TCC de Camila Oliveira Santos
description
Transcript of TCC de Camila Oliveira Santos
0
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
CAMPUS XIV
LIVRO-REPORTAGEM
EU COMUNICO, NÓS COMUNICAMOS: A COMUNICAÇÃO
COMUNITÁRIA PROTAGONIZADA POR JOVENS NO
TERRITÓRIO DO SISAL
CONCEIÇÃO DO COITÉ
2013
1
Camila Oliveira Santos
EU COMUNICO, NÓS COMUNICAMOS: A COMUNICAÇÃO
COMUNITÁRIA PROTAGONIZADA POR JOVENS NO
TERRITÓRIO DO SISAL
CONCEIÇÃO DO COITÉ
2013
2
Santos, Camila Oliveira
S237j Eu comunico, nós comunicamos: a comunicação comunitária
Protagonizada por jovens no território do sisal --/ Camila
Oliveira Santos. Conceição do Coité: O autor, 2013.
89fl.; 30 cm.
Orientador: Profª. MS. Nísia Rizzo de Azevedo.
Trabalho de Conclusão de curso - TCC (Graduação) –
Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Educação,
Conceição do Coité, 2013
1. Juventude. 2. Comunicação. 3. Protagonismo
4. Território. I. Nísia Rizzo de Azevedo.
II. Universidade do Estado da Bahia. Departamento de
Educação – Campus XIV. III. Título.
CDD 305.235 -- 20 ed.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Departamento de Educação – Campus XIV - UNEB
3
SUMÁRIO
LISTA DE SIGLAS -------------------------------------------------------------------------------------04
APRESENTAÇÃO --------------------------------------------------------------------------------------06
MAPA DE LOCALIZAÇÃO DO TERRITÓRIO DO SISAL ------------------------------------07
I- SEMEANDO HISTÓRIAS DE TRANSFORMAÇÃO -----------------------------------------08
1- Em sintonia com a comunidade ----------------------------------------------------------09
2- O Artilheiro do Rádio ---------------------------------------------------------------------22
3- Mais que uma jornalista, uma educadora popular ------------------------------------31
4- Comunicação comunitária, um desafio em busca da sustentabilidade --------------38
II-JOVENS LÍDERES E ENGAJADOS ------------------------------------------------------------45
1- Comunicação e Participação -------------------------------------------------------------46
2- Comunicar para se desenvolver ---------------------------------------------------------53
3- Comunicação e Participação Social ----------------------------------------------------58
4- Em defesa dos Direitos das Crianças e Jovens ----------------------------------------65
III-PROTAGONISTAS DE UM NOVO TEMPO -------------------------------------------------74
1- A voz jovem de Ribeira ------------------------------------------------------------------75
2- Voz ativa na zona rural de Quijingue --------------------------------------------------80
IV- CONCLUSÃO -------------------------------------------------------------------------------------87
4
SIGLAS
ADR – Agentes de Desenvolvimento Rural
APAEB-Araci – Associação dos Agricultores Familiares do Município de Araci
APAEB-Serrinha - A Associação dos Pequenos Agricultores Familiares do município de
Serrinha
ABRAÇO-SISAL – Associação de Rádios e Tv’s Comunitárias do Território do Sisal
AMAC- Agência Mandacaru de Comunicação e Cultura
ASCOOB- Associação das cooperativas de Apoio a Economia Familiar
ANDI- Agência Nacional dos Direitos da Infância
AMPPM – Associação de Moradores e Pequenos Produtores de Miranda
ANATEL – Agência Nacional de Telecomunicações CPD- Comunicação Pelos Direitos
CMJS- Coletivo Municipal de Jovens de Santaluz
CRJPS- Coletivo Regional de Juventude e Participação Social
CEAIC- Centro de Apoio aos Interesses Comunitários
CMDCA- conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
CEMINA – Comunicação, Educação, Informação e Gênero
CODES- Conselho Regional de Desenvolvimento Rural Sustentável da Região do Sisal
DENTEL- Departamento Nacional de Telecomunicações
DSTS – Doenças Sexualmente Transmissíveis
DISOP-Brasil – Instituto Belgo-brasileiro de Cooperação para o Desenvolvimento Social
FATRES- Fundação de Apoio aos Trabalhadores Rurais e Agricultores Familiares da Região
do Sisal e Semiárido da Bahia
IDH – Índice de Desenvolvimento Humano
JAPES- Jornada Avaliativa de Projetos Econômicos Educativos e Sociais
MOC – Movimento de Organização Comunitária
5
MEC- Ministério da Educação
MCP- Movimento de Comunidades Populares
MDA-Ministério do Desenvolvimento Agrário
PETI- Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
PEJR- Programa Empreendedorismo do Jovem Rural
PCJ – Projeto Comunicação pelos Direitos
PROUNI- Programa Universidade para Todos
P1MC – Programa 1 Milhão de Cisternas
SETRAS – Secretaria de Trabalho e Ação Social
SEAS – Secretaria de Estado e Ação Social
SISU- Sistema de Seleção Unificada
UNICEF- Fundo das Nações Unidas para a Infância
UNICAFES-Bahia - União de Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária do
Estado da Bahia
UNEF- Unidade de Ensino Superior de Feira de Santana
UNEB- Universidade do Estado da Bahia
UEFS- Universidade Estadual de Feira de Santana
UFBA- Universidade Federal da Bahia
UNIRR – União e Inclusão em Redes de Rádio
6
APRESENTAÇÃO
Esta produção revela a inserção dos jovens do Território do Sisal nos mais diversos
espaços de proposição das politicas públicas em diferentes espaços. Seu principal objetivo é
mostrar, a partir de uma coletânea de perfis jornalísticos, as histórias de vida dos jovens
protagonistas da comunicação comunitária no Território.
Para chegar à proposta deste livro, busquei inspiração em diversas experiências em
comunicação comunitária espalhadas pelo Território do Sisal e que têm a participação efetiva
de jovens. Estamos falando de jovens que têm uma marca significativa em suas comunidades
de origem, por viverem em municípios rurais, serem filhos de agricultores, conviverem dia-a-
dia com as limitações de chuvas e, mesmo assim, conseguirem se sobressair diante dos
desafios e criar alternativas para a melhoria das condições de vida de suas famílias, buscando
obter acesso e intervenção nos processos de implementação de políticas públicas.
Em todas essas experiências, o protagonismo juvenil marca não apenas a participação
de jovens no processo de construção da comunicação, como também na permanência e
inserção de novos atores na reconfiguração desse processo que consideramos em constante
desenvolvimento.
A participação dos jovens no campo da comunicação comunitária amplia as
oportunidades de se desenvolverem e, consequentemente, fortalece sua capacidade de
escolher, por se tratar de uma ferramenta de mobilização e inserção de adolescentes e jovens.
Neste livro, terão dez histórias de vida narradas, espera-se que as histórias propiciem o
conhecimento acerca do papel social da juventude organizada do Território do Sisal, cujo
exemplo venha a se tornar uma referência para outros jovens e para as organizações das quais
eles participam. Sobretudo, espera-se que o testemunho deles contribua para o
desenvolvimento de outras práticas educativas e comunicativas.
7
8
Capítulo I
SEMEANDO HISTÓRIAS DE TRANSFORMAÇÃO
9
EM SINTONIA COM A COMUNIDADE
“Fazer comunicação comunitária é estar em sintonia com a comunidade e eu posso dizer que
a minha vida está toda dedicada a isso”, Edisvânio Nascimento.
Quando eu cheguei à Rádio Santaluz FM, na manhã de quarta feira-feira, 18 de setembro,
Edisvânio Nascimento já estava a minha espera depois de já ter apresentado o programa
“Manhã Legal” e preparado todo o jornal para ir ao ar ao meio dia. É sempre prazeroso o
abraço com que me recebe ao longo dos nove anos em que nos conhecemos, anos que não
foram suficientes para eu conhecer toda a sua história até ocorrer essa conversa de pouco mais
de uma hora.
Edisvânio do Nascimento Pereira, 35 anos, é diretor executivo da rádio comunitária Santaluz
FM, premiado pelo Unicef e pela Agência Andi e membro titular do Conselho Estadual de
Comunicação. O jovem nasceu em berço humilde, em uma fazenda chamada Boa Vista, no
município de Quijingue, a 322 km da capital Salvador e a 136 km de Conceição do Coité, na
região sisaleira da Bahia. Quijingue é uma palavra indígena originada dos kiriris e significa
caatinga fechada, estas tribos ainda predominam nos limites entre o município e as cidades de
Ribeira do Pombal, e Banzaê no sertão baiano.
Filho de lavrador Marcelino do Nascimento Pereira e doméstica Josefa Soares de Matos
Pereira, portador de baixa visão desde o nascimento e como consequência disso, foi vítima de
perversas formas de violência e preconceito. Nenhum destes desafios superou sua vontade de
vencer na vida.
10
Sua trajetória de desafios, alegrias, tristezas e conquistas começou aos sete anos de idade,
quando passou a frequentar a escola.
- Pra mim, foi um grande feito poder ir para a escola com essa idade, primeiro porque
Quijingue, há 28 anos, era muito subdesenvolvido, com IDH muito baixo em relação ao que
se tem hoje. E eu era nascido na zona rural, de família humilde e com problema na visão. O
que esperar de uma situação como essa?
Foi na Escola Municipal da Fazenda Sítio, ainda em Quijingue, que Edisvânio vivenciou seis
anos até concluir a terceira série, tendo que parar por três anos intercalados pelas limitações
na visão e para buscar tratamento em decorrência de fortes dores de cabeça e nos olhos. Foi
nesta mesma escola que o jovem vivenciou também os impactos do tratamento
preconceituoso por parte dos alunos e até dos pais de alunos que visitavam a escola. Numa
época em que uma mesma cadeira era ocupada por dois alunos, muitos se negavam a sentar ao
lado de Edisvânio. Restava-lhe apenas a companhia do irmão mais velho, Edilson do
Nascimento Pereira, que logo avançou no estudo e teve que mudar de turno.
Durante nossa conversa, Edisvânio falou pausadamente, das formas de violência e
descriminação que sofria na escola, na medida em que retirava os óculos para secar as
lágrimas que não foi possível segurar depois de recordar o passado. Os momentos que
marcaram a passagem de Edisvânio nessa escola foram as datas comemorativas, pois na
maioria ele ficava de fora. Aos 13 anos, uma semana antes da comemoração do Dia do
Estudante, em 1991, Edisvânio garantiu à professora que faria uma apresentação.
- A professora me perguntou: o que você vai apresentar?
-Ainda não sei, mas eu vou apresentar, respondi.
Ao chegar em casa, trancou-se no quarto e rejeitou o almoço com a desculpa de que estava
com dor de cabeça, que era a rotina de Edisvânio em função do problema na visão.
-Mas a verdade é que, naquele dia, eu não sentia dor de cabeça, eu estava fazendo um
desabafo. Foi nesse dia que nasceu a minha primeira poesia, “O deficiente visual”, que levei
para apresentar na semana seguinte. E quando eu disse que ia apresentar, foi motivo de
chacota.
“O deficiente visual” emocionou todos os que estavam presentes na comemoração e também
serviu para quebrar as barreiras que impediam os colegas de se aproximarem de Edisvânio. A
partir daquele dia, houve adesão ao quadro de amigos.
11
A quarta série do ensino fundamental era oferecida em uma escola de outro povoado, a 4 km
de sua casa. Edisvânio ia andando todas as tardes, no calor da seca de 1993, mas no primeiro
dia levou consigo o drama maior que viveu nos anos anteriores.
- Quando eu chegar lá, o que vai ser de mim? Vou sofrer!, pensava ele.
Mas foi surpreendido na Escola Municipal da Fazenda Alto Alegre, sendo acolhido pelos
colegas e pela professora Lucia, da qual recorda com apreço. Nesse período, Edisvânio já
gostava de escrever e arriscava algumas notas no violão. O ciclo de amizades fortaleceu o
jovem, mas depois que o ano acabou, a quinta série era oferecida no município apenas em
escola particular. Por isso, mudou-se para Santaluz, em 1994, levado pelo tio materno,
Cornélio de Matos. Em função da falta de recursos para se submeter a um tratamento em São
Paulo, mais uma vez teve que recuar devido às fortes dores nos olhos.
- Quando eu concluí o ensino médio, já tinha 23 anos de idade, em decorrência dessas
paradas, de não estudar porque o olho doía, o óculos não dava conta de atender a minha
situação e eu tive que parar mesmo.
Quando voltou a estudar, Edisvânio foi vítima das mais violentas formas de discriminação.
“Eu tomei de tapa, cuspe, me atiravam bola de papel, furada de caneta... foi uma violação
absurda e eu não podia fazer muita coisa, eu ia para a direção da escola”, conta. Depois de
uma pausa, ele continua: “Adolescente, com 16 anos e com desejo de vencer, cada vez que eu
ia à direção da escola, a professora Vanda, dizia que ia chamar meu tio, que era responsável
por mim e eu implorava que não o chamasse”.
- Por que não?
- Porque se ela chamasse meu tio, minha mãe ia saber e ia me tirar da escola e me levar de
volta para Quijingue, porque a intenção dela era me proteger, mas eu queria muito estudar, se
eu voltasse iria parar minha vida porque lá a gente não tinha condições.
A professora Vanda que ouvia atentamente as lamentações de Edisvânio e o aconselhava foi à
mesma que ele adotou como madrinha, pelos dogmas religiosos da Igreja Católica, e por
quem diz ter muito apreço. “Foi pra mim uma mãe”.
Além da professora, outro aliado de Edisvânio Nascimento foi o colega de turma, Frank, que
ao presenciar as agressões interferiu, dizendo que ninguém poderia fazer aquilo com o “Mano
Edi”.
12
- É assim que ele me chama até hoje. Todo mundo temia Frank, na época ele era faixa
marrom de karatê, pegou em meu braço e saiu andando comigo no corredor da escola e
naquele momento eu me senti forte. Desde então, eu só saia da escola com Frank e ele me
acompanhava até próximo de casa, um grande amigo.
Nas escolas por onde Edisvânio passou, não cometeu nenhum ato de indisciplina, ainda que
tivesse motivos para isso. Afinal, agressões físicas e psicológicas sempre o acompanharam.
Em Santaluz, a rotina do jovem se resumia a ouvir rádio, ir para a escola e a biblioteca, onde
lia todas as manhãs. Foi na biblioteca que conheceu o poeta de Santaluz, Nelci Lima da Cruz.
Dois anos depois, em 1996, Edisvânio lançou seu primeiro cordel, chamado "Fim dos
Tempos". O jovem passou a gostar de literatura de cordel ouvindo no rádio. Os anos 90
proporcionavam muito esse espaço para repentistas e cordelistas nas emissoras. Foram muitos
os cordéis que Edisvânio escreveu, mas apenas dois foram publicados.
Depois de ficar conhecido e ser chamado a apresentar no pátio da escola, também passou a ser
“cupido” para muitos rapazes da escola que utilizavam suas poesias para conquistar as
meninas. Em 1998, lançou “A luta de Zé Luiz pelo amor de Rosinha”, o cordel foi inspirado
na lembrança dos “causos” e casos de antigos casamentos obrigados pelos pais e conta a
história de jovem pobre que luta pelo amor de uma moça que era filha de um coronel
fazendeiro, cujos nomes são fictícios e de identidade do nordeste. Mas a pretensão dele ainda
é publicar o primeiro poema que escreveu, aos 13 anos, com a pretensão de desabafar o que
sentia ao ser discriminado.
- “Quem dera eu poder enxergar,
para ver as crianças
e pra ver o fruto do pomar.
Quem dera eu poder enxergar bem,
pra sorrir e cantar e andar com você também...”
Era mais ou menos assim, eu tenho até hoje guardado.
Além da literatura de cordel, outro fator que permitiu Edisvânio estar ao lado dos colegas foi
o movimento estudantil, no início de 1997. Inquieto com os direitos estudantis esquecidos, ele
se uniu aos colegas para cobrar dos representantes a melhoria na qualidade do Centro
Educacional Nilton Oliveira Santos (Cenos). Naquele período, a intervenção do jovem junto
aos colegas foi cobrar a construção de salas de aula e de vídeo, instalação de bebedouros e
transporte para os alunos que, até o final de 1997, usavam paus-de-arara.
13
Edisvânio chegou à presidência do grêmio estudantil em 2000, disputou a eleição na escola
onde estudavam cerca de 3000 alunos e só deixou o grêmio após concluir o ensino médio, em
2001. O envolvimento no movimento estudantil permitiu o diálogo com outras organizações
sociais do município, sindicatos, associações e cooperativas que já enxergavam o potencial do
jovem e o indicaram para o movimento de radiodifusão.
O movimento de Rádio Comunitária nasceu um pouco antes do movimento estudantil, em
1996, nos municípios de Valente e Tucano. Ambos os municípios colocaram rádios no ar em
1997. Nesse período, outros municípios já discutiam as viabilidades de também terem uma
rádio comunitária. Para ter um programa de rádio, as entidades pagavam um salário mínimo e
ainda eram censuradas, precisavam divulgar a política do Peti (Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil) e fazer as denúncias de exploração do trabalho infantil. Mas as denúncias
eram vetadas nas rádios comerciais, porque havia empresários ligados a governos. O Peti
nasceu em Retirolândia, em 1998, para conter a exploração de crianças trabalhando no sisal e
depois em Santaluz, com as crianças trabalhando nas pedreiras. No mesmo ano, o movimento
começou ganhar corpo e as entidades se reuniam para discutir políticas de comunicação.
As rádios comunitárias, a exemplo da Arcos FM que hoje é Estrela FM de Retirolândia, e
Santaluz FM, surgem nesse mesmo período e foram o primeiro canal de expressão dos
movimentos sociais para denunciar o trabalho infantil e mobilizar a comunidade.
Ouvindo as rádios Sociedade da Bahia, a rádio Globo do Rio de Janeiro e a Nacional de
Brasília, Edisvânio ficava imitando os locutores e alimentando o sonho de um dia poder ser
um deles. Sua meta era terminar os estudos e um dia trabalhar numa rádio. Ele só não sabia
que essa rádio seria a comunitária Santaluz FM.
Quando a associação foi criada, em 21 de maio de 1998, Edisvânio foi convidado pelo então
amigo, Manoel de Leia, para fazer parte do quadro de comunicadores. Ao chegar à rádio, em
18 de julho do mesmo ano, pensava que estava indo fazer um treinamento, mas a surpresa foi
maior.
- Não houve treinamento para ninguém. Ninguém sabia de nada. Tanto que a concepção de
todas as rádios era de que dando entrada no Departamento Nacional de Telecomunicações
(Dentel), já poderiam estar autorizadas a funcionar.
14
O primeiro horário de Edisvânio na rádio foi das nove e trinta às onze horas da manhã,
quando o jovem começou a informar e dar voz à comunidade com o auxilio de um deck de
fita e um de CD.
- Pulava mais do que tocava. Sorriu.
A primeira pessoa que entrevistou foi José Paulo Ferreira, uma das lideranças politicas e dos
movimentos sociais da região, para falar dos festejos e das comemorações do aniversário da
cidade. “Eu termia de nervoso”, conta Edisvânio. “Mas eu sempre ouvia entrevistas na rádio,
ouvia os grandes entrevistadores em rádio AM, que pra mim era uma boa escola, mas eu falo
de rádio AM que se preza”, conclui, sorrindo.
José Paulo na época também fazia parte da diretoria da rádio e admirou a postura de
Edisvânio. Ao finalizar a entrevista, o jovem foi questionado por José Paulo, se já havia
trabalhado em alguma rádio.
- Nunca! – respondeu.
Quando o Movimento de Organização Comunitária (Moc) iniciou o processo de assessoria às
rádios, em 1999, Edisvânio participava das capacitações e logo tomou gosto pela área
jornalística. Passou a denunciar também a exploração infantil e irregularidades na gestão das
politicas publicas no município. Consequentemente, começou a ser perseguido e ameaçado.
As dificuldades desse período remetiam também à estrutura decadente da Santaluz FM.
Edisvânio apresentava o jornal com a estrutura de um deck de fita das antigas vitrolas, um
toca CD e um relógio com uma fonte tão minúscula que lhe permitia errar a hora todos os
dias, além das cartas anônimas que recebia chamando-o de fracassado.
-Você pensou em desistir?
- Sim, em vários momentos. Mas eu pensava: “Se eu já vim até aqui, vou continuar!”. Mas
foram bem marcantes os três primeiros anos, de muito preconceito externo e interno, por parte
de alguns colegas que também não entendiam as minhas limitações. Muita gente me carregou
nos braços, mas outros queriam me atirar ladeira abaixo.
Edisvânio faz questão de lembrar e de reconhecer que deve muito a sua formação e caráter
aos pais, que desde cedo lhe ensinaram esses valores. E a outra parte do que ele é hoje é fruto
desse processo de formação em radiodifusão comunitária.
15
- A comunicação comunitária me mostrou a cada dia que eu precisava me tornar ainda mais
humano, ouvir as queixas das pessoas, as dores, os dramas, os choros, as perdas, as
lamentações, mas também partilhar as alegrias, sorrisos e abraços. Esse foi um processo que
me ensinou a entender que o trabalho com rádio precisa ser mais humanizado.
Mas os desafios não acabaram, na verdade apenas começaram. Edisvânio é o arquivo vivo de
quem sofreu ameaças e perseguições por defender os direitos dos cidadãos e a liberdade de
expressão. Sua principal bandeira na rádio ainda é a garantia dos direitos das crianças e
adolescentes. Eu o conheci em 2002, no Seminário Regional de Comunicação, em Valente.
Estreitamos o contato quando entrei no projeto Comunicação Juvenil, em 2004.
Entre estes dois anos ocorreram dois exemplos emblemáticos das torturas. Em 2002 ele foi
obrigado por uma delegada da Policia Federal a entrar na viatura onde ficou das 10 horas da
manhã até às 18 horas, sendo obrigado a procurar um dos diretores da rádio, que não se
encontrava na cidade. Não existia naquele período na cidade nenhum sistema de telefonia
móvel. Edisvânio também não possuía telefone celular.
Pior do que passar todas essas horas preso na viatura, foi suportar as ameaças feitas a ele. No
carro estavam a delegada, um oficial da Policia Federal e um agente da Anatel.
- Eu tentava ser brando a todo o momento, eu não falava nem nesse tom que eu estou falando
com você agora. Ameaçaram me levar para Salvador e eu disse que podiam me levar, porque
eu estava perdido. Foram situações difíceis. Não cheguei a ser agredido fisicamente. O pior
foram as ameaças e torturas psicológicas, do tipo: “Se sairmos daqui e pegarmos a estrada,
você tem ideia do que pode acontecer com você?” Ela olhava para os colegas na viatura,
depois olhava pra mim e dizia: “Eu não tenho pressa.” Eu me sentia impotente e ao mesmo
tempo um bandido. E foi assim até o cair da noite, quando ela me liberou e disse: “Vá
embora, mas vá sabendo que estamos de olho em você!”
Em 2004, Edisvânio foi submetido ao mesmo procedimento, desta vez não em uma viatura,
mas em um carro comum. Ele participava de um evento do Unicef, em Salvador, que tratava
justamente do papel da comunicação comunitária para a garantia dos direitos da criança e do
adolescente. Ao retornar a Santaluz, cheio de expectativas, quando desceu do ônibus foi
abordado por uma pessoa que lhe questionou:
- É você que é Edisvânio Nascimento?
- Primeiramente, bom dia! Da parte de quem? Respondeu
16
- Polícia Federal. Disse o delegado, apontando o distintivo.
O delegado logo tratou de informar que havia uma denúncia de uma “rádio pirata” usada por
ele. É assim o termo usado por muitas autoridades quando se referem à rádio comunitária.
- O senhor tem mandado de busca e apreensão? Perguntou.
-Muito bem, aqui está! Disse o delegado, mostrando o documento.
Quando Edisvânio pediu que esperassem ir em busca da chave da rádio, o delegado o obrigou
a entrar no carro.
Depois de lutar por direitos, justiça social, falar de irregularidades e buscar um mundo
melhor para os meninos e meninas, o jovem se sentiu um marginal quando entrou no carro e
viu as armas ocupando o espaço onde ele mal podia colocar os pés. A lembrança do episódio,
mais uma vez, encobriu Edisvânio de emoção.
-Eu fiquei me perguntando: “Deus, onde eu estou afinal? Que leis são essas e que mundo é
esse?” Chorou.
Naquele momento, também fiquei sem palavras. Apesar de conhecer este fato, foi a primeira
vez que ouvi ele contar em detalhes. Fatos semelhantes também ocorreram com os
comunicadores Tony Sampaio, na rádio Valente FM, ao ser agredido pela Policia Federal; e
Amarilson Brandão, de Retirolândia, que saltou um muro de três metros para não ser agredido
pelos policiais federais que queriam arrombar a porta de acesso à rádio. Logo após a
abordagem de Edisvânio pelo delegado, a Santaluz FM teve de ser fechada, pois a Polícia
Federal apreendeu todos os equipamentos.
O desgaste da imagem do radialista e da repercussão que o fato gerou no município também
foram fatores que abalaram Edisvânio. Muitos deles foram plantados por políticos,
empresários e pessoas da sociedade, que acreditavam que ele estava errado. A solução para
evitar esses problemas foi antecipar a retirada da rádio do ar até que tivesse um resultado do
processo. Quando a Policia Federal e a Anatel voltaram a Santaluz para fechar a rádio
comunitária, no final de maio de 2007, já a encontraram fora do ar.
Até que saísse um resultado do processo que tramitava no Ministério das Comunicações,
Edisvânio foi responsável por manter o diálogo com a comunidade, mesmo com a rádio fora
do ar. O contato com a população e a representação da Santaluz FM continuaram existindo na
região e no município. Nesse período, início de 2007, enquanto o governo se voltava contra o
trabalho da rádio e, por que não dizer, dos comunicadores, existia uma ong com atuação
17
internacional apostando no trabalho da Santaluz FM. A rádio estava com um projeto aprovado
pela Brasil Foundation, uma organização não-governamental que apoia iniciativas da
sociedade civil brasileira que promovem o desenvolvimento e a transformação social. O
projeto, “Partilhando Comunicação com a Comunidade”, objetivou o fortalecimento de
aspectos que interferiam na proposta de saberes e novos conhecimentos, além de intervir na
formação na formação cultural e educativa de indivíduos.
Foi no mesmo ano também que Edisvânio recebeu da Agência Nacional dos Direitos da
Infância (Andi), em Brasília, o prêmio Jornalista Amigo da Criança. Mesmo não sendo
jornalista por formação, o jovem foi premiado pelo reconhecimento de seu trabalho em prol
da garantia dos direitos das crianças e adolescentes do Território do Sisal. Na ocasião, utilizou
um discurso inflamado devido às últimas ocorrências.
- Me sinto hoje regozijado por receber da Andi um prêmio de reconhecimento pelo meu
trabalho, mas devo dizer, ao mesmo tempo, que me sinto também marginalizado pelo
governo, que infelizmente está querendo calar a nossa voz.
O discurso de Edisvânio repercutiu e resultou em pressões por parte dos parceiros. O
Jornalista Dioclécio Luz escreveu um artigo publicado no Observatório da Imprensa, a revista
Repórter Social também publicou uma entrevista com ele e a repercussão desse fato
possibilitou que, em menos de três meses, o processo de outorga da rádio fosse desarquivado
e encaminhado para a avaliação do Ministério e para o Congresso. Em menos de um ano, a
rádio foi outorgada.
- Não houve intervenção de político nenhum. O que fez a rádio ser legalizada foi o resultado
das lutas e das denúncias que foram acontecendo. Os parceiros de organizações sociais não
conseguiam compreender como é que se tem um trabalho com uma relevância social a ponto
de ter um reconhecimento nacional e o governo chama de “pirata”.
A Santaluz FM foi reaberta legalmente com a outorga em 2008. Atualmente, tem 21 diretores,
da presidência ao conselho comunitário, e um quadro de 14 comunicadores, entre eles
também os voluntários. O quadro de diretores e comunicadores é formado por jovens. “Eu sou
um deles”, afirma Edisvânio, com um largo sorriso. Hoje, aos 35 anos, Edisvânio se sente
ainda com os mesmos 20 anos com que iniciou no movimento, porém mais experiente.
- Eu comecei cedo no movimento de rádio comunitária. Aos 20 anos. Hoje já tenho metade de
70 [sorri] e estou aqui ainda. Penso que nós devemos carregar sempre os sonhos e a
18
renovação. Eu me sinto mais jovem do que sou, tudo que eu sou é resultado dos meus sonhos
e devo zelar.
É com a energia de jovens como Edisvânio que nascem os movimentos juvenis e a história da
comunicação comunitária no Território do sisal é discutida dentro das organizações e
contextualizada dentro dos movimentos de juventude. Os jovens tomaram a frente e até hoje
vêm ajudando a construir esse processo.
- Quando falo da comunicação comunitária, reforço dizendo que para fazer comunicação
comunitária não é necessariamente preciso estar dentro de uma rádio, mas ocupar os espaços e
levar a comunicação até um espaço que tenha possibilidade de difundir essas informações.
Quando você contribui com a expansão das informações, de alguma forma você está fazendo
comunicação comunitária, sem necessariamente estar inteirando a rádio. Fazer comunicação
comunitária é estar em sintonia com a comunidade e eu posso dizer que sim, que a minha vida
está toda dedicada a isso.
Sendo homenageado por Patrícia Portela de Souza Oficial de Comunicação do UNICEF no prêmio Infância na Mídia Bahia e Sergipe recebido em Salvador - 2000 da ONG Cipó e UNICEF.
19
Edisvânio ainda de cabelo longo, participando de formação sobre “direitos da criança e adolescente, como abordar na mídia?” Evento realizado pela CIPÓ, ANDI e UNICEF em Salvador - 2004.
Edisvânio nos estúdios da Santaluz FM 2010.
20
Com Cicilia Peruzzo na conferência de comunicação da UNEB de Juazeiro - 2012.
Com Patricia Lobacaro e Suzane Worckman diretoras da Brazil-foudation, após recital de poesias, no evento Brazil-foundation 10 anos em cujo a Santa Luz FM foi contemplada pela ONG como um dos 20 projetos mais bem sucedidos, já apoiados pela Brazil-foudation em seus 10 anos de existência
21
Recebendo das mãos do Oficial de Programação do UNICEF no Brasil, Manuel Buvinich o título de jornalista amigo da criança promovido pela ANDI em 2007.
Assinado o termo de posse como Conselheiro Titular do Primeiro mandato do Conselho de Comunicação Social do Estado da Bahia, o primeiro do Brasil - Janeiro de 2012.
22
O ARTILHEIRO DO RÁDIO
“Na Barreiros FM, nós mantínhamos muito contato com o pessoal da rádio Arcos FM
(Estrela FM), sempre trocávamos experiências e ideais, tinha uma equipe de jovens bem
bacana lá”, Paulo Marcos.
Desde que Paulo Marcos saiu do Movimento de Organização Comunitária (Moc), nós nos
encontramos muito pouco, o que não significa que ele estivesse ausente, pois os e-mails e
links partilhados com frequência nas redes indicam sua presença e capacidade de mobilização
em todos os espaços por onde passa. Isso permite que ele esteja sempre próximo de nós.
Após quase seis anos sem nos encontrarmos para um bate papo demorado, o dia 22 de
outubro de 2013 nos permitiu mais uma vez comungar ideias e me permitiu conhecer um
pouco mais de sua trajetória de vida. Como tem sempre que rolar uma graça, eu comecei
trocando os sobrenomes.
- É Paulo Marcos Cerqueira, não é?
- Não, Cerqueira é o outro!
- Outro?
- Sim, João.
Trata-se de João Paulo Cerqueira, outro jovem protagonista do município de Valente, que fez
parte do projeto Comunicação Juvenil. Atualmente, João mora em Juazeiro (BA), onde cursou
Jornalismo e Multimeios no campus III da Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
23
Paulo Marcos Queiroz dos Santos, esse é o seu nome de batismo, há 30 anos. O jovem é
graduado em Comunicação Social com habilitação em Radialismo pela Universidade do
Estado da Bahia. Cresceu no distrito de Barreiros, no município de Riachão do Jacuípe, onde
há uma forte cultura da produção de cerâmicas e por isso é conhecido como a Terra das
Olarias. Paulo morou boa parte de sua infância com a avó materna, dona Maria Queiroz. Para
ele, o que mais marca essa época era acordar às seis da manhã com o rádio ligado no
programa “Alô Sertão”, da Rádio Sisal AM, de Conceição do Coité, apresentado por Valdemir
de Assis.
- Um fato que me recordo bem da minha infância foi que abri um rádio pra ver quem estava
dentro e, por pouco, não levei uma surra.
Aos 11 anos, por volta de 1994, ouvir rádio para Paulo era como ir à escola, uma missão
diária. Anotava tudo o que ouvia nos programas de esporte e acompanhava todas as
transmissões de jogos do Corinthians. O radio influenciou o jovem a se tornar torcedor do
time. “Mas hoje sou mais Bahia do que Corinthians”, afirma.
Além de estudar e ouvir rádio, o lazer de Paulo na adolescência em Barreiros era jogar bola
com os colegas na rua. Nos intervalos da “pelada”, ouvia o som do alto-falante na praça e
ficava curioso para saber como era e como funcionava. O jogo era sempre às 17 horas,
enquanto ouvia o alto-falante tocando, e o que lhe chamava atenção era o BG, as vinhetas que
soltavam enquanto a música passava. E ele não fazia ideia de como era aquilo.
- Eu curtia o radio enquanto ouvinte. Ouvia as radios Sisal, Jacuípe e a Globo porque eram as
que tinham futebol. Mas eu gostava de ouvir FM também, era uma novidade. Lembro que a
Morena FM era uma das poucas ouvidas e pegava ruim lá em Barreiros. Eu colocava uma
antena bem grande pra ouvir FM, ouvir música, ter um radio como meio de me informar, era o
que eu tinha à disposição.
A trajetória de Paulo Marcos no radio começou em 1997, quando Maurício Oliveira fez a
primeira experiência com um transmissor. Paulo estava jogando bola quando ouviu o
comunicador pedir que sintonizassem, que o alto-falante agora podia ser ouvido pelo radio.
- Depois desse dia, eu fui lá. Maurício me apresentou os equipamentos e como funcionava, até
que eu me inseri no processo e decidi não sair mais. A gente levou adiante, colocamos a radio
pra funcionar em fase de teste e foi uma experiência bem bacana.
24
O dia 4 de outubro foi uma data magna de funcionamento da radio, que ficou em fase de teste
até o final de 2007, enquanto montava a programação. A fase de teste era basicamente para
tocar músicas e testar as transmissões de jogos. E foi essa fase que Paulo Marcos teve para
aprender a manusear os equipamentos, inclusive discos e fitas, menos avançados do que na
Santaluz FM.
A comemoração de seis meses de funcionamento da radio aconteceu no programa de reggae
que ele apresentava em 1998. Foi um ano de descobertas na radio. Além de apresentar o
programa, passou a produzir e enviar informações para o noticiário esportivo de meio-dia para
a Rádio Sisal AM, de Conceição do Coité, e a Rádio Jacuípe AM, de Riachão. No final de
1998, aos 16 anos, em decorrência desse trabalho, Paulo foi convidado pela Radio Sisal para
fazer parte da equipe de transmissão do campeonato intermunicipal de Conceição do Coité.
No Sábado de Aleluia de 1999, ele assumiu de imediato o plantão esportivo da Rádio Sisal.
- Eu ficava ali na retaguarda, vendo a parte técnica e informando o placar de outros jogos.
Enquanto a rádio transmitia, eu ficava ouvindo outras rádios, eram cinco aparelhos de rádio
ligados ao mesmo tempo e eu ouvia para informar o placar de outros jogos que estavam sendo
transmitidos.
Paulo Marcos ficou no plantão esportivo da Rádio Sisal até 2000. Fazia o plantão nos fins de
semana e no meio da semana ia para Barreiros estudar e continuar as atividades da rádio
comunitária.
Naquele período, a Barreiros FM já tinha contato com a Arcos FM, atual Estrela FM, de
Retirolândia, em 1999. Paulo começou a representar a rádio Barreiros nos cursos realizados
pelo Moc e o Unicef. Passou a conhecer outras experiências, como a Valente e Santaluz. O
Moc assessorava as rádios por meio do programa de Políticas Públicas que, na época, era
coordenado pelo sociólogo, professor da Uefs, Ildes Ferreira. Os cursos eram promovidos
para sensibilizar as emissoras acerca do papel da comunicação comunitária frente ao trabalho
infantil. Muitos municípios ainda não tinham o Peti. Uma destas capacitações do Unicef foi
com o jornalista Marcos Aurélio de Carvalho, ex-apresentador e gerente da Rádio Globo e
atual coordenador executivo e coordenador pedagógico da ong União e Inclusão em Redes e
Rádio (Unirr).
Em 2001, quando concluiu o ensino médio, um dia depois de seu aniversário, Paulo foi morar
em Retirolândia e passou a desenvolver as ações mais pontuais em Barreiros.
25
- Na Barreiros FM, mantínhamos muito contato com o pessoal da rádio Arcos FM (Estrela
FM), sempre trocávamos experiências e ideais, tinha uma equipe de jovens bem bacana lá,
Rose Rios, Cláudio lima, Agnaldo Lima, Amarilson Brandão, a turma do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais, então eles me chamaram para compor a equipe de lá.
No final de 2001, Paulo participou da seleção e foi aprovado no programa Jovens Escolhas
em Rede com o Futuro, desenvolvido pelo instituto Credicard e Moc. A proposta do programa
era educar jovens para serem empreendedores e fazerem escolhas diante do mundo e do
trabalho. Para atender a proposta do programa, o MOC desenvolveu o Projeto Comunicação
Juvenil (PCJ) com objetivo de mobilizar jovens e entidades sociais da região do sisal da Bahia
nas questões de juventude, democracia e participação.
O projeto iniciou-se em 2002, quando ele estava mais em Retirolândia, participava das
formações do projeto e as executava no município, assim como outros jovens. Faziam parte
do projeto 30 jovens de sete municípios do Território do Sisal. No mês de abril, eles criaram a
própria identidade no projeto. “Passamos a nos chamar de Jovens Comunicadores Sociais”,
conta Paulo.
É válido lembrar que, nesse mesmo período, a jovem comunicadora Rose Rios, da rádio
Arcos FM, atual Estrela FM, de Retirolândia, foi selecionada para participar da formação
do Projeto de Inclusão Digital de Mulheres Comunicadoras do Cemina (Comunicação, Educação,
Informação e Gênero). Na ocasião, foi contemplada na Rede Cyberela, uma das estratégias do
projeto. A jovem recebeu computador, softwares especializados em edição e montagem de
programas de radio, além de conexão banda larga. A proposta da Cyberela era trocar
conteúdos via internet e incentivar a inclusão digital na própria comunidade. “Foi um projeto
bem avançado para a época, foi a primeira vez que eu tive contato com internet”, afirmou o
jovem.
Com a Cyberela Studio, a rádio firmou parceria com o projeto Comunicação Juvenil e
passaram a produzir conteúdos para a região. Em 2003, Paulo passou a ser coordenador jovem
do projeto, com Nayara Silva, que também tem sua história contada neste livro, e ia com
frequência a Feira de Santana ajudar Emanoel Sobrinho, jovem integrante do programa de
políticas públicas.
- A gente fazia as solicitações de recursos para as viagens de capacitações, a prestação de
contas e os relatórios de atividades e ainda dava suporte aos colegas na região. Depois passei
26
a apresentar o programa de radio do Moc com Nayara, “Encontro com as Comunidades”, na
rádio Sociedade de Feira de Santana.
O projeto resultou em ações concretas, como a produção de programas de radio e TV, boletins
informativos, cobertura de eventos, além do domínio dos jovens no debate sobre juventude e
comunicação do território. Quando o projeto terminou, no final de 2003, foi renovado, em
2004, com o apoio do Unicef, dando continuidade à mesma proposta. Neste período, muitos
jovens já haviam feitos suas escolhas e optaram por novos rumos. Chegaram novos jovens
que também desenvolviam ações nos movimentos sociais do Território.
- Foi nessa etapa que você entrou, não foi?, perguntou ele.
- Sim, respondi.
Eu me tornei jovem liderança do Movimento de Mulheres, em 2002, e entre os anos de 2003 e
2004, assumi o programa de rádio do movimento, “Espaço Mulher”. Era um programa de 30
minutos que ia ao ar todos os sábados às 10 horas da manhã. Nessas minhas idas à radio, eu o
via por lá. Depois que eu entrei no projeto, Paulo estava ficando mais em Feira de Santana.
Nosso encontro oficial foi em maio de 2004, quando fiquei responsável por produzir com ele
uma matéria para o jornal Giramundo, sobre a IV Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e
Adolescentes, de que ele participou, no Rio de Janeiro. O Giramundo era o jornal do Moc que
buscava, de forma coletiva e dinâmica, levar informações para a população do Território do
Sisal. Nós, jovens comunicadores do Projeto Comunicação Juvenil, éramos responsáveis por
cobrir a pauta do jornal.
Naquela ocasião, Paulo já integrava a equipe de Comunicação do Moc, que estava sendo
estruturada no mesmo período de execução do projeto, em 2004. Eu não colaborei com a
produção, pois quando cheguei à radio para nos reunirmos, a matéria já estava pronta, feita
somente por ele.
- Ainda quando participávamos do projeto, começamos a perceber a necessidade de trabalhar
a comunicação dentro da própria organização. O Moc não tinha uma estrutura na parte de
comunicação organizacional, tinha um programa na rádio Sociedade há mais de trinta anos e
não tinha muito retorno. Então, começamos a cobrar para se discutir juventude e comunicação
no Moc a partir de um programa específico.
O Moc definiu abrir o programa de comunicação, nessa mesma época, e começou a discutir
propostas para a comunicação do Território com base na experiência do projeto. Uma dessas
27
propostas, que partiu dessa provocação, foi a implantação do curso de Comunicação Social na
região, levando pessoas e entidades a refletir quais as políticas de comunicação necessárias
para o Território. Pela experiência vivenciada no entorno da construção da comunicação
territorial, Paulo foi um dos integrantes da primeira equipe do programa de comunicação do
Moc, onde ficou até 2007, além de aluno da primeira turma do curso de Comunicação da
Uneb, em Conceição do Coité.
O programa do Moc foi propulsor da articulação juvenil no Território do Sisal em prol da
comunicação comunitária e Paulo Marcos passou a assumir o papel de articulador das rádios
comunitárias, assessorando-as e mobilizando-as nos processos de capacitações.
- Foi muito importante colaborar com o fortalecimento das rádios comunitárias e sustentar
com elas a ideia de uma comunicação para o fortalecimento da comunidade. Ao trabalhar a
comunicação comunitária, nós formamos cidadãos para revolucionar o meio onde vivem,
formando jovens protagonistas que geram ações e iniciativas para o bem comum. Isso gera
frutos no sentido de as pessoas entenderem seu papel social e reconhecer que a comunicação
como um direito humano.
Quando Paulo saiu do Moc, em 2007, já estava no curso de Comunicação Social da Uneb,
fruto das lutas e reivindicações da sociedade civil organizada, que percebeu a necessidade de
implantar um curso dessa área para atender os sujeitos inseridos no contexto de mobilização
da comunicação territorial. Paulo esteve presente em muitos momentos de discussão da
implantação do curso. Enquanto estava no curso, em 2008, participou de algumas
mobilizações populares no município, além de ter coordenado a rádio educativa Sabiá FM e
as duas campanhas do atual prefeito de Conceição do Coité, Assis, ao disputar as eleições no
município. Ao sair da faculdade, passou a trabalhar em outro projeto social no município de
Pintadas, na Companhia de Artes Cênicas Reluz, uma experiência que ele conheceu em um
intercâmbio quando ainda participava do projeto Comunicação Juvenil, em 2003. Desta vez,
ele voltou mais experiente, mas levou também toda a experiência adquirida no projeto.
-No Reluz, fui para um projeto de parceria com a TVE, o “Pensar Filmes”, projeto de
comunicação em que inicialmente formamos um núcleo de produção e passamos a produzir
reportagens para a grade de produção jornalística da TVE. Esse era o principal objetivo.
Paulo trabalhou no projeto até 2010. Vivenciou experiências em produção de conteúdos
jornalístico e cinema. Nesse período, também trabalhou na equipe de comunicação da
campanha da deputada estadual Neusa Cadore, primeira experiência concreta de comunicação
28
em campanha eleitoral, que possibilitou ao jovem permanecer trabalhando na assessoria
legislativa e parlamentar de Neuza.
Em 2012, Paulo novamente foi procurado por Assis, solicitando a Neuza a liberação dele para
trabalhar na campanha. Foi a segunda disputa ao cargo de prefeito. Por decisão própria, Paulo
retornou a Coité. Desde 2010, ele tem tentado aplicar no espaço do poder público o que
aprendeu durante a trajetória nos movimentos sociais e o que se preocupou sempre em
pesquisar na vida acadêmica: a comunicação comunitária.
- Eu saí de um projeto social e trabalhei em outro com essas mesmas características.
Posteriormente, fui para um mandato que considero popular, que vem também com essa ideia
de comunicação pelo direito e como direito. E saí de lá para colaborar na construção de um
projeto dentro de um governo municipal aqui de Conceição do Coité, onde estou atualmente.
- E qual foi o desafio, considerando que são espaços diferentes dos que você atuava antes?
- Não é tão desafiador, mas também não é fácil implementar dentro de uma máquina pública
experiências como estas que a gente defende, de uma comunicação acessível e participativa.
Situações como estas, para muitos, são sonhos e utopias. É difícil, na estrutura governamental,
implementar esse tipo de trabalho, mas essa questão precisa ser disseminada. A gente tem que
atuar também nesses setores, estou tentando fazer isso. Iniciamos na campanha, mas é mais
difícil no governo do que na campanha implementar ideias e ações nos debates, encontros e
conferências essa linha de comunicação comunitária.
Apresentando resultados de projetos de comunicação - Cúpula de Mídia no Rio de janeiro – 2004.
29
Paulo Marcos na cobertura da Jornada Avaliativa do Peti em Feira de Santana - 2005.
Paulo fazendo oficina de produção radiofônica em Acupe - Santo Amaro - 2005.
30
Paulo Marcos na Cobertura do Workshop TV Pública, em Salvador - 2007
Paulo Marcos conduzindo os grupos temáticos durante a Conferência Territorial de Rádios e Tv's Educativas, Conceição do Coité, 2008.
31
MAIS QUE UMA JORNALISTA, UMA EDUCADORA POPULAR
“Eu acredito muito na comunicação comunitária como instrumento de transformação social,
eu não tenho dúvida disso”, Nayara Silva.
Uma semana antes de acontecer essa conversa, viajamos juntas para Nova Olinda, no Ceará,
para acompanhar uma turma de 20 jovens que fazem parte do projeto “Comunicação pelos
Direitos na Região Sisaleira”. Queríamos conhecer a experiência da Fundação Casa Grande,
uma organização social que trabalha na formação educacional de crianças e jovens
protagonistas em gestão cultural, desenvolvendo atividades de complementação escolar
através dos laboratórios de conteúdo e produção de gibis, audiovisuais e programas de rádio.
Nayara Cunha da Silva, 28 anos, é jornalista e coordena o Programa de Comunicação do
Movimento de Organização Comunitária (Moc) e o Projeto Comunicação Pelos Direitos na
Região Sisaleira. Nayara teve a oportunidade de conhecer a Fundação Casa Grande, em 2002,
quando participava do projeto Comunicação Juvenil, mas o olhar dela naquela época não
estava atento àquela realidade. Assim, ela estava visitando de fato o local, com o restante do
grupo, pela primeira vez.
A jovem nasceu e cresceu no município de Retirolândia, a 250 km de Salvador e a 18 km de
Conceição do Coité. Filha do político Deodato João da Silva (in memorian) e da comerciante
Noelice Cunha, nasceu de uma gestação de sete meses, em função de um choque emocional
da mãe, quando o pai de Nayara sofreu um atentado.
32
-Meu pai era político, na década de 80, em Retirolândia, quando as disputas eleitorais eram
tão quentes quanto as de hoje, e atiraram nele.
Mas não o mataram. Nayara teve o prazer de com os seis irmãos desfrutar do carinho e do
zelo do pai por longos anos, embora o desejo dela é de que ele ainda estivesse entre a família.
O fato de ter nascido prematura também contribuiu para que ela fosse mais protegida e
cresceu muito apegada a família.
- Até a minha juventude, sempre fui muito apegada ao lar, à convivência familiar, não era
muito ligada ao movimento social, fazia parte de grupos da Igreja Católica, frequentava as
missas e cantava no ministério de música da Igreja.
Apesar de ser muito apegada ao ambiente familiar, a jovem sempre se destacava pela
capacidade de liderança fosse na sala de aula, na igreja ou em qualquer espaço de que
participasse. “Isso me destacou mesmo dentro da igreja, sem especificamente fazer parte de
grupo nenhum”, recorda.
O primeiro contato com as organizações sociais do município foi em 2001. Ela foi indicada
pela igreja para participar de uma reunião de movimentos no Sindicato dos Trabalhadores
Rurais. A Igreja Católica, no município de Retirolândia, sempre foi muito próxima de outras
organizações. Nayara passou a representar a igreja sempre que havia necessidade de reunir os
movimentos sociais.
No final de 2001, assim como Paulo Marcos foi indicado pela rádio Barreiros FM, ela foi
indicada pela igreja para fazer parte do processo seletivo do programa Jovens Escolhas em
Rede com o Futuro, desenvolvido pelo instituto Credicard e o Moc. A proposta do programa
era educar jovens empreendedores para fazer escolhas diante do mundo e do trabalho. Para
atender a proposta do programa, o Moc desenvolveu o Projeto Comunicação Juvenil (PCJ)
com objetivo de mobilizar jovens e entidades sociais da região do sisal da Bahia nas questões
de juventude, democracia e participação.
- Até aquele momento, o Moc nunca havia trabalhado um projeto de comunicação e
juventude, especificamente a entidade acompanhava as rádios, mas o projeto foi a primeira
experiência.
Quando às atividades, iniciaram-se em 2002. Nayara foi encontrando desafios para
permanecer no projeto, o fato de ser muito apegada à família e ao lar fazia a jovem desabar
33
em choro quando tinha que sair para os encontros de formação do projeto, que aconteciam em
Feira de Santana, nos finais de semana.
Para garantir a segurança e a participação dos jovens nas capacitações, o Moc contratava um
ônibus que passava nos oito municípios do Território do Sisal para levar os jovens aos locais
onde aconteciam as capacitações: Queimadas, Nordestina, Santaluz, Valente, Retirolândia,
Conceição do Coité Serrinha e Araci. Além deles, o projeto também atuava no município de
Riachão, no território Bacia do Jacuípe. Mas na maioria das vezes, Nayara nunca chegava no
ônibus com os colegas.
- Hoje eu sei que era psicológico, mas naquela época eu sempre passava mal, tinha crise de
náusea, choro, febre... Quando saía de casa, ou eu iria e voltava, ou eu nunca conseguia
chegar ao destino, descia no meio do caminho, pegava outro ônibus de volta, mas também se
eu conseguisse ir, eu nunca me concentrava na atividade.
Como o projeto previa a existência de jovens suplentes, o Moc teve a opção de substituir
Nayara. Mas preferiram acreditar na capacidade de superação dela. “Isso é o que me
surpreende”, destaca a jovem. Os coordenadores do projeto reconheciam que ela tinha forte
capacidade de mobilização e que a reação dela ao deixar o lar correspondia a uma questão
para a qual ela precisava de ajuda, até mesmo pelo princípio do projeto de educar os jovens
para serem independentes nas suas escolhas.
Em uma das oficinas oferecidas pelo projeto sobre autoestima, com a psicóloga Rebeca Ribas,
da ong Cipó Comunicação Interativa, de Salvador, Nayara percebeu que o caso dela era
delicado.
- O projeto viabilizou alguns encontros meus individuais com Rebeca. Pra você ter uma ideia,
ela vinha para Retirolândia e a gente conversava aqui. Íamos à praça pública e nessas ocasiões
eu contava minha história a ela. Eu dizia a ela que eu tinha trauma de coisas do tipo: eu não
consigo até hoje assistir filmes de ação, sobretudo que tenha armas de fogo, ela pedia que eu
nunca dissesse trauma, porque é uma coisa muito pesada.
Nayara carregava consigo as marcas de sua história desde o nascer e se afastar da família,
mesmo que fosse por um dia, era como estar desprotegida.
- As pessoas costumam dizer que eu sou agoniada [sorri]. Pode ser consequência disso, quem
sabe... Depois desses encontros com Rebeca, eu consegui participar mais ativamente dos
encontros do projeto e fui aprendendo a separar os momentos e também aceitar.
34
A ajuda do projeto foi bem vinda. Em 2003, já inteirada ao projeto, Nayara retomou com os
jovens a produção do jornal Giramundo. Muitos jovens já estavam produzindo e apresentando
programas de rádio nos municípios. Nayara produzia e apresentava o programa “Jovens
Garotos no Ar”, na companhia do colega Diego Costa, que na época era comunicador
comunitário da rádio Arcos FM, de Retirolândia, e jovem do projeto. Diego Costa,
atualmente, é locutor na rádio Morena FM, de Serrinha, liderada pelo grupo Lomes de
radiodifusão. Talentoso, o jovem chegou à Morena FM pelo seu potencial, mas é a prova de
que a experiência de Comunicação e Juventude no território possibilitou a inserção de jovens
em mídias comerciais de maior alcance.
- Hoje a voz de Diego ecoa em todo o território baiano e quem conhece Diego sabe que ele
carrega a essência da comunicação comunitária até hoje.
Além de apresentar o programa “Jovens Garotos no Ar” e das outras atividades do projeto,
Nayara ia todas as terças-feiras para Feira de Santana apresentar o programa do Moc.
“Encontro com as Comunidades”, com Paulo Marcos, na rádio Sociedade AM. Aos poucos, a
jovem foi se apaixonando pela comunicação. Antes ela não tinha o desejo de estudar. Era
noiva, sonhava em se casar e construir uma família. Mas se fosse optar por alguma área de
formação, dizia querer ser dentista. Hoje percebe que a profissão não tem nada a ver com a
sua realidade.
No final de 2003, por conta do projeto Comunicação Juvenil, o Moc decidiu construir um
plano de comunicação institucional. Como a ong é estruturada por programas, a decisão de
criar o programa de comunicação surgiu a partir dos resultados do projeto. O plano foi
construído com a assessoria de Gislene Moreira, na época profissional de relações públicas da
Cipó. Gislene coordenou o programa até o final de 2005 e, na ocasião, optou por jovens do
projeto para integrar a equipe: Nayara Silva e Paulo Marcos.
O projeto Comunicação Juvenil foi uma das ações no Território do Sisal que possibilitaram
aos jovens intervir socialmente e ocupar espaços estratégicos para concretizar suas ações e
propor reflexões acerca do seu papel enquanto agente transformador.
- Todos os segmentos sociais apoiavam os jovens como “os meninos de um projeto”. Mas um
sindicalista ouvir falar de jovens na diretoria de um sindicato era motivo de briga. Existia
muita repressão aos jovens. Ações como essas foram quebrando barreiras e hoje já é possível
encontrar jovens ocupando estes e outros espaços.
35
Quando o projeto “Comunicação Juvenil” foi renovado, em 2004, com o apoio do Unicef, já
passou a ser executado pela equipe de comunicação. Lembro que a mobilização para a nova
fase de seleção do projeto foi feita por João Netto Silva, irmão de Nayara, que se inseriu no
projeto depois, em meados de 2002, em função dos trabalhos como monitor do agente jovem.
Durante a seleção, a prova foi aplicada por Nayara e a entrevista feita por Gislene Moreira ou
Gil, como carinhosamente chamamos, que atualmente é professora do curso de Comunicação
Social, no campus III da Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
- Foi um período de descobertas pra mim, que nunca saía de casa. Fui morar em Feira de
Santana, no mesmo ano comecei o curso de Jornalismo na Unidade de Ensino Superior de
Feira de Santana (Unef) e passei a coordenar aquele grupo de jovens do projeto, que eram
meus colegas e amigos. Inicialmente foi complicado separar essa relação de amizade com o
campo profissional, mas com o tempo fui aprendendo a separar as duas coisas sem afetar a
nossa convivência.
Ainda nos primeiros anos, a dificuldade de conviver fora de casa persistiu. Diversas vezes,
Nayara arrumou as malas para deixar tudo e voltar pra casa. “Mas fundo eu sabia que aquilo
era o melhor pra mim”, afirmou a jovem. No período em que o pai dela não pôde mais ajudá-
la a pagar o curso, ela conseguiu uma bolsa da faculdade.
Nessa trajetória de ousadia e persistência, Nayara encontrou mais amigos que a apoiaram,
desde o Moc aos grupos de estudo que formava com as colegas da faculdade.
O programa de comunicação do MOC se constituiu legalmente em 2005 e Nayara, que um dia
foi técnica, hoje é coordenadora do programa. A Agência Mandacaru de Comunicação e
Cultura (Amac) também nasceu em 2005, fruto do Projeto Comunicação Juvenil, que Nayara
ajudou coordenar. A agência é uma entidade formada e gerida por jovens do Território do
Sisal e conta com uma central de produção de comunicação e cultura na região, com a missão
de contribuir para o desenvolvimento social sustentável a partir da prestação de serviços em
comunicação social, voltados para o conhecimento e a valorização do semiárido.
Nayara também faz parte da diretoria da Agência Mandacaru e atua conosco nas ações de
mobilização da comunicação comunitária para a juventude do Território do Sisal.
- Minha função não se resume ao escritório. Sinto a necessidade de fazer com que o meu
trabalho mexa com a vida das pessoas, por isso minha função é a mobilização. Ficar presa ao
escritório, sem estar também em campo mexendo com gente, mobilizando, participando, pra
mim não teria sentido.
36
O Programa de Comunicação do Moc atualmente executa o projeto Comunicação Pelos
Direitos, na região sisaleira. O projeto é apoiado pela Petrobras. O Moc conta com a parceria
da Agência Mandacaru e secretarias municipais de educação. Nayara coordena o projeto com
a jovem Rachel Santana, técnica que integra o Programa de Comunicação e acompanha os dez
municípios onde o projeto tem atuação. Os jovens do projeto utilizam as práticas de
comunicação comunitária para promover a participação popular em prol da garantis dos
direitos das crianças e adolescentes.
- Eu acredito muito na comunicação comunitária como instrumento de transformação social e
eu não tenho dúvida disso. Tenho muita perspectiva de continuar nessa causa, vontade de
continuar “mexendo com gente”. Se não for no Moc, será em outro lugar, mas isso é o que me
motiva. Nós, jovens do Território do Sisal, somos referência fora do Estado. Sempre tem a
Bahia e o Território do Sisal como jovens protagonistas, que lidam com a comunicação para o
controle das politicas e a mobilização social.
.
Nayara ao lado da colega Marial Vandalva, animando a Jornada Avaliativa do Peti, realizada pelo MOC em Feira de Santana - 2005.
37
Nayara realizando o Planejamento do projeto Comunicação Pelos Direitos, com os Jovens comunicadores do Projeto - 2010.
Capacitação em Educomunicação com Educadores do Território do Sisal - 2010
38
COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA, UM DESAFIO EM BUSCA DA
SUSTENTABILIDADE
“A gente não tinha recurso nem para manter uma sede, o que mantinha a Abraço eram as
mensalidades e alguns serviços que a gente desenvolvia de capacitação e de produção
sonora, e quando precisávamos reunir, utilizávamos o espaço de parceiros, a maioria das
nossas atividades acontecia na Agência Mandacaru”, Arlene Freire.
Arlene Cristina Freire Araújo. Esse é seu nome, forte como sua personalidade. Ela tem 38
anos, mas parece ter 18. É mãe de Elis Freire, de 14 anos, e a filha mais velha de seu Amós
Araújo e dona Marlene Freire.
Essa “baiana” de Valente nasceu em Caruaru, Pernambuco, mas veio para Valente aos vinte
dias de nascida. Retornou a Caruaru com os pais aos sete anos, período em que ficaram na
cidade pernambucana por um ano. Depois retornaram novamente a Valente e, aos 10 anos,
mais uma vez viveu com a família em Caruaru, por 10 meses.
- Minha mãe é pernambucana e meu pai é daqui de Valente. Eles se conheceram em Feira de
Santana. Foi o casamento mais rápido que eu já tomei conhecimento na minha vida. Em dois
meses, eles noivaram e casaram. Retornei com minha família para morar em Caruaru por
duas vezes, pois para meus pais era melhor arranjar trabalho lá, que é uma cidade maior. Mas
a minha história com Caruaru é bem curta, não recordo muita coisa.
Mesmo sendo criada boa parte do tempo em Valente, Arlene passou um tempo sem se adaptar
a cidade. Para ela, era um tempo em que a cidade não tinha nenhum atrativo. Mas depois
conheceu a Valente FM, se envolveu socialmente na cidade e na região e hoje diz gostar e
defender o território e ser uma valentense. Arlene Freire foi comunicadora da Valente FM.
39
Atualmente, integra a Abraço-Sisal e faz parte da equipe de comunicação da APAEB de
Serrinha.
Quando a jovem começou a se inserir no movimento de radiodifusão comunitária, tinha 27
anos. Foi convidada por Cleber Silva, um dos fundadores da rádio Valente FM a participar de
um processo seletivo.
- Eu estava recém-separada, tinha uma filha e precisava trabalhar. Encontrei com Cleber, na
época já éramos amigos, e eu disse a ele que estava pensando em ir embora para Caruaru, para
tentar um emprego. Naquele dia, ele me informou do processo seletivo que ia haver na rádio,
foi no final de 2002.
Arlene começou a trabalhar no setor de jornalismo, escrevendo para o jornal da rádio, mas
logo passou a apresentar um programa de MPB, do meio-dia às 13 horas. Mas a jovem
permaneceu com os dilemas que afetavam sua vida financeira. “Eu só ganhava oitenta reais”,
conta. Essa é uma realidade que até hoje predomina nas rádios comunitárias: o trabalho dos
comunicadores é voluntário e a remuneração varia em porcentagem a depender do apoio
cultural, uma ajuda de custo que as rádios arrecadam dos parceiros do comércio e de
organizações, em troca da divulgação de serviços.
Arlene permaneceu na Valente FM por três anos. À medida em que as demandas de
atividades aumentavam, a jovem também ia descobrindo o sentido da comunicação
comunitária para o Território do Sisal. Em 2004, depois de um ano na rádio, Arlene passou a
integrar a diretoria da Associação de Rádios e Tv’s Comunitárias do Território do Sisal
(Abraço-Sisal).
Foi nesse ano que eu a conheci. Aliás, eu já conhecia sua voz. Sempre frequentei Valente. Eu
nasci lá e, mesmo morando no município de Retirolândia, cresci frequentando Valente porque
minha família materna mora lá. Nessas minhas idas, eu sempre ouvia a rádio, geralmente à
tarde, horário em que Arlene estava na programação. Em dezembro de 2004, quando o Moc
ainda realizava a Jornada Avaliativa de Projetos Econômicos Educativos e Sociais (Japes), a
cobertura do evento ficava por nossa conta, jovens comunicadores do projeto “Comunicação
Juvenil” e Arlene também estava lá, representado a rádio e a Abraço-Sisal. Era uma época em
que já desenvolvíamos atividades, mas a parceria só foi consolidada em 2005, quando a
Mandacaru surgiu como entidade autônoma e Arlene assumiu a coordenação da Abraço.
40
Até 2006, ela dividiu seu tempo entre a rádio e a coordenação da Abraço. Ela saiu da rádio no
final de 2006, mas continuou na Abraço.
Já inteirada aos processos de mobilização da comunicação comunitária do Território, muitas
vezes Arlene teve que driblar a falta de recursos com a vontade de trabalhar. O que mantinha
a Abraço eram as taxas de mensalidades pagas pelas 17 rádios filiadas. A realidade financeira
destas rádios também era comprometida, o pouco que arrecadavam dos apoios culturais mal
dava para custear suas próprias despesas de manutenção.
- A gente não tinha recurso nem para manter uma sede. O que mantinha a Abraço eram as
mensalidades e alguns serviços que a gente desenvolvia de capacitação e de produção sonora.
e quando precisávamos nos reunir, utilizávamos o espaço de parceiros, a maioria das nossas
atividades acontecia na Agência Mandacaru.
Em 2009, Arlene passou no vestibular da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
e foi morar em Feira para cursar História. A princípio, parecia uma vitória, mas os desafios a
acompanharam. Por falta de trabalho e diante das poucas alternativas encontradas, Arlene não
conseguiu se manter em Feira de Santana. Por isso, teve que abandonar o curso antes de
finalizar o segundo semestre. Mas, no mesmo ano em que ingressou no curso de História da
UEFS, ela ganhou um curso de Radialismo do o Instituto Belgo-brasileiro de Cooperação para
o Desenvolvimento Social (DISOP Brasil)
- Nesse período, tínhamos firmado uma parceria com o DISOP Brasil, que financiava algumas
atividades da Abraço-Sisal. Então, fiz o curso no mesmo período em que estava na UEFS,
com duração de dez meses. Abandonei o curso de História porque estava sem trabalho,
morando praticamente de favor e tinha deixado minha filha com minha mãe. Então, não tinha
como nos manter.
Como o trabalho na Abraço era voluntário, dois meses depois de ter retornado de Feira de
Santana para Valente, Arlene foi tentar um emprego em Salvador, mas também não teve
sucesso. Mas antes de retornar novamente a Valente, fez o Enem em Salvador, em novembro
de 2009.
- Desde que eu me entendo por gente, minha mãe faz salgados para festas de casamento,
formatura, aniversário, então pensei: como eu sempre ajudei minha mãe, enquanto eu não
encontro trabalho, eu continuo ajudando ela.
E foi assim que aconteceu.
41
Arlene voltou para casa e continuou ajudando dona Marlene a dar conta das encomendas dos
salgadinhos. Além de continuar no processo de mobilização das rádios comunitárias pela
Abraço-Sisal, inscreveu-se no Programa Universidade para Todos (Prouni) e no Sistema de
Seleção Unificada (Sisu) e foi contemplada em duas vagas, uma delas foi em Comunicação
Social na Uneb de Conceição do Coité, mas escolheu cursar Serviço Social. Em junho de
2010, Arlene passou também a compor a equipe de comunicação institucional da Fundação de
Apoio aos Trabalhadores Rurais e Agricultores Familiares da Região do Sisal e Semiárido da
Bahia (Fatres).
- Por que não comunicação?, perguntei.
- Eu não negligenciei. Sabia que o curso de Comunicação Social, nos moldes que eu faria,
seria muito rico pra mim como pessoa, até porque eu estive presente junto a outras entidades
para discutir a proposta de um curso nessa modalidade para a região. Também cobrei e
defendi que tivesse, mas naquele momento julguei Serviço Social melhor pra mim, porque eu
visualizava um campo de atuação. Essa é mais uma área que eu sempre gostei e nela eu
também poderia desenvolver a comunicação comunitária. Espero não estar enganada, afinal
eu gosto muito de comunicação comunitária.
Arlene passou pela execução da comunicação institucional da Fatres durante um ano e seis
meses. As ações eram voltadas para a produção de um blog, registro de eventos e produção de
noticias para um boletim eletrônico e impresso produzido em parceria com a Agência
Mandacaru.
No final de 2012, ela passou a integrar a equipe de comunicação da Apaeb de Serrinha, onde
atua até hoje desenvolvendo ações de comunicação institucional nos mesmos moldes da
Fatres, atualização de blog e demais páginas na internet, produção de reportagens e
informativos.
Antes de se tornar comunicadora comunitária na Valente FM, Arlene não tinha um visão
crítica da sociedade em que vivia. A única coisa que lhe inquietava era a questão da
submissão feminina, a violência contra a mulher e a forma como a sociedade defendia o
homem na tomada de decisões, porém ela não questionava.
Depois que ela se tornou uma comunicadora popular, passou a reconhecer seu papel social e a
exercê-lo para além dos direitos das mulheres. O primeiro evento de grande porte de que
participou foi o IX Encontro Nacional da Rede de Mulheres no Rádio, em Maceió, Alagoas,
em maio de 2005, realizado pelo Cemina (Comunicação, Educação, Informação e Gênero).
42
- Tinha mulheres de outros países, cada uma trazia suas experiências de trabalho, da cultura e
isso foi me permitindo ter uma visão mais esclarecida do que nós, jovens, representávamos no
Território do Sisal e como estávamos organizados. Esse contato com as entidades a partir da
rádio me permitiu perceber a dimensão da nossa organização.
Atualmente, o desafio para Arlene já não é tanto a sua sustentabilidade, mas a das entidades,
em se tratando da Abraço, ela considera que a entidade já foi mais atuante do que está sendo
atualmente. Contudo, a organização tem deixado um legado, contribuindo para que a região e,
especificamente, as organizações sociais enxerguem a comunicação como um bem necessário
e estratégico para o desenvolvimento do Território. A Abraço-Sisal se tornou uma referência
no Território quando o assunto é rádio comunitária, o que comprova a consolidação de
proposta territorial.
As formações para comunicadores e diretores também foram primordiais para que percebesse
qual era o papel social destas rádios comunitárias e de que forma eles poderiam mobilizar a
comunidade. “Eu acredito que as rádios ganharam sentido depois das formações e uma prova
disso é que muitas delas, depois desse acompanhamento, já estão legalizadas”, destaca
Arlene, que apesar de cantar as vitórias, não esquece os desafios que as rádios comunitárias
enfrentaram e ainda enfrentam, principalmente as que ainda não possuem outorga.
- Isso não aconteceu comigo como comunicadora na rádio, mas acompanhei o tempo todo na
Abraço e me recordo do colega Toni Sampaio, que foi agredido fisicamente pela Polícia
Federal. Conhecemos casos até mais graves, de gente morrer durante a chegada da Polícia
devido à pressão. Isso, na minha opinião, é o mais grave de todos os desafios que passamos.
O contexto socioeconômico das rádios comunitárias, sejam legalizadas ou não, é sempre o
mesmo. As rádios se mantêm com apoios culturais do comércio e de parceiros locais, que não
são suficientes para manter a estrutura nem remunerar os comunicadores. Boa parte desses
comunicadores desenvolvem outras tarefas fora da rádio, em turno oposto, para ter renda
própria. O fato de as rádios não terem poder financeiro, mas intervirem com denúncias de
irregularidades sociopolíticas nos municípios, torna evidente que as perseguições da Anatel e
da Polícia Federal são incitadas por uma minoria politicamente insatisfeita com o trabalho das
rádios comunitárias.
- Em 2012, apresentei o jornal com Toni Sampaio, na Valente FM. Algumas vezes, a história
é a mesma, os apoios culturais entram a custo de muito suor e desgaste e a Valente FM tem
um respaldo por ser uma das primeiras rádios comunitárias do Território a ser legalizada. São
43
dois grandes desafios à questão financeira e, junto a ela, a própria legislação que, de certa
forma, interfere nessa questão.
Mas esses desafios não são maiores do que a capacidade de articulação que têm as rádios
comunitárias e as organizações de comunicação no Território do Sisal. É a mobilização no
entorno da comunicação comunitária que possibilita a inserção da juventude nos demais
espaços de intervenção política do território. Essa comunicação, que nem todos desenvolvem,
mas de que todos precisam, é defendida por sujeitos como Arlene Freire, que enfrentou os
desafios financeiros e permanece lutando por um mundo mais justo e participativo.
- Eu percebo, desde a época em que comecei a participar, das pessoas que eu conheci dentro
desses espaços de comunicação, que a gente é bem mais forte do que pensa, os jovens se
apoderaram de tal maneira que não somos protagonistas apenas da nossa história de vida, mas
do Território, que cada dia tem algo novo, novas perspectivas. Isso faz parte da ação da
juventude. A comunicação popular é uma conversa com o povo, constantemente estamos
conversando e nos dando uma resposta.
Em Brasília 2007, com jovens da Agência Mandacaru na Finalização da II Jornada Nacional do Jovem Rural, que aconteceu em Luziânia, Goiás.
44
Arlene com os comunicadores de Ichu e Serrinha durante a Conferência realizada pelas movimentos sociais em Conceição do Coité em 2008, sobre Rádios e Tv’s Publicadas no Território do Sisal.
45
Capítulo II
JOVENS LÍDERES E ENGAJADOS
46
COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÃO
“Eu não tinha muita compreensão da formação política do movimento de rádio comunitária
nem da parte técnica, até eu conhecer a Abraço. Nós ocupamos espaços importantes dentro e
fora do território”, Kivia Carneiro.
Kivia Maria da Silva Carneiro, 26 anos, é mais uma jovem filha de agricultor. Há quem diga
ou pense que ser filho/a de agricultores no Território do Sisal da Bahia é sinônimo de
limitação, fraqueza ou falta de oportunidade. Kivia é o exemplo concreto de que viver numa
região semiárida com irregularidades de chuvas e ser filha de agricultor não é empecilho.
- Tive uma infância e adolescência muito felizes, preenchidas de diversão, muito bem
elaboradas pelos meus pais porque eles nunca me privaram das coisas boas de ser criança, tive
momentos muito divertidos com amigos e parentes próximos a mim.
Ela nasceu no município de São Domingos, distante 245 km de Salvador e a 38 km de
Conceição do Coité. Atualmente, dirige a rádio São Domingos FM, integra a Abraço-Sisal e
coordena o ponto de cultura Moringa Cultural, um projeto de comunicação popular
desenvolvido pela Abraço-Sisal em parceria com a rádio comunitária Juá FM, do distrito de
Juazeirinho, no município de Conceição do Coité. O projeto é apoiado pela Secretaria de
Cultura do Estado e atua na formação de comunicadores comunitários das rádios filiadas à
Abraço-sisal
Aos 16 anos, quando ainda estudava o ensino médio, Kivia participou de uma oficina de
redação oferecida pelo Ministério da Educação (MEC) em parceria com a Secretaria de
Educação do município de São Domingos. Durante o curso, foi informada que iria ser criada
uma rádio comunitária no município.
47
Em se tratando de rádio comunitária, nesse período a jovem conhecia apenas a Valente FM e
nunca tinha sequer pensado em trabalhar nesse meio. Durante o curso, foi elogiada pelos
instrutores pela desenvoltura nos textos e na locução.
- Engraçado que eu sempre fui retraída quando o assunto era falar no microfone... Na escola,
eu preferia trabalhar nos bastidores para não ter que falar, não gostava de apresentar nem de
atuar em função da timidez, mas quando fiquei sabendo do curso, arrisquei.
Quando a São Domingos foi ao ar, em 2005, Kivia foi convidada por Gil Santana a fazer parte
deste movimento. A jovem arriscou apresentar um programa com duração duas horas com
músicas e notas informativas. Para Kivia, assim como para toda a equipe da rádio, era tudo
novo.
- Não tínhamos conhecimento de técnica nenhuma, não tinha noção de praticamente nada, os
equipamentos eram emprestados, os conteúdos eram sem produção técnica e ficávamos ali,
descobrindo o espaço onde a gente tinha acabado de entrar.
Eli Gonçalves, de Valente, foi a pessoa que emprestou os equipamentos para a rádio ir ao ar.
Kivia conheceu Eli três meses depois de assumir a programação da manhã e o cidadão chegou
à rádio se apresentando de maneira que deixou a jovem nervosa.
- Nunca esqueço, ele chegou dizendo que era da Anatel [sorriu]. Eu não sabia o que fazer,
fiquei desorientada, quando ele viu que eu estava apavorada a ponto de enfartar, ele disse que
era técnico da radio também. Aí eu respirei aliviada, mas foi sufoco, o fato se tornou
engraçado depois.
A inserção de Kivia no movimento de rádio comunitária aconteceu na medida em que a jovem
começou a representar a rádio nas formações. Pouco a pouco, ela foi entendendo seu papel de
comunicadora social. E à medida em que colocava em prática as orientações recebidas,
redescobria a própria comunidade.
A condição de comunicadora comunitária lhe permitiu estar ao lado das pessoas mais
necessitadas. Dar voz à comunidade foi uma tarefa que a jovem colocou em prática logo que
descobriu os prazeres e a importância de fazer esse tipo de comunicação.
- Me lembro de um fato que me chamou atenção e, ao mesmo tempo, me fez reconhecer ainda
mais a força que tem um veículo de comunicação, ainda mais quando usamos a serviço da
comunidade. Eu estava na programação à tarde e chegou um moço de aparentemente 50 anos:
-Boa tarde, cumprimentei.
48
- Boa tarde, queria saber se eu posso usar um minuto do microfone no ar.
- Pra qual motivo, senhor?, perguntei.
- É que eu estou com um filho doente, não tenho recurso nenhum mais, o hospital não me dá
garantia de que tem condição de tratar ele aqui. Eu estava na praça, ouvi o comércio com o
rádio ligado e você dizer que a rádio é do povo, eu quero falar no rádio.
- E eu disse: esse espaço é seu! Abri o canal do microfone e nós conseguimos arrecadar uma
quantia significativa de recurso financeiro para esse pai, mas acima de tudo eu debati
inclusive na companhia de um advogado, Ranieri, o papel dos gestores e as políticas públicas
de saúde no município.
Nessa onda de comunicadora comunitária, Kivia não viveu apenas as alegrias e tristezas da
partilha dos problemas e ideias de famílias, jovens, escolas e segmentos sociais e religiosos do
município. A visita da Anatel, acompanhada da Policia Federal, não ficou apenas na
brincadeira feita por Eli Gonçalves. Como todas as rádios comunitárias e como a maioria dos
comunicadores, Kivia também viveu momentos constrangedores.
“Já corri muito com o transmissor na mão pra me esconder da Policia Federal”, recorda a
jovem, que aos 15 anos de idade já participava das formações educativas em comunicação
comunitária oferecidas pelo Moc e, com 16 anos, passou a ser referência na radio comunitária
São Domingo FM.
- Parecia cena de filme a forma como acontecia a perseguição às rádios comunitárias. Uma
vez, tivemos que desmontar a radio inteira dentro de cinco minutos e esconder todo o material
para que não levassem. Reconheço que o trabalho deve ser exercido dentro de uma questão
legal, mas nós, comunicadores, somos perseguidos de forma muito violenta. Quando somos
abordados pela Anatel e a Polícia Federal, a impressão que fica é de que estamos cometendo
um crime, quando na verdade estamos promovendo a transformação social, mobilizando a
comunidade, garantindo os direitos dos cidadãos e a comunicação é um direito humano.
A proposta de ajudar a comunidade e garantir a igualdade de direitos foi bem aceita em São
Domingos por uma grande parcela da população. Uma prova disso foi em 2007, com a vinda
dos agentes da Anatel e da Policia Federal. Quando as pessoas deram conta de que iria haver
uma tentativa de invasão, começaram a se concentrar na frente da rádio na tentativa de
interditar a passagem e evitar o fechamento da São Domingos FM. Kivia ainda era
49
adolescente. “Tive que me esconder, porque eu tinha 16 anos, mas como era uma referência
da radio, se eu estivesse na rua e alguém me indicasse, eu correria risco”, diz a jovem.
Apesar das frustrações que passou durante a caminhada iniciada muito cedo no movimento de
radiodifusão comunitária, Kivia se emocionou ao recordar as conquistas alcançadas em
defender uma proposta de luta por uma sociedade mais justa e pautada numa formação
política e social. Ela foi presidente do Conselho Municipal do Direito da Criança e do
Adolescente (CMDCA) de São Domingos por dois anos, 2010 e 2011, por conta do trabalho
na radio. “O bom é que nossas ações vão além da comunicação comunitária”, destaca.
Tive o primeiro contato com Kivia, em 2005, quando eu e 19 jovens comunicadores do
projeto “Comunicação Juvenil” estruturávamos a Agência Mandacaru de Comunicação e
Cultura (Amac). Kivia e outros 19 representantes das rádios comunitárias, a maioria jovens,
também reestruturavam, naquele momento, a Associação de Rádios e TV’s Comunitárias do
Território do Sisal (Abraço-Sisal).
As duas entidades surgiram paralelamente. No mesmo período em que a Abraço Sisal, em
2004, era articulada por representantes das próprias rádios comunitárias para atuar no campo
da mobilização e estruturação das emissoras, a Amac, em 2005, surgia como resultado do
processo de formação dos jovens comunicadores. A Amac é uma entidade de comunicação
comunitária criada por e para jovens para promover e divulgar o desenvolvimento sustentável
no Território do Sisal e no semiárido baiano.
Kivia acompanhou de perto o processo de reformulação estatutária da Abraço-Sisal, em 2005,
com a finalidade de seguir o padrão estatutário da Abraço em níveis nacional e estadual, mas
mantendo uma identidade territorial.
- Era um período de iniciação, quase nem existia financiamento. Íamos para as atividades com
recursos próprios, para sentar com o pessoal do Moc e os representantes das outras rádios
comunitárias. Tinha meses em que nos reuníamos três vezes até fechar o estatuto.
Já estruturadas desde 2005, a Abraço e a Amac continuaram recebendo assessoria da equipe
de comunicação do Moc. A parceria destas entidades fomenta discussões e articulações com
os movimentos sociais para o fortalecimento da comunicação comunitária nos territórios.
Nestas discussões, eu e Kivia estamos sempre presentes até os dias de hoje. Em 2010, tivemos
o prazer de sermos colegas também na universidade, no curso de Comunicação Social da
Uneb, no campus XIV, em Conceição do Coité.
50
A Abraço-Sisal é referência para as emissoras comunitárias. Atualmente, tem 17 rádios
filiadas, das quais 12 funcionam legalmente, inclusive a São Domingos FM, que obteve
outorga definitiva em 2010. O papel da Abraço-Sisal é estar junto às rádios nos processos
jurídicos, promover formação em produção de conteúdos e de programação e fortalecer o
movimento popular.
- Eu não tinha muita compreensão da formação política do movimento de radio comunitária
nem da parte técnica, até eu conhecer a Abraço. Nós ocupamos espaços importantes dentro e
fora do território, um deles foi para assegurar que o curso de Comunicação fosse inserido na
região.
Atualmente, a Abraço-Sisal tem feito o acompanhamento às radios através do projeto
Moringa Cultural. O projeto atua desde 2008. A proposta foi idealizada pela Abraço, com a
colaboração do Moc e a parceria da radio comunitária Juá FM. Atualmente, o projeto conta
também com a parceria do campus XIV da Uneb. Uma das ações estratégicas do projeto foi
realizada por Kivia, em 2012. A jovem acompanhou de perto a programação das 17 radios
filiadas à Abraço. O projeto está no terceiro ano de execução, dando suporte às rádios na
formação e qualificação dos comunicadores. O acompanhamento da programação realizado
por Kivia foi uma forma de monitorar as ações do projeto.
- Eu não me vejo fazendo outra coisa. Hoje sou totalmente diferente e as pessoas percebem
isso, primeiro pela timidez que eu superei. Nós construímos um espaço e ele vem crescendo a
cada dia. Estou morando em Conceição do Coité há um ano e cada vez que eu vou a São
domingos, vou à radio, não apenas por ser diretora, mas para mandar o meu alô para a
comunidade. Muito do que eu sou hoje, os lugares por onde passei, as pessoas que eu conheci
e amizades que construí e as coisas que eu aprendi, devo ao movimento de comunicação
comunitária.
51
Kívia ao lado dos jovens, João Netto e Jussara Borges, na atividade de sistematização das ações de comunicação comunitária, em agosto de 2007.
Kívia durante a oficina de Representação da Cultura na Produção Audiovisual, realizada pela Amac em parceria com a Uneb de Conceição do Coité em agosto de 2010.
52
Kívia com os jovens da Agência Mandacaru, Gilcimar e Bruno, durante a oficina de audiovisual do projeto cultural "Vamos Roubar Um Boi" desenvolvido pela Amac em 2010
Kívia com a Equipe do Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CMDCA) do Município de São Domingos.
53
COMUNICAÇÃO E DESENVOLVIMENTO
“Foi na rádio que eu me descobri tanto pessoalmente como profissionalmente, vivenciei
novas experiências, viagens de intercâmbio, construí boas relações de amizade, adquiri
conhecimentos que vou levar para o resto da vida”, André Nilton.
Quando cheguei à rádio comunitária Independente FM por volta das quinze horas do dia 17 de
setembro de 2013, André Nilton estava se despedindo de um ouvinte. Tinha acabado de
apresentar o programa “Sintonia Independente”, para dar espaço ao jovem comunicador,
Emerson Pablo, que estava à espera para dar sequência à apresentação do programa “A tarde é
nossa”.
Deixamos Emerson na programação e fomos para uma sala ao lado, para uma conversa
diferente das que temos durante as reuniões, capacitações e eventos de que costumamos
participar.
André Nilton Carneiro da Conceição tem 26 anos, é diretor presidente e comunicador da rádio
comunitária independente FM e nasceu no município de Ichu, uma pequena cidade do
Território do Sisal da Bahia. Ichu está localizada entre os municípios de Candeal e Serrinha, a
180 km de Salvador e a 27 km de Conceição do Coité.
É nessa cidade com pouco mais de cinco mil habitantes que André vive até hoje. Ao caminhar
pelas ruas da cidade, além de ser muito cumprimentado pelos ouvintes, recorda-se dos temas
da infância, quando a imaginação dava vida aos brinquedos inventados por ele e os colegas.
54
- Vivi muita coisa boa na minha infância, nossas brincadeiras eram muito criativas, hoje em
dia não se tem mais esse costume de brincar de bola na rua, fazer carro de lata... A era da
tecnologia acaba tirando um pouco disso.
Como filho de agricultor, a adolescência de André também foi dedicada às atividades na
lavoura, como o plantio de milho e feijão. Foi ainda na adolescência que ele e o cunhado,
Agnoel Almeida, tiveram a ideia de fazer uma horta. Produziam uma variedade de hortaliças,
como alface, coentro, pimentão, tomate, cebolinha e couve, além de verduras, cenoura,
abóbora e batata. André e o cunhado comercializavam esses produtos orgânicos nos
domicílios do município de Ichu e quando a produção aumentava, comercializavam também
no município de Candeal.
Devido aos fortes períodos de estiagem, as aguadas da propriedade secaram. André cultivou
as hortaliças até 2002 e parou por falta de irrigação.
- Meus pais não tiveram a oportunidade de estudar, isso foi motivo para eles valorizarem o
nosso estudo e nos incentivar, embora eu não tenha me dedicado a levar adiante, só terminei o
ensino médio.
Mas a história de André não ficou apenas nas hortaliças. Quando a rádio Independente FM
surgiu no município, em 1998, André a visitava quase todos os dias. Curioso, observava cada
detalhe, como funcionava. Foi observando os outros comunicadores que ele aprendeu
controlar os canais da mesa de som.
Começou a colocar a técnica em prática quando o irmão mais velho dele, Adailton Carneiro,
passou a apresentar o programa “Acordar pra vida”. O jovem passou a acompanhar o irmão
todas as noites de quarta-feira, dia em que o programa era apresentado, para ajudar na
sonoplastia.
- Dava um trabalho danado, comparado a hoje, mas era divertido. Eu acabei tomando gosto
pela atividade. Na época, não tinha computador na rádio e toda a programação era pelo toca-
CD e fita cassete. Foi assim que fui me inserindo na programação.
A primeira participação de André como comunicador na Independente FM foi no jornal,
divulgando os destaques esportivos. Em 2004, passou a apresentar com o pai, seu Manoel
Cosme da Conceição, um programa musical na radio, voltado para a cultura do campo. O
programa tocava chula, batuque, reisado e samba de roda. Em 2012, André deixou o
programa, que continua a ser apresentado por seu Manoel.
55
- O programa hoje é bem aceito. No inicio, havia uma rejeição, principalmente dos jovens que
não valorizavam um programa dessa categoria. Eu fui o único jovem da rádio Independente a
apresentar um programa para um público idoso e com a valorização da cultura popular. A
comunicação comunitária é para toda a comunidade.
Atualmente, além de presidente da rádio, André é responsável por apresentar o jornal
comunitário todas as segundas, do meio-dia às 13 horas junto com Emerson Pablo. E de terça
a sexta-feira, do meio dia às 15 horas, André apresenta o programa “Sintonia Independente”,
que mistura música e informação. A rádio conta com uma equipe de dez comunicadores
envolvidos diretamente na produção diárias de pautas e notícias. As informações alimentam o
site da rádio (independentefm.com) que também transmite a programação ao vivo da rádio.
- Hoje muitas pessoas acompanham a programação pela internet também, com essa
alternativa, o noticiário diário é acompanhado pelo site da rádio. Como não temos estrutura e
disponibilidade de apresentar um jornal diário, apresentamos o jornal semanal com estes
destaques que foi noticiado durante a semana, essa é uma forma de manter informados os
ouvintes que não acompanham a programação pela internet.
Desde 2005, o jovem vem participando de capacitações. Começou nas que eram oferecidas
pela Abraço-Sisal, em parceria com o Moc e o Instituto Belgo-brasileiro de Cooperação para
o Desenvolvimento Social (Disop-brasil). Foi nas capacitações que André aperfeiçoou suas
habilidades de comunicador comunitário. Os cursos foram essenciais para o desenvolvimento
profissional e pessoal do jovem. Até 2008. Antes de a rádio ser legalizada, ele acompanhou os
momentos mais difíceis da emissora.
Antes da legalização, a Independente FM não tinha local fixo para funcionar. A cada visita da
Anatel e da Polícia Federal, os equipamentos eram apreendidos. E quando a radio conseguia
reabrir, já não era no mesmo local.
-Chegamos a mudar de local umas dez vezes, porque a gente não tinha sede própria. Quando
as rádios sabiam que a Anatel estava pela região, entrávamos em contato umas com as outras.
Mas, na maioria das vezes, eles chegavam de surpresa, nem todas as rádios ficavam sabendo.
Em 2005, já em processo de legalização, a radio chegou a ficar cinco meses fora do ar, depois
de ter os equipamentos apreendidos pela Anatel. A comunidade sentiu falta da rádio e
começou a cobrar dos comunicadores a volta dela ao ar.
56
- Nos mobilizamos com a comunidade e viabilizamos outros equipamentos. Voltamos ao ar
com uma programação mais curta, das 18 às 22 horas, porque o transmissor que conseguimos
era caseiro. Continuamos fazendo campanhas até que conseguimos comprar um transmissor
homologado, ou seja, com o selo de aprovação da Anatel.
A rádio funcionou com horário reduzido durante dois anos e só voltou a funcionar
integralmente após receber a outorga provisória, em setembro de 2007. A outorga definitiva
saiu cinco meses depois, em fevereiro de 2008. André se sente feliz de estar presente em 12
dos 15 anos de existência da rádio. “Minha vida profissional se resume à rádio”, diz o jovem.
A Independente FM tem um quadro de vinte comunicadores e diretores e mais de cinquenta
associados.
Todos os comunicadores são voluntários da rádio, apenas três que são comunicadores fixos,
responsáveis diretamente pela programação diária, são remunerados com uma ajuda de custo
no valor de R$ 130 e mais 30% do que arrecadam de apoio cultural, um deles é André,
“muitas vezes nós nem recebemos a porcentagem, o que entra de apoio cultural é cerca de
seiscentos reais, depende do mês”, revela André. Os demais comunicadores atuam como
voluntários a noite e nos finais de semana.
- É muito importante a comunicação comunitária aqui no município, pois me desenvolvi mais,
adquiri mais conhecimentos e até o reconhecimento das pessoas. É muito gratificante. Já
tentei sair da radio, mas tenho tanto amor pelo que faço, que não consigo me afastar, por mais
que eu tente.
Uma das atividades de que André está participando são as formações do projeto Moringa
Cultural. Desde o inicio do projeto, ele representa a Independente FM e multiplica os
conteúdos na rádio. Todas as orientações e informações que André recebe nas oficinas ele
repassa para os outros colegas da rádio, a proposta é que todos os comunicadores sejam
atendidos com os conteúdos visto que o projeto não dispõe tem verba suficiente para atender
todos os comunicadores ao mesmo tempo.
-Antes da radio, eu não tinha nenhuma perspectiva de vida. Foi na rádio que me descobri
tanto pessoalmente, como profissionalmente. Vivenciei novas experiências, viagens de
intercâmbio, construí boas relações de amizade e adquiri conhecimentos que vou levar para o
resto da vida. A comunicação comunitária nos envolve de tal maneira com as pessoas ao
nosso redor... É o reconhecimento delas é o que faz com que eu permaneça na luta, fazendo a
57
minha história. Na verdade, nunca acreditei poder fazer um bom trabalho se não tiver prazer
pelo que faço.
André representando os jovens do Território do Sisal no Fórum Social Mundial em Belém do Pará, 2009.
André na cobertura e entrega do troféu do campeão de futsal de veteranos de Ichu, 2009
58
COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÃO SOCIAL
“Passei a entender a comunicação comunitária como um terreno fértil para a juventude, um
campo de luta pela busca de incentivos de políticas públicas, um espaço desafiador”, Givaldo
Souza.
A fazenda Olhos d’Água fica a 22 km do município de Santaluz, entre as comunidades de
Miranda e Serra Branca. Foi nesse ambiente agrícola, habitado por famílias humildes e
trabalhadoras que o pedagogo Givaldo do Carmo Souza, 28 anos, cresceu ao lado dos avós
maternos, seu José Pio do Carmo e dona Ernegilda do Carmo.
A infância de Givaldo foi marcada pela valorização e respeito às tradições rurais. O vínculo
com a terra e os animais, a religiosidade, o convívio familiar e as antigas histórias contadas
pelos mais velhos ainda estão presentes na lembrança do jovem.
- Fui morar com meus avós maternos aos dois anos de idade, quando meus pais se separaram.
Eu tinha um vínculo muito grande com eles. Na casa dos meus avós moravam quatro netos,
além de mim, e ainda tinha os que chegavam para passar férias e fins de semana. Era um
ambiente muito movimentado e eu vivia naquele conforto de ter a companhia dos primos e de
meus avós, que eram meus pais também.
Givaldo estudava na comunidade de Serra Branca e participava das atividades culturais de fim
de semana na comunidade de Miranda, geralmente missas e jogo de futebol. Numa época em
que não havia transporte escolar, ele ia a pé todos os dias para a escola que ficava a 5 km de
sua casa.
59
-Era difícil encarar o desafio, mas se tornava divertido porque íamos eu e mais um grupo de
10 adolescentes.
Aos 16 anos, quando ainda estudava em Serra Branca, Givaldo ingressou no grupo de jovens
da igreja católica da comunidade de Miranda. O jovem - que sempre gostou de ler e reunir
conteúdos temáticos para discutir com os colegas - logo passou a acompanhar o grupo e
conhecer a Associação de Moradores e Pequenos Produtores de Miranda (AMPPM), que
propôs a ele trabalhar com os jovens temas como sexualidade, doenças sexualmente
transmissíveis (DST’s) e planejamento familiar.
A associação propôs esses temas após perceber os altos indícios de gravidez precoce na
comunidade. O que aconteceu de forma espontânea foi como uma chave abrindo as portas
para Givaldo enxergar a importância de reunir os jovens para discutir assuntos que pudessem
contribuir no dia-a-dia deles.
Os jovens da comunidade de Miranda eram carentes de espaço para se comunicar. O grupo de
jovens foi a oportunidade de se encontrarem para discutir temas que contribuíssem com o
conhecimento de suas realidades, limitações e potencialidades.
Antes de conhecer a associação, Givaldo tinha a visão de que era um espaço apenas para
idosos. De fato, ele não estava pensando errado. A juventude da comunidade ainda não havia
se inserido naquele espaço, o público da associação eram os pais, avós, tios e tias dos jovens
que participavam do grupo.
-Todos nós pensávamos assim, não queríamos saber de associação, todo final de semana a
gente ia para a comunidade jogar futebol, paquerar as meninas... até que um dia provoquei um
colega, Plenildo Reis: “Vamos lá na associação?”
- Ah, mas lá só tem velho, o que a gente vai fazer lá?, indagou o colega.
- Mas vamos assim mesmo, insistiu Givaldo.
Quando chegaram à associação, a comunidade estava debatendo a situação do lixo na
comunidade, pois estava sendo jogado numa localidade indevida e acabava retornando para a
rua. Nesse dia, Givaldo teve o primeiro choque da realidade social em que vivia.
60
- Percebi que velho era o meu modo de pensar, apesar de eu ter 17 anos. A comunidade
debatia um assunto que era do meu interesse e eu, enquanto cidadão e um ser social daquela
comunidade, deveria estar preocupado com o problema que também era meu.
Em 2001, Gilvado passou a morar na sede do município para cursar o ensino médio, mas não
cortou os laços com sua comunidade de origem. Continuou desenvolvendo os trabalhos com
os adolescentes e jovens e participando das reuniões da associação, à qual se filiou, em 2003.
O jovem não conhecia, na região e no município de Santaluz, outros grupos organizados de
jovens. Mas, em 2004, foi convidado a participar do coletivo de jovens da sede do município,
para o qual o Moc e o Unicef capacitavam lideranças comunitárias.
Ele foi conhecer o coletivo e apresentar o trabalho que já desenvolvia na comunidade de
Miranda. A reunião aconteceu no dia da constituição de uma coordenação do coletivo da qual
o jovem foi convidado a fazer parte.
- Fiquei assustado, inicialmente, porque ainda estava conhecendo o grupo e já fui logo
convidado a uma responsabilidade. Mas era um processo novo para todos os jovens que ali
estavam, então aceitei.
Assim como em Santaluz, em outros municípios do Território do Sisal também havia jovens
organizados em coletivos que formavam uma rede articulada por um coletivo regional de
coordenadores de coletivos municipais e compostos por jovens lideranças que representavam
outras organizações comunitárias, como igrejas, associações, rádios comunitárias e demais
segmentos sociais.
Na coordenação do Coletivo Municipal de Jovens de Santaluz (CMJS), Givaldo passou
também a acompanhar o Coletivo Regional de Juventude e Participação Social (CRJPS).
- Nós conseguimos muitas conquistas interessantes, tanto em nível de território como de
municípios, mas considero que a principal conquista começa pela capacidade de mobilização
e organização que nós tivemos para nos reunir e pensar o que almejávamos para o segmento
juvenil, deixamos de ser passivos para sermos ativos.
Os coletivos municipais de jovens são o resultado do aprofundamento da temática de
juventude, que se inseriu no Moc desde o programa “Jovens Escolhas”, em parceria com o
Instituto Credicard, de 2001 a 2003, dando origem ao projeto “Comunicação Juvenil”.
61
A temática da juventude foi aprofundada, entre 2004 e 2006, por meio do Projeto Juventude e
Participação Social (PJPS), com o apoio do Unicef e do Movimento Sindical de
Trabalhadores/as Rurais dos Territórios do Sisal e Bacia do Jacuípe, dando origem à formação
dos Coletivos Municipais de Jovens. Os coletivos são um espaço de representação e inserção
de jovens no controle social e monitoramento das políticas públicas e de incentivo ao
empreendedorismo econômico e social.
Givaldo é um dos jovens que fizeram valer a proposta do coletivo. Além de continuar
coordenando o grupo na comunidade, passou de apenas sócio a diretor da associação
comunitária e passou a integrar a central das associações, que é o Centro de Apoio aos
Interesses Comunitários (Ceaic).
A Agência Mandacaru de Comunicação e Cultura (Amac) foi a primeira experiência de
entidade regional formada por lideranças juvenis que ele conheceu. A Amac já tinha uma
parceria com o coletivo regional e nos coletivos também havia jovens fundadores da agência.
- Passei a entender a comunicação comunitária como um terreno fértil para a juventude, um
campo de luta pela busca de incentivos de políticas públicas, um espaço desafiador. Então,
passei a ter contato com os diretores da Santaluz FM nas reuniões do Ceaic e buscar formas
de contribuir com a rádio.
Como todas as rádios comunitárias do Território do Sisal, a Santaluz FM é composta por
representações de organizações sociais da comunidade e, naquele momento, ainda não existia
uma representação do coletivo de jovens na rádio. Givaldo tornou-se um entusiasta e militante
daquela causa. Inseriu a proposta de representação juvenil, por entender que a comunicação
comunitária é um espaço de luta pela propagação dos ideais da sociedade.
Em 2008, o jovem foi selecionado como estagiário no Programa de Políticas Públicas do
Moc, onde atuou no projeto Juventude e Cidadania no Sertão da Bahia. Fruto de uma parceria
entre a Fundação Citi com o apoio do CRJPS. A fundação é uma organização social do
Citibank, e financia projetos nas áreas de educação financeira, reforço ao ensino básico e
profissionalizante, empreendedorismo, desenvolvimento sustentável de comunidades, meio
ambiente e cultura, buscando contribuir com o desenvolvimento das comunidades e famílias.
O projeto possibilitou a qualificação de 30 jovens, envolvendo dez municípios do semiárido
baiano.
62
As atividades com os jovens envolviam uma metodologia contextualiza, despertando a
valorização do potencial artístico, cultural e econômico da região. A principal proposta do
projeto foi formar jovens multiplicadores das ações aprendidas, valorizando e promovendo a
cidadania.
Em 2009, quando o programa deixou de chamar Políticas Públicas para se tornar o Programa
Especial de Juventude, Givaldo passou a ser educador social. Nesse período, o jovem já era
diretor da rádio Santaluz FM. Na ocasião, reuniu os jovens, que solicitaram um espaço para o
coletivo apresentar o programa de radio “Fala Juventude”, que foi ao ar no mesmo ano. Em
2010, ele assumiu a coordenação do programa, permanecendo até abril de 2013.
Atualmente, Givaldo é diretor de cultura e comunicação social da radio. O “Fala Juventude”
ainda é apresentado na Santaluz FM e acontece com a mesma dinâmica de mobilização
juvenil. Os jovens contam com um espaço a mais para divulgar suas propostas, chamar a
juventude a participar do coletivo e informar suas ações. Além disso, funciona como espaço
de interação dos jovens. Respaldado pela radio, Givaldo se filiou à Amac, em 2010, e
atualmente também integra a diretoria da Mandacaru.
- Reconheço na Santaluz FM e na Amac duas representações onde eu me inseri como uma
oportunidade a mais de defesa da cidadania. Nesses espaços de comunicação comunitária,
passei a ser porta-voz de uma comunidade mais justa. Na radio comunitária, nos preocupamos
em ter uma programação comprometida com a educação, o bem estar social e os princípios da
ética de da justiça. Na Amac, a gente defende uma comunicação pautada no desenvolvimento
do território, no respeito às pluralidades e ideais que buscam respeitar toda a formação na qual
a comunicação foi moldada nos movimentos sociais.
Givaldo dissemina a comunicação comunitária nos espaços onde atua com os jovens.
Atualmente, coordena o departamento de Educação da Associação das Cooperativas de Apoio
à Economia Familiar (Ascoob) e faz parte da Secretaria de Juventude da União de
Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária do Estado da Bahia (Unicafes-
bahia).
- A comunicação precisa continuar sendo enxergada como um direito de todos e ser defendida
também nas instituições. Definitivamente, não me vejo sem a comunicação comunitária. Seria
como se me faltasse uma voz que é livre espontânea, uma voz que é convidada a falar. É
63
como se fechassem uma porta que nós abrimos com muito esforço. Na comunicação
comunitária, nós temos a valorização de um povo do que é gente como a gente.
Givaldo Souza, durante as Conferências Livres de Juventude, na IV Jornada Nacional da Juventude Rural que ocorreu em setembro de 2010 em Domingos Martins, Espírito Santo.
Givaldo Souza apresentando os resultados do Programa Empreendedorismo do Jovem Rural (Pejr), durante a formatura da primeira turma de Jovens Agentes de Desenvolvimento Rural (ADR), em Junho de 2011, no município de Retirolândia.
64
Apresentando as experiências de juventude do Território do Sisal da Bahia durante a V Jornada Nacional do Jovem Rural em Bocaiuvas do Sul, Paraná, 2013.
Givaldo em reunião com jovens representantes dos coletivos municipais de jovens do Território do Sisal.
65
EM DEFESA DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS E JOVENS
“Temos muitos desafios ainda, mas são os desafios que nos impulsionam. Eu defendo que nós
somos protagonistas porque nos tornamos sujeitos transformadores da realidade onde
vivemos”, Laudécio Silva.
Quando Laudécio Carneiro da Silva, 24 anos, chegou à Agência Mandacaru, em 2009,
estávamos realizando um processo de formação de jovens em comunicação comunitária e
cultura, do qual ele também participava. A formação foi desenvolvida pela agência e o Moc,
em parceria com o Coletivo Regional Juventude e Participação Social (CRJPS).
Iniciamos as atividades em janeiro e, um mês depois, Laudécio recebeu o resultado do
vestibular. Havia passado em primeiro lugar para o curso de Comunicação Social do campus
XIV da Uneb, em Conceição do Coité.
O jovem morava na comunidade de Lagoa Grande, na zona rural, 18 km distante do
município-sede Retirolândia. Por isso, precisava de apoio para levar adiante os estudos, caso
contrário teria que se mudar para Conceição do Coité e morar na residência da universidade.
A Agência Mandacaru, a principio, não teve conhecimento da realidade de Laudécio.
Emanoel Sobrinho, que naquele ano ainda coordenava a equipe de Juventude do Moc e
acompanhava o Coletivo de Jovens em Retirolândia, relatou para mim as dificuldades que
Laudécio enfrentava para começar a estudar e me perguntou se não era possível apoiarmos ele
pela Mandacaru, pelo menos nos primeiros meses, até ele conseguir um lugar para ficar, já
que na agência tinha um estrutura suficiente de refeitório, banheiro e espaço para montar um
dormitório.
66
Eu disse que sim e, depois de uma conversa com toda a equipe da diretoria, deu tudo certo.
Laudécio morou dois anos na Agência Mandacaru para garantir seus estudos, permanecendo
no município e desenvolvendo as atividades sociais de que já participava no coletivo de
jovens.
Mas a história de inserção social dele não começa aí. Laudécio viveu até os 19 anos em Lagoa
Grande, com avós maternos, seu Albino Carneiro da Silva e dona Eulália da Silva. Quando
criança, teve muitos momentos de lazer com os colegas, mas parte da infância foi
interrompida aos oito anos, quando começou trabalhar na roça com o avô.
- Eu achava que trabalho era uma forma de diversão, acompanhava meu avô para a roça,
geralmente para ajudá-lo a cuidar dos animais e trabalhar na capina do plantio de feijão, milho
e mandioca. Geralmente, aos sábados pela manhã e algumas tardes, porque nos outros dias
tinha a escola.
Laudécio nunca deixou de frequentar a escola. Mas no período em que ia para a roça, acabava
indo também para o motor de sisal, ajudava a cortar e colocar a palha para cevar. “Era mesmo
uma ajuda porque eu era muito pequeno”, lembra o jovem.
- Meus avós não me obrigavam a trabalhar, mas também não impediam. Para a cultura deles,
o trabalho é um instrumento de formação e não de exploração. Eu ia porque via meus amigos
trabalhando e ganhando dinheiro. Assim como meus amigos, eu compreendia o trabalho como
um meio de conseguir comprar o que tinha vontade, já que meus avós não tinham condições
de dar tudo que eu precisava.
Mesmo trabalhando na infância, Laudécio buscava tempo para brincar com os colegas. Como
a comunidade era carente de opções de lazer, a solução era sempre criar estas alternativas.
Aos nove anos, ele idealizou um grupo de esporte mirim na comunidade e reunia os colegas
para jogar bola sempre que sobrava um tempo extra entre a escola e a roça.
Em 2001, aos 12 anos, Laudécio foi contemplado no Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil (Peti). Passou a frequentar o programa no turno oposto à escola regular, mas ainda
continuou trabalhando nas férias e feriados.
Na medida em que frequentava o Programa, aos poucos foi trocando os campos da roça e do
sisal pelo teatro do Peti e o Baú de Leitura, que incentivava a prática e o prazer de ler e de
estudar. Os livros eram lidos e encenados no teatro, trazendo as histórias para a realidade dos
alunos. Assim, Laudécio foi planejando seu futuro e escrevendo sua trajetória de vida. “Passei
67
a questionar qual era o meu sonho, o que eu queria para minha vida... questões que antes eu
não me fazia”, diz o jovem. O contato com outras ferramentas de aprendizagem no Peti foi
uma forma de Laudécio sair do trabalho infantil e lutar conta essa prática.
Em 2004, aos 15 anos, ele ajudou a fundar na comunidade o Grupo de Arte Popular, o qual
coordenou por três anos. O grupo fazia parte das ações do Movimento das Comunidades
Populares (MCP), que tinha uma sede em Feira de Santana e atuava também na comunidade
de Lagoa Grande. O MCP é um movimento marcado por princípios, objetivos e valores
voltados para o desenvolvimento cultural e social através da união popular e lutas coletivas. O
grupo de Arte Popular busca promover a expressão de adolescentes e jovens através da dança
e teatro, além de promover rodas de conversa sobre temáticas cotidianas com os jovens acerca
de drogas, sexualidade, família, convivência social, cidadania e religiosidade.
- Atualmente, meu envolvimento com o grupo é mais como apoio, é um grupo de 30 jovens e
a cada 15 dias tem reuniões para discutir questões comunitárias, além de ensaiar as
apresentações. Sempre que eu posso, estou junto com eles.
Quando Laudécio deixou o Peti, aos 16 anos, ele não ia trabalhar no turno oposto à escola.
Ficava estudando e já pensando em fazer o vestibular. Em 2008, através do Grupo de Arte
Popular, conheceu o Coletivo de Jovens de Retirolândia, quando iniciou a qualificação de
jovens no projeto Juventude e Cidadania no Sertão da Bahia. O projeto foi uma parceria entre
a Fundação Citi e o Movimento de Organização Comunitária com o apoio do Coletivo
Regional de Juventude e Participação Social (CRJPS).
- Eu estava muito focado em meus estudos e no dia da seleção para o projeto, tinha perguntas
sobre metas em curto, médio e longo prazo. Eu respondi em uma delas: concluir o ensino
médio, fazer o vestibular e passar em primeiro lugar. Eu entrei no projeto e continuei focado
no vestibular. No final de 2008, fiz a prova do vestibular e passei em 1° lugar. Fiquei muito
feliz e realizado, porque coloquei meu sonho como meta e consegui.
Enquanto esteve no projeto e na escola, Laudécio morava na comunidade, mas quando passou
no vestibular, veio o desafio. Ele não tinha transporte disponível da comunidade para sair
todas as manhãs para Conceição do Coité nem recurso financeiro suficiente para pagar um
transporte alternativo. Foi então que surgiu a oportunidade de ficar na Agência Mandacaru.
- Recebi o apoio da Agência Mandacaru para morar e aprimorar minhas experiências. A partir
da formação em comunicação e cultura com os jovens dos coletivos da região, eu me inseri na
equipe da Mandacaru e fui me envolvendo além do curso. Comecei a participar dos debates
68
sobre a comunicação no território, espaços como o Conselho Regional de Desenvolvimento
Rural Sustentável da Região (CODES-Sisal), Comitê pela Democratização da Comunicação
no Território do Sisal, conferências de Comunicação, capacitações, viagens para outros
estados, inclusive para o Distrito Federal, para representar a Bahia na linha dos debates sobre
comunicação e juventude.
Laudécio também assumiu a coordenação do coletivo de jovens de Retirolândia, no final de
2009. Na Mandacaru, além de ocupar espaços de debates territoriais, passou a desenvolver
atividades em outras áreas de comunicação. Além do rádio, vídeo, jornal e fotografia.
A inserção de Laudécio no Coletivo de Jovens e na Agência Mandacaru foi mais um espaço
de realização e descoberta. Desde quando morava na comunidade, ele vivia com as limitações
de acesso às tecnologias. Comentar em sua casa que um dia ia ter acesso à faculdade,
computadores, mídias digitais, era sonhar alto demais para a família de Laudecio.
- Eu pensava que não podia ser uma limitação, que eu precisava alcançar tudo isso, e eu
alcancei muito mais do que eu imaginava, sorri.
Alcançamos. Afinal, também faço parte dessa história, embora um pouco antes de Laudécio.
Sou a única do grupo de 19 jovens que fundaram a Agência Mandacaru que ainda permanece
lá desenvolvendo atividades. Os demais encontraram outras oportunidades, fizeram suas
escolhas e hoje só estão como sócios, à exceção de Nayara, que também acompanhou todo o
processo de iniciação, mas na época representava o Moc.
Durante nove anos de Agência Mandacaru, vi muitos colegas se despedirem. A Agência é um
espaço de formação de jovens para trilhar seus próprios caminhos, no entanto muitos não
permanecem na instituição porque ainda convivemos com os desafios de sustentabilidade. A
falta de recursos financeiros para remunera-los é a maior causa de evasão destes jovens.
Alguns fizeram outras escolhas fora da área de comunicação, outros encontraram melhores
oportunidades de trabalho e outros formaram família e tiveram que morar distante. Foi assim
que aconteceu com Rose Rios, que casou meses antes de Laudécio chegar à Amac e foi morar
no Sul da Bahia.
Quando Laudécio chegou, passou a ser meu companheiro de atividades. Percorremos muitas
estradas pelo Território, participando de eventos e atividades, soltamos altas risadas no
estúdio de rádio, quando errávamos o texto, gravando as campanhas como as de economia
solidária e comércio justo, de criança e adolescente, agricultura familiar e as campanhas do
Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC).
69
Naquele período, tínhamos a companhia também da colega Gilda Cunha, de Valente, que
participou da formação, em 2009, e permaneceu como colaboradora. Sua frequência na
Mandacaru era menor, porque na época ela cursava Licenciatura em Educação do Campo na
Universidade Federal da Bahia (Ufba). Como o curso era modular, ela passava um mês em
Salvador e outro na região. Hoje Gilda é professora na Escola Família Agrícola (EFA) de
Valente.
Em 2010, quando a Agência Mandacaru foi reconhecida pela segunda vez como uma das
melhores práticas territoriais no II Salão Nacional dos Territórios Rurais da Cidadania,
promovido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em Brasília, eu e Laudécio
viajamos juntos para apresentar a experiência da Agência Mandacaru no evento e também
fazer a cobertura radiofônica.
Lorena Amorim, que fazia parte do Programa de Comunicação do Moc, teve horário de voo
alterado e precisou embarcar primeiro. Gilda teve que ficar em Salvador para ir no dia
seguinte, por problemas na emissão da passagem. E como esquecer meu choro desesperado
por partir com Laudécio e deixa-la só, sem saber quando a produção do evento iria resolver o
problema e, ao mesmo tempo, sem saber como Lorena ficaria. Sequer fiz boa companhia a
Laudécio, que estava fazendo sua primeira viagem de avião. A sorte é que, ao contrário de
mim, ele é muito tranquilo, mas deu tudo certo.
2010 também foi um ano de mais descobertas para Laudécio, com a passagem dele como
jovem comunicador do projeto ‘Comunicação pelos Direitos” na Região Sisaleira, executado
pelo Moc e financiado pela Petrobrás. O projeto está presente em dez municípios do Território
do Sisal, garantindo o fortalecimento dos direitos das crianças e adolescentes e qualificando
jovens para atuarem na mobilização e garantia dos direitos, através da rádio poste, que é
implantada em uma comunidade de cada município onde o projeto funciona.
Em Retirolândia, a comunidade de Lagoa Grande foi contemplada com a rádio poste, no
período em que Laudécio esteve no projeto, por isso ele pôde frequentar a comunidade de
origem mais vezes.
- A Agência Mandacaru e o projeto me ajudaram ainda mais a compreender melhor a
realidade e querer defender os direitos de outros sujeitos. Na comunidade, tínhamos a
necessidade de valorizar nossas raízes, propor melhorias na qualidade de vidas das pessoas,
então, nesse processo, eu descobri que a comunicação é fundamental e deve ser usada para o
bem da comunidade.
70
Em cada município são dois jovens comunicadores, um fica mais presente na sede do
município, outro na comunidade. Essa é uma forma de disseminar as ações do projeto em todo
o município, não concentrando apenas na comunidade. Laudécio ficava mais na sede e
desenvolvia as atividades com o parceiro de projeto, Bruno Santiago, que ficava na
comunidade tomando conta da rádio poste.
A passagem de Laudécio pelo projeto lhe permitiu continuar defendendo os direitos dos
meninos e meninas de Retirolândia. Em 2011, ele participou da seleção para conselheiro
tutelar, a eleição ocorreu em 2012 e, mais uma vez, ele foi o dono do primeiro lugar.
- Como meu desejo era sempre de lutar pelos direitos da criança e do adolescente, surgiu essa
oportunidade e eu contei com o apoio da Agência Mandacaru, da minha família e de amigos.
Fiz a prova e fui selecionado para concorrer à vaga de conselheiro tutelar no município. E fui
eleito em primeiro lugar, com 424 votos.
A quantidade de votos, suficiente para eleger um vereador no município, foi o
reconhecimento da população ao trabalho de Laudécio no âmbito da comunicação
comunitária. “A comunicação comunitária me ensinou ouvir e enxergar a realidade mais de
perto”, diz Laudécio. O jovem ocupou espaço no município e no território, cobrou e defendeu
os direitos não apenas das crianças e adolescentes, mas das famílias e o desenvolvimento do
território. Vestir a camisa do Conselho Tutelar, para Laudécio, não era apenas assumir um
cargo, muito menos estar representado. Mas realizar mais um de seus sonhos, o sonho do
menino que na infância trabalhou nos campos do sisal e na lavoura de milho, feijão e
mandioca e que agora passara a defender os direitos das crianças e adolescentes.
- Deixei a Agência Mandacaru em tempo integral e passei a assumir o Conselho Tutelar.
Depois de um ano de atuação no Conselho, fui deslocado para a Secretaria de Assistência
Social, onde atuo na área de coordenação de projetos e lá estou desenvolvendo um trabalho de
defesa e garantia dos direitos das crianças e adolescentes com ciclo de oficinas nas escolas.
Esse é o primeiro contato direto com as crianças, até porque na secretaria tenho uma abertura
de trabalhar com crianças e adolescentes e levar adiante o desejo que eu sempre tive, que é
lutar pela garantia dos direitos dos meninos e meninas
Uma das ações pontuais que Laudécio colabora na Agência Mandacaru é a representação nas
reuniões do Comitê Gestor Estadual do Pacto “Um Mundo para a Criança e o Adolescente do
Semiárido”. A Agência integra o comitê desde 2009 e, pelo terceiro ano consecutivo,
contribui com a realização do Encontro “A voz dos Adolescentes do Semiárido”. Além da
71
participação nos debates, na construção de propostas e deliberações de comunicação
territorial, Laudécio ainda colabora em ações concretas de mobilização, produção de materiais
de comunicação para as entidades, assessoria ao movimento social e o fortalecimento das
rádios comunitárias.
- Hoje a comunicação comunitária faz parte da minha vida, tanto no campo profissional como
pessoal. Logo quando comecei a estudar, cheguei a pensar em sair do município, mas hoje
reconheço que aqui dá para viver e é aqui que estão minhas raízes. Penso que se eu tiver que
sair, será para estudar e voltar para colocar em prática aqui. Temos muitos desafios ainda, mas
são os desafios que nos impulsionam. Eu defendo que nós somos protagonistas porque nos
tornamos sujeitos transformadores da realidade onde vivemos.
Laudécio aos 9 anos de idade com os colegas do time e futebol mirim da comunidade de Lagoa Grande
72
Laudécio e Camila recebendo jovens de Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Pernambuco, no III Intercâmbio da Juventude Rural Brasileira, em 2010, realizando pelo Instituto Souza Cruz em parceria com o MOC.
Laudécio com educadores e as crianças do projeto Comunicação Pelos Direitos em Lagoa Grande, 2010.
73
Laudécio representando o Coletivo de Jovens durante a terceira Conferência Municipal de Juventude de Retirolândia realizada pelo Conselho Municipal de Jovens, em 2011.
Realizando oficina de Comunicação e Cultura para adolescentes e jovens de Acupe - Santo Amaro, 2012.
74
Capítulo III
PROTAGONISTAS DE UM NOVO TEMPO
75
A VOZ JOVEM DE RIBEIRA
“Sempre tive vontade de fazer algo pela minha comunidade, mas não tinha conhecimento nenhum,
nunca tinha sequer saído de Araci. Minha vida começou a desenvolver a partir do momento em que
entrei no Projeto Comunicação pelos Direitos, em 2010”, Alex Junqueira.
Conheci a comunidade de Ribeira, no município de Araci, em setembro de 2007. Minha ida à
comunidade tinha uma razão específica: fotografar as crianças que seriam cadastradas no
projeto “Parceiros por um Sertão Justo”, desenvolvido pelo Movimento de Organização
Comunitária (MOC), em sete municípios do Território do Sisal. O projeto contribui com a
situação econômica, social e educacional de famílias, propondo o fomento à convivência com
o semiárido a partir dos princípios da agroecologia, da economia justa solidária e de uma
educação contextualizada e de qualidade.
Ao longo desses seis anos, já retornei a Ribeira várias vezes, para atividades do projeto. Mas a
primeira vez ficou marcada pela expressão das 200 crianças que se reuniam a minha volta
para ver a câmera fotográfica em cima do tripé que eu armei na rua, em frente à escola.
Nessa comunidade, carente de informação e de políticas públicas de educação, saúde e lazer,
distante 24 km do município-sede, o jovem, Alex Junqueira Oliveira, de 24 anos, tem usado a
comunicação comunitária para contribuir com a qualidade de vida das famílias da região.
Como a maioria dos jovens do Território do Sisal, Alex também é filho de agricultor e teve
uma infância dividida entre a escola e a roça, onde ajudava os pais na época de colheita.
- Venho de uma família carente. Meu pai sempre trabalhou na roça para sustentar nossa
família. Eu e meus três irmãos também ajudávamos com o trabalho na lavoura, em épocas de
76
plantio e colheita. Ele e minha mãe sempre nos incentivaram a estudar, embora eu fosse muito
preguiçoso na escola, sorri.
Viver em uma comunidade de difícil acesso e num território distante da sede do município
restringiu a vida social do jovem, que não teve muitas opções de lazer ou de convivência
social. Por causa dessas mesmas condições, ele viu de perto uma realidade de êxodo rural bem
marcante, devido à falta de trabalho e às condições pouco viáveis de sobrevivência das cerca
de 400 famílias de Ribeira.
- Perdi muitos amigos de infância, que saíram para São Paulo. Nenhum vive mais em Ribeira.
Aos 19 anos, Alex começou a participar mais ativamente da comunidade. Antes disso, só
acompanhava a mãe, dona Naciza Junqueira, à igreja evangélica. O primeiro contato com a
comunidade, além da escola, foi com a associação comunitária onde participava das reuniões
e das tomadas de decisões para a comunidade. No mesmo período, Alex conheceu também
Associação dos Agricultores Familiares do Município de Araci (Apaeb).
O contato com a Apaeb teve efeitos positivos na vida de Alex. Quando o projeto
Comunicação Pelos Direitos (CPD) iniciou-se, em 2010, Araci foi um dos municípios
contemplados e Alex foi um dos jovens da comunidade indicados pela Apaeb a participar do
processo seletivo.
- Sempre tive vontade de fazer algo pela minha comunidade, mas não tinha conhecimento
nenhum, nunca tinha sequer saído de Araci. Minha vida começou a desenvolver a partir do
momento em que entrei no Projeto Comunicação pelos Direitos, em 2010. A prova foi em
Conceição do Coité e eu não conhecia nada na região, foi a primeira vez que fui em Coité, fiz
a entrevista e a prova e passei na seleção.
O projeto Comunicação Pelos Direitos contribui para o fortalecimento dos direitos das
crianças e adolescentes da região sisaleira da Bahia por meio da qualificação profissional de
jovens comunicadores comunitários e da democratização da comunicação.
Para disseminar essa ideia, em cada município é escolhida a comunidade com maior índice de
violação dos direitos das crianças, de difícil acesso e carente de novas tecnologias. As
comunidades são escolhidas com a participação de organizações sociais e secretarias
municipais de educação e assistência social dos municípios.
A comunidade de Ribeira foi contemplada com a radio poste. Foi durante a realização do
projeto que conheci Alex. A primeira atividade que desenvolvi foi a produção radiofônica no
77
mês de setembro de 2010. Ele era o mais tímido da turma de 20 jovens. O projeto foi
primordial para o jovem ocupar outros espaços. Hoje ele faz parte da diretoria da associação
comunitária de Ribeira.
- Me desenvolvi bastante. A primeira vez que eu fiz uma entrevista na radio poste, eu tremia.
[sorri] Tinha dificuldade para me expressar em publico e meu envolvimento com o projeto me
ajudou a superar a timidez. Hoje eu sou mais participativo, cobro os meus direitos de cidadão
e faço palestras sobre garantia de direitos na comunidade.
Até 2010, as famílias de Ribeira eram carentes de informação. Alcoolismo, drogas e
prostituição eram as piores formas de violação dos direitos que atingiam meninos e meninas
da comunidade. Em minhas idas à Ribeira, lembro ter encontrado meninas de 13 anos
grávidas e algumas entre 15 e 16 anos já na segunda gestação. A falta de escolas de qualidade
e com maior número de salas para atender a quantidade de alunos naquela comunidade
também era preocupante. As crianças estudavam em locais indevidos, coladas em bares de
ambos os lados, o que as deixava mais vulneráveis.
Naquele mesmo ano, quando a radio poste do projeto começou a funcionar na comunidade, o
primeiro impacto foi a reação das pessoas ao verem os equipamentos. Jovens e crianças não
tinham acesso a computador, tampouco a aparelhos sonoros daquele porte. Visitavam a radio
para ver como funcionava o notebook. “Eu também nunca tive computador, o primeiro a
chegar na comunidade foi o notebook da radio”, lembra Alex.
Quando iniciou as atividades de comunicação comunitária, Alex chegou a ser ameaçado pelas
famílias de Ribeira, porque ele cobrava a presença do Conselho Tutelar na comunidade.
- As pessoas da comunidade achavam que o Conselho Tutelar existia para punir, prender os
pais e tomar as crianças deles, pra você ter uma ideia do quanto a comunidade era carente de
informação.
Depois que Alex relatou esse fato, lembrei que ao retornar à escola de Ribeira, em 2009, para
fotografar mais crianças para o projeto “Parceiros por Um Sertão Justo”, uma delas tinha
faltado à aula. Ao chegar ao povoado, encontrei a criança e os irmãos brincando próximos a
uma porteira que ficava a uns 100 m da casa deles. Mas quando o motorista do Moc parou o
carro, todas saíram correndo e gritando: “É o Conselho Tutelar!”. Foi constrangedor e, ao
mesmo tempo, engraçado.
78
Consegui fazer a foto da menina depois de ter ido à ela conversar com a mãe e as crianças.
Cheguei a questionar se tinham medo e expliquei o que é um conselho tutelar. Disse que o
Conselho não é um órgão que está contra eles e sim para contribuir com a proteção delas e a
garantia dos direitos de todas as crianças e adolescentes do município, direito a escola, a
saúde... A mãe das crianças disse conhecer, mas não sabia por que elas tinham medo. Orientei
a ela que conversasse com os filhos e ao retornar a escola contei o caso a diretora e propus a
ela que viabilizasse a presença de um conselheiro na escola para conversar com as crianças,
inclusive com a presença dos pais. Não cheguei a questionar depois se esse momento
aconteceu.
- Através do projeto, busquei a parceria com o Conselho Tutelar, que hoje está bem mais
presente na comunidade e já não existe tanto essa repressão das famílias, conta Alex.
Durante os três anos de implantação do projeto, Alex tem feito a comunicação comunitária a
partir da radio poste, buscando fortalecer a comunidade e mobilizar as famílias a participar e
cobrar dos representantes seus direitos que ainda não foram assegurados. O jovem vem
buscado sensibilizar e informar a comunidade.
- Hoje a comunidade já tem uma boa relação com os órgãos públicos e sociais. As famílias já
estão sensibilizadas sobre a garantia dos direitos e já entendem que a função do projeto é
contribuir para que estes direitos sejam assegurados. Meu papel como jovem comunicador é
contribuir para isso, informando e garantindo que a comunidade também possa se expressar.
Alex tem utilizado a radio também como um instrumento de diálogo com as famílias de
Ribeira. Foi graças à revindicação das famílias e do jovem, feita pela radio poste, que a
comunidade está ganhando uma nova escola, com oito salas, cozinha, banheiros e toda
infraestrutura para atender a demanda das crianças e adolescentes.
O jovem, que antes vivia alheio aos problemas da comunidade, atualmente é uma referência
local. A comunicação comunitária tem sido fundamental para o envolvimento e o
amadurecimento da população jovem. “Hoje a comunidade está em fase de desenvolvimento”,
sorri Alex, que tem o sonho de fazer faculdade de Administração.
Apesar de toda a mobilização, ainda é possível encontrar o êxodo rural e a violação dos
direitos dos meninos e meninas. “Não depende só de nós, nosso papel é mobilizar para que os
direitos sejam assegurados”, resume Alex.
79
- Busco incentivar os jovens a fazer uma escolha mais consistente, porque geralmente quando
eles saem da comunidade, vão aventurar e as oportunidades não são iguais para todos. O
mesmo faço com as famílias, oriento-as para uma convivência mais harmoniosa e protetora. O
projeto vem tendo bons resultados e tem surpreendido as famílias, a comunidade e a mim,
muito mais. A comunicação comunitária é importante no nosso dia-a-dia porque contribui
para mudar a realidade da comunidade.
Atividades de campo na comunidade de Ribeira, Aléx com Nayara e o Educador da Escola da Comunidade, 2013
Crianças que participam das atividades do Projeto Comunicação Pelos Direitos da comunidade de Ribeira no município de Araci, 2013.
80
COMUNICAR É PROGREDIR
“A comunicação comunitária pra mim é uma conquista, eu realmente não imaginava que a
comunicação comunitária poderia me proporcionar outra dimensão de convivência social,
valorização e de respeito ao próximo”, Adriano Cavalcante.
Conheci Lagoinha dos Cágados, no município de Quijingue, com a mesma finalidade com
que conheci a comunidade de Ribeira, em Araci: fotografar as crianças do projeto “Parceiros
Por um Sertão Justo”. Chegar a Lagoinha não é tão difícil, mas em se tratando de dias de
chuva, o caso se complica pela quantidade de lama que se forma na estrada e pela corrente do
riacho, que acaba interditando a passagem.
Lagoinha fica a 24 km de Quijingue. É lá onde mora Adriano Cavalcante Dias, 28 anos.
Conheci Adriano ao visitar a comunidade, em 2007. Naquele período, ele era jovem
mobilizador do projeto “Prosperar”, do programa de fortalecimento da Agricultura Familiar
do Moc, em parceria com a Secretaria do Trabalho e Ação Social (Setras) e a Secretaria de
Estado e Ação Social do Ministério da Previdência Social (Seas).
O projeto foi implantado em 2001, com o objetivo de criar condições sustentáveis para as
famílias, principalmente as que são atendidas pelo Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil (Peti), buscando promover alternativas de geração de renda na região e a garantia da
manutenção das crianças na escola.
Nos municípios onde havia o projeto “Prosperar”, os jovens eram responsáveis por mobilizar
também as famílias para o projeto “Parceiros Por um Sertão Justo”. Sempre que chegávamos
81
a Lagoinha dos Cágados, éramos recepcionados por Adriano, que nos esperava na escola com
as crianças prontas para fazer a tarefa do projeto, e depois por dona Joana Cavalcante, a mãe
de Adriano, que nos recebia em seu humilde lar com um belo almoço. Depois seguíamos para
Lagoa do Junco, a 6 km de Lagoinha dos Cágados, para darmos continuidade ao trabalho.
Em Lagoa do Junco, Adriano usa a rádio poste para promover os direitos das crianças e
adolescentes e de toda a comunidade.
Mas não foi em Lagoinha dos Cágados que ele viveu desde a infância. Até os doze anos, ele
morou na capital, Salvador, onde estudou da primeira à quarta série, e em 1998 foi com os
pais para Euclides da Cunha, onde passou mais um ano e estudou a quinta série do ensino
fundamental.
- O que mantinha minha família em Salvador era o trabalho. Meus pais tomavam conta de
uma chácara. Quando saíram de lá, resolveram ir para Euclides para tentar outro emprego,
pelo fato de lá ser uma cidade maior, mas como não deu certo, viemos para Lagoinha dos
Cágados, em 1999, onde permanecemos até hoje.
Adriano é o mais velho dos três filhos de dona Joana e seu Agapito Dias. O jovem teve que
mudar de ritmo depois que chegou à região, considerando o tempo razoável que viveu em
Salvador. A vida na comunidade rural era bem diferente.
- Mas não foi muito difícil de me adaptar, porque tinha a escola e fui criando amizades.
Comecei a desenvolver atividades que eu não desenvolvia antes, como arrumar a casa e
acordar bem cedo para buscar água para o consumo da família.
Ainda na adolescência, Adriano viveu a realidade do trabalho infantil. Aos 15 anos, começou
a trabalhar nas lavouras da comunidade, em propriedade alheias, para colaborar nas despesas
de casa. O jovem trabalhou também em atividades domésticas.
Apesar das atividades insalubres que enfrentou ainda na adolescência, ele não deixou de
frequentar a escola. Concluiu o ensino médio, em 2006, e sua história passou a ter um novo
rumo quando conheceu o projeto “Prosperar”, no mesmo período.
O jovem teve a curiosidade de frequentar as reuniões que o técnico do Moc, José Domingos,
desenvolvia na comunidade. Foi frequentando as reuniões que Adriano teve a oportunidade de
se inserir como jovem mobilizador do projeto e passou três anos desenvolvendo atividade de
animação das famílias.
82
- O processo de animação inclui convidar as pessoas para as atividades, visitando as
propriedades, elaborando fichas de vista e relatório. É um auxiliar do técnico.
Mas foi realizando as atividades do projeto “Parceiros por um Sertão justo” que Adriano foi
indicado ao projeto “Comunicação Pelos Direitos”, em 2010. O jovem já acompanhava e
conhecia a realidade das comunidades rurais do município.
A Rádio Poste do projeto, no município de Quijingue, foi implantada na comunidade de
Lagoa do Junco. A eleição da comunidade resultou de uma avaliação das representações
públicas e sociais do município, que consideraram os indícios de tráfico, uso de drogas e
alcoolismo entre os jovens da região. A distância de 32 km da sede também foi um fator que
atendeu as finalidades do projeto.
É em Lagoa do Junco que Adriano faz da comunicação comunitária o caminho que direciona
à integração, à mobilização das pessoas e, principalmente, à informação.
A primeira vez em que fui a Lagoa do Junco, me chamou atenção a escassez de saneamento
básico e a existência de apenas uma escola de nível fundamental 1. A reação das crianças
quando me viram com a câmera digital fotográfica que eu trazia foi diferente das crianças de
Ribeira, em Araci. Enquanto em Ribeira as crianças se aproximavam em massa para ver a
câmera, em Lagoa do Junco muitas delas choravam quando eu apontava para o equipamento.
Eu me sentia a pessoa mais estranha do mundo diante da reação delas, ainda que minha
tentativa fosse sempre a mesma em todas as comunidades por onde passo, conseguir arrancar
um belo sorrido de cada uma. Mas para aquelas crianças, carentes de informação e acesso às
tecnologias, a presença do “novo” era assustadora.
A chegada do projeto “Comunicação pelos Direitos”, em 2010, também foi novidade. Muito
mais para Adriano, que pela primeira vez teve contato com um computador.
- O projeto veio acrescentar mais informação e aprendizado a minha vida. Eu não sabia nem
ligar um computador. Foi a partir do projeto que conheci a internet, como ela funcionava, e
veio a necessidade de criar um e-mail, foi nas capacitações do projeto que passei a me
aperfeiçoar no uso das tecnologias.
A partir de 2010, as atividades de Adriano não se restringiram apenas ao contato domiciliar
com as pessoas de Lagoa do Junco e Lagoinha dos Cágados, muito menos a papel e caneta. A
voz do jovem se espalhava na comunidade pelas caixas de som fixadas nos postes e sua
mensagem passou a ser escrita pelos dedos que dançavam no teclado de um computador
83
depois de passar horas coletando informações úteis e consistentes para transmitir à
comunidade.
O trabalho de mobilização de Adriano, através da Rádio Poste, consiste em sensibilizar as
famílias para buscarem seus direitos e incentivar a participação dos sujeitos na tomada de
decisões. Para isso, o jovem mobilizador do projeto conta com a parceria do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais, Conselho Tutelar e Secretaria de Educação. Como fruto desse trabalho
que o jovem partilha com as famílias, a comunidade de Lagoa do Junco já recebeu quadra
esportiva, posto de saúde e uma escola de nível fundamental 2, que antes do projeto não
existia.
- Os conteúdos que preparamos para rádio poste são os que ocorrem no entorno da
comunidade e região e que violam os direitos. Nós discutimos essas questões a partir do
contexto local e respeitando as limitações de cada caso, pois tem assuntos que devem ser
tratados com mais delicadeza. Paralelo a isso, todo o conteúdo que nós trabalhamos na rádio
poste é preparado com a escola para depois ser lançado para a comunidade.
Foi no projeto “Comunicação pelos Direitos” que Adriano descobriu outras perspectivas e
outros espaços de mobilização da juventude. O projeto possibilitou ao jovem não se restringir
apenas às comunidades rurais. Em 2011, começou a participar do Coletivo Municipal de
Jovens (CMJ) de Quijingue e apresentar o programa de rádio do coletivo na rádio comunitária
do município. O programa vai ao ar todas as manhãs de sábado e busca levar a mensagem da
juventude a todos os públicos. Temas como drogas, sexualidade, trabalho infantil, geração de
emprego e renda e agricultura familiar são debatidos no programa.
O ano de 2012 também foi promissor para Adriano. Além do projeto Comunicação pelos
Direitos, ele teve a oportunidade de participar do Programa Empreendedorismo do Jovem
Rural (PEJR). O programa, desenvolvido pelo Instituto Souza e executado em parceria com
instituições públicas e sociais, tem a proposta de desenvolver uma formação crítica e
inovadora para jovens agricultores familiares. Desde 2001 o programa é executado em três
estados do sul do Brasil e, em 2010, o programa chegou ao Território do Sisal da Bahia, em
parceria com o Moc.
Até 2012, o programa formou duas turmas de jovens, preparados para exercer o papel de
Agentes de Desenvolvimento Rural (ADR). Os jovens recebem formação em
empreendedorismo rural, com temáticas focadas na agricultura familiar, juventude e
desenvolvimento rural sustentável e solidário.
84
- A comunicação comunitária, pra mim, é uma conquista, eu realmente não imaginava que a
comunicação comunitária poderia me proporcionar outra dimensão de convivência social,
valorização e de respeito ao próximo.
Em 2013, Adriano assumiu a coordenação do Coletivo Municipal de Jovens, que tem firmado
parceria com o projeto Comunicação Pelos Direitos na realização de ações de base nas
comunidades rurais de Quijingue. O coletivo tem contado com a parceria do CPD para
realizar oficinas sobre protagonismo para os jovens, a semana da juventude, que é realizada
anualmente, oficina de políticas públicas e a criação de grupos de base.
Atualmente, já existe base do coletivo em quatro comunidades do município de Quijingue:
Algodões, Masseté, Terra Branca e Baixa da Luva.
- O coletivo de base é uma forma de expandir os trabalhos, a mobilização juvenil e estabelecer
uma comunicação mais efetiva com os jovens. Além disso, nós temos realizado trabalhos
pontuais, como orientações para a documentação, pois ainda existem adolescentes e jovens
nessas comunidades sem RG e CPF.
Para Adriano, a comunicação comunitária lhe permitiu conhecer outros espaços de
mobilização social e participar deles, pois se configuram como uma base sólida para que o
jovem seja visto como uma representação social na comunidade. “Hoje eu sou visto pelas
pessoas com mais responsabilidade e como um representante da comunidade, sem deixar
ninguém de fora”, sorri.
- A comunidade tem mostrado aceitação à Rádio Poste e contribuído para esse trabalho.
Acredito que isso é comunicação comunitária. Se eu me tornei esse jovem que sou hoje, mais
autônomo, mais participativo, deve-se à comunicação comunitária e a resposta que a
comunidade tem dado ao meu trabalho.
85
Adriano participando das primeiras oficinas do projeto em 2010, na Agência Mandacaru.
Adriano em reunião da comissão Gestora Local do Projeto Comunicação pelos Direitos da comunidade de Lagoa do Junco, com a participação do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, Conselho Tutelar do município de Quijingue, 2013.
86
CONCLUSÃO
Adriano, Alex e a turma do Projeto CPD, visitando a experiência de Juventude e Comunicação da Fundação Casa Grande, em Nova Olinda, Ceará - Setembro de 2013.
87
CONCLUSÃO
Este livro propõe mostrar a trajetória de vida dos jovens protagonistas na construção da
comunicação comunitária do Território do Sisal. Ao produzi-lo me sinto honrada de fazer
parte desse time de comunicadores, pois ao narrar uma parte da história de vida desses jovens
protagonistas a partir de seus depoimentos, também dividi e compartilhei muitos desses
momentos com eles, uma vez que a minha história de vida também é traçada pela inserção nas
organizações sociais, utilizando a comunicação comunitária como um canal de expressão a
fim de promover a participação social, a mobilização política e a participação democrática.
As histórias expostas neste livro revelam uma juventude atuante e preocupada com as causas
sociais. Mais do que isso, estes jovens não têm suas histórias individualmente construídas em
espaços isolados, mas em uma rede de organizações parceiras que permitem a estes jovens a
constante conexão uns com os outros. Por outro lado, suas iniciativas de mobilização social
não se iniciam especificamente no contexto da comunicação comunitária. O que os torna
sujeitos protagonistas é o fato de a comunicação comunitária ser para eles, ou melhor, para
todos nós, um espaço diferenciado a partir da inserção, da participação e da utilização desse
meio como agente transformador da realidade de nossas vidas e das comunidades onde
vivemos.
A semelhança do trabalho de mobilização que nós, jovens protagonistas do Território do
Sisal, desenvolvemos a partir da comunicação comunitária não corresponde apenas ao fato de
habitarmos um mesmo território e convivermos com os mesmos desafios, muito menos ao
fato de antes não termos um meio de comunicação acessível. Estas são apenas algumas
características.
As histórias aqui narradas correspondem à partilha de valores, cultura e participação social.
Antes de qualquer situação que caracteriza nossa condição de ser e viver no Território do
Sisal, o que faz de nós Jovens Protagonistas, é o desejo de participar e desempenhar
atividades, bem como criar espaços de inserção e contribuição para a formação dos cidadãos e
cidadãs.
Minha história de vida não se diferencia muito das dos demais jovens que narrei. Como a
maioria deles, também sou filha de agricultor e posso dizer que, apesar dos desafios de
88
conviver numa região semiárida no sertão da Bahia, me alegro muito disso, não apenas por
assumir minha identidade, como também pela necessidade de contribuir com o
desenvolvimento desta região. Nasci no município de Valente e fui criada em Retirolândia,
onde moro até hoje.
Desde cedo, tenho uma ligação muito forte com o movimento social. Aos 13 anos, já
participava do grupo de jovens da Igreja Católica e, três anos depois, eu passei a integrar o
grupo de novas lideranças do Movimento de Mulheres, onde realizava trabalhos de assessoria,
pautando informações que eram de interesse do gênero. Além disso, fui agente de família do
Peti e apresentei o programa de rádio “Espaço Mulher”, que ia ao ar na rádio comunitária do
município todas as manhãs de sábado.
Em minha trajetória no movimento social, as temáticas de juventude e comunicação
comunitária sempre estiveram bem presentes e foram propulsoras para o meu crescimento
pessoal e social. Em 2004, fui jovem comunicadora do projeto Comunicação Juvenil
realizado pelo Movimento de Organização Comunitária (MOC), através do programa Jovens
Escolhas, em parceria com o Instituto Credicard e o Unicef.
A intervenção da juventude, através do projeto, resultou na criação da Agência Mandacaru de
Comunicação e Cultura (AMAC), uma entidade formada e gerida por jovens do Território do
Sisal, que se estabeleceu como uma entidade autônoma, desde 2005, e da qual eu faço parte
desde a fundação. Atualmente, assumo o cargo de diretora presidente.
Outro espaço que me permitiu intervir socialmente foi o projeto Juventude e Participação
Social (PJPS), que foi aprofundado do Programa Jovens Escolhas, com o apoio do Unicef e
do Movimento Sindical de Trabalhadores/as Rurais dos Territórios do Sisal e Bacia do
Jacuípe, dando origem à formação dos Coletivos Municipais de Jovens.
Os Coletivos de Jovens formam experiências de representação política local que contribuem
para uma compreensão crítica dos jovens acerca dos desafios e potencialidades da região
semiárida. Fazer parte dessa representação junto a outros jovens, pensar e colaborar com a
proposição das políticas públicas de juventude e para o bem comum da localidade onde
vivemos concretiza mais uma das ações importantes de intervenção da juventude no Território
do Sisal.
89
Uma das ações do Coletivo de Jovens de Retirolândia da qual eu fiz parte e que merece
destaque é a criação do Conselho Municipal de Juventude (CMJ), sendo Retirolândia o
primeiro município do Território a ter o conselho. O CMJ foi um espaço que deu mais voz aos
jovens do município e intervenção nas ações junto ao poder público local, a exemplo das
conferências e seminários de juventude.
A proposta não é só minha, mas da juventude do Território, que está inserida nos diversos
espaços de mobilização territorial para promover a articulação a fim de fazer com que suas
ações cheguem aos mais diversos segmentos. Por isso, a comunicação é, para nós, uma forte
aliada e se configura como um espaço necessário de visibilidade das ações e transformações
territoriais.