politicamente. Em suma, Marazzi faz uma leitura de
um Marx pragmático, cuja teoria tinha objetivo de possuir um valor prático para um
grupo social, se tornando verdadeira na ação política desse grupo, demonstrando assim
tal valor da teoria. As “ficções necessárias” são outro nome para o que chamamos de
mito no sentido soreliano: representações coletivas mobilizadoras não necessariamente
em oposição a um real.
Negri expressará entendimento parecido com o de Marazzi ao afirmar que
quando Marx inventara a classe operária revolucionária havia muito menos exemplos
721 Cf. Negri (2005c).722 Cf. Wright (2002).723 Cf. Alquati (1975).724 Cf. Wright (2002, p.225).725 Cf. Marazzi (2003).
Teorias da Mais-Valia Difusa
199
para tanto em 1840 do que haveria hoje para a multidão como sujeito revolucionário726.
Não entrando no mérito se os exemplos em 1840 eram assim tão escassos
(provavelmente sim quanto ao operário industrial semi-qualificado, mas não aos
artesãos que formavam a classe trabalhadora), o que fica nítido é o entendimento de que
Marx buscaria, como o próprio Negri, teorizar uma tendência, e ajudar através do
discurso e da teoria a construção de um sujeito político. Podemos concluir, pelo que
vimos, que esse é também o propósito de Negri ao inventar a multidão. Em palestra no
ano de 2003, esse propósito é explicitado, e a grande narrativa teria esse fim: “Na
verdade, a única questão que tem me interessado é essa: (...) é possível recompor um
telos materialista, um propósito coletivo, visando criar um discurso revolucionário em
torno do qual um sujeito político possa ser reconstruído?”727
A classe para Hardt e Negri é um conceito político, determinado pela luta –
uma coletividade que luta em comum. Mas também seria um conceito político no
sentido que não apenas refletiria os atuais lineamentos da luta (de classes) como
também proporia possíveis futuros lineamentos. Assim, para eles, a função da teoria de
classes deveria ser a de “identificar as condições existentes de uma potencial luta
coletiva e expressá-las como proposta política”728. Podemos crer que esse é o objetivo
deles com a multidão, a qual carrega essa dualidade de ser ao mesmo tempo já existente
e projeto político. Assim é que, para eles, um projeto político só deve ser seguido se seu
potencial já existe na prática coletiva e, ao mesmo tempo, esperam um movimento real,
uma nova prática, que se casaria com o novo léxico desenvolvido em seus trabalhos
filosóficos729.
Dentro da pretensão e do objetivo de refundar o vocabulário político da
esquerda730, há também o objetivo de redescrever – ressignificar – a democracia, em um
sentido rortyano: “reconquistar e inverter o conceito de democracia reconfigurando-o de
um modo diferente”731. Em última análise, fazer a democracia significar a expressão do
comum. A construção de um novo léxico político, que poderíamos conceber como uma
tarefa de redescrição a qual Negri se engaja, é tida por ele como algo que não pode, ou
726 Cf. Negri (2004c).727 “Actually, the only question that has interested me is this: (…) is it possible to recompose a materialist telos, a collective purpose, with a view to create a revolutionary discourse around which a political subject can be rebuilt?” (Negri, 2009, p.6).728 Hardt; Negri (2005, p.144).729 Cf. Hardt: Negri (2006).730 Cf. Negri (2008).731 Casarino; Negri (2008, p.102).
Teorias da Mais-Valia Difusa
200
não deve ser separado da potência do sujeito que fala tal linguagem732. Em outras
palavras, podemos dizer que tal redescrição não deve estar separada da experiência
vivida do sujeito – uma vez que sua potência é vivida como trabalho, como atividade,
como capacidade. O exemplo explicativo é revelador: Negri aponta que, por exemplo,
se se fala de trabalho imaterial, seria óbvio que as pessoas melhor localizadas para falar
sobre ele seriam os “trabalhadores imateriais” nas ciências da computação ou na
pesquisa científica. Porém o novo léxico – no caso do trabalho imaterial – só
funcionaria, segundo ele, à medida que fosse assimilado/assimilável por muitas
singularidades no desenvolvimento de suas atividades – como donas de casa,
agricultores, atendentes etc.733 Ele demonstra com esse caso que o novo léxico político
que busca construir – o qual conteria indicações práticas e políticas (ganhando todo o
sentido de redescrição dentro do entendimento pragmatista) – fala mais diretamente
para e é mais facilmente assimilável pelo chamado “trabalhador imaterial” (funções
informáticas, intelectuais, comunicativas e científicas propriamente ditas). Diz respeito
mais imediatamente à potência, ou experiência vivida, destes. Contudo, a aposta,
expectativa e intenção dele parece ser a de que tal redescrição, ou novo léxico, possa ser
assimilável por um espectro maior de grupos sociais, senão universalmente, de modo
que ele possa funcionar, isto é, cumprir seus objetivos políticos. A efetividade dessa
nova linguagem, ou seja, da redescrição, seria dada pela extensão que as singularidades
– os grupos sociais – o assimilariam e se apropriariam do novo termo e das indicações
práticas e políticas que ele conteria734.
732 Cf. Negri (2009, p.192).733 Cf. Negri (2009).734 Cf. Negri (2009, p.193).
Teorias da Mais-Valia Difusa
201
Concluindo...
Dos propósitos das teorias da mais-valia difusa
Afinal, tentando responder ao que nos propusemos nessa segunda parte, quais
seriam os propósitos dos conceitos e descrições de multidão e hegemonia do trabalho
imaterial? De onde Negri e os pós-operaístas falam, de qual ambiente político, e para
onde, para quem falam, com qual propósito, com qual objetivo?
Como vimos, a gênese dos conceitos de multidão e de hegemonia do trabalho
imaterial remete fundamentalmente à experiência – lutas e subjetividade – do
movimento italiano de 77. Esse movimento, no qual Negri, Virno e outros pensadores
autonomistas (pós-operaístas) se inseriam, constituía o ambiente político de onde a
teoria falava. Experiência essa que trazia novos elementos que levariam nos anos 1990
aos conceitos que aqui tratamos – um desenvolvimento da teoria da hegemonia de uma
nova figura de classe, o operário social. As lutas dos anos 1970 na Itália – feministas, e
principalmente estudantis e de uma juventude precarizada – , da tribo de toupeiras
como diria Sergio Bologna para se referir a essa multiplicidade, era o referente da
teoria. Nessa condição era bastante claro onde – de qual ambiente político – a teoria do
operário social surgia e para quem ela se remetia. Esses jovens precarizados e suas lutas,
de 1974 a 1979, foram o principal referente da teoria, que retornava a esse sujeito como
influência em termos de autoconfiança e importância. Se os militantes do Potere
Operaio vagavam atrás de um ponto de referência quando marginalizados das lutas de
fábrica, essa referência seria encontrada, já enquanto Autonomia Operaia, nos grupos
sociais que protagonizaram o movimento de 77, em especial na juventude proletária e
precarizada.
Teorias da Mais-Valia Difusa
202
Se nas duas últimas décadas essa escola autonomista do pós-operaísmo fala a
partir de um ambiente político mais difícil de precisar para além de sua particularidade
regional (Itália, França, Europa ou simplesmente o norte global), com o que essa
particularidade carrega em especificidades sócio-econômicas relativamente a outras
regiões, contudo, sua influência, e quem sabe seus efeitos políticos, podem ser melhor
precisados: concentra-se nos descendentes ou herdeiros do movimento de 77 – enquanto
grupo social formado por jovens em trabalho flexível e precário e enquanto
subjetividade – , isto é, na esquerda formada pelos Centros Sociais italianos, como
vimos anteriormente. Onde eles pretendem que ela tenha efeito político, é outra questão.
Se Paolo Virno não pretende uma universalidade no alcance de sua teoria da multidão e
da intelectualidade de massa, o que nos faz supor que ele fale principalmente para os
grupos sociais posicionados nos setores e regiões de capitalismo mais avançado
(lembremos que não há um devir comum do trabalho para Virno), por sua vez Antonio
Negri e Michael Hardt, principalmente a partir do final dos anos 1990 e com a
publicação de Empire, procuram incluir em sua teoria da multidão e da hegemonia do
trabalho imaterial o mais amplo espectro de resistências, de lutas e de grupos sociais em
todo o globo, o que levanta a hipótese de pretenderem com isso que os efeitos políticos
de sua teoria sejam também universais, geograficamente e socialmente: dos
“trabalhadores imateriais” ou “trabalhadores do imaterial” ao conjunto do proletariado
ou da sociedade global. Verdade que nos anos 1970 Negri já tentara extrapolar as lutas e
condições italianas ao mundo, ao argumentar que a classe trabalhadora italiana servia e
poderia servir de referência tanto às lutas nos países mais avançados quanto às do
Terceiro Mundo. Mas é provável que a busca de uma teoria que fala ao mundo – geral e
universal – se deva, em parte, à impossibilidade percebida por Negri a partir de certo
momento de se pensar em revolução em nível nacional.
A antinomia que aparece então, entre a hegemonia do trabalho imaterial e a
multidão referidas inicialmente a uma condição particular e localizada, e remetida em
seguida a uma condição universal e global, ao longo das obras e pensamentos de Negri e
Hardt, não encontra resolução pelos mesmos. Essa antinomia encontra sua gênese em
postulados de base do operaísmo, presentes no desenvolvimento da teoria da hegemonia
do trabalho imaterial. Postulados que buscavam contrapor um terceiromundismo
bastante presente na esquerda da época, que serviam de base a uma teoria que
valorizasse a classe trabalhadora e as lutas sociais as quais eles estavam próximos na
Itália. Esses postulados, como vimos, eram: o de que o capitalismo romperia onde a
Teorias da Mais-Valia Difusa
203
classe trabalhadora fosse mais forte e não onde ele fosse mais fraco; e o de que quanto
mais o capitalismo se desenvolveria mais a classe trabalhadora poderia se tornar
autônoma (Negri, como vimos, afirmaria até mesmo na década de 2000 que o
capitalismo romperia onde a hegemonia do general intellect fosse mais forte). Esses
postulados eram um vetor que fazia com que os operaístas, e Negri mesmo em sua fase
pós-operaísta, privilegiassem o comportamento da classe trabalhadora no que eles
consideravam como os setores mais avançados da economia, mesmo que minoritários,
os extrapolando em seguida e na maioria das vezes para toda a classe (pode-se
questionar certamente se os setores considerados mais avançados não eram
simplesmente os que eles possuíam maior proximidade, inserção, influência ou
identificação). Exemplo disso seria a atenção dada por Negri nos anos 1980 às
manifestações do operário social, enquanto importantes lutas do operário massa seriam
negligenciadas. Lembremos, nesse sentido, da importância dada por ele ao movimento e
lutas estudantis de 1986 na França. É Negri que encontraria apoio no seu estudo do
Grundrisse, publicado final dos anos 1970 como Marx oltre Marx, para afirmar que a
partir de um certo nível de desenvolvimento o comando capitalista não seria mais
necessário, o que viria a ser a característica libertadora e política principal do seu
conceito de hegemonia do trabalho imaterial. Em suma, os conceitos de hegemonia do
trabalho imaterial e de multidão se assentam em postulados – politicamente anti-
terceiromundistas – que formam um paradigma no qual haveria uma relação direta entre
uma concepção de posição econômica mais avançada ou desenvolvida e possibilidade
de libertação, de comunismo. É por esses conceitos estarem enraizados nesse paradigma
operaísta que a antinomia aparece em Negri e Hardt ao tentarem tornar aquilo que está
ligado a um modelo de evolução, avanço e libertação setorizado, em algo ao mesmo
tempo universal, não-evolutivo e não-setorizado. Passo que pode ser lido também como
tentativa de desvincular a teoria – e os conceitos que tratamos – do referente de um
sujeito político, no caso, das lutas e grupos sociais que fizeram o movimento de 77 e
seus similares herdeiros, porém de menor expressão nas últimas décadas.
Seria um dos objetivos políticos de Negri mostrar ou apontar onde residiria a
possibilidade de comunismo/democracia para determinados grupos? Essa possibilidade,
ou maturidade do comunismo, que Negri, Hardt e outros pós-operaístas enxergam a
partir da hegemonia do trabalho imaterial, pode realmente ser extrapolada a todas as
categorias de trabalhadores, à sociedade, enfim, universalizada? Se antes dissemos que
com a hegemonia do trabalho imaterial eles buscam mais afirmar uma possibilidade (de
Teorias da Mais-Valia Difusa
204
comunismo/democracia) do que descrever uma realidade, cabe agora sermos mais
precisos. Eles estão preocupados em fazer uma descrição da economia, da produção de
valor e do mundo do trabalho na qual se vislumbre certas possibilidades ou
potencialidades. A preocupação é com a transformação, com as possibilidades de
comunismo e democracia; é com esse propósito que a hegemonia do trabalho imaterial
se torna um conceito descritivo. É em função desse propósito que a característica mais
importante de diferenciação do trabalho imaterial para o trabalho taylorista, para os pós-
operaístas, como vimos, seria a independência da forma de cooperação, sua autonomia e
pré-constituição em relação ao capitalista. A hegemonia do trabalho imaterial
implicaria, segundo Negri e Hardt, a disseminação dessa condição a todas as formas de
trabalho, assim como a reapropriação do saber e dos instrumentos produtivos pelo
proletariado – as capacidades cognitivas, lingüísticas e afetivas sendo o principal
instrumento produtivo. Mas essa tendência à pré-constituição das relações sociais
produtivas – anterior ao empreendimento capitalista – possui um caráter libertador para
além de algumas funções ou categorias específicas, como desenvolvimento de software,
de redes informáticas e atividades ligadas à indústria da moda, cultural, e de produção
da marca? Trata-se de uma crítica já feita rapidamente por Rodrigo Nunes735 que nos
interessa levar mais adiante aqui, com alguns exemplos concretos.
Baseando-nos na pesquisa de Ludmila Abílio736 sobre as revendedoras Natura
no Brasil, podemos constatar que dentre centenas de milhares de pessoas737
(esmagadora maioria mulheres) que revendem os produtos Natura – trabalhando para a
empresa embora sem vínculo empregatício, como uma espécie de franchising individual
– predomina hoje em dia a exploração das relações pré-constituídas ao empreendimento
Natura. Explora-se as relações de amizade, vizinhança, as relações nos locais de
trabalho das revendedoras. Ou seja, o empreendimento de distribuição/venda do produto
faz uso de relações que não são constituídas ou organizadas pela empresa, que lhes são
exteriores. Trabalho esse que, embora extremamente corporal naquilo que ele implica
em deslocamento e presença física, na sua essência remete ao uso de qualidades
afetivas, lingüísticas e relacionais. Para completar, a marca aparece como meio de
gestão da empresa, mais do que vínculos disciplinares. Temos nesse caso Natura, muito
735 Cf. Nunes (2007b).736 Trata-se de pesquisa de doutorado em andamento, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do IFCH-Unicamp, com título provisório: O Make up da exploração: Estudo do caso de 700 mil revendedores de uma indústria de cosméticos.737 Se considerarmos as revendedoras, ou consultoras como a empresa chama, como trabalhadoras da Natura, ela seria a empresa com maior número de trabalhadores no Brasil.
Teorias da Mais-Valia Difusa
205
nitidamente as características do pós-fordismo – do trabalho e do empreendimento pós-
fordista – e do trabalho imaterial segundo Lazzarato, Negri e Hardt. O caso das
revendedoras Natura parece ser bem descrito pela teoria pós-operaísta, menos no mais
importante: na possibilidade de comunismo. Não há qualquer sinal ou indício de que
essa pré-constituição e exterioridade das relações exploradas pela Natura implique em
uma potencialidade maior de subversão de poderes. Essas relações são exteriores à
empresa (a uma empresa), mas não são exteriores ao capitalismo quando, como dizem
Negri e Hardt, é a sociedade que está subsumida no capital; são constituídas dentro de
outras empresas, locais de trabalho, enfim, constituídas exteriormente a uma empresa
em particular mas não a determinações do capital como relação social dominante do
tempo de vida. Essa exterioridade à empresa, na prática e no caso que tratamos, mostra
a mercantilização das relações pessoais, cotidianas, a capitalização delas, a operação
que as transforma em valor econômico. O comunismo estaria mais no êxodo dessas
relações à sua transformação em valor econômico e não na sua subsunção no capital, ou
seja, estaria mais presente e iminente antes do pós-fordismo. Isso para não falarmos da
completa dispersão e atomização dessa força de trabalho posta em movimento pela
Natura, o que dificulta sobremaneira uma possível identificação comum, solidariedade e
articulação política.
Se Negri e Hardt vêem na informacionalização da agricultura uma verificação
da hegemonia do trabalho imaterial, assim como vêem essa verificação na luta pelos
direitos no setor agrícola girar cada vez mais em torno do controle e produção sobre a
informação, sobretudo a informação genética, é no entanto difícil perceber onde essa
informacionalização estaria tendo um potencial libertador, de aumento de poder ou
comunismo aos agricultores. Ao contrário do que afirma a tese do trabalho imaterial e
da sua hegemonia, no caso da agricultura, o conhecimento, o saber em torno dessa
informacionalização (principalmente genética) da agricultura, não são constituídos em
circuitos exteriores às grandes multinacionais. A engenharia genética não é saber
comum, mas de especialistas, dentro dos quadros de multinacionais e centros
especializados de pesquisa. Em outras palavras, o que ocorre é a informacionalização da
agricultura, não dos agricultores. Ora, hegemonia do trabalho imaterial, para constituir
uma possibilidade de libertação ou comunismo deve significar a informacionalização do
trabalhador, antes que de um setor econômico: seu saber, conhecimento, algo de posse
sua como principal instrumento produtivo. A tendência corrente na agricultura é
exatamente a oposta: o conhecimento dos agricultores é cada vez menos produtivo e
Teorias da Mais-Valia Difusa
206
irrelevante diante da imposição do conhecimento genético das multinacionais de
pesticidas e sementes, ou seja, da informacionalização do setor. Cada vez perdem mais
autonomia, em um processo de inabilitação738 e de constituição de um monopólio
radical739 nos termos que Ivan Illich descreve esse tipo de processo. A luta por direitos
no campo pode sim girar cada vez mais em torno do controle e produção de informação,
de conhecimento (genético principalmente), mas num embate entre distintos
conhecimentos e formas de produzir, e isso não implica hoje maior posse de
instrumentos produtivos ou de autonomia por parte dos agricultores do que num período
anterior (fordista); o contrário é mais provável.
Bem, se essas características potencialmente libertadoras do trabalho imaterial
e de sua hegemonia são localizadas, não podendo ser extrapoladas, estaria o discurso de
Negri e Hardt buscando efeitos políticos nesses locais embora com uma teoria que
buscaria abranger a todos? Seria essa busca de abrangência teórica artifício para sua
teoria ser “politicamente correta”, anti-vanguardista, e assim ser melhor aceita a quem
ela se dirige, indo ao encontro da sua subjetividade?
Negri é imperativo quanto à necessidade de se eliminar um modelo
vanguardista740. O que chamamos de anti-vanguardismo é a oposição à idéia, presente
no leninismo, de que uma certa fração da classe trabalhadora, normalmente aquela dos
setores considerados mais avançados ou desenvolvidos da economia ou do modo de
produção, exerceriam ou deveriam exercer uma hegemonia política sobre a classe
trabalhadora como um todo. Vimos que o Potere Operaio ainda considerava os
operários de fábrica hegemônicos politicamente, e mais precisamente, que deveriam sê-
lo. Diferentemente do que ele defendia na época do operário massa, hoje Negri afirma
que a hegemonia de uma forma de produção não implica em hegemonia política de uma
categoria, e que todo trabalho – ao menos atualmente – seria produtivo e teria potencial
de resistir à dominação do capital – embora, mais uma vez, tal afirmação se mostre
antinômica à teoria da hegemonia do trabalho imaterial. Se Tronti fundava a hegemonia
política dos operários no fato de serem eles os trabalhadores produtivos, pode-se dizer
738 Processo que implica numa perda de capacidade das pessoas satisfazerem autonomamente suas necessidades. Esse processo de desvalorização analisado por Illich vai muito além da simples perda de habilidades no processo produtivo. Trata-se da perda da capacidade e habilidade das pessoas e comunidades constituírem suas vidas autonomamente, de autodeterminar suas interrelações com o mundo. Cf. Illich (2004a).739 O monopólio radical ocorre quando um processo de produção industrial passa a exercer um controle exclusivo sobre a satisfação de uma necessidade imperiosa, impossibilitando o recurso a atividades não industriais. Cf. Illich (2004b).740 Cf. Negri (2009, p.197).
Teorias da Mais-Valia Difusa
207
que Negri funda a não hegemonia política de uma categoria na condição de todos como
trabalhadores produtivos. De toda forma, ao afirmarem também que a intelectualidade
de massa pode hoje em dia se transformar em sujeito social e politicamente
hegemônico741, Lazzarato e Negri apontam, senão a possibilidade de hegemonia política
de uma categoria específica de trabalhadores, certamente uma divisão entre
hegemônicos e hegemonizados politicamente. Ou tal posição foi abandonada no
pensamento mais recente de Negri, sem que ele tenha explicitado esse abandono, ou ela
significa que, embora a hegemonia de uma forma de produção não implique em uma
hegemonia política, ela no entanto não a negaria ou não a impediria, sendo essa
hegemonia algo estabelecido fundamentalmente a partir de uma prática política, pouco
ou nada determinada pela forma ou setor na produção.
O conceito de multidão aparece também como contraposição a uma concepção
restrita e vanguardista de classe operária, presente ainda em parte da esquerda ligada a
um marxismo, digamos, mais ortodoxo. Como vimos, o conceito tem o propósito de se
contrapor a uma concepção ligada às burocracias sindicais e ao corporativismo que
remetem ao conflito que houve entre os protagonistas do movimento de 77 e esses
setores. Da mesma forma, o mito do comunismo maduro, ou a atualidade maior do que
nunca do comunismo, aparece também em Negri com o propósito de contrapor a idéia
de necessidade de fase de transição ao comunismo, presente ainda em correntes
marxistas, principalmente nos anos 1970. Nesse sentido se torna claro que Negri busca
operar uma redescrição, na qual os propósitos e objetivos políticos são também nítidos.
A multidão e a hegemonia do trabalho imaterial seriam assim instrumentos oportunos
para se contrapor a uma ideologia, como teria sido em sua época, segundo Negri, o
“fabriquismo” para os operaístas, isto é, não sendo formulações ingênuas politicamente.
Entretanto, quando o conceito de hegemonia de uma forma de trabalho pretende, além
de ser um instrumento analítico ou explicativo do processo ou circuito de criação de
valor, ser também um instrumento indicativo ou propositivo de uma potencialidade
emancipatória ou comunista, ele falará necessariamente ao sujeito do trabalho cuja
forma hegemônica está em posição mais desenvolvida, é mais plena em suas
características, e cuja potencialidade emancipatória dela seja também a mais plena e
acabada – e não ainda apenas uma tendência ou hipótese. Ora, não é por outro motivo
que Negri reconhece que o conceito de trabalho imaterial é assimilado/assimilável a
741 Cf. Lazzarato e Negri (1991).
Teorias da Mais-Valia Difusa
208
princípio pelos “trabalhadores imateriais” (informáticos e pesquisadores, por
exemplo)742. O conceito de hegemonia do trabalho imaterial será portanto um conceito
ou um modelo particular, ou seja, tendo seus limites e suas potencialidades práticas
definidos pelos limites desse sujeito, pela experiência vivida do seu fazer, ou, se se
pretende para além da particularidade desse sujeito, será, mesmo que não se queira, um
conceito que define uma vanguarda, no sentido daqueles posicionados numa condição
histórica e sociológica privilegiada, mais avançada em termos de possibilidade, de
potencialidade de ruptura, de emancipação, de comunismo743. A concepção e descrição
de uma vanguarda se torna imanente à teoria. Quando Negri afirma que a classe
trabalhadora é mais forte onde é mais forte a resistência, a insurreição, a hegemonia do
general intellect ou o poder constituinte do novo proletariado, há uma relação clara e
imediata entre a (força da) ação política, isto é, da resistência, da insurreição, e a (força
da) hegemonia do general intellect, fazendo a imanência da vanguarda à teoria aparecer
de forma mais nítida. A capacidade de resistência e ruptura encontra relação direta com
uma condição sociológica dada pela força da hegemonia do general intellect. Se se
entende por vanguarda os setores com maior capacidade ou condição de resistência e
ruptura, então a teoria da hegemonia do trabalho imaterial traz consigo, imanente, uma
teoria da vanguarda. Os setores em que a hegemonia do general intellect se apresenta de
maneira mais forte estariam na posição teórica de vanguarda. Certo é que, aquele que
pretende que os trabalhadores cujo produto do trabalho é imaterial constituiriam um
novo sujeito político a substituir o antigo operário da manufatura, por esse trabalho se
encontrar no topo da hierarquia da produção de valor, realiza uma inversão de
determinação da prática à teoria que traz consigo também o não entendimento de que a
posição na produção de valor econômico era, antes de tudo, elemento de apoio,
enquanto significação social, enquanto mito e crença, ao movimento operário na
legitimação de suas reivindicações sociais e políticas, e não a determinação ou condição
da sua contestação, do seu questionamento, da sua revolta. Contestação essa que
constituía o movimento operário em sujeito político, e que tinha como objeto a ser
negado, e portanto como fundamento, um estatuto e condição social e política
742 Cf. Negri (2009).743 Se para Tronti a qualidade de produtivo, de produtor de mais-valia, era o que determinava a hegemonia política, assim como de certa forma também para Negri, em última análise isso se deve à potencialidade de ruptura que a qualidade de produtor de mais-valia conferiria ou confere.
Teorias da Mais-Valia Difusa
209
inferiorizada e degradada744. Condição social e política que parece longe de estar
presente no chamado cognatariado – os trabalhadores do capitalismo cognitivo. A esse
respeito Adam Arvidsson, no seu estudo de caso do Projeto Fox em Copenhagen,
procura mostrar que mais do que serem uma classe criativa, como pretende a teoria de
Richard Florida745, os profissionais assalariados do marketing e da publicidade se
constituem em uma classe administrativa, ou de gestores, com habilidade para capturar
e se apropriar da criatividade produzida por redes de produção imaterial e não
remunerada que se desenvolvem na malha urbana746. Em suma, a classe criativa seria na
verdade uma classe remunerada de gestores de uma intelectualidade de massa não
remunerada. Dessa perspectiva, antes de poder serem considerados um potencial novo
sujeito político antagônico ao capital, publicitários e outros agentes da produção
imaterial aparecem muito mais como gestores da produção de valor-signo.
O antropólogo David Graeber argumenta de forma simples e direta que a
teoria social de Negri é menos uma tentativa de descrever realidades do que a de trazê-
las à existência, seja quando Negri fala da multidão, seja quando fala do comunismo
maduro ou latente do trabalho imaterial. Negri estaria mais interessado em criar
movimentos sociais, organizar os desejos da multidão, ajudar as formas já existentes de
comunismo a romperem os casulos que as contêm, estando assim mais próximo da
função do profeta, de criar novas realidades, do que de entender realidades sociais747.
De fato, quando a multidão é afirmada ao mesmo tempo ontologicamente e como
projeto político, a intenção de criar a multidão fica exposta em Negri. Sua intenção,
seguindo a abordagem operaísta constituída no início dos anos 1960, sempre foi
enxergar tendências que indicassem programas e projetos políticos a se perseguir; tentar
criar assim uma realidade, ou transformá-la, mais que descrever, para usarmos os
termos utilizados por Graeber. Em muito, trata-se da fórmula: caminhar com o espírito
das lutas, entender sua composição e pensar o que fazer a partir disso. Quando Negri
afirma esperar uma prática que se case com o novo léxico que ele pretende ter criado,
sua prática teórica é, em seus termos, de busca de antecipação, mas é também a tentativa
de (ajudar a) criar a própria prática que se casaria com esse léxico. Em termos 744 A revolta da classe trabalhadora era em grande parte contra o estatuto, tão propalado no seu próprio discurso, de besta de carga, um estatudo de sub-humanidade, de indignidade, de ausência de cidadania, de direitos políticos e sociais. Quanto a isso, ver Perrot (1986, p.96-7); Sewell Jr. (1982, p.200-1); Douléans; Dehove (1953, p.147); Thompson (1987, pp.352; 439); Briggs (1967, p.68) e Hammond;Hammond (1967, pp. 97; 99).745 Cf. Florida (2002).746 Cf. Arvidsson (2007).747 Cf. Graeber (2008).
Teorias da Mais-Valia Difusa
210
pragmatistas e rortyanos, trata-se de uma redescrição, com um objetivo político
explicitado. Lembremos que para Negri não há verdade objetiva, a verdade seria
construída na luta e residiria no resultado – a paralisação da fábrica era o critério da
verdade do conceito-slogan de recusa do trabalho, por exemplo. Como em um modelo
tecnológico, é o resultado do seu uso que determina sua verdade, isto é, se é bom para
determinados propósitos. É assim que podemos compreender a verdade da multidão de
Negri e Hardt como algo a ser verificado, ou em processo de verificação, por uma
prática. A multidão está assim esperando uma prática que comprove sua verdade.
Fomentar um imaginário, para além de uma experiência vivida e passada, (ajudar a)
fomentar uma ação política – aquela que, em sentido dado por Castoriadis, institui uma
nova sociedade – , é o propósito, pragmático, da teoria de Negri, dos conceitos de
multidão e hegemonia do trabalho imaterial, em suma, da redescrição operada por ele.
Desse modo, o que identificamos como o mito do comunismo maduro faria
também parte da tarefa de criar esse comunismo. Mito não como inverdade, em
oposição a um real, mas cuja função é criar movimento, ação política, mobilização
coletiva, e justificar a “esperança comunista” como Negri acredita que Marx teria feito
especialmente no Grundrisse. A multidão, a atualidade do comunismo, ambos ligados
ao conceito de hegemonia do trabalho imaterial, podemos dizer que são formulados por
Negri e Hardt como “ficções necessárias”, no mesmo sentido que Marazzi atribui ao
discurso de Marx sobre as classes. O propósito é criá-las, mais do que identificá-las.
Porém, ao contrário da classe, multidão é apenas um conceito filosófico e que não
pretende se tornar identidade. A “classe trabalhadora” ou “classe operária” era
identidade coletiva, formada na luta e no conflito social, assim o trabalho de Marx não
era tanto o de criá-la, mas de reforçá-la. Se a “classe trabalhadora” podia ser
representação coletiva mobilizadora, por ser identidade coletiva, a multidão se distancia
desse valor prático à medida que pretende se manter num plano filosófico e não-
identitário. Se o “movimento” busca lhe dar um valor prático, apropriando-se do
conceito como ocorreu em panfletos e chamadas contra o encontro do G8 em Gênova
em 2001, utilizando o slogan A Multidão contra o Império748, Negri vê nisso uma
simplificação do conceito a qual ele desgosta intensamente749. A apropriação da
multidão pelo “movimento” tende a lhe dar um valor prático, que passa pela tendência a
748 Ver por exemplo o chamado a Gênova, Des Multitudes d'Europe en Marche contre l'Empire et vers Genes, escrito pela fração italiana do “movimento antiglobalização”, e traduzido aqui ao francês: <http://www.wumingfoundation.com/italiano/Giap/en_marche.html>.749 Cf. Casarino; Negri (2008, p.93).
Teorias da Mais-Valia Difusa
211
torná-lo uma identidade – que como toda identidade se baseia numa exclusão e/ou
oposição. Nesse sentido Negri parece se manter, ou preferir se manter, num vôo
conceitual – que Steve Wright já apontava como tendência dos operaístas – do que
desenvolver uma redescrição para atuar no momento e no movimento, como Marx teria
feito ao abandonar formulações do Grundrisse em favor das mais diretamente ligadas às
condições do momento apresentadas no Capital.
Podemos dizer que o pós-operaísmo procura operar também uma
ressignificação do que seria a classe produtiva e o trabalho produtivo – algo iniciado
pelo operaísmo principalmente na figura de Maria Rosa Dalla Costa ao procurar mostrar
que o trabalho doméstico efetuado pelas mulheres produziria mais-valia. Porém, resta
ambíguo o uso dos pós-operaístas da significação de produtivo. Se desde os anos 1970
Negri já prega o abandono das distinções produtivo/improdutivo e
produtivo/reprodutivo tendo em vista a condição de reprodução do capitalismo em fase
de subsunção real, ao mesmo tempo ele opera uma extensão da qualificação de
produtivo a toda a sociedade, a todos os indivíduos e categorias e, mais importante, a
uma cooperação social, ao conjunto das relações sociais – um fluxo coletivo no qual não
caberia individualizar a produtividade. Extensão do produtivo para além da relação
salarial, da subordinação ao capitalista, e até mesmo da relação de trabalho. Essa
extensão da produtividade ao tecido social é que aparece como base legitimadora da
reivindicação da renda básica aos pós-operaístas.
A extensão dos produtivos corresponde à expansão dos explorados – e
explorados porque, ao invés de simplesmente chamá-los de oprimidos, conotaria um
sujeito central e poderoso, exatamente porque produtivos750. Nesse caso ela não é
apenas extensão de legitimidade de reivindicação com base em categorias econômicas,
mas extensão da valorização e de um discurso que busca dar autoconfiança aos grupos
sociais, de forma genérica, que empreendam alguma forma de luta ou resistência ao
poder constituído.
Quando o movimento italiano de 77 teve que enfrentar o PCI, as burocracias
sindicais e seus discursos – que contrapunham a classe operária aos setores
considerados improdutivos formados pelos protagonistas do movimento – , tratava-se de
uma disputa por legitimidade. E essa disputa por legitimidade política e social remetia à
categoria econômica produtivo. Embora propondo o abandono da distinção
750 Cf. Hardt; Negri (2005, p.417).
Teorias da Mais-Valia Difusa
212
produtivo/improdutivo, o discurso da legitimidade política a grupos sociais ainda é
remetida em última análise a essa categoria econômica pelos pós-operaístas, de forma
talvez mais explícita em Christian Marazzi, segundo o qual a luta contra o desemprego
estrutural só será possível se as atividades comunicativo-relacionais das pessoas
obtiverem legitimidade em sentido sócio-econômico. Tratar-se-ia da definição política
de um novo “terceiro estado”, do conjunto de sujeitos produtivos e sociais que “fazendo
tudo”, “não têm nada”, isto é, não possuem poder político e representação na
sociedade751. Em outras palavras, dar legitimidade econômica, e conseqüentemente
política, a certas atividades, redescrever sujeitos como produtivos. Nesse sentido, se a
concepção burguesa de legitimidade do poder e da cidadania com base na qualidade de
ser produtivo serviu ao movimento operário ao se apropriar dela e ressignificá-la, hoje
muitas vezes tende a tornar-se um obstáculo quando o propósito é legitimar garantias,
rendas e poder na sociedade a quem está fora das relações formais de trabalho,
desempregado ou subempregado, enfim, à massa dos precarizados, flexíveis, sem-teto,
informais, “excluídos”.
A pergunta que emerge é se ainda é com base em categorias econômicas que
esse “terceiro estado” poderá ou mais facilmente conseguirá legitimar suas
reivindicações e seu poder político. Se temos por um lado movimentos que se
organizam como sem-terra e que utilizam para suas conquistas e lutas a legitimidade do
produzir ou ao menos a ilegitimidade do improdutivo, já os que se organizam como
sem-teto, por sua reivindicação imediata não ser um meio de produção – como é por
exemplo a terra aos sem-terra – , não baseiam a legitimidade de sua reivindicação
nessas categorias econômicas, mas na de uso e necessidade. A apropriação direta pelo
proletariado, a partir de suas (novas) necessidades, sem passar pela relação diretamente
salarial, era parte da descrição que Negri já fazia das lutas sociais do proletariado nos
anos 1970 na Itália. Seria então a questão de legitimar a apropriação por esse “terceiro
estado” sem atravessar a relação de produção, ou melhor, sem atravessar a visão de
mundo da economia política, sem ressignificá-la, mas simplesmente negando-a?
Através de uma categoria econômica, o produtivo, há mais de duzentos anos se
pretendeu e se pretende legitimar a cidadania – uma categoria política. O caminho
oposto parece se apresentar diante de grupos sociais sem poder, de algumas décadas
para cá. Seria por serem cidadãos que teriam direito de serem produtivos, que teriam
751 Cf. Marazzi (2003).
Teorias da Mais-Valia Difusa
213
direito ao trabalho e a meios de produção (incluindo participação como intelectualidade
de massa pelo acesso a serviços básicos). E mais imediatamente, por serem cidadãos
teriam direito ao uso, a satisfazer imediatamente suas necessidades, de habitação,
transporte, alimentação etc. Trata-se da passagem do direito por produzir ao direito de
produzir. O conceito de hegemonia do trabalho imaterial, no entanto, ainda está ligado
ao primeiro.
Dos referentes para uma teoria crítica
Não se trata de promover o pragmatismo ou de voltar às origens do empirismo, mas de assinalar claramente que as teorias não só não devem se isolar da realidade, mas devem buscar nela as marretas que às vezes são necessárias quando se encontra um beco sem saída conceitual (Subcomandante Marcos, dezembro de 2007)752.
Simulação no sentido de que todos os signos se trocam doravante entre si sem nenhuma troca contra o real (e eles só se trocam bem, só se trocam perfeitamente entre si com a condição de não mais se trocarem contra o real.) 753
(Jean Baudrillard, 1976).
Do Grundrisse ao pós-operaísmo, o que vimos anteriormente nos leva a pensar
a valorização do fazer que ocorre fora do emprego e fora até mesmo do chamado tempo
de trabalho. Nessa perspectiva a digressão de Marx sobre a “Concepção Apologética da
Produtividade de Toda Profissão”754 ganha contornos conservadores e se alinha muito
mais à estratégia do capital de negar, esconder e não assumir a totalidade do tempo e
dos processos produtores de valor do que lhe realiza alguma crítica perturbadora.
A produção de valor fora do comando capitalista e não submetida a seus
imperativos de produtividade, quer sustente ou não o (anti)conceito aqui proposto de
mais-valia difusa, corresponde a um alargamento do processo social do capital para
além do mero “processo de produção”, e conseqüentemente para além do mero tempo
de trabalho. Sua negação ganha efetividade não apenas na reapropriação de “meios de
752 “No se trata de promover el pragmatismo o de volver a los orígenes del empirismo, sino de señalar claramente que las teorías no sólo no deben aislarse de la realidad, sino deben buscar en ella los mazos que a veces son necesarios cuando se encuentra un callejón sin salida conceptual”. Colóquio Aubry –“Parte VII. Sentir el Rojo. El Calendário e al Geografia de la Guerra”, dezembro de 2007. Disponível em <http://enlacezapatista.ezln.org.mx/comision-sexta/860/>753 Baudrillard (1996, p.16).754 Digressão encontrada em Teorias da Mais-Valia, na qual Marx contrapõe veementemente as concepções que considerariam produtivas todas as profissões: o filósofo por produzir idéias, o criminoso por produzir a polícia e a justiça criminal e assim por diante...
Teorias da Mais-Valia Difusa
214
produção”, mas dos meios de vida, em processos de autovalorização755, para usar um
conceito de Negri.
As experiências e tradições que serviram à constituição do movimento
operário, de suas práticas e imaginário, assim como as que constituem movimentos
sociais expressivos na América Latina na virada do milênio, ligados a tradições e
imaginário dos chamados povos originários, apontam a questão das representações
coletivas e também nos ajuda a lembrar que, nos termos de Castoriadis756, a imaginação,
criadora, sempre usa elementos instituídos. Tomando a centralidade da produção na
sociedade posta pela burguesia, a idéia de valor-trabalho e redescrevendo e
ressignificando o discurso e categorias do imaginário burguês – operando um
détournement – , o movimento operário, entre outras coisas, se representou como classe
produtiva. Foi a partir de categorias econômicas, como classe que sustenta a sociedade,
que abriram um caminho discursivo para reivindicação e de luta pelo poder político,
entendido poder político como participação no poder instituinte, o que inclui poder de
gestão e decisão (claro que essas próprias representações com as quais o movimento
operário reivindicou poder – pelo discurso e na prática – eram elementos instituintes do
próprio movimento operário).
Uma leitura de Marx sobre trabalho produtivo, em especial a da relação entre
trabalho produtivo e divisão do trabalho, pode nos levar a aventar ou mesmo a concluir
que a separação/divisão fundamental de classes era de outra ordem que meramente de
função no processo de produção: era social enquanto estatuto de relegação da classe
trabalhadora e era política enquanto se tratava de uma distinção de poder, de mando, de
subordinação, de poder na sociedade, de controle, que distinguia a classe trabalhadora
(pela ausência de poder) em relação a outras classes e categorias757. Tal separação
755 O conceito, formulado por pós-operaístas, em particular por Antonio Negri, se refere às formas com que os trabalhadores – em sentido lato – agem como sujeitos autônomos criando sua própria existência para si próprios, não somente contra o capital. A resposta que muitas comunidades pobres e marginalizadas na América Latina, descendentes de povos originários, têm dado nas últimas duas décadas para sua situação econômica, política e social tem passado pelo reforço e resgate da sua cultura originária e ancestral. Recuperação de territórios, autodeterminação, resgate e manutenção de fazeres e modos de vida têm sido respostas conjuntas que podem ser encontradas nessas lutas e que se enquadram, a nosso ver, no conceito de autovalorização.756 Cf. Castoriadis (1991).757 Concordando com Baudrillard, a luta de classes sempre foi uma luta pela dignidade, no sentido zapatista da palavra. Uma revolta contra a relegação, o esquecimento, a excomunhão, e ao mesmo tempo contra uma classificação, inferiorização, redução. A hipótese de Baudrillard é de que: “jamais houve verdadeira luta de classes exceto na base dessa discriminação: a luta dos sub-homens contra seu estatuto de bestas, contra a abjeção dessa distinção de casta que os condena à sub-humanidade do trabalho.(...) Dito isso, o proletário é hoje [na Europa ocidental nos anos 1970] um ser “normal”, o trabalhador foi promovido à dignidade de “ser humano” por direito (...). No que se refere aos desviantes atuais, aos
Teorias da Mais-Valia Difusa
215
política, que se sobrepõe à separação “econômica” produtivo/improdutivo, é
especialmente clara em Proudhon quando ele aponta como questão central à reforma
social a subordinação das funções improdutivas às produtivas, invertendo a relação de
subordinação existente, o que para ele seria simplesmente resumida na necessária
subordinação da autoridade aos cidadãos – fórmula que reaparecerá na década de 1990
no “mandar obedecendo” dos zapatistas em Chiapas, México.
A “classe produtiva” tinha assim um valor prático como auto-representação
coletiva, como mito que empoderava, que fundava e legitimava, na sua força
econômica, uma revolução, a reversão de poderes, o poder político dos então relegados
e subordinados. A teoria da mais-valia e a crítica da economia política não constituíam
apenas teorias da exploração. Eram ao mesmo tempo teorização do poder constituinte,
da potência econômica dos trabalhadores, do “trabalhador produtivo”, do movimento
operário, dos que questionavam, contestavam e se rebelavam.
Numa época em que as categorias da economia política perdem seus referentes
e a economia política ganha existência como modelo de simulação758, com o salário ou
remuneração indicando apenas quem e quando se produz valor sob mando do capital ou
de outra autoridade, e em que o próprio trabalho ganha existência como categoria
política, a questão que se coloca é: pode nesse contexto o mito da classe produtiva se
sustentar, ou seja, ter base na experiência de um sujeito que se faz político?
Modificando um pouco a pergunta: pode a auto-representação de classe produtiva ter
um valor prático, servir a um sujeito que se faz político no contexto acima mencionado?
Quais redescrições, ressignificações e auto-representações coletivas estariam em
operação na constituição de sujeitos políticos e na justificação e legitimação da sua
insubordinação e à busca de poder político? Haverá nessas redescrições,
ressignificações e auto-representações algo comum a diferentes sujeitos que apontem a
perspectiva de virem a ser mais próximos do que uma coleção constituinte de uma
abstrata multidão? É da força ou poder econômico das categorias que formam
movimentos de luta e resistência ao capital nos dias de hoje que pode se fundar ou que
se funda seu poder político? discriminados de todo gênero, ele está do mesmo lado que a burguesia: do lado do humano, do lado do normal” (Baudrillard, 1996, p. 40-41).758 A perda de referentes ocorre quando, como vimos, a produção se torna um fim em si mesma (a produção pela produção), levando ao fim da produção (genuína). Já não havendo mais um referente externo à produção, um valor de uso relativamente autônomo ao sistema de produção. A ausência de referência externa e a circularidade dos conceitos e signos da economia política (trabalho e não-trabalho, produtivo e improdutivo), levaria à sua existência atualmente, nos termos de Baudrillard, como modelo de simulação. Cf. Baudrillard (1996) e Mészáros (2002).
Teorias da Mais-Valia Difusa
216
Tais perguntas são fundamentais para reabilitar uma teoria crítica do sistema
de reprodução do capital, já não mais como processo de produção, mas como processo
de dominação. Trata-se de encontrar os referentes que possam constituí-la fora de um
estado de simulação.
Teorias da Mais-Valia Difusa
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