Tema: Responsabilidade dos gestores públicos de serviços...
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Agência Nacional de Saúde Suplementar
Fórum de Debates sobre Saúde Suplementar – ANS 2003
Área Temática: O Objeto da Regulação
Tema: Responsabilidade dos gestores públicos
de serviços de saúde
Autor: Paulo Henrique Rodrigues
Julho de 2003
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Sumário
1. Introdução ....................................................................................... 2
2. Características do setor e da regulação............................................ 3
2.1. Contexto ................................................................................................3
2.2. Características do mercado .......................................................................5
2.3. A regulação e as operadoras .....................................................................6
2.4. A regulação e os prestadores de serviço......................................................8
2.5. A regulação do setor de saúde suplementar e o SUS...................................10
3. Gestores públicos de serviços de saúde e o setor de saúdesuplementar....................................................................................... 12
3.1. Os gestores do SUS e o setor de saúde suplementar...................................12
3.2. Normas do SUS sobre os serviços públicos de saúde...................................12
3.3. Condições de financiamento dos serviços públicos de saúde.........................14
3.4. A venda de serviços por hospitais públicos para operadoras privadas ............20
3.5. Sobre a necessidade de regulação............................................................23
4. Conclusões e recomendações......................................................... 27
4.1. Síntese das conclusões...........................................................................27
4.2. Recomendações quanto ao formato do processo regulatório.........................28
Fontes de Consulta............................................................................. 30
Siglas Utilizadas................................................................................. 35
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1. Introdução
O objetivo deste artigo é discutir a responsabilidade dos gestores públicos de serviços
de saúde, incluindo a descrição das possíveis funções a serem desempenhadas por
esses dirigentes, além de opinar sobre papel a ser cumprido pela ANS e apresentar
uma proposta em relação ao formato do processo regulatório.
Para desenvolver o tema proposto, o artigo considera: a) o contexto, a natureza, as
características e os objetivos da regulação do setor; b) o(s) modelo(s) de gestão dos
serviços públicos de saúde, a responsabilidade de seus gestores e aspectos do
exercício da gestão; e c) a discussão existente sobre às relações mantidas entre
unidades públicas de serviços e operadoras de planos e seguros privados de saúde.
É importante assinalar, em primeiro lugar, que a regulação do setor no Brasil, por ter
o foco nos direitos dos consumidores, acaba tratando relativamente pouco dos
prestadores de serviço e de suas relações com as operadoras. Deve-se dizer, em
segundo lugar, que o papel dos serviços públicos de saúde, o modelo de gestão dos
mesmos e a responsabilidade dos seus dirigentes também são pontos pouco
desenvolvidos na legislação e nas normas do Sistema Único de Saúde (SUS), até o
momento. Tais pontos são discutidos com mais detalhe ao longo do artigo.
A regulação de saúde suplementar, até o momento, pouco trata da relação entre as
operadoras e os serviços públicos de saúde. O ressarcimento pelas operadoras dos
serviços prestados por unidades públicas a consumidores de planos ou seguros de
saúde é o único ponto já definido na regulação e que conta com regras claras e bem
definidas.
O tema da responsabilidade dos gestores públicos de serviços de saúde em relação à
saúde suplementar envolve uma questão que vem causando grande polêmica há, pelo
menos 5 anos, que é o estabelecimento de contratos e convênios entre hospitais
públicos, principalmente universitários, e operadoras de planos e seguros de saúde
privados. Esta questão tem motivado debates entre autoridades do executivo e do
legislativo, iniciativas do Ministério Público, um projeto de lei do Senado Federal no
sentido de permitir que os hospitais universitários possam destinar parte dos seus
leitos a pacientes particulares e declarações do atual Ministro da Saúde no sentido de
estudar soluções para o problema.
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2. Características do setor e da regulação
2.1. Contexto
O reconhecimento pelo Estado brasileiro do direito universal à saúde em 1988, que
levou à criação do SUS, não excluiu a existência de um mercado privado de saúde, já
existente àquela época e de porte relativamente grande. O setor de saúde brasileiro é
composto, dessa forma, por dois grandes segmentos: um público, voltado para todos
os cidadãos; e outro privado, voltado para aqueles que por razões diversas podem
contratar, individual ou coletivamente, planos ou seguros de saúde privados ou
comprar serviços diretamente no mercado.
O primeiro segmento é regido pela lógica do direito social, de caráter coletivo, onde o
Estado atua diretamente tanto na formulação e gestão de políticas, como na gestão e
provisão de ações e serviços de saúde A lógica do segmento público corresponde,
portanto, à desmercantilização do acesso às ações e serviços de saúde. É neste
âmbito e dentro de sua lógica que atuam, principalmente, os serviços públicos de
saúde, embora alguns venham estabelecendo contratos com operadoras privadas.
O segundo segmento é regido, ao contrário, pela lógica do mercado privado, que
oferece ações e serviços a quem pode pagar, como em qualquer outro negócio. Este
segmento passou a ser tratado, de uns anos para cá, por setor de saúde suplementar
e é composto por três componentes: consumidores de planos, seguros e serviços
privados de saúde1; operadoras de planos e seguros privados de assistência à saúde;
e prestadores de serviços de atenção à saúde. Algumas entidades combinam as
funções de operação de planos e de prestação de serviços, embora a natureza de
ambos seja claramente diferente e até de certo modo antagônica.
Os segmentos público e privado não são estanques, havendo uma série de relações
entre os mesmos, que envolvem tanto os consumidores, como os prestadores de
serviço de saúde, os profissionais de saúde e as operadoras de planos e seguros
privados de saúde. Os consumidores dos planos e seguros de saúde privados também
têm direito, como cidadãos, a utilizar serviços do sistema público, e o fazem
1 Os consumidores de planos e seguros de saúde representam atualmente pouco mais de 16% dos brasileiros(MONTONE, 2001, p.8).
4
efetivamente, a própria regra do ressarcimento ao SUS estabelecida pela Lei n.º
9.656/98, constitui um reconhecimento deste fato.
Os prestadores de serviços de saúde podem ser privados ou públicos. Os primeiros
prestam, na maior parte dos casos, seus serviços tanto ao SUS, quanto às operadoras
de planos e seguros de saúde privados, além atenderem a alguns consumidores que
compram diretamente seus serviços. A prestação de serviços de atenção à saúde ao
SUS por entes privados é feita de forma complementar ao da rede de serviços
públicos, hipótese prevista, inclusive, no próprio texto constitucional que também
criou o atual sistema público de saúde.
Há prestadoras de serviços públicos de saúde que mantêm contratos com operadoras
de planos e seguros de saúde privados, com uma série de conseqüências em relação
ao direito social à saúde, às quais são discutidas mais adiante neste artigo. Todos os
prestadores de serviço, privados ou públicos, são, ainda, obrigados a cumprir uma
série de exigências relativas à Vigilância Sanitária e Epidemiológica e ao licenciamento
de atividades, emanadas dos órgãos de gestão do SUS.
Prestadores de serviço e operadoras de planos e seguros privados contam com um
incentivo fiscal cujo resultado social é no mínimo duvidoso. Tal incentivo decorre da
permissão legal de dedução pelos contribuintes – tanto pessoas físicas como jurídicas
– das despesas com planos e seguros de saúde privados na tributação pelo imposto
de renda2. Outro aspecto da relação entre os segmentos público e privado que
envolve as operadoras é o fato delas serem obrigadas a ressarcirem ao SUS pelos
serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a
seus consumidores e respectivos dependentes em instituições públicas ou privadas,
conveniadas ou contratadas, integrantes daquele Sistema.
Ambos os segmentos do setor de saúde brasileiro encontram-se em uma fase de
intensa reestruturação. As bases do funcionamento do segmento público foram
inteiramente modificadas pela Constituição de 1988 e seu arcabouço normativo está
ainda em processo de formulação e implantação. O mesmo começou a ocorrer com o
segmento privado dez anos depois, quando se deu início à sua regulação, com a
promulgação da Lei n.º 9.656/98. O segmento público é gerido pelos órgãos de
execução das políticas de saúde das três esferas de governo – Ministério, secretarias
5
estaduais ou municipais de saúde. O segmento privado é regulado por uma agência
específica, a Agência Nacional de Saúde Suplementar ANS, criada há pouco mais de
três anos.
O fato dos dois segmentos do setor de saúde não só não serem estanques, mas
manterem variadas e intensas relações entre si, coloca uma série de questões
complexas do ponto de vista da gestão do segmento público e da regulação do
segmento privado. Há, em primeiro lugar, interesses cruzados e contraditórios por
parte: de parte dos cidadãos, uns como consumidores, outros como não consumidores
de planos e seguros de saúde; dos prestadores de serviço, que atendem aos dois
lados; de operadoras e prestadores privados que se beneficiam de incentivos fiscais
para atender uma parcela reduzida da população; e mesmo de dirigentes do SUS e de
serviços públicos de saúde, que muitas vezes também têm atuação e interesses
também no segmento privado. Tais fronteiras não são nada nítidas nem estão
firmemente estabelecidas. Há, em segundo lugar, questões relativas a própria
natureza das atividades que interferem nas relações entre os segmentos público e
privado.
2.2. Características do mercado
O segmento de saúde suplementar constitui um mercado privado composto
basicamente por três grupos diferentes: operadoras dos planos privados de
assistência à saúde e as seguradoras especializadas em saúde; prestadores de serviço
de saúde; e os consumidores. Trata-se de um mercado em que apesar de haver em
torno de duas mil operadoras em atuação, um grupo relativamente pequeno delas é
responsável pela maior parte dos consumidores, e no qual prevalece, ainda, elevada
concentração regional das atividades3. Em função dessas características ocorre
evidentemente grande assimetria de poder e de acesso a informação entre as
operadoras, prestadores de serviço e consumidores.
2 Como mostram Dain, Quadros e Cavalcanti, tais benefícios fiscais “não têm contribuído para a descentralização dosserviços médico-hospitalares no Brasil e tampouco para se destinarem dos os recursos públicos às regiões mais pobresdo país” (2002, p. 233)3 Segundo Montone, das 1.728 operadoras que atuavam em 2001, 45 delas (2,6%) detinham metade dos contratoscom consumidores e 231 (13,4%) detinham 80% desses contratos, do ponto de vista da população coberta, apenas noEstado de São Paulo, no Distrito Federal e no Estado do Rio de Janeiro, a cobertura superava os 20% da população(2001, pp. 8-10)
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O foco da regulação definido pela Lei n.º 9.656/98 está claramente colocado nos
direitos dos consumidores4, embora a relação entre operadoras e consumidores não
esgote a matriz de relacionamento entre os diferentes grupos ou atores que formam o
mercado e entre estes e o segmento público do setor de saúde.. Outra relação de
grande importância é a que existe entre operadoras e prestadores de serviço, a qual
ainda está pouco regulada, como é mostrado adiante de forma breve.
Em relação à natureza das atividades do segmento privado, pode-se dizer que há uma
tendência de longo prazo no sentido da crescente separação das funções de operação
de planos e seguros de saúde, de um lado, e de prestação de serviços de saúde, de
outro. As operadoras compram serviços e os prestadores os vendem, estando cada
função de cada lado do balcão, com interesses contraditórios entre si. Esta separação,
no entanto, provavelmente continuará pouco nítida no futuro próximo pelo fato de
haver organizações que desempenham ao mesmo tempo os dois papéis. É por esta
razão que se diz aqui que a separação se manifesta principalmente como uma
tendência. Se essa separação não existisse atualmente, entretanto, o próprio tema
deste artigo não faria sentido.
O principal instrumento jurídico de regulação do setor é a Lei n.º 9.656/98, com as
modificações introduzidas por diversas medidas provisórias – atualmente a MP 2.177-
44. Complementam o marco regulatório a Lei n.º 9.661/00, que criou a ANS e a Lei
n.º 10.185/01, que dispõe sobre a especialização das sociedades seguradoras em
planos privados de assistência à saúde, e as diversas normas baixadas pela ANS para
o setor.
2.3. A regulação e as operadoras
A classificação tradicional das operadoras mencionava 4 (quatro) modalidades:
medicina de grupo, seguradora de saúde, cooperativa médica e autogestões. A
Resolução da Diretoria Colegiada n.º 39 (RDC n.º 39), da ANS, de outubro de 2000,
definiu oito modalidades distintas: administradoras, cooperativas médicas,
cooperativas odontológicas, instituições filantrópicas, autogestões (patrocinadas e não
patrocinadas), seguradoras especializadas em saúde, medicina de grupo e odontologia
de grupo.
4 Ver, por exemplo: COSTA e RIBEIRO, 2002, p. 31 e RODRIGUES, 1999, pp. 109-111.
7
Há grande diversidade de produtos oferecidos no mercado pelas operadoras. Não é
necessário, aqui, estender a discussão sobre os produtos, sendo suficiente mencionar
que, segundo Bahia e Elias (2001, pp. 14-16), há três tipos essenciais: planos básicos
– voltados para uma clientela de menor renda; planos intermediários – voltados para
uma clientela de renda média; e planos executivos – voltados para a clientela de alto
padrão aquisitivo. A cada um desses tipos corresponde uma forma de acesso
diferenciada aos serviços médicos e a faixas também diferentes de valores pagos
pelas operadoras aos prestadores de serviço.
O fato de haver diferentes modalidades de operadoras, diversas formas de
organização e de oferta de produtos, além de diferentes formas de organização das
mesmas e de relacionamento com os consumidores, não altera, contudo, a essência
da natureza das atividades dessas entidades, a qual está relacionada à gestão
econômico-financeira dos planos e seguros de saúde, ou seja, uma função de
intermediação entre os consumidores e os prestadores de serviços de saúde. Suas
atividades essenciais assemelham-se, portanto, mais com as atividades do setor
financeiro do que com as de assistência à saúde, ou assistência médica propriamente
ditas.
A própria lógica de funcionamento interno das operadoras as leva crescentemente a
utilizar e depender de uma administração baseada em cálculos atuariais, tal como
ocorre no ramo de seguros. A linguagem utilizada no mercado e na regulação também
utiliza em larga medida termos típicos do setor de seguros, tais como: cobertura,
prêmios, reservas, seleção de risco, etc. Da mesma forma, a regulação vem exigindo
de forma crescente à limitação e disciplina de práticas de seleção de riscos, a
constituição de reservas e garantias além de sujeitá-las a processos de intervenção e
liquidação, assim como permite que contratem resseguro (Lei n.º 9.656/98, Art. 35-
M), procedimento típico do mercado segurador. Por essas razões alguns autores se
referem ao setor diretamente como ‘mercado de seguro de saúde’5.
As operadoras, como intermediárias entre consumidores e prestadores de serviço,
controlam a maior parte dos recursos financeiros que circulam no mercado privado de
saúde e, por isso, constituem o lado forte do mesmo. Suas relações tanto com os
consumidores, quanto com os prestadores de serviço são assimétricas e demandam
uma ação de regulação por parte do Estado.
5 Ver, por exemplo, COSTA e RIBEIRO (2001, p. 30) e CORDEIRO (2001, p. 42).
8
Tal natureza não ficou clara, entretanto na regulação. Pelo contrário, a tendência da
mesma tem sido no sentido contrário ao reconhecimento dessa natureza da atividade
das operadoras. O texto da Lei n.º 9.656/98 procura, inclusive, excluir de sua
natureza “outras características que o diferencie de atividade exclusivamente
financeira...” (art. 1.º, § 1.º) ao definir o setor. Da mesma forma, as sociedades
seguradoras para operarem planos de saúde foram obrigadas, inclusive, a se
constituir como seguradoras especializadas em seguro de saúde, devendo seu
estatuto social vedar a atuação em quaisquer outros ramos ou modalidades (art. 1.º
da Lei n.º 10.185/01).
A ênfase clara da regulação brasileira do setor é o estabelecimento de condições e
limites para as atividades das operadoras. Isto se dá por duas razões principais: o
foco da regulação estar direcionado à proteção dos direitos dos consumidores; e ao
fato das operadoras constituírem o vértice mais forte do triângulo do setor, que é
formado, ainda, por prestadores de serviços e pelos próprios consumidores.
A Lei n.º 9.656/98 estabelece, dessa forma: condições de comercialização dos
produtos oferecidos pelas operadoras (art. 9.º); um plano-referência de assistência à
saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar (art. 10), que
deve ser oferecido por todas as operadoras, cuja cobertura é regida por normas
específicas da ANS; além de uma série de proteções para o consumidor e algumas
para os prestadores de serviço. Todas essas disposições visam reduzir a assimetria de
poder e informações existente entre operadoras, de um lado, e prestadores de
serviços e consumidores, de outro.
2.4. A regulação e os prestadores de serviço
Como mencionado acima, a Lei n.º 9.656/98 ao priorizar os direitos e interesses dos
consumidores, concentra o foco da regulação sobre as atividades das operadoras dos
planos privados de assistência à saúde e as seguradoras especializadas em saúde.
Dessa forma, embora o mercado do setor envolva relação entre os três grupos acima
apontados e entre estes e o setor público, a regulação volta-se principalmente para a
relação existente entre operadoras e consumidores, visando reduzir os efeitos da
assimetria de poder entre ambos os grupos. Há poucas referências no texto original
da Lei n.º 9.656/98 aos prestadores de serviço, às suas relações com os
consumidores e às relações do setor de saúde suplementar como um todo com o SUS.
9
A Lei n.º 9.656/98 é um tanto lacônica em relação aos prestadores de serviço, ao
contrário do que ocorreu nos EUA, por exemplo, onde “a regulação elegeu como
principal objeto a atividade dos provedores” (COSTA, RIBEIRO et alii, 2002, p. 146). O
texto original da Lei continha apenas 2 artigos que tratam dos prestadores de serviço
de saúde: o artigo 18, que trata das suas obrigações e direitos; o artigo 32 trata do
ressarcimento ao SUS. Os demais dispositivos da Lei que fazem referência aos
prestadores de serviço foram introduzidas por medidas provisórias. O art. 24-c, dá
preferência ao pagamento dos créditos que os prestadores de serviço privados
tenham com as operadoras que estiverem em regime direção fiscal ou liquidação
extrajudicial6.
O artigo 18 enfatiza 7suas obrigações com os direitos do consumidor, pouco tratando
de suas relações com as operadoras – apenas permite que mantenha contrato com
número ilimitado de operadoras desde que a mesma e os produtos que são objeto do
contrato estejam registrados junto à ANS. Deve-se lembrar, entretanto, que também
ocorre assimetria de poder e de acesso a informação nas relações entre as operadoras
e os prestadores de serviços hospitalares, embora que em menor medida do que
ocorre entre as operadoras e os consumidores.
Esse problema tem sido, na verdade, um dos pontos importantes de conflito após a
regulação. Por conta do aumento dos custos das operadoras provocado pelas novas
exigências da regulação – ampliação de cobertura, vedação de expedientes de
redução do risco, entre outros –, e também da redução do processo inflacionário
possibilitado pelo Plano Real, as operadoras têm sido acusadas pelos prestadores de
serviço de estarem transferindo para estes os aumentos de custos que tiveram.
Seriam diversas as formas que as operadoras estariam encontrando para transferir
ônus para os prestadores de serviço – o aumento da rigidez nas regras dos contratos,
maior glosa dos procedimentos faturados, dificuldades para a aprovação de
procedimentos de maior custo e não atualização dos valores dos procedimentos para
pagamento pelos serviços estão entre as principais queixas apresentadas pelos
prestadores.
O foco na defesa dos consumidores, por mais importante que seja não justifica a
longa ausência de regulação a respeito das relações entre operadoras e prestadores
6 É curioso não haver menção específica nesse artigo aos créditos decorrentes do ressarcimento ao SUS.
10
de serviço. A Lei n.º 9.961/00 que cria a ANS define como finalidade institucional da
mesma a promoção da defesa do interesse público na assistência suplementar à
saúde, através da regulação das operadoras, inclusive quanto às suas relações com
prestadores e consumidores. Apenas recentemente, a partir da publicação da
Resolução Normativa n.° 42 (RN n.º 42), de 04/07/03, que estabelece requisitos para
os contratos firmados entre as operadoras e prestadores de serviços hospitalares, a
ANS começa-se a corrigir a lacuna de regras a respeito da relação entre operadoras e
prestadores.
Em relação aos serviços públicos de saúde, entretanto, a única norma específica
existente é a do ressarcimento já mencionada anteriormente. Nem a RN n.º 42
contém dispositivos específicos a respeito da relação entre os serviços públicos de
saúde as operadoras. Esta relação tem uma série de implicações práticas e concretas
que afetam o direito à saúde e são analisadas a seguir. Não há, portanto, qualquer
dispositivo a respeito da responsabilidade específica dos gestores de seviços públicos
de saúde.
2.5. A regulação do setor de saúde suplementar e o SUS
Como já foi mencionado anteriormente, o único dispositivo da Lei n.º 9.656/98 que
trata das relações entre o setor de saúde suplementar e o SUS é o art. 32, que dispõe
sobre o ressarcimento das operadoras ao Sistema, quando seus consumidores e
respectivos dependentes forem atendidos em instituições públicas ou privadas
conveniadas ou contratadas por aquele Sistema.
Lei n.º 9.961/00 também tem poucos dispositivos a respeito da relação entre o
sistema público e o setor de saúde suplementar. O Art. 4.º daquela Lei define as
seguintes competências da ANS em relação ao SUS:
...
“VI - estabelecer normas para ressarcimento ao Sistema Único
de Saúde - SUS;
...
“XIX - proceder à integração de informações com os bancos de
dados do Sistema Único de Saúde”.
11
Só há mais uma referência ao SUS em toda a Lei n.º 9.961/00, trata-se do § 6.º do
artigo 20 que dispõe sobre as situações de cobrança da Taxa de Saúde Suplementar8.
O Decreto n.º 3.327/00 (Regulamento da ANS) não acrescenta nenhuma outra
determinação em relação ao SUS.
8 É o seguinte o texto desse dispositivo: “As operadoras de planos privados de assistência à saúde que se enquadramnos segmentos de autogestão por departamento de recursos humanos, ou de filantropia, ou que tenham número deusuários inferior a vinte mil, ou que despendem, em sua rede própria , mais de sessenta por cento do custoassistencial relativo aos gastos em serviços hospitalares referentes a seus Planos Privados de Assistência à Saúde eque prestam ao menos trinta por cento de sua atividade ao Sistema Único de Saúde – SUS, farão jus a um descontode trinta por cento sobre o montante calculado na forma do inciso I deste artigo, conforme dispuser a ANS”.
12
3. Gestores públicos de serviços de saúde e o setor de saúde
suplementar
3.1. Os gestores do SUS e o setor de saúde suplementar
Há poucos dispositivos na Lei Orgânica da Saúde, de n.º 8.080/90, com relação à
regulação pelos gestores estaduais e municipais do SUS do setor de saúde
suplementar. O principal deles é inciso XI do art. 15, que define como competência
das três esferas de gestão do SUS a “elaboração de normas para regular as atividades
de serviços privados de saúde, tendo em vista a sua relevância pública”. Não há
qualquer dispositivo a respeito da competência específica do gestor federal a respeito
da relação entre o SUS e o setor de saúde suplementar9, a única determinação a
respeito da relação entre o SUS e o setor privado diz respeito aos serviços
contratados (inciso XIV10).
Há, no entanto, algumas competências de caráter geral definidas tanto para a direção
estadual, como para a direção municipal do SUS. Quanto às competências da direção
estadual, o texto da lei define que cabe às mesmas “estabelecer normas, em caráter
suplementar, para o controle e avaliação das ações e serviços de saúde (Art. 17,
inciso IX). Em relação às competências dos gestores municipais, o texto da Lei
menciona apenas que cabe a elas “controlar e fiscalizar os procedimentos dos serviços
privados de saúde” (Art. 18, inciso).
Em relação especificamente aos serviços privados, o texto da Lei determina que na
prestação de serviços privados de assistência à saúde devem-se observar os princípios
éticos e as normas expedidas pelo órgão de direção do SUS, quanto às condições para
seu funcionamento (Art. 22).
3.2. Normas do SUS sobre os serviços públicos de saúde
A abordagem do tema da responsabilidade dos gestores de serviços públicos de saúde
em relação ao setor de saúde suplementar exige que se considere, de forma breve, a
9 Ver art. 16 da Lei, que trata das competências da direção nacional do SUS.10 É o seguinte o texto do inciso mencionado: “elaborar normas para regular as relações entre o Sistema Único deSaúde (SUS) e os serviços privados contratados de assistência à saúde”.
13
evolução da normatização do próprio Sistema Único de Saúde em relação aos
serviços. Como vai se ver, a seguir, houve pouco avanço até o momento em relação á
gestão dos serviços públicos de saúde nas normas do SUS, ao contrário do que ocorre
em outros países, como Portugal ou a França. No primeiro há uma lei específica sobre
a gestão dos hospitais públicos11, enquanto na França há agências regionais de
hospitalização (ARH), responsáveis pela definição das políticas, planejamento,
controle e avaliação das atividades hospitalares em cada região do país. As ARH
firmam contratos de gestão com as unidades e fiscalizam seu cumprimento
(www.sante.gouv.fr).
A Lei n.º 8.080/90 não contém nenhum dispositivo claro em relação à gestão dos
serviços de saúde integrantes do Sistema. Os principais dispositivos desta Lei em
relação aos serviços de saúde são os seguintes: o SUS é formado por todos os
serviços públicos de saúde SUS (art. 4.º); um dos princípios do SUS é que seus
serviços de saúde devam ser regionalizados e hierquizados (art. 7.º); deve haver
instâncias e mecanismos de controle, fiscalização e avaliação (art. 15, I). Deve-se
ressaltar, contudo, que o art. 43 da Lei n.º 8.080/90 dá margem à existência de
contratos ou convênios entre os serviços públicos de saúde e entidades privadas12.
As diversas normas operacionais básicas editadas (NOB) entre 1991 e 1996,
tampouco tratam do tema de forma específica. O foco dessas normas estava colocado
nas formas de habilitação de estados e municípios à gestão do SUS e nos mecanismos
de distribuição e transferência de recursos entre as diferentes esferas de governo para
o financiamento das ações e serviços de saúde. A NO01/96, a última publicada chega
a associar o movimento de municipalização dos serviços de saúde como condição para
a melhoria da gestão dos mesmos13, sem, contudo apresentar qualquer razão para
esta alegada conseqüência daquele movimento.
O princípio da regionalização e hierarquização dos serviços só foi objeto de
normatização a partir da publicação da Norma Operacional de Assistência à Saúde n.º
01/2001 (NOAS 01/01), hoje substituída pela NOAS n.º 01/02. Não há na norma
11 Trata-se da Lei n.º 27/2002 (www.portolegal.com/GestãoHospitalar2002.htm)12 É o seguinte o texto do art. 43: “A gratuidade das ações e serviços de saúde fica preservada nos serviços públicoscontratados, ressalvando-se as cláusulas dos contratos ou convênios estabelecidos com as entidades privadas”.13 É o seguinte o texto mencionado: “Isso implica aperfeiçoar a gestão dos serviços de saúde no país e a própriaorganização do Sistema, visto que o município passa a ser, de fato, o responsável imediato pelo atendimento dasnecessidades e demandas de saúde do seu povo e das exigências de intervenções saneadoras em seu território” (p.6).
14
qualquer menção específica à gestão dos serviços públicos do SUS ou à
responsabilidade dos seus dirigentes.
Recentemente foi aprovada pelo Ministério da Saúde a Portaria nº 2.225/GM de
05/12/02, que estabelece exigências mínimas para a estruturação
técnico/administrativa das direções dos hospitais vinculados ao SUS. Esta portaria,
entretanto, fixa apenas exigências quanto à formação especializada dos dirigentes
hospitalares, em complemento à Portaria nº 2.224/GM, também de 05/12/02, que
estabelecer o sistema de classificação hospitalar do SUS.
Em conseqüência deste fraco desenvolvimento das normas a respeito da gestão dos
estabelecimentos públicos de saúde no Brasil, não se pode falar que esteja definido
um modelo de gestão para os serviços de saúde do SUS. Na prática há uma grande
variedade de formas de gestão e de tipos de serviços de saúde públicos no país. A
ausência de um modelo de gestão adequado tem contribuído para a existência de
arranjos institucionais precários e variados em diversos serviços públicos de saúde.
São exemplos disso: fundações de apoio de caráter privado, exercendo funções
públicas – como o faturamento ao SUS e a gestão dos recursos correspondentes – a
transformação de unidades públicas em empresas, algumas até financiadas com
recursos públicos; e a transformação de outras unidades em fundações públicas.
A situação de gestão de recursos humanos que decorre dessa situação é uma das
situações mais críticas do SUS atualmente. Há carência generalizada de recursos
humanos, vencimentos de servidores públicos completamente aviltados e variadas
formas de contratação de mão-de-obra através de mecanismos precários que não
asseguram um mínimo de estabilidade e dignidade para o exercício da função de
servidor público na área da saúde. A questão do financiamento constitui, contudo, o
principal problema a ser resolvido.
3.3. Condições de financiamento dos serviços públicos de
saúde
A questão do financiamento é uma das mais complexas do setor de saúde, por conta
da pressão sobre gastos e custos oriunda de diferentes fatores fatores. Os principais
deles são: a intensidade e variedade do uso de tecnologias – cada dia mais
sofisticadas, seja no que diz respeito a equipamentos, seja no que diz respeito a
15
medicamentos –; o aumento da longevidade da população; e a própria extensão dos
direitos e do acesso pela população aos serviços de saúde. A tabela 1, a seguir,
apresenta dados a respeito do crescimento dos gastos com saúde em três países
desenvolvidos que contam com sistemas de saúde organizados segundo diferentes
modelos de política social14.
Tabela 1 – Grã-Bretanha, Alemanha e EUA Gastos totais com saúde,como percentual do PIB e gastos per capita – 1960-97
Grã-Bretanha Alemanha EUAAnos
GastoTotal
como %do PIB
Gastoper
capitaem US$
GastoTotal
como %do PIB
Gastoper
capitaem US$
Gasto Totalcomo % do
PIB
Gastoper
capitaem US$
1960 3,9 544,8
485,2
149
1970 4,5 996,3
1497,3
357
1980 5,6 5378,8
9139,1
1.086
1990 6,0 1.0248,7 1.650 12,6
2.799
1997 6,7 1.45710,4 2.680 14,0
4.090
FFoonnttee:: GGIIAAIIMMOO,, 22000011,, pp.. 333377,, ccoomm bbaassee eemm ddaaddooss ddaa OOCCDDEE ddee 11999988,,aappuudd RROODDRRIIGGUUEESS ((22000033,, pp.. 115555))..
Como se pode ver nos dados da tabela 1, o crescimento dos gastos com o setor, entre
1960 e 1997, cresceram de forma enorme tanto quando considerados em relação ao
total do PIB, quanto em termos per capita em todos os países considerados. Esta
situação não é diferente no Brasil, embora aqui os gastos sejam menores e as
dificuldades para financiá-los maior. Tal tendência ao aumento de gastos no setor de
saúde tem reflexo especialmente nos hospitais, que constituem as unidades mais
complexas e que concentram a maior parte dos gastos do setor. Em todo o mundo
esta situação tem levado a intensos debates e propostas de mudanças nas políticas de
financiamento para os hospitais, muitas vezes se buscando soluções no rumo de uma
maior participação de fontes privadas de financiamento (VABRE, 2002).
14 De acordo com a tipologia proposta por Esping-Andersen (1990), a Grã-Bretanha o sistema de saúde é de tipouniversal, ou social-democrata, onde prevalece o setor público; a Alemanha segue o modelo conservador ou de segurosocial, organizado através de diferentes institutos de previdência e assistência à saúde, organizados com base nascategorias prifissionais; e os Estados Unidos seguem o modelo liberal, onde prevalece o setor privado.
16
Na Itália, por exemplo, recente iniciativa do governo Berlusconi modificou o sistema
de financiamento e de responsabilidades entre o governo central e os governos
regionais na área da saúde (federalismo sanitário), através do Decreto lei 347/01 de
novembro de 2001. Desde então, cada ASL (Azienda Sanitaria Locale, autoridades
sanitárias locais) passou a ter maior responsabilidade em relação ao financiamento e
à gestão do sistema de saúde de sua região ou província, o que passou a incluir total
autonomia de decisão sobre seu sistema de saúde. Uma ASL pode, por exemplo,
estabelecer modelo de concorrência administrada dos serviços assistenciais; licenciar
e definir a remuneração dos prestadores públicos ou privados de serviço; co-
participação dos usuários na assistência farmacêutica; aumentar os tributos que
financiam o sistema de saúde, entre outras prerrogativas. Ao mesmo tempo só está
obrigada a assegurar o novo “nível de assistência essencial” (LEA), deixando para o
mercado a provisão dos serviços não compostos nesse nível (DRI et alii, 2002 e
FATTORE, 2002).
O financiamento da saúde no Brasil também tem sido objeto de uma série de estudos
e preocupações por vir se revelando insuficiente, ainda, para assegurar o
funcionamento pleno das unidades de prestação de serviços, especialmente as mais
complexas delas, que são os hospitais. A insuficiência de recursos financeiros,
humanos e materiais é um dos fatores mais críticos para o bom funcionamento dos
hospitais da rede SUS. Grande parte dos recursos do SUS destinados ao
financiamento dos hospitais dirige-se para a rede privada conveniada ao SUS, como
mostram (DAIN et alli, 2002, p. 232):
“O volume de recursos do SUS gastos com internações é captado,
primordialmente, pelo setor privado: do montante de recursos do
orçamento utilizados para gastos com internação, no período de
1993 a 1998, os hospitais privados ficaram com 70,3%, em 1993
e com 56,3%, em 1998. Embora declinante, a participação da
receita da saúde voltada ao setor privado supera, em muito, a
parcela dirigida aos hospitais públicos e universitários, mesmo se
houve um expressivo aumento dos pagamentos aos hospitais
universitários – 15,1%, em 1993, e 26,7%, em 1998. Já os
hospitais públicos, que haviam recebido 14,6%, desses recursos,
17
em 1993 , auferiram 17,0% em 1998, modesto crescimento de
2,4%”.
A insuficiência dos recursos para os serviços públicos de saúde vem servindo de
justificativa para que muitos dirigentes dessas instituições busquem recursos
adicionais dentro e fora do Sistema e dos orçamentos públicos. A venda de serviços
para o setor privado é uma dessas formas e diz respeito diretamente à regulação do
setor de saúde suplementar. As condições de financiamento dos serviços públicos de
saúde do SUS é, portanto, um dos elementos mais importantes a considerar para a
análise da responsabilidade dos gestores do SUS, objeto deste artigo.
Essas condições de financiamento são altamente diferenciadas, embora todos
recebam recursos da mesma fonte federal e através dos mesmos mecanismos de
financiamento e informação os sistemas de Informações Hospitalares (SIH/SUS), de
Informações Ambulatoriais (SIA/SUS) e de Procedimentos de Alta Complexidade
(SIPAC/SUS). A distribuição dos recursos financeiros relativos a esses sistemas e
repassados pelo Fundo Nacional de Saúde aos fundos estaduais e municipais de saúde
é feita através do mecanismo de Programação Pactuada e Integrada (PPI).
Tal mecanismo e os sistemas de informação acima mencionados só tratam, entretanto
dos recursos federais, porque os estados e os municípios recusaram-se a aceitar que
os seus recursos próprios passassem a integrar a PPI. Dessa forma, os hospitais
estaduais e municipais recebem, além das transferências federais, recursos dos seus
respectivos governos para uma série de finalidades distintas. Os recursos despendidos
por estados e municípios no financiamento das ações e serviços do SUS não é
desprezível como mostra Faveret (2002, p. 189):
“O gasto público com saúde representou... em 2000, 3,17% do
PIB brasileiro, ..., distribuído entre União, estados e municípios na
proporção de 59%, 18,2% e 22,7%, respectivamente.”
O volume efetivo de recursos financeiros com que cada unidade conta efetivamente
para funcionar depende de uma série de outros fatores. Entre os mais importantes
fatores que explicam a diferença de recursos entre as diversas unidades de prestação
de serviços públicos podem-se mencionar:
18
• a capacidade instalada e a composição interna de procedimentos ofertados por
cada unidade, uma vez que há grande variação entre os valores dos
procedimentos pagos pelo SUS;
• a proporção de recursos aportados pelos gestores estaduais e municipais do
SUS; o recebimento, ou não, pela unidade do Fator de Incentivo ao
Desenvolvimento do Ensino e da Pesquisa em Saúde (FIDEPS) e do Índice de
Valorização Hospitalar de Emergência (IVH-E);
• o número de serviços da unidade credenciada junto ao SUS;
• a capacidade interna de informar ao SUS sobre os procedimentos realizados e a
qualidade do seu sistema de informações;
• o grau de autonomia administrativo e financeiro atribuído à unidade;
• a modalidade de habilitação do gestor municipal ao SUS ao qual a unidade de
saúde estiver vinculada;
• a capacidade de financiamento do gestor estadual ou municipal do SUS ao qual
a unidade de saúde estiver vinculada.
Além desses fatores há situações muito diferentes que conformam a realidade de cada
unidade e que dependem de uma série de injunções políticas e administrativas
derivadas do desenvolvimento de sua inserção no SUS. A título de exemplo podem-se
mencionar algumas situações paradigmáticas. De todas essas situações, uma das que
mais chama a atenção é a do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), um conjunto de
unidades públicas de saúde localizadas no Rio Grande do Sul. O GHC origina-se de um
grupo hospitalar privado que foi a falência, foi estatizado como uma sociedade
anônima estatal, que recebe recursos orçamentários da União, além de faturar ao SUS
pelos sistemas SIH; SIA e SIPAC, sendo, dessa forma, “duplamente orçamentado”.
Outra instituição federal do SUS cujo financiamento é peculiar é a Rede SARAH de
Hospitais de Reabilitação constituída por seis unidades hospitalares localizadas em
Brasília (DF), Salvador (BA), São Luís (MA), Belo Horizonte (MG), Fortaleza (CE) e Rio
de Janeiro (RJ). A Rede SARAH é gerida pela Associação das Pioneiras Sociais (APS) –
entidade de serviço social autônomo, de direito privado e sem fins lucrativos criada
por Lei Federal. A Associação administra a Rede SARAH por meio de um Contrato de
Gestão, firmado em 1991 com a União e recebe seus recursos diretamente do
Ministério da Saúde, sem que os mesmos entrem na PPI. É uma instituição conhecida
19
tanto pela qualidade dos serviços, quanto pelos vultuosos recursos financeiros com
que conta para funcionar.
Os hospitais universitários federais são financiados tanto através de recursos das
respectivas universidades, cuja origem é o orçamento do Ministério da Educação
(MEC), quanto do faturamento de procedimentos ao SUS. Os hospitais universitários
estaduais são financiados de forma semelhante.
O Instituto do Coração (INCOR) do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade de São
Paulo (USP) criou a Fundação Zerbini, em 1978, passando a receber, além dos
recursos transferidos pelo HC e do faturamento ao SUS, recursos financeiros de
doações, empréstimos e oriundos de prestação de serviços para com operadoras de
planos e seguros privados de saúde e pacientes particulares, situação que já dura
desde 1982. O INCOR foi o hospital público pioneiro quanto ao estabelecimento de
contratos e convênios com operadoras de planos e seguros privados de saúde.
Diversos hospitais federais situados no Rio de Janeiro, como o Instituto Nacional do
Câncer INCA, o Instituto Nacional de Traumato-Ortopedia (INTO/HTO), o Hospital de
Cardiologia de Laranjeiras (HCL) e o Hospital Geral de Bonsucesso, criaram fundações
de apoio de direito privado, através da qual recebem recursos de faturamento ao SUS,
em geral relativa a procedimentos considerados estratégicos pelo Ministério da Saúde
e pagos através do Fundo de Ações Estratégicas e de Compensação (FAEC). A exceção
é o INCA que há alguns anos ganhou a possibilidade de faturar o conjunto de
procedimentos que realiza para o SUS. O INTO é o único deles que recebe recursos
oriundos de convênios com operadoras de planos e seguros privados de saúde.
Vários hospitais universitários, principalmente federais, adotaram o procedimento
adotado anteriormente pelo INCOR, de buscar recursos adicionais junto às operadoras
de planos e seguros privados de saúde, passando a destinar parte de sua capacidade
instalada para pacientes particulares. Esta situação vem causando grande polêmica e
deve constituir objeto especial de atenção da ANS, por requerer medidas específicas
de regulação.
20
3.4. A venda de serviços por hospitais públicos para
operadoras privadas
A venda de serviços pelos hospitais públicos para operadoras de planos e seguros
privados de saúde vem causando grande polêmica no Brasil há, pelo menos 5 anos.
Esta questão tem motivado debates entre autoridades do executivo e do legislativo,
um inquérito civil público a respeito da prática no Hospital das Clínicas (HC) da
Universidade de São Paulo (USP), conduzido pelo Ministério Público, em 1999, o qual
concluiu, inclusive, que a prática deveria ser extinta. Há um projeto de lei do Senado
Federal (n.º 449), de autoria do ex-senador Lúcio Alcântara do (PSDB-CE), atual
governador do Ceará, no sentido de permitir que os hospitais universitários possam
destinar até vinte e cinco por cento dos seus leitos operacionais a pacientes que se
disponham a pagar pela assistência prestada ou que se encontrem cobertos por
planos ou seguros de saúde privados.
O projeto do ex-senador Lúcio Alcântara visa alterar o art. 43 da Lei n.º 8.080/90, a
Lei Orgânica do SUS, acrescentando aos mesmos os seguintes parágrafos:
“§ 1º Os hospitais universitários e de ensino poderão destinar até
vinte e cinco por cento dos seus leitos operacionais a pacientes
que se disponham a pagar pela assistência prestada ou que se
encontrem cobertos por planos ou seguros de saúde, em
condições similares às da assistência prestada aos demais
pacientes do Sistema Único de Saúde, admitindo-se
diferenciações apenas no padrão de hotelaria.
§ 2º Os recursos obtidos na forma do parágrafo anterior deverão
ser integralmente utilizados para a manutenção do hospital e a
melhoria das condições de atendimento.
§ 3º Caberá ao Conselho Estadual de Saúde deliberar sobre a
aplicação do disposto no § 1º, nos termos do § 2º do art. 1º da
Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990.
A justificativa apresentada para o projeto de lei n.º 449 é a insuficiência de recursos
do SUS:
21
“A situação dos hospitais públicos do País é preocupante: a
remuneração, pelo Sistema Único de Saúde, dos serviços
prestados são flagrantemente insuficientes para cobrir custos
operacionais, pondo em risco a sobrevivência tanto da rede
própria quanto da conveniada.
A situação dos hospitais universitários e de ensino é pior ainda,
uma vez que suas características - responsabilidades com o
ensino e a pesquisa - lhes conferem não apenas uma manutenção
mais cara, como a necessidade de investimentos que dêem conta
da necessária incorporação tecnológica. A existência de uma
tabela diferenciada para esses hospitais constitui solução
insatisfatória, nos padrões atuais” (Projeto de Lei do Senado, nº
449, de 1999).
Tal projeto encontra-se, desde 15/05/2003, na Comissão de Educação do Senado,
tendo sido distribuído para relatório à Senadora Heloísa Helena (
www.senado.gov.br/pls/prodasen ).
O atendimento de clientes privados por hospitais públicos é denunciado como uma
violação do princípio do SUS de “igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos
ou privilégios de qualquer espécie” (Lei n.º 8.080/90, art. 7.º, IV) por defensores do
direito social à saúde, como o ex-Senador Nabor Júnior (PMDB-AC), os médicos e
professores paulistas Gilson Carvalho e José Aristodemo Pinotti, os deputados
estaduais de São Paulo, Jamil Murad (PC do B) e Roberto Gouveia (PT), entre outros,
denunciam. Segundo os críticos desse tipo de expediente, os hospitais públicos que
adotam esse expediente acabam dando prioridade e tratamento melhor para os
clientes privados que pagam mais.
Para o Dr. José A. Pinotti, “trata-se de prática anti-ética, que aumenta, de modo
perverso, a demanda reprimida do usuário SUS, que já é enorme, e permite que
professores desses hospitais usem o seu tempo remunerado por salários públicos e
outras facilidades recebam integralmente honorários relativos aos casos atendidos”
(www.senado.gov.br/web/senador/naborjr). Para o deputado Jamil Murad, “trata-se
de um “sistema do ‘fura-fila’ nas Clínicas, com atendimento preferencial aos convênios
privados de saúde em detrimento ao oferecido aos pacientes pobres, que não podem
pagar” (www.oficinainforma.com.br/semana/leituras-990717.htm).
22
Além do ex-senador Lúcio Alcântara, há outros defensores de renome da prática de
contratação de serviços em hospitais públicos, como é o caso do Dr. Adib Jatene, ex-
Ministro da Saúde, e ex-vice-presidente do conselho curador da Fundação Zerbini.
Segundo ele, os recursos privados seriam indispensáveis para a manutenção de
hospitais universitários que além das despesas comuns a outros estabelecimentos,
ainda têm de despender recursos em pesquisas. O financiamento do INCOR era cada
vez mais dependente dos convênios privados, em 1999, segundo ele já tinha atingido:
“63% da arrecadação... de convênios e 37%, do SUS”15.
Para Jatene, a crítica à essa prática “... é coisa de deputados estaduais ... comunistas
que acham que o hospital público só deve atender pacientes do SUS e não aqueles
que pagam. A idéia de captar recursos dos serviços prestados a conveniados sempre
teve o objetivo de somar essa verba aos recursos do orçamento público, que
sabidamente é absolutamente insuficiente”
(www.unifesp.br/comunicacao/jpta/edi133/comuni4.htm). Segundo ele, ainda, o
aporte de recursos financeiros obtido dos convênios com operadoras permite melhorar
as condições de funcionamento do INCOR – mais estímulos para o pessoal,
equipamentos mais modernos e com manutenção adequada –, o que asseguraria um
melhor aproveitamento dos leitos e consequentemente o atendimento de um número
maior de pacientes do SUS.
O INCOR teria sido um dos pioneiros em adotar este sistema, que segundo Jatene
teria se iniciado em 1982. De lá para cá, vários hospitais universitários adotaram a
mesma prática, também conhecida por dupla porta. No Rio de Janeiro, por exemplo, o
Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), abriu, em 1998, uma ala para pacientes conveniados a planos de
saúde privados. O objetivo alegado para a medida seria a tentativa de recuperação
financeira do complexo hospitalar, que sofreu cortes orçamentários. A medida teve a
oposição do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro. Segundo Amâncio de Carvalho,
Diretor-geral do HUCFF e presidente da ABRAHUE (Associação Brasileira de Hospitais
Universitários e de Ensino), 15 unidades mantêm a dupla-porta como maneira de
cobrir déficits financeiros (www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u76644.shtml).
15 É importante frisar que os números existentes a respeito das proporções do atendimento da unidade relativas apacientes do SUS e de planos e seguros de saúde é contraditória, a página do INCOR menciona um número, e apágina da Fundação Zerbini, que administra os contratos com as operadoras, apresenta outros números
23
A questão continua polêmica, tendo motivado recentemente declarações do atual
Ministro da Saúde, Humberto Costa, no sentido de que a intenção atual do Ministério é
a de remunerar os hospitais universitários por meio de contratos globais, e não mais
por produção, de forma a criar condições para que o atendimento nessas unidades
seja feito unicamente para os pacientes do SUS. Segundo o Ministro, uma comissão
interinstitucional foi formada em junho de 2003 com o objetivo de “avaliar e
diagnosticar a situação dos HUs, ... reformular e reorientar a política nacional para o
setor. Isso significa tentar conseguir um financiamento que seja estável, baseado em
uma orçamentação específica, com contrato de gestão e metas a serem atingidas
(www.unifesp.br/comunicacao/jpta).
É preciso dizer, entretanto, que outros hospitais públicos não universitários também
vem lançando mão da mesma prática de estabelecer contratos com operadoras de
planos e seguros de saúde. Na página da Prefeitura Municipal de Florianópolis, por
exemplo, pode-se ver menção de que dos leitos dos hospitais municipais próprios,
“14,17 % , se destinam ao atendimento de convênios e particulares”
(www.pmf.sc.gov.br/saude/perfil_saude_ind_2.3.htm).
A disseminação da prática de venda de serviços por unidades públicas de saúde pelo
conjunto da rede SUS certamente constitui uma séria ameaça ao direito social à
saúde, uma vez que, a despeito das possíveis vantagens relativas que possa trazer
para uma ou outra unidade específica, representa uma diminuição da oferta de
serviços públicos e gratuitos para o conjunto da população, em benefício de uma
minoria que já dispõem de uma situação privilegiada em relação ao acesso aos
serviços de saúde. O próprio fato dessa prática já existir torna imperativo um
posicionamento claro por parte do poder público. Tal posicionamento pode tanto
tomar o caminho de uma proibição pura e simples, como o de estabelecer limites e
critérios para a prática, ambas as medidas estão no campo da sua regulação pelo
Estado.
3.5. Sobre a necessidade de regulação
Os argumentos apresentados nos itens anteriores apontam no sentido da necessidade
de regulação quanto à relações entre serviços públicos de saúde com o setor de saúde
suplementar, e quanto às responsabilidades dos gestores desses serviços que
decorrem dessas relações.
24
Como se viu, anteriormente, o SUS ainda carece de um modelo de gestão das
unidades públicas que compõem sua rede de serviços e de capacidade de
financiamento de suas atividades, de forma a assegurar às mesmas condições mais
adequadas de funcionamento. Nem o modelo de gestão, nem a forma de
financiamento dessas unidades constitui, entretanto, tema a ser regulado no âmbito
da saúde suplementar, por estarem ambos situados claramente no terreno do próprio
SUS.
A falta tanto de um modelo de gestão quanto de mecanismos adequados de
financiamento têm contribuído para que algumas unidades importantes do sistema
público de saúde venham buscando, há mais de duas décadas, mas com maior
intensidade nos últimos cinco anos, formas alternativas de ampliação de suas
receitas. A venda de serviços para operadoras de planos e seguros privados de saúde
e para particulares tem sido, como se viu anteriormente, um dessas formas
alternativas de financiamento.
Tal venda de serviços para o setor privado constitui um evidente desvio do papel que
cabe às unidades públicas no sentido de assegurar o atendimento universal e gratuito
à população definido pela Constituição Federal e pela Lei Orgânica da Saúde. A venda
de serviços pelas unidades públicas permite aos consumidores de planos e seguros de
saúde, que são uma minoria da população, contarem com o uso privado dos leitos e
demais facilidades das unidades públicas que são sabidamente insuficientes para o
conjunto da população. Deve-se lembrar, ainda, que os mesmos, já contam com a
possibilidade de acessar tanto os serviços privados quanto os serviços públicos,
levando vantagem, dessa forma, sobre os demais cidadãos. O único argumento
levantado em defesa dessa prática é a necessidade de algumas unidades no sentido
da obtenção de recursos financeiros adicionais que complementem as verbas públicas.
O desenvolvimento desse tipo de prática vem constituindo, contudo, uma fonte
importante e, em alguns casos talvez indispensável, de receitas para algumas
unidades públicas, que se estruturaram em grande parte com base nesses recursos –
como parece ser o caso do INCOR do HC/USP – e que, se privadas do mesmos de
forma súbita, poderiam entrar em sérias dificuldades financeiras, a não ser que
possam vir a contar com fontes substitutas. Grande parte das unidades públicas que
escolheram essa via são, como se viu, hospitais de ensino, que além de arcarem com
os custos regulares da assistência à saúde comum a outras unidades públicas, arcam
25
com os custos de estudos e pesquisas que são de importância para o avanço científico
e tecnológico da medicina no país.
Até que venha a ser definido um modelo de gestão adequado para essas unidades, ou
que se encontre formas suplementares de financiá-las, tais unidades poderão ter
sérias dificuldades para desenvolver suas atividades caso o Estado decida pela
proibição pura e simples da venda de serviços para o setor privado. Neste sentido
parece correto defender, em caráter provisório, o estabelecimento de mecanismos de
regulação para as relações existentes entre unidades públicas e o setor de saúde
suplementar e, consequentemente, para definir a responsabilidade dos gestores
dessas unidades quanto àquelas relações.
É importante mencionar, neste ponto, que as responsabilidades dos gestores de
serviços públicos de saúde não dizem respeito principalmente ao setor de saúde
suplementar, pois pertencem ao campo do SUS, devendo, portanto, ser objeto de
regulação deste Sistema e não dos órgãos responsáveis pela regulação do setor de
saúde suplementar. Este é, contudo, outro ponto débil do arcabouço jurídico e
normativo do SUS, pois os direitos sociais à saúde e os instrumentos de sua tutela
não foram claramente estabelecidos pela legislação brasileira até o momento.
Por ausência de dispositivos precisos sobre os direitos à saúde, entenda-se, além da
especificação dos direitos propriamente ditos a definição de: instrumentos de tutela
dos mesmos; responsabilidades dos gestores do sistema e dos serviços públicos de
saúde; tipos e gravidade dos crimes de violação desses direitos; além de punições a
serem imputadas aos que cometerem aqueles crimes. Tal ausência é uma lacuna séria
da legislação brasileira relativa ao direito social à saúde, que não se repete em outras
áreas do nosso direito social16.
Só recentemente esta lacuna começou a ser reconhecida pelas autoridades públicas17.
A ausência desse tipo de norma vem dificultam a definição clara das responsabilidades
dos gestores de serviços públicos de saúde, inclusive dos gestores do SUS e
contribuem para a multiplicação de decisões judiciais extremas como vem se
verificando com freqüência cada vez maior, tais como mandados de prisão de
16 Outras leis do direito social brasileiro são explicitas quanto: aos direitos específicos dos cidadãos, aos instrumentosde tutela dos mesmos. As leis sociais mais avançadas nesse sentido são: a Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional, Lei n.º 9.394/96; o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n.º 8.069/90; e a Lei n.º 7.853/89, que dispõesobre os direitos das pessoas portadoras de deficiência (Rodrigues, 1999, pp. 79-84).17 O atual Ministro da Saúde, Humberto Costa vem defendendo, neste sentido, o estabelecimento de um código dedireitos dos usuários do SUS.
26
secretários de saúde expedidos pela Justiça pelas causas mais diversas. Na medida
em que o direito social à saúde vier a avançar para preencher tal lacuna, poderá
haver um quadro mais favorável para a responsabilização efetiva dos gestores dos
serviços públicos de saúde.
Voltando ao ponto central deste subitem, é necessário reconhecer que as relações
hoje mantidas entre os serviços públicos e as operadoras de planos e serviços
privados precisam ser reguladas, ainda que de forma provisória, ou seja, até que as
condições de financiamento das unidades públicas deixem de justificar o apelo à
venda dos serviços. O conteúdo dessa regulação deve abarcar tanto a quantidade
relativa dos serviços oferecidos – proporção máxima de leitos ou procedimentos que
poderão ser objeto de venda de serviços –, quanto sua qualidade, assim como as
responsabilidades dos seus gestores. Tais temas são abordados no próximo e último
item deste trabalho, que apresenta as conclusões e recomendações do autor.
27
4. Conclusões e recomendações
4.1. Síntese das conclusões
A breve análise feita aqui a respeito das relações existentes entre as unidades
públicas de saúde e o setor de saúde suplementar mostra que, além a prestação de
serviços das primeiras a consumidores das operadoras de planos e seguros de saúde,
que constituem objeto do ressarcimento ao SUS, aspecto já regulado dessa relação,
vem se desenvolvendo a venda de serviços, através de contratos ou convênios. Essa
venda constitui assunto altamente polêmico por contrariar determinações legais a
respeito do direito à saúde de todos os brasileiros e por desviar o papel e as
atividades dos serviços públicos de saúde do SUS que deveriam estar voltadas à
atenção gratuita à população e ampliar as diferenças já existentes em relação ao
acesso aos serviços de saúde entre a minoria que têm um plano ou seguro da grande
maioria que só tem acesso aos serviços públicos.
Procurou-se mostrar que as explicações que vêm sendo apresentadas por gestores
públicos de unidades de saúde para a adoção e manutenção da prática da venda de
serviços ao setor privado estão relacionadas a dificuldades de financiamento das
atividades dessas unidades. Tais explicações encontram respaldo na realidade em
função de uma série de dificuldades realmente enfrentadas pelas unidades públicas de
saúde, das quais as limitações financeiras é possivelmente a principal delas. Os
argumentos contrários a essa prática derivam não só de questões éticas, mas das
próprias determinações constitucionais em relação ao direito de todos à saúde e ao
dever do Estado em assegurá-lo.
A venda de serviços constitui um fato, entretanto, que não pode ser ignorado, embora
se manifeste num número reduzido de unidades. Como algumas das unidades
passaram a depender em parte dos recursos obtidos da venda de serviços para o
setor privado constituem estabelecimentos de grande importância no setor de saúde
brasileiro e que ainda não está definido um modelo de gestão adequado para as
unidades que compõem a rede SUS no país, nem a questão do seu financiamento
encontra-se suficientemente resolvido, parece se justificar a necessidade de regulação
desta prática e das responsabilidades dos seus gestores.
28
É importante ressaltar que este artigo defende uma regulação apenas provisória do
tema, por duas razões. A primeira delas é que seu principal motivo – a venda de
serviços por unidades públicas de saúde para o setor privado – só pode ser justificado
enquanto não se define condições adequadas de financiamento para algumas
unidades que, por sua natureza de ensino e pesquisa necessitem de fontes de
recursos adicionais. A segunda razão é que as responsabilidades dos gestores de
serviços públicos de saúde pertencem ao âmbito do SUS e não ao do setor de saúde
suplementar.
4.2. Recomendações quanto ao formato do processo
regulatório
As recomendações sobre o formato do processo regulatório, a seguir, são feitas em
quatro blocos distintos: o primeiro trata da quantidade máxima de serviços a serem
ofertados ao setor privado, o segundo da qualidade da assistência prestada, o terceiro
dos mecanismos de fiscalização e o quarto e último das responsabilidades específicas
dos gestores dos serviços públicos de saúde. São as seguintes as recomendações
sugeridas:
a) Do ponto de vista quantitativo:
• Vedar a possibilidade de unidades públicas que sejam únicas no oferecimento de
determinado serviço de saúde numa região venham a vender o mesmo em
qualquer proporção para o setor privado;
• Definir limites máximos de serviços a serem oferecidos ao setor privado em termos
do número de leitos ativos da unidade e de procedimentos produzidos. Tais limites
devem ser estabelecidos de acordo com:
A proporção dos consumidores de planos e seguros privados de saúde em
relação à população da região em que a unidade se situa;
O perfil da unidade de saúde;
A importância relativa dos serviços de cada unidade na rede SUS da região em
que a mesma se situa;
29
• Estabelecer que dentro dos mesmos limites máximos devem ser considerados os
leitos ou serviços destinados tanto a consumidores de planos ou seguros privados
de saúde, quanto a pacientes particulares;
• Exigir que os limites máximos de serviços a serem oferecidos ao setor privado
sejam objeto de pactuação nas Comissões Intergestores Bipartite dos estados em
que se situar a unidade pública;
• Divulgar para os usuários da unidade e para os conselhos municipais e estaduais
de saúde os limites máximos definidos e sua utilização efetiva mês a mês.
b) Do ponto de vista da qualidade dos serviços prestados:
• Proibir diferenças no atendimento prestados a usuários do SUS e a consumidores
de planos ou seguros privados de saúde, com exceção de serviços de hotelaria;
• Exigir que as unidades autorizadas a venderem serviços para operadoras e
pacientes particulares mantenham cartas dos direitos dos pacientes em que
estejam explícitos os compromissos com igualdade quanto á qualidade do
atendimento prestado a todos os cidadãos e aos consumidores dos planos ou
seguros de saúde privados e pacientes particulares.
c) Quanto à fiscalização:
• Definir indicadores precisos quanto à aferição dos limite dos serviços a serem
comercializados com o setor privado e à qualidade do atendimento prestado, com
bases em padrões reconhecidos de acreditação hospitalar;
• Definir mecanismos de compartilhamento de responsabilidades pela fiscalização
dos serviços de saúde públicos entre a ANS e os gestores estaduais e municipais
do SUS.
d) Quanto à responsabilidade dos gestores dos serviços:
• Estabelecer penalidades claras para o não cumprimento das exigências quanto ao
limite dos serviços a serem comercializados com o setor privado e à qualidade do
atendimento prestado;
• Proibir que os gestores de serviços públicos sejam dirigentes, sócios ou
proprietários de operadoras de planos ou seguros de saúde privados.
30
Fontes de Consulta
ALCÂNTARA, Lúcio. Projeto de Lei do Senado, nº 449 de 1999. Brasília, Senado
Federal, 1999.
BAHIA, Lígia e ELIAS, Paulo. Interfaces público-privadas no mercado de planos
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Siglas Utilizadas
• ABRAHUE – Associação Brasileira de Hospitais Universitários e de Ensino
• AIH - Autorização de Internação Hospitalar
• ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar
• ARH – Agences Régionales de l’Hospitalisation (França)
• CIB – Comissão Intergestores Bipartite (SUS)
• FAEC – Fundo de Ações Estratégicas e de Compensação (MS)
• FIDEPS - Fator de Incentivo ao Desenvolvimento do Ensino e da Pesquisa
• GHC – Grupo Hospitalar Conceição
• HC – Hospital das Clínicas (USP)
• HCL – Instituto Nacional de Cardiologia de Laranjeiras
• HGB – Hospital Geral de Bonsucesso
• HUCFF – Hospital Universitário Clementino Fraga Filho
• INCA – Instituto Nacional do Câncer
• INCOR – Instituto do Coração (HC/USP)
• INTO/HTO – Instituto Nacional de Traumato-Ortopedia
• IVH-E - Índice de Valorização Hospitalar de Emergência
• MP – Medida Provisória
• MS - Ministério da Saúde
• NOAS – Norma Operacional de Assistência à Saúde (SUS)
• NOB - Norma Operacional Básica (SUS)
• PPI - Programação Pactuada e Integrada (SUS)
• RDC – Resolução da Diretoria Colegiada (ANS)
• SAS - Secretaria de Assistência à Saúde
• SIA/SUS - Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS
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• SIH/SUS - Sistema de Informações Hospitalares do SUS
• SIPAC/SUS – Sistema de Informações Procedimentos de Alta Complexidade do
SUS
• SUS - Sistema Único de Saúde
• TUNEP – Tabela Única Nacional de Equivalência de Procedimentos
• UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
• USP – Universidade de São Paulo