Tcc 2015 Lívia Molica Gill

46
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL LIVIA MOLICA GILL UM PÓS-APOCALIPSE EM CAMPO GRANDE CAMPO GRANDE MS 2016

Transcript of Tcc 2015 Lívia Molica Gill

Page 1: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

LIVIA MOLICA GILL

UM PÓS-APOCALIPSE EM CAMPO GRANDE

CAMPO GRANDE – MS 2016

Page 2: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

LIVIA MOLICA GILL

UM PÓS-APOCALIPSE EM CAMPO GRANDE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Artes Visuais – Bacharelado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, como exigência final para a obtenção do grau de bacharel, sob orientação do Prof. Elomar Bakonyi.

CAMPO GRANDE – MS 2016

Page 3: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

LIVIA MOLICA GILL

UM PÓS-APOCALIPSE EM CAMPO GRANDE Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Artes Visuais – Bacharelado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, como exigência final para a obtenção do grau de bacharel, sob orientação do Prof. Elomar Bakonyi.

Resultado:_________________________________.

Campo Grande, MS, ___ de ______________________de 2016.

BANCA EXAMINADORA

________________________________ Orientador: Prof. Esp. Elomar Bakonyi

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

________________________________ Prof. Priscila de Paula Pessoa

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

________________________________ Prof. Sergio de Moraes Bonilha Filho

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Page 4: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

RESUMO

O título “Um Pós-Apocalipse em Campo Grande” foi escolhido tanto em referência aos estudos sobre o medo e gênero do pós-apocalipse, realizados dentro deste trabalho de conclusão de curso, quanto às obras que o compõem. A partir de experiências pessoais e leituras de livros e artigos, foram organizadas as bases teóricas para a composição de três peças finais que mesclam fotografia e ilustração digital e buscam apresentar interpretações abertas a uma situação de pós-apocalipse na cidade de Campo Grande. A monografia divide-se em três capítulos, o primeiro focando-se em discutir a relação do ser humano com os estímulos do medo, em especial de forma visual e como o meio artístico procura provocar tais sentimentos utilizando-se desde estéticas fantásticas, distorcendo aquilo que se consideraria ser o “normal”; o segundo aborda a evolução das artes digitais utilizadas em relevância neste trabalho, e o terceiro aborda o processo de desenvolvimento e composição das obras, apresentando seus resultados e o que foi aprendido em sua conclusão. Palavras-chave: Digital. Horror. Ilustração. Pós-apocalipse.

Page 5: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

ABSTRACT

The title "A post-apocalypse in Campo Grande" was chosen not only referring to the studies regarding fear and the post-apocalyptic genre accomplished in this thesis, but also to the works that compose it. From personal experiences and the reading of books and articles, the theoretical basis was organized for the creation of three final pieces that mix both photography and digital illustration, seeking to provide open interpretations to a post-apocalyptic situation in the city of Campo Grande. The thesis is divided in three chapters, the first one focusing on discussing the relationship between humankind and the stimuli of fear, especially in a visual manner and how artistic media seeks to provoke such feelings by using fantastical aesthetics, twisting what would otherwise be considered "normal"; the second one approaches the evolution of the digital art relevantly applied in this work; and the third, encompasses the development and composition process of the three pieces, displaying the results and what has been learned in its conclusion. Keywords: Digital. Horror. Illustration. Post-Apocalypse.

Page 6: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

7

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Hans Holbein,"Danse Macabre" (1549)..................................................... 14

Figura 2 - Friedrich Wilhelm, “Battle of the Doomed Gods” (1882) ............................ 16

Figura 3 - Hieronymus Bosch, detalhe de “O Juizo Final (triptico)” (1482) ................ 18

Figura 4 - Ilustração do mangá “Gyo”, de Juji Ito (2001) ........................................... 18

Figura 5 - Zdzislaw Beksinski, “Sem título” (1984) .................................................... 21

Figura 6 - Salvador Dalí, A Tentação de Santo Antônio (1946)................................. 24

Figura 7 - Ilustração de Pyramid Head, monstro da Série Silent Hill. ........................ 25

Figura 8 - Beksinski e James Cowan em Varsóvia ................................................... 26

Figura 9 - Kim Köester, "Sem Título" (2004) ............................................................. 27

Figura 10 - Captura de tela da Interface básica do Paint Tool SAI ............................ 30

Figura 11 - Algumas das fotos obtidas no terreno cercado ....................................... 33

Figura 12 - Algumas das fotos obtidas no projeto do Novo Terminal ........................ 34

Figura 13 - Algumas das fotos obtidas no galpão da antiga Noroeste do Brasil ....... 35

Figura 14 - O modelo da mesa digitalizadora, Wacom Bamboo ............................... 36

Figura 15 - Foto escolhida para o processo da primeira peça.................................. 37

Figura 16 - Captura de tela do rascunho e do brush selecionado ............................. 38

Figura 17 - Captura de tela da camada com shade e opacidade aplicadas à foto .... 39

Figura 18 - Captura de tela da comparação do resultado final com a área editada

com o pincel acrylic ................................................................................................... 40

Figura 19 - Captura de tela do close da face da figura central .................................. 41

Figura 20 - Captura de tela de comparação da cor original versus teste de variações

.................................................................................................................................. 42

Figura 21 - Resultado final: “Eu também tenho medo” .............................................. 42

Figura 22 - Alguns estudos anatômicos para a segunda ilustração .......................... 43

Figura 23 - "A Última Carga" ..................................................................................... 43

Figura 24 - "Culpa" .................................................................................................... 44

Page 7: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

8

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 9

2. O HORROR, A ARTE E O SER HUMANO ........................................................... 11

2.1. O horror contemporâneo, o apocalíptico e o pós-apocalíptico ................. 14

2.2. Horrores e arte................................................................................................ 21

2.3. Artistas e influências ..................................................................................... 23

3. ARTE DIGITAL ..................................................................................................... 28

3.1. Softwares artísticos ....................................................................................... 29

3.2. Paint Tool SAI ................................................................................................. 30

4. O PÓS-APOCALÍPTICO EM CAMPO GRANDE .................................................. 31

4.1. O processo fotográfico ................................................................................. 32

4.2. Desenvolvimento........................................................................................... 35

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 45

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 46

Page 8: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

9

1. INTRODUÇÃO

Quando iniciei minha pesquisa, já existia uma pergunta que me

acompanhava desde muito cedo em minha vida e que influenciou facilmente a

escolha deste tema: "sentimos e percebemos o medo visualmente da mesma

maneira?”.

Às vezes por mais simbólicos que sejam, certos elementos de uma

composição podem gerar sentimentos de perturbação e desconforto, e não por

imediatamente serem repulsivos ou chocantes. Detalhes sutis que geram dúvidas,

ou quebram nossa compreensão fazem com que desesperadamente busquemos

razões para não alimentar teorias mais sombrias, afinal de contas encontramos

segurança na razão e no que se aproxima da realidade que conhecemos.

Aprendemos desde muito cedo que o medo de uma forma geral é relativo,

e pode ser adquirido de diferentes maneiras. Por exemplo: uma criança pode

demonstrar curiosidade ao observar uma taturana de jardim se retorcendo em meio

as folhas, já que o inseto apresenta características consideradas “engraçadinhas” e

de fácil comparação com outros animais inofensivos, como o corpo peludo e a

movimentação desengonçada. Uma vez alertado os riscos de dor e até mortes

provocadas pelo animal, algumas crianças se afastam e criam um medo imediato,

enquanto outras por curiosidade testam o contato com galhos e folhas. Existe ainda

a possibilidade de que o contato acabe acontecendo e os resultados então criem o

medo, ou que apenas a perspectiva de um acidente seja o suficiente para alimentar

um desconforto.

Conforme nos desenvolvemos intelectualmente, passamos a ter

consciência dos medos de outras pessoas e dos que permeiam a sociedade de uma

forma geral. A fim de manter o bom funcionamento coletivo, buscamos estudar e

compreendê-los em prol de uma convivência respeitosa e pacífica para com

terceiros.

A sensibilidade do falante comum, destaca que, enquanto para todos os sinônimos de belo seria possível conceber uma reação de apreciação desinteressada, quase todos os sinônimos de feio implicam sempre uma reação de nojo, se não de violenta repulsa, horror ou susto. No seu ensaio sobre A expressão dos sentimentos nos homens e nos animais Darwin destacava que aquilo que provoca aversão em uma determinada cultura, não o faz em outra e vice-versa, mas concluía dizendo que, contudo, “parece que os diversos movimentos descritos como

Page 9: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

10

expressivos do desprezo e do nojo são idênticos em grande parte do mundo”. (ECO, 2014, p. 19)

No entanto, por mais empático e estudado que se possa ser, não é

possível compreender integralmente as nuances da percepção emocional de um ser,

ou seja: apesar de compartilharmos sentimentos e ideias mútuas, cada indivíduo

pensa e sente de maneiras particulares e exclusivas.

Seria tanto maravilhoso quanto desinteressante viver em uma realidade

na qual essa situação fosse possível: ao mesmo tempo em que teríamos uma

compreensão mais sensível e praticamente utópica¹ sobre nossas diferenças, a

expressão individual não faria sentido, uma vez que ela não seria necessária para a

transmissão de ideias e emoções.

Com isso em mente, este trabalho foi feito considerando a capacidade da

expressão visual na geração destes sentimentos únicos, e o potencial da arte em

representar o medo e as incertezas que permeiam o pensamento do horror.

Page 10: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

11

2. O HORROR, A ARTE E O SER HUMANO

Como definido de acordo com o dicionário Houaiss (2015), o horror é uma

“forte impressão de repulsa, acompanhada ou não de arrepio, gerada pela

percepção de algo ameaçador, repugnante; pavor”.

Em si, o tema já foi abordado por artistas plásticos, escritores e diretores

de cinema, em diversas épocas, lançando mão de variadas técnicas para imprimir a

sensação de desconforto característica do gênero e de seus subgêneros.

Independentemente das áreas abordadas, os conceitos se aproximam por tratarem

de aspectos naturais e instintos comuns do ser humano. Um dos mais respeitados

escritores da área, H. P. Lovecraft (1927), descreve em “O Horror Sobrenatural na

Literatura” que “a mais antiga e forte emoção da raça humana é o medo, e o mais

antigo e forte medo, é o medo do desconhecido”.

Como instinto, o medo auxiliou o homem a temer aquilo que ainda

precisava ser compreendido. Embasada por informações concedidas pelo “U.S.

Army Survival Manual”1, Siegel (2010) define o medo em seu artigo para o site

Discovery News como nossa reação emocional a circunstâncias perigosas que

cremos poder resultar em morte, ferimentos ou doenças. Este dano não se limitaria

somente ao estrago físico; a ameaça à saúde emocional e mental de alguém

também pode gerar medo. Para quem tenta sobreviver, o medo pode ter uma função

positiva se o encoraja a ser cuidadoso em situações onde imprudência poderia

resultar em lesões. Infelizmente, o medo pode também imobilizar uma pessoa. Ele

pode torná-la tão aterrorizada a ponto de impedi-la de realizar atividades essenciais

para a sobrevivência.

Um exemplo são as primeiras interações com animais selvagens, em

especial predadores ou animais peçonhentos que se impunham como ameaça à

sobrevivência dos grupos humanos e que, por consequência, levaram ao

desenvolvimento do medo de ruídos desconhecidos e de ambientes com pouca

visibilidade. Tamborini e Weaver (2009) discutem e explicam em seu livro “Horror

Films: Current Research on Audience Preference and Reactions”2 diversos estudos

a respeito da percepção humana com relação ao desenvolvimento do sentimento do

1 Manual de Sobrevivência Militar dos E.U.A, em tradução livre. 2 Filmes de Horror: Pesquisas atuais sobre a preferência e as reações da audiência, em tradução

livre.

Page 11: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

12

horror, entre eles o de que não somente estas experiências eram traduzidas

conforme emocionalmente experimentadas individualmente, como também

acabavam por se estender no imaginário coletivo conforme eram relatadas.

Esses nossos ancestrais remotos que confrontaram animais ferozes em suas caçadas e que sobreviveram a isso para contar suas histórias eram provavelmente os primeiros a relatarem acontecimentos apavorantes. Conforme eles reviviam suas ansiedades e suas ações, eles devem ter sucumbido ao que nós agora chamamos de administração de impressão ou de imagem (Cialdini, 1985; Schlenker, 1980; Synder, 1981). Aos olhos de seus semelhantes, esses caçadores poderiam apenas se beneficiar ao exagerar os perigos que haviam enfrentado. Quem admitiria ter sido perseguido por um javali selvagem, quando o animal poderia ser descrito como uma criatura com sete cabeças? Quem iria detalhar um encontro assustador com dois homens de uma tribo rival, quando o incidente poderia ser descrito como um choque violento com uma dúzia deles, um choque que resultou em sua escapada tomada pelo pânico? E quem iria reportar que havia escapado de um pequeno arbusto em chamas, quando isso poderia ser apresentado como um inferno violento? Com menos verificações da veracidade desses relatos heróicos do que as que nos são impostas atualmente, nossos ancestrais rapidamente inventavam dragões que cuspiram fogo, pássaros gigantes que roubavam garotas, inimigos com peles impenetráveis, répteis devoradores de homens, poços ácidos de onde não poderiam voltar, homens com chifres e dentes de sabre, e o próprio inferno. As mitologias de todas as culturas conhecidas são repletas de tais produtos da imaginação humana movida pelo medo e narcisismo. (TAMBORINI E WEAVER, 2009, p. 15)

Desenvolvem-se então as referências humanas de “predadores

desconhecidos” como demônios e outros seres sobrenaturais: ameaças invisíveis e

imprevisíveis, que tomavam formas mais reais no imaginário das pessoas a partir do

momento em que eram representadas simbólica e artisticamente. Tamborini e

Weaver (2009) ainda complementam com a ideia de “leis naturais” que governam o

mundo, e citam Lovecraft em sua sugestão de que o horror é criado quando estas

são violadas. Vivemos em uma constante natural, e no momento em que não

podemos explicar ou controlar uma quebra na mesma, estamos à mercê do

desconhecido e de forças sobrenaturais. Essas influências podem ser tão drásticas

que a ciência reconhece determinados tipos de fobia como a fasmofobia (medo de

fantasmas)3 e a demonofobia (medo de demônios)4.

3 Definição extraída do site Phasmophobia, Fear of Ghosts. Disponível em:

<http://phobias.about.com/od/phobiaslist/a/phasmaphobia.htm>. Acesso em: 07 fev 2015, 19:05. 4 Definição extraída do site Michaelis. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=Demonofobia>. Acesso em: 07 fev 2015, 19:30.

Page 12: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

13

Em uma abordagem mais contemporânea, Michael Grantham em seu

artigo “Macabro como um conceito” (2007), aponta o próprio humano como sendo

um gerador de medos: “A busca pelo que é sexualmente obscuro, desejos sexuais

depravados, violência, loucura, assassinato, obsessão, morte, luxúria e insanidade

são todos elementos frequentemente associados ao lado negro da natureza

humana” (GRANTHAM, 2007).

As representações antigas apontavam o sobrenatural como o real perigo

iminente, enquanto a evolução da humanidade abria também uma compreensão

mais ampla sobre suas próprias ações. Não por menos, assuntos polêmicos tornam-

se mais frequentemente abordados e abrem esse caminho, em especial pela arte,

que faz questão de captar com maior intensidade os exatos aspectos obscuros da

identidade humana.

O medo da morte, do inexistir, ou do sofrimento agregado ao processo de

morrer é a iminente constante das temáticas de horror, exploradas em especial no

primeiro caso, pois tudo o que é uma ameaça pode trazer consigo o fim.

Um dos exemplos mais antigos da Baixa Idade Média é o gênero artístico

conhecido como Danse Macabre5 que, como descrito por Oosterwijik (2012) para o

site do Oxford Bibliographies, surgiu entre os anos de 1424-1425 e tinha como

objetivo representar a universalidade da morte, onde a própria macabramente

demonstrava que homens, mulheres, crianças, pobres e ricos estavam igualmente

sujeitos ao fim.

5 Do francês, “Dança da Morte”.

Page 13: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

14

Figura 1 - Hans Holbein,"Danse Macabre" (1549)

Fonte: Wikimedia Commons.6

As temáticas mais modernas, apesar de ainda abordarem a ideia da

morte, se focaram em especial ao sofrimento, à violência e a todo tipo de

perturbação visual do inconsciente humano. Para estas novas concepções a

possibilidade de lidar com situações piores que a morte agora são mais íntimas, ao

invés de opressoras, e buscam alcançar mais pessoalmente as percepções do

observador.

2.1. O horror contemporâneo, o apocalíptico e o pós-apocalíptico

Ao se organizarem, as sociedades humanas evoluíram seus conceitos

emocionais e racionais em relação ao mundo e à sua própria existência. Fenômenos

naturais como a chuva, as estações do ano ou a aurora boreal eram explicados

através de deduções e contos que poderiam provir tanto das sensações

experimentadas nesses momentos, quanto das ligações feitas a partir de crenças

religiosas, dando origem aos mitos e lendas - uma busca por se situar no mundo e

encontrar seu lugar entre os demais elementos e seres naturais, de acordo com

6 Figura 1. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Holbein_Danse_Macabre_15.jpg>. Acesso em 06 nov 2015.

Page 14: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

15

Olivieri (2005). Como visto anteriormente, no entanto, estes frequentemente

acabavam por se tornar mais sinistros conforme a necessidade do medo.

Contos sobre perigos exagerados, de ameaças maiores que suas condições naturais e forças sobrenaturais, provaram ser úteis em controlar aqueles que acreditavam. Poderia-se prevenir que crianças andassem pelos bosques com histórias sobre criaturas ferozes que por lá habitavam, e talvez até as mulheres se fechassem dentro de casa por rumores de ogros canibais nas florestas. (TAMBORINI E WEAVER, 2009, p. 16)

Contudo, conforme a humanidade avança em relação à compreensão do

mundo em sua busca por respostas mais sólidas, avançam também as tecnologias,

formando um ciclo no qual ambos se complementam na estruturação do

conhecimento racional e científico. Especulações dão lugar a conclusões - ainda que

a dedução, quando utilizada de maneira correta, continue a auxiliar a evolução do

pensamento, o homem se tornou mais exigente em sua busca por respostas. Já não

se aceitam argumentos que apenas apresentem justificativas rápidas, mas sem

fundamentos sólidos, e é por isso que, de forma contemporânea, o horror também

passa a ser mais seletivo.

Como sugerem os estudos de Tamborini e Weaver, definir o gênero do

horror e suas abordagens mais modernas pode ser uma tarefa complexa, dado que

diversos estudiosos ao longo da história tinham visões próprias sobre onde

realmente se inicia sua apreciação como entretenimento, o quanto pode-se

relacionar seu uso filosófico e moral às sensações de interesse pelo desconhecido,

ou até mesmo as possíveis minuciosas diferenças entre “terror” e “horror”. Umberto

Eco (1932-2016) também ressalta que o belo e o feio são relativos aos vários

períodos históricos da humanidade, e que as noções culturais e visuais admiradas

em uma civilização podem gerar reações de repulsa ou horror em outras, ou seja:

estes sentimentos podem ser percebidos de formas distintas.

O que se pode deduzir de fato é que nossos ancestrais, mesmo sob a

tensão que permeava tais sinistras perspectivas, tinham ainda assim um fascínio

pelo desconhecido, ligado intimamente à sua incessante busca pelo ato de

compreender e até mesmo aos estímulos físicos gerados pela experiência do medo

que nos acompanha até hoje. De acordo com Cooch (2014), por exemplo,

determinados estudos realizados a partir de reações cerebrais humanas a estímulos

visuais ligados à tensão e ao medo, mostram que nossos cérebros são sofisticados

o suficiente ao ponto de poder distinguir situações realmente ameaçadoras daquelas

Page 15: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

16

que apenas parecem ser, e que as ricas experiências sensoriais geradas nestes

momentos podem sugerir o porquê da apreciação por tais sentimentos: “(...) somos

capazes de acalmar nossas ansiedades pois outras partes do cérebro nos dizem

que nós não estamos realmente em perigo” (COOCH, 2014).

Assim como para um grande número de reações do comportamento

humano, são muitos os estudos realizados tanto na área científica quanto na da

psicologia que visam compreender a relação do homem com o horror e o medo, mas

um grande número delas entra em um consenso de que o gênero passa a ser

apreciado por sua simulação ao risco e a situações de difícil resolução.

Figura 2 - Friedrich Wilhelm, “Battle of the Doomed Gods” (1882)

Fonte: Norse Mythology for Smart People.7

Dentre as tantas situações que evocam os horrores contemporâneos em

grande parte das sociedades, está a interferência de uma vida cotidiana segura, ou

de uma realidade considerada estável - relembrando novamente a ideia da quebra

de ordem natural de Lovecraft - pelo sobrenatural. Quando se imagina o fim abrupto

de toda uma estrutura social, sejam por meios políticos, naturais ou sobrenaturais, a

maioria das pessoas, por quaisquer fins que sejam, sente o desconforto

característico dessa quebra. A morte em si pode ser considerada, em termos, o

desligamento direto de um indivíduo da realidade ao qual se está habituado, sendo

7 Figura 2.Disponivel em: <http://norse-mythology.org/tales/ragnarok/>. Acesso em 24 mai 2016.

Page 16: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

17

este possivelmente o porquê do pânico induzido pelo assunto. Diante da incerteza

causada por esse aspecto biológico que, ironicamente, é natural a quase todos os

seres vivos, diversas civilizações antigas foram além em seu pensamento sobre o

que ocorre à consciência quando o corpo não mais pode prover, criando assim os

conceitos de “alma” ou “espírito” que representariam a “essência” de um ser. Muitas

delas, por influências sociais e especialmente religiosas, idealizavam diferentes tipos

de realidades nas quais essas essências seriam então capazes de habitar,

nascendo assim os conceitos de “planos espirituais” e o pós-morte, que podem ser

interpretados apenas como uma única destinação final em comum ou um julgamento

individual que resultaria tanto em punições como em recompensas.

Por essas e outras noções e influências, surgem então os mitos

apocalípticos, que por interferência sobrenatural ou divina seriam responsáveis por

quase ou completamente acabar com as realidades dessas sociedades. E mesmo

em seus tons tão assustadores e horrendos, assim como tantos outros mitos, os

planos espirituais e apocalipses ganhavam também representações escritas e

especialmente visuais dentro das sociedades.

O Apocalipse é, ao contrário, uma representação sacra (que hoje seria chamada de disaster movie, um daqueles filmes que versam sobre incêndios, terremotos e cataclismos), na qual nenhum detalhe é poupado. [...] Por influência seja da literatura apocalíptica, seja dos vários relatos de viagens infernais, proliferam nas abadias românicas e nas catedrais góticas, nas miniaturas, nos afrescos, todas aquelas representações que possam recordar ao fiel, dia após dia, as penas que esperam pelos pecadores. (ECO, 2014, p. 73 e 82)

A ideia de tamanha destruição de proporções gargantuais, em conjunto

com os já imaginados mitos do pós-morte, inspiraram e influenciaram artistas de

diversas áreas e em diferentes períodos da história a recriar os horrores dessas

situações, utilizando-se não só das mais variadas formas de medo que permeavam

o imaginário de sua época, como também perturbações pessoais, e a corrupção da

realidade para a geração de novas ideias.

É possível citar desde Hieronymus Bosch (1450-1516), que recriou “O

Juízo Final” (1482) em um tríptico repleto dos mais absurdos horrores, situações, e

criaturas de formas repugnantes e impossíveis, a até mesmo Junji Ito (1963-),

criador da série Gyo (2001-2002), na qual criaturas marinhas de qualidades tão

Page 17: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

18

perturbadoras quanto as de Bosch, saem descontroladas causando sua forma

própria de apocalipse para a raça humana.

Figura 3 - Hieronymus Bosch, detalhe de “O Juizo Final (triptico)” (1482)

Fonte: Wikimedia Commons.8

Fonte: AiPT!9

8 Figura 3. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:BoschTheLastJudgement

TriptychRightInnerWing.jpg >. Acesso em 24 mai 2016. 9 Figura 4. Disponível em: < http://www.adventuresinpoortaste.com/2015/04/20/gyo-deluxe-edition-review/ > . Acesso em 24 mai 2016.

Figura 4 - Ilustração do mangá “Gyo”, de Juji Ito (2001)

Page 18: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

19

Diante das ideias de destruição e caos, e em vista da natureza humana

em sua busca por respostas e soluções, na necessidade de sobrevivência e

preservação pessoal, é fácil deixar-se imaginar se poderíamos resistir às

circunstâncias de tais experiências avassaladoras, sejam elas de origem mítica ou

não. Levanta-se o questionamento da adaptação de um novo estilo de vida após o

desastre, que modificaria radicalmente as noções cotidianas aos quais se é

habituado, pois ainda que superado o perigo, o próximo passo é então enfrentar

uma nova organização social, ou a completa falta dela. É a partir desta noção que

nasce então o gênero pós-apocalíptico.

Booker e Thomas (2009) identificam o livro “O Ultimo Homem” (1826) de

Mary Shelley (1797-1851) como a primeira obra literária de ficção-científica pós-

apocalíptica, e que, apesar de outros contos abordarem noções similares que

auxiliariam sua continuidade até o século seguinte,

(...) não foi até o bombardeamento nuclear de Hiroshima em agosto de 1945, seguido das tensões nucleares da Guerra Fria, que histórias pós-apocalípticas especialmente as que abordavam holocausto nuclear e suas consequências foram lançadas para o primeiro plano da ficção científica. (BOOKER E THOMAS, 2009, p. 53)

De fato, os conflitos políticos que se seguiriam por grande parte do século

XX apresentavam um novo tipo de ameaça para as sociedades modernas. Se

anteriormente a intervenção divina, a fúria do desconhecido, desastres naturais, ou

biológicos como pragas e doenças eram os causadores de pesadelos do extermínio

da vida em grande escala, agora ideais geradores de guerras e competições

políticas intensas fermentavam batalhas violentas que evoluíam tecnologicamente a

todo o instante, e eram a razão de um temor constante e real.

Comunidades inteiras eram deixadas à beira de um estado de calamidade

e pânico, em consequência a estes conflitos, e é claro que a vivência, percepção ou

registro destas experiências geravam novas formas de representação dos horrores

da guerra e de possíveis cenários pós-apocalípticos as quais tanto se

assemelhavam.

Ainda dentro dos estudos de Booker e Thomas, compreende-se que o

gênero abordou em suas evoluções, e conforme eram levantadas diferentes

circunstâncias e cenários relevantes, uma miríade de formas através das quais a

humanidade se veria em situações extremas, como por exemplo, as ideias de

Page 19: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

20

sobrevivência pós-guerra nuclear, a perda ou escassez de recursos naturais na

terra, a opressão da própria tecnologia sobre o ser humano, a invasão e conquistas

por seres de outros planetas, a obliteração por doenças, ou por forças sobrenaturais

como pelos então recém-estabelecidos zumbis10, dentre muitos outros exemplos. O

que é possível perceber é que, assim como o horror em si, e ainda que que estes

dois gêneros se entrelacem frequentemente, o pós-apocalíptico constantemente

resgata e recria diferentes visões conforme acompanha a evolução das sociedades

em si.

Apesar da existência de tendências que surgem e diminuem de relevância

a cada ano, atualmente a temática e estética do horror se tornou extremamente

popular em todas as áreas artísticas e de entretenimento, tal qual o apocalíptico e o

pós-apocalíptico.

As representações visuais, e narrativas destes gêneros demonstram

ainda ter uma ligação com os medos e hesitações mais íntimos e primitivos do ser

humano, constantemente buscando provocar não só emoções geradas pelo medo,

como também nossa capacidade de raciocínio e até a possibilidade de sua quebra e

distorção. Mesmo sentimentos de empatia e compaixão são constantes presentes, a

partir do momento em que nos projetamos nestas situações ou outros supostos

seres vivos, pois por mais solitário que um indivíduo seja, o ser humano ainda é

considerado um ser social.11

O constante interesse fez com que uma miríade de filmes, exposições,

livros e jogos surgissem, enquanto que a evolução social da Internet possibilitou

mais facilmente e para um maior número de pessoas o compartilhamento de

experiências e ideias próprias relacionadas a essa temática. Ainda em constante

crescimento, são inúmeros os canais no YouTube12 que se dedicam a jogos

10 Morto-vivo. O conceito de corpos reanimados tem origem em diversas culturas e se popularizou na cultura

popular como monstros que se alimentam de carne humana. Definição extraída de <http://www.oxforddictionaries.com/us/definition/american_english/zombie>. Acesso em: 24 ago 2016, 16:48. 11

“O homem é, por natureza, um animal social; um indivíduo que é insocial por natureza e não por acidente está ou sob nossa observação ou é sobre-humano. A sociedade é algo que precede o indivíduo. Qualquer um que não possa viver a vida comum ou é tão autossuficiente ao ponto de não precisar de tanto, e, portanto, não participa da sociedade, é ou uma besta ou um deus. ” Aristóteles, citação presente em < http://www.goodreads.com/quotes/183896-man-is-by-nature-a-social-animal-an-individual-who>. Acesso em 24 ago 2016, 17:33. Tradução nossa. 12 Rede social de compartilhamento de vídeos: <https://www.youtube.com/>.

Page 20: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

21

obscuros e curtas de horror, podcasts13 inteiramente voltados à narração dramática

de contos, portfólios e galerias de artistas que voltam sua estética e temática para o

gênero, e até mesmo comunidades e fóruns online que tem como fim discutir e

apreciar o horror.

Em suma, o horror se demonstra adaptável às necessidades

contemporâneas de todas as épocas, seja para causar emoções extremas e

entreter, seja para abordar fatores sociais ou ainda para chocar e abordar temas que

poucos tem coragem de debater.

2.2. Horrores e arte

Figura 5 - Zdzislaw Beksinski, “Sem título” (1984)

Fonte: Wikimedia Commons.14

De maneira geral, a ideia do horror, em todas as suas formas, permeia e

influencia o imaginário artístico desde o primeiro momento em que se surgiu a

necessidade de expressá-lo como tal. Não há como fugir das estéticas do horror,

pois aquilo que julgamos belo e feio ou agradável e pavoroso pode ser variado,

relativo e pessoal - contudo, determinados traços e características em quaisquer

representações podem ser mais comumente interpretadas como algo temível, como

13 Mídia de compartilhamento de informação que usa os princípios do radio, mas pode ser adquirida como

arquivos de áudio na internet: <https://mundopodcast.com.br/artigos/o-que-e-podcast/>. 14 Figura 5. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Untitled_painting_by_Zdzislaw_ Beksinski_1984.jpg>. Acesso em 10 jun 2016.

Page 21: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

22

por exemplo: a cor vermelha em riscos levemente ondulados que facilmente

remetem à ideia de sangue derramado. No entanto, como já discutido, a

interpretação do horror vai muito além de carnificinas e derramamentos de sangue,

mesmo que estes também sejam contabilizados.

Para Eco, não é possível falar das representações de beleza, feiura,

humor ou horror de povos arcaicos e primitivos: “(...) dispomos de achados

arqueológicos e artísticos, mas não de textos teóricos que informem se eles eram

destinados a provocar deleite estético, terror sacro ou mesmo hilaridade” (ECO,

2014 p.10). Ele também cita Karl Rosenkrantz e sua “Estética do feio” (1853) quando

este faz uma analogia sobre o que é esteticamente feio estar ligado ao mal e ao

pecado, uma distorção daquilo que é correto e belo e que, contudo, demonstra ser

rico e complexo.

De fato, ao se olhar para a história da arte do momento em que temos a

possibilidade de compreender seus significados, nota-se uma quantidade sempre

constante de monstros e outras aberrações que frequentemente eram

acompanhados por conotações negativas. Novamente, tais noções eram

dependentes dos ideais de beleza e feiura de cada cultura, pois enquanto que no

período clássico existiam sentimentos mistos a respeito do medo e do fascínio por

tais criaturas que permeavam o imaginário cultural e filosófico, a idade média era

tomava pelos horrores do perverso e do pecado, geralmente acompanhados de

demônios grotescos e outras distorções malignas do belo.

Apesar das mudanças conceituais de cada século e lugar, é possível

dizer que a arte sempre buscou captar com intensidade o feio e os horrores de seu

tempo, sem se acanhar em expressar o perturbador, pois compreendia a

importância de sua estética para com a percepção e sensibilidade humana. Não

existe apenas o solúvel, a beleza, e a felicidade no mundo, é necessário que haja

dúvidas e incertezas que nos auxiliem a desenvolver o pensamento, diferenças

visuais para que existam identidades próprias, e a tristeza para que exista a empatia

e a compaixão. Por mais agradáveis que sejam os ideais positivos e belos, e ainda

que seja perfeitamente aceitável nosso desejo de segui-los, não se pode deixar

cegar a estes como verdade ou regra absoluta da realidade.

O horror na arte hoje, além de logicamente ainda valorizar as influências

de seus predecessores, e realizar resgates estéticos que se entrelaçam aos

conceitos atuais, se apresenta de uma maneira mais aberta, pois com a

Page 22: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

23

possibilidade de compartilhamento da informação de maneira mais acessível,

difundir novas ideias e apresentá-las torna-se mais fácil, ainda mais pelo fato de que

as estéticas do medo são frequentemente vistas como excitantes e instigantes.

Não se pode falar apenas de “degeneração” do mass media, pois a arte contemporânea também prática e celebra o feio, mas não mais no sentido provocativo das vanguardas do início do século XX. Em certos happenings, não somente se exibe o mal-estar de uma mutilação ou de uma deficiência, mas o próprio artista se submete a violação cruenta de seu corpo. Também nesses casos, os artistas declaram que pretendem denunciar as muitas atrocidades de nossos tempos, mas é com espírito lúdico e sereno que os apaixonados de arte comparecem às galerias para admirar tais obras e tais performances. (ECO, 2014, p. 423.)

2.3. Artistas e influências

Muitas foram as influências que me levaram a buscar o tema do horror e

das estéticas que o acompanham para a realização de minha pesquisa. Inicialmente

em minha infância, meus primeiros contatos com a arte variavam entre os mundos

coloridos de Walt Disney (1901-1966), que fascinavam não somente pelas cores

vibrantes como também pelas animações extremamente bem trabalhadas, como

também aos delicados trabalhos de aquarela de Beatrix Potter (1866-1943).

Claro que mesmo os contos mais gentis tinham suas conotações

sombrias, como por exemplo a temática do medo e da morte como vistas nas

releituras de Branca de neve (1937) e Bambi (1942), ou nas Aventuras de Peter

Rabbit (1904), que me causavam desconforto, ainda que eu tivesse apenas uma

compreensão vaga a seu respeito.

Na educação formal, Da Vinci (1452-1519), Monet (1840-1926) e Van

Gogh (1853-1890), dentre os vários artistas aos quais fui apresentada nesse

período, foram aqueles que mais tomaram minha atenção; contudo, foi o surrealista

Salvador Dalí (1904-1989) que conseguiu quebrar os laços tão delicados que

envolviam minhas percepções artísticas, até então somente técnicas e leves. Sua

obra “A Tentação de Santo Antônio” (1946), observada em um livro didático, me

causou inicialmente medo, pânico e desconfortos tais quais eu jamais havia

experimentado em contato com a arte. Contudo, não me sentia assim por conta dos

corpos nus, ou por compreender a temática crítica e religiosa do quadro - a distorção

da realidade de forma absurda e ainda assim representada de maneira tão

detalhada causava um leve pânico em minha percepção infantil.

Page 23: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

24

Me indagava desesperadamente sem conseguir compreender como era

possível que tais criaturas disformes conseguiam se sustentar com pernas tão finas

e delicadas como as dos elefantes e as do cavalo representados no quadro. Por

mais que eu já estivesse familiarizada com histórias de monstros folclóricos como o

curupira15, me perturbava grandemente ver suas patas dianteiras disformes.

Figura 6 - Salvador Dalí, A Tentação de Santo Antônio (1946)

Fonte: Alistadelucas.16

Utilizando métodos freudianos de livre associação, sua poesia e prosa baseava-se no mundo privado da mente, tradicionalmente restrito pela razão e pelas limitações sociais, para produzir imagens surpreendentes e inesperadas. Os princípios cerebrais e irracionais do Surrealismo tem como antepassado o inteligente e caprichoso desprezo pela tradição, fomentado pelo Dadaísmo uma década antes. (VOORHIES, 2004)

Por mais perturbadora que essa primeira impressão tenha sido, o

sentimento não me repeliu, ao contrário: sentir minha lógica e compreensão serem

reviradas de tal maneira me fascinou a tentar buscar razões, e me via

constantemente debatendo os sensos de tal quadro sempre que passava por sua

página no livro. Somente anos mais tarde, com mais maturidade, é que comecei a

estudar e pude compreender o movimento surrealista e suas características. De

certo modo, o convívio com minha mãe, uma psicóloga freudiana, auxiliou no

15 Criatura mítica do folclore brasileiro que tem os pés virados para trás. 16 Figura 6. Disponível em: <https://alistadelucas.wordpress.com/2012/02/04/as-15- melhores-obras-de- salvador-dali/>. Acesso em 10 jun 2016.

Page 24: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

25

interesse da busca por interpretações mais profundas; em conjunto com a

curiosidade pelos sentimentos experimentados posteriormente, mantive uma

constante de tentar buscar criar trabalhos que pudessem gerar as mesmas reações

intensas ou emocionalmente próximas. É preciso apontar, no entanto, que estas

foram apenas influências, e apesar de por vezes utilizar elementos psicológicos em

minhas ideias - já que estes são uma parte importante do estudo da mente humana

e tem grande relevância para elementos do horror -, estas são apenas peças que

dividem o espaço com outros elementos do pensamento e estudo de obra e

composição.

Fonte: Wikipédia.17

Ao longo dos anos, fui influenciada por diferentes tipos de mídias, como o

cinema, a televisão, a literatura, e também por diversos tipos de jogos de horror.

Autores como Edgar Allan Poe (1809-1849) e H.P. Lovecraft (1890-1937) me

envolviam com suas narrativas fantásticas, enquanto filmes como os do diretor Tim

Burton (1958-) ou os independentes “Bruxa de Blair” (1999) e “REC” (2007) traziam

visualidades obscuras e ritmos de tensão. A série de jogos Silent Hill (2006),

carregada de elementos de terror psicológico, sobrenatural e gore, me fascinou por

sua complexidade visual, já que grande parte dos elementos que compõem sua

experiência tem algum significado oculto. Nos quadrinhos, Sandman (1989) de Neil

Gaiman (1960) e Constantine (1985) de Alan Moore (1953) despertaram meu

interesse pelas narrativas desta mídia, e por fim Goosebumps (1992), série de TV

17 Figura 7. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/File:Pyramid_Head.jpg>. Acesso em 10 jun 2016.

Figura 7 - Ilustração de Pyramid Head, monstro da Série Silent Hill.

Page 25: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

26

baseada nos trabalhos do autor R.L Stine (1943) me incentivou a buscar mais sobre

o horror em minha pré-adolescência. Apesar de existirem tantos outros caminhos

pelos quais se explorar o horror, jamais perdi o interesse em buscá-lo nas artes, e foi

então que acabei por descobrir em anos recentes o artista polonês Zdzislaw

Beksinski (1953-2005).

Figura 8 - Beksinski e James Cowan em Varsóvia

Fonte: COWAN, 2002. Morpheus Gallery.18

Seus trabalhos foram minha maior inspiração para a utilização do pós-

apocalíptico em conjunto do horror. Segundo James Cowan (1870-1943), que o

conheceu ainda em vida, Beksinski se formou e inicialmente trabalhava como

arquiteto, mais tarde experimentando com a fotografia e por fim se apaixonando pela

ilustração e pela pintura.

O artista reforçava o tempo todo que seus trabalhos de estilo surrealista

não tinham significado algum, e dizia que: "O sentido não tem importância para mim.

Eu não me preocupo com simbolismos e pinto o que pinto sem meditar uma história"

(BEKSINSKI, 1929).

Seria possível especular, no entanto, que alguns de seus trabalhos

possam ser reflexos de sua infância vivida em meio à Segunda Guerra Mundial, e

por isso teriam um leve tom de desolação encontrados em cenários pós-desastre.

“Perde-se o sentido me perguntar o que as cenas em minhas pinturas ‘significam’.

18 Figura 8. Disponível em: < http://morpheusgallery.com/Zdzislaw%20Beksinski/biography.php>. Acesso em 10 jun 2016.

Page 26: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

27

Simplesmente eu mesmo não sei. Além disso, não tenho interesse em saber.” --

Zdzislaw Beksinski (COWAN, 2002, tradução nossa).

Por fim, a influência para utilizar a fotografia em conjunto da ilustração

veio do jovem artista alemão Kim Köster, com seus projetos artísticos “Figures &

Creatures” (2006) e “99Rooms” (2004), o primeiro sendo um projeto pessoal e o

último realizado em conjunto de seu coletivo “Rostlaub”. Em ambos, como descrito

em seu portfólio e galeria online, Köester se utiliza de diversos materiais para criar

ilustrações em superfícies e construções aparentemente abandonadas. “99Rooms”

contudo, foi mais complexo por ser voltado para a ideia de interação online, portanto

sendo programado e animado para oferecer tais elementos em seu site de exibição.

99Rooms origina-se das místicas, muitas vezes apocalipticamente charmosas imagens criadas pelo artista berlinense Kim Köster dentro dos incontáveis estabelecimentos abandonados do setor industrial da Berlim Oriental. (BÜNEMANN et al., 2004, tradução nossa)

Fonte: Figures & Creatures Gallery.19

19 Figura 9. Disponível em: < http://kimkoester.com/index.php/gallery/view>. Acesso em 10 jun 2016.

Figura 9 - Kim Köester, "Sem Título" (2004)

Page 27: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

28

3. A ARTE DIGITAL

De acordo com Christiane Paul (2016), a relação da arte com o digital

data desde muito antes de seu “boom” na década de 90: desde 1945 a evolução das

mídias digitais já levantava questões técnicas e teóricas importantes a respeito da

máquina e do humano. Entre as décadas de 50 e 60, apesar dos esforços de alguns

artistas em estudar e criar relações mais sólidas com estas novas tecnologias, ainda

existia uma barreira muito grande de acessibilidade, e eram poucos aqueles que

conseguiam adquirir computadores descartados pelo exército. Nos anos seguintes,

existiriam tentativas de interação conceitual, como por exemplo a “arte

algorítmica”20, ou experimentações cinemáticas, e trabalhos voltados às noções de

dimensão e profundidade.

A terminologia para formas de arte tecnológicas sempre foi extremamente fluida e o que é agora conhecido como arte digital passou por diversas mudanças de nome desde seu surgimento. Originalmente chamada de arte de computador, então arte multimídia e cyberarts (1960s-1990s), formas de arte utilizando tecnologias digitais tornaram-se arte digital ou a assim chamada new media art ao final do século XX. O termo "new media art" copiava o rótulo que, naquela época, era usado principalmente para arte sonora e de filme/vídeo, e várias formas híbridas, e estava sendo usada através do século XX para referir-se à mídia que emergia em qualquer dado momento. (PAUL, 2016, p. 5, tradução nossa)

Nos anos 1990, ainda que esses conceitos fossem muito recentes para o

mundo da arte em si, uma movimentação significativa começou a surgir em relação

ao seu desenvolvimento moderno.

(...) muitos artistas desenvolveram suas próprias interfaces de hardware e software para produzir seus trabalhos. No novo milênio, sistemas prontos começaram a aparecer com mais frequência e ampliaram a base para a criação de arte digital. Além disso, programas de mídia digital, departamentos e programas de estudos foram formados e implantados ao redor do mundo, frequentemente liderados por artistas influentes na área. Já que a arte digital não cumpria um papel significativo no mercado de arte e artistas não eram capazes de se sustentarem através de vendas de galeria, muitos deles passaram a trabalhar dentro de ambientes acadêmicos. (PAUL, 2016, p. 6, tradução nossa)

20 Arte algorítmica pode ser dividida em diferentes subcategorias que são geralmente representadas por arte

genética/orgânica, arte fractal, arte matemática e uma arte algorítmica mais geral (o uso de algoritmos como um componente da composição). Definição extraída de: <http://www.mat.ucsb.edu/~g.legrady/academic/courses/01sp200a/students/brentYokota/200a_fin.html>. Tradução nossa.

Page 28: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

29

A partir do século XI, a popularização das mídias sociais impulsionou a

troca de informação entre artistas que buscavam desenvolver novas maneiras de

explorar a arte digital. Além disso, outros fatores que auxiliaram a disseminação

deste novo cenário incluem a acessibilidade facilitada as novas tecnologias, a

autonomia de criação que incentiva novos artistas e a influência da cultura pop.

Tão logo o desenvolvimento de programas amadores começava a ganhar

um espaço de mercado que os possibilitaria evoluir.

3.1. Softwares artísticos

O mercado de softwares21 voltados para arte digital tem continuamente

evoluído nas duas últimas décadas, buscando atender às necessidades dos artistas

desta área em relação a conteúdo e relevância. Seja através da mesa digitalizadora

ou do mouse, até mesmo o Paint pode ser utilizado em todas as suas capacidades

para a produção e experimentação artística.

Existem vários fatores que podem levar um software a se tornar popular

ou necessário por possuir funções específicas. O Photoshop, por exemplo, é

produzido pela Adobe e oferece uma enorme gama de opções em edição e

tratamento de imagens, também sendo utilizado frequentemente para produção de

ilustrações e outros tipos de arte que mesclam técnicas digitais. O Ilustrador, por sua

vez, programa "irmão" do Photoshop e produzido pela mesma empresa, tem sua

programação focada em opções de desenho e coloração.

Em anos recentes, a variedade de softwares de arte digital lançados ou

atualizados no mercado cresceu. A maioria segue padrões técnicos já estabelecidos

ou populares na área, focando seu desenvolvimento então para o conforto e

versatilidade, o que torna a escolha destes pelos artistas uma questão de

preferência ou adaptação. Ainda assim, é comum que se utilize de dois ou mais

programas para realizar experimentações, ou fazer uso de funções diversificadas

que sejam mais práticas ou possíveis dentro dos limites de desenvolvimento de cada

software.

21 Programas que realizam tarefas específicas no computador.

Page 29: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

30

Alguns dos softwares que mais observo serem utilizado por colegas e

outros artistas atualmente são o Photoshop, Ilustrator, Gimp, Paint, Fire Alpaca,

Manga Studio, e o recém-lançado Krita.

3.2. Paint Tool SAI

Fonte: Livia Molica Gill (Autora).

O Paint Tool SAI, criado e desenvolvido pela empresa japonesa

SYSTEMAX Software, foi o programa que escolhi para realizar os trabalhos desta

pesquisa. Desde seu lançamento em 2006 tem ganhado grande popularidade, não

somente por suas configurações e layout22 de fácil acesso, como também pela

opção de criação de brushes23 pré modificados ou totalmente criados pelo próprio

artista.

O programa oferece desde a utilização de vetores, até a simulação de

variados efeitos de pincéis, gizes e canetas com naturalidade. Uma vantagem crucial

deste software e o que o tornou tão popular é o fato de exigir pouco de qualquer

sistema operacional em que for instalado podendo facilmente ser utilizado em

computadores mais antigos, e dificilmente passando por problemas de "crash"24 ou

22 Esquema, estrutura. 23 Pincéis. 24 Quando o sistema para de funcionar por sobrecarga.

Figura 10 - Captura de tela da Interface básica do Paint Tool SAI

Page 30: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

31

falhas que possivelmente poderiam danificar o trabalho. Ele também é adaptado a

aceitar diversos formatos de imagens, e continua em constante desenvolvimento,

segundo atualizações constantes pelo site da SYSTEMAX.

Em um mar de programas simples de pintura com abundância de interfaces e opções de customização de pincéis, o SAI oferece mais ou melhores opções que a maioria dos competidores. Para o artista digital, seus projetos passados, atuais e futuros podem diferir-se entre si drasticamente, e quando uma flexibilidade é necessária, o Paint Tool SAI é o camaleão dos pincéis. (FRONCZAK, 2013)

4. O PÓS-APOCALÍPTICO EM CAMPO GRANDE

Além do assunto ter minha preferência, como citado previamente, alguns

outros fatores e artistas acabaram por influenciar a escolha da ideia do projeto.

Como não sou originalmente de Campo Grande, me senti um pouco

perdida nas etapas iniciais, pois não sabia muito bem por onde começar. Havia uma

grande variedade de locais com o potencial de cenário necessário, e seria apenas

uma questão de obter as fotos quanto estes estivessem vazios para poder estudar a

possibilidade de recriar atmosferas mais intensa e apropriadas. Contudo,

conversando com colegas, e especialmente com o Prof. Esp. Elomar Bakonyi,

passei a considerar a ideia de utilizar locais e construções “abandonadas” ou

“esquecidas”.

Seria interessante buscar conhecer tais locais que, após ouvidas

sugestões, pareciam carregar auras misteriosas e rumores dos mais diversos tipos.

O estado físico destes possíveis locais também ajudaria a ressaltar os ideais

estéticos que eu buscava.

Em meio ao processo acabei adaptando as ideias para um pós-

apocalíptico fantasioso, nos quais criaturas de todos os tipos vagam de forma

melancólica pelos espaços vazios que um dia já foram habitados por vida. Contudo,

preferi deixar em aberto a ideia do que pode ter gerado tal transição, ou se estas são

criaturas vivas ou espíritos das memórias e sentimentos deixados para trás – vai do

observador depositar seus próprios sentimentos em relação ao que vê, e é por isso

que alguns elementos desse projeto tem identificação ambígua.

Esta mesma ideia se dá em relação também a minha própria percepção,

já que gostaria de poder revisitar as obras no futuro e imaginar novas perspectivas

Page 31: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

32

para estes cenários. Inspirada em alguns dos conceitos de Beksinski, a ideia é

oferecer ao observador a possibilidade de sempre experienciar novas nuances de

percepção.

4.1. O processo fotográfico

O primeiro passo do projeto foi voltado à obtenção de fotografias que se

encaixam na ideia da temática. Fui auxiliada por meu colega de curso, Luan Luigi,

que me acompanhou e me orientou nos recursos técnicos para a obtenção das

imagens, utilizando uma câmera Canon t5i.

Nosso primeiro destino seria o então abandonado projeto do “novo

terminal”, localizado ao longo da avenida Presidente Ernesto Geisel. Acabamos nos

perdendo um pouco no caminho e, enquanto tentávamos retornar a direção correta,

encontramos uma espécie de terreno vazio mas cercado, onde um senhor capinava.

O que chamou a atenção neste local foram as diversas colunas de cimento que se

estendiam em meio à vegetação. Ao questionarmos o homem sobre no que ele

trabalhava ali sozinho, este comentou que o local se tratava de um projeto privado

abandonado sem entrar em muitos detalhes, mas que poderíamos fazer registros do

local.

Page 32: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

33

Figura 11 - Algumas das fotos obtidas no terreno cercado

Fonte: Livia Molica Gill (Autora).

Retomamos nosso caminho ao primeiro destino sem maiores problemas.

Como previsto, o local estava completamente vazio. Apesar de algumas sessões

estarem mais escuras que outras, pudemos explorar a área central interna e

capturar seus elementos mais interessantes.

Page 33: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

34

Figura 12 - Algumas das fotos obtidas no projeto do Novo Terminal

Fonte: Livia Molica Gill (Autora).

Ao final da tarde, Luan sugeriu que fossemos visitar o galpão abandonado

da antiga estrada de ferro Noroeste do Brasil, que um dia foi destinado ao manejo de

vagões e cargas em geral, e se localiza próximo a conhecida feira central.

Page 34: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

35

Figura 13 - Algumas das fotos obtidas no galpão da antiga Noroeste do Brasil

Fonte: Livia Molica Gill (Autora).

4.2. Desenvolvimento

O processo inicial para trabalhar com o desenvolvimento das ilustrações

foi a seleção dos cenários a serem utilizados no projeto. Essa escolha foi realizada

de forma individual, julgando-as a partir de elementos ou composições que

demonstravam ter um potencial interessante, e conforme eu aprendi a lidar com a

mescla das ilustrações e a manipulação das imagens.

Foi utilizada uma mesa digitalizadora Wacom Bamboo para a realização

dos trabalhos.

Page 35: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

36

Figura 14 - O modelo da mesa digitalizadora, Wacom Bamboo

Fonte: Amazon.com. Disponível em:

<https://www.amazon.com/Wacom-CTL460-Bamboo-Pen-Tablet/dp/B002OOWC3I>.

A escolha dos temas poderia surgir de formas variadas, mas sempre

buscando ao menos um simbolismo sutil. Usarei como exemplo a primeira

composição que chamei de “Eu também tenho medo”. Enquanto andávamos pelos

corredores do projeto abandonado do terminal, entre os diversos espaços vazios e

escuros, acabei comentando com Luan o quão fácil seria imaginar que este local era

assombrado, se não estivéssemos transitando por ali em plena luz do dia. Luan

respondeu que seu maior medo não seria encontrar assombrações e sim pessoas

sob influência de drogas ou moradores de rua que possivelmente poderiam se sentir

ofendidos por ter seu espaço invadido ou registrado. O comentário acabou

permanecendo na minha memória e, enquanto fazia a escolha para o primeiro

trabalho, me lembrei de imaginar se esta sala, em algum momento, poderia ter

servido de abrigo para alguém.

Page 36: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

37

Figura 15 - Foto escolhida para o processo da primeira peça

Fonte: Livia Molica Gill (Autora).

O foco se tornou a primeira janela, a partir da ideia de que se sentir

observado de dentro da escuridão gerava uma sensação de incerteza e desconforto.

Ao analisar mais profundamente a situação, acabei também divagando sobre o outro

lado da moeda - o quão solitário seria habitar sozinho tal espaço escuro? Foi a partir

deste questionamento que comecei a desenvolver com mais profundidade as

temáticas que viriam a acompanhar o resto do trabalho.

Minhas ideias iniciais é que o habitante dessa escuridão deveria causar

tanto medo quanto empatia. Em memória ao comentário de Luan e em relação aos

meus sentimentos próprios quanto a situação difícil que essas pessoas acabam

enfrentando no dia-a-dia, fui inspirada a usar traços que remetessem às

características de um morador de rua, desgastado física e emocionalmente por sua

condição.

O primeiro passo foi experimentar o uso do brush básico sobre a imagem

em si. Me utilizando de uma camada transparente, criei um rascunho base de forma

mais aproximada onde gostaria que a figura se posicionasse.

Page 37: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

38

Figura 16 - Captura de tela do rascunho e do brush selecionado

Fonte: Livia Molica Gill (Autora).

Com conhecimento de experiências prévias, decidi utilizar a escuridão da

sala para favorecer o desenho e facilitar sua fusão com o cenário. Essa etapa

envolve a criação de uma nova camada com o efeito shade25 aplicado, pois após

preenchê-la completamente no tom escolhido e mudar sua configuração de

opacidade para 93%, a iluminação se transforma facilmente sem perder elementos

de identidade importantes.

25 O efeito shade permite realçar cores em uma forma de transparência escura.

Page 38: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

39

Figura 17 - Captura de tela da camada com shade e opacidade aplicadas à foto

Fonte: Livia Molica Gill (Autora).

Para poder realçar ainda mais as cores desejadas no cenário e eliminar

elementos que não queria manter na imagem, criei uma nova camada com shade,

fazendo apenas pequenas edições sobre os locais necessários, utilizando o pincel

acrylic26.

26 Que simula os efeitos da tinta acrílica.

Page 39: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

40

Figura 18 - Captura de tela da comparação do resultado final com a área editada com o pincel acrylic

Fonte: Livia Molica Gill (Autora).

Por fim, comecei a criação da figura, testando um número variado de

pincéis de acordo com a necessidade do efeito de sombreamento e mescla que

precisava, como o acrylic, airbrush27 ou water28. Na concepção, busquei criar

deformidades e elementos sobrenaturais que pudessem tanto oferecer a

ambiguidade que buscava, quanto manter uma identificação visual próxima ao ideal

original. Por exemplo: ao mesmo tempo que estudava referências para barbas,

também estudava pedaços de carne e pele dilacerados.

27 Que simula os efeitos de retoque por pressão de ar. 28 Que simula os efeitos da água nas cores/pincéis.

Page 40: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

41

Figura 19 - Captura de tela do close da face da figura central

Fonte: Livia Molica Gill (Autora).

Não é possível perceber facilmente esses detalhes à distância, sendo

requerido do observador que se aproxime do quadro impresso fisicamente ou por

zoom em sua versão digital. As mãos e dedos da figura são disformes e alongadas,

parecendo fazer conexão com alguma forma de apêndice ou panos que podem estar

ligados de alguma forma a ela.

Os toques finais foram apenas estudos de variação de cor, utilizando os

filtros29 de tom e saturação, até obter cores que se aproximassem mais à iluminação

do cenário.

29 Efeitos que podem ser aplicados em camadas singulares ou a imagem toda, e modificam cor e luz.

Page 41: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

42

Figura 20 - Captura de tela de comparação da cor original versus teste de variações

Fonte: Livia Molica Gill (Autora).

O resultado final alcançou a composição desejada e, mesmo sentindo que

precisava me aprofundar em meus estudos de sombreamento para uma mescla

mais natural, me senti satisfeita com sua forma final.

Figura 21 - Resultado final: “Eu também tenho medo”

Fonte: Livia Molica Gill (Autora).

Page 42: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

43

As outras composições seguiram os mesmos padrões de criação,

mudando apenas a ordem, que sofreu algumas alterações, e o uso e teste de certos

pincéis. Houve também uma melhoria significativa no sombreamento conforme

avançavam as produções. Me senti confortável em testar com mais variedades de

cores.

Figura 22 - Alguns estudos anatômicos para a segunda ilustração

Fonte: Livia Molica Gill (Autora).

Figura 23 - "A Última Carga"

Fonte: Livia Molica Gill (Autora)

Page 43: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

44

Figura 24 - "Culpa"

Fonte: Livia Molica Gill (Autora).

Page 44: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

45

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que atualmente o horror seja utilizado popularmente como forma de

entretenimento e por vezes seja julgado como apenas um gênero que visa causar

fortes emoções e oferecer situações violentas de forma “gratuita”, sua importância

para o emocional e racional humano, assim como sua relevância do conhecimento

próprio e do reconhecimento da empatia para com seus similares é fundamental. O

pós-apocalíptico apresenta problemas com os quais qualquer pessoa pode se

identificar em caso de tais situações extremas e, por ser tão versátil e oferecer uma

enorme gama de possibilidade de temas, uma vez utilizado de maneira correta

demonstra poder expressar questionamentos voltados tanto a adversidades sociais

quanto julgamentos pessoais.

A partir do uso da ilustração digital, técnica artística que já me sinto

confortável em explorar, pude adentrar mais a fundo os contextos da temática e

experimentar o uso de cenários da cidade de Campo Grande, com a qual ainda

busco me envolver e familiarizar em prol de compreender sua essência e sua

história.

A busca por conseguir mesclar as ilustrações aos cenários reais me

impulsionou a aprender novas maneiras de viabilizar tais efeitos, em conjunto com o

estudo de equilíbrio uso de tons mais escuros e de nuances que pudessem valorizar

tais traços tanto para a ilustração quanto para a fotografia.

De maneira geral, no decorrer desse projeto, me senti mais livre para

experimentar o uso da ilustração em conjunto com outros tipos de arte no futuro,

pois apesar da incerteza dos resultados, o estudo em si já demonstra ser um fator

de incentivo e aprendizado importante.

Page 45: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

46

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOOKER, M. K.; THOMAS, A. The science fiction handbook. Wiley-Blackwell, 2009. 356 p.

COOCH, Nisha. Halloween Special – Why Does the Brain Love a Scary Holiday?

Brain Blogger. Out, 2014. Disponível em: <http://brainblogger.com/2014/10/31/halloween-special-why-does-the-brain-love-a-scary-holiday/>. Acesso em: 09 fev 2015, 15:35.

COWAN, James. Zdzislaw Beksinski biography. Morpheus Gallery. 2002. Disponível em: <http://morpheusgallery.com/Zdzislaw%20Beksinski/biography.php>. Acesso em: 25 out 2014, 15:46.

ECO, Umberto. História da Feiura. Rio de Janeito: Record, 2014. 453 p.

FRITSCHER, Lisa. Phasmophobia, Fear of Ghosts. Disponível em:

<http://phobias.about.com/od/phobiaslist/a/phasmaphobia.htm>. Acesso em: 07 fev 2015, 19:05.

FRONCZAK, Tom. Top 20 Most Essential Software for Artists and Designers.

Animation Career Review, Set, 2013. Disponível em: <http://www.animationcareerreview.com/articles/top-20-most-essential-software-artists-and-designers>. Acesso em: 02 maio 2015.

GRANTHAM, M. The Macabre as a Concept (2007) [S.I] Humanities 360 – Every topic. Every Angle.

Disponível em: <http://www.humanities360.com/index.php/essays-the-macabre-as-a-concept-2-62655/> .

Acesso em: 17 out 2014, 18:40

HOUAISS. Uol Dícionário Houaiss online - Acesso restrito a usuários. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=Horror>. Acesso em: 17 mar 2015, 11:21

KÖESTER, Kim. Figures & Creatures. Gallery. Disponível em:

<http://kimkoester.com/index.php/gallery/view>. Acesso em: 25 out 2014, 17:50.

BÜNEMANN, J.; KÖESTER, Kim; CHUMANN, R.; SCHULZ, S. 99Rooms. Rostlaub.

Disponível em: <http://www.rostlaub.com/>. Acesso em: 25 out 2014, 18:20.

LOVECRAFT, H.P. Supernatural Horror In Literature (1927). Estados Unidos – Domínio Público. Disponível em: <http://www.hplovecraft.com/writings/texts/essays/shil.aspx>. Acesso em: 17 out 2014, 18:35.

Page 46: Tcc 2015 Lívia Molica Gill

47

MICHAELIS, Dicionário Brasileiro da Lingua Portuguesa. Disponivel em:

<http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=Demonofobia>. Acesso em: 07 fev 2015, 19:30.

OLIVIERI, Antonio C. Mitologia: Uma das formas que o homem encontrou para explicar o mundo.. UOL Educação, Out. 2005. Disponivel em: <http://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/mitologia-uma-das-formas-que-o-homem-encontrou-para-explicar-o-mundo.htm>. Acesso em: 10 out 2015, 16:25.

OOSTERWIJIK, Sophie. Dance of Death. Oxford Bibliographies, Abr. 2012.

Disponivel em: <http://www.oxfordbibliographies.com/view/document/obo-9780195396584/obo-9780195396584-0020.xml>. Acesso em: 17 out 2014, 19:50.

PAUL, Christiane. A Companion to Digital Art. Hoboken: Wiley Blackwell, 2016.

609 p.

REGULAMENTO do trabalho de conclusão de curso de Artes Visuais – Bacharelado. Disponível em: < http://artesvisuais.sites.ufms.br/files/2014/06/TCC-REGULAMENTO-aprovado-colegiado1.pdf>. Acesso em: 08 abr 2016.

SIEGEL, Courtney. 6 Types of Natural Instincts. Discovery News, Sep. 2010.

Disponivel em: <http://news.discovery.com/adventure/survival/6-types-of-natural-instincts.htm>. Acesso em: 07 fev 2015, 19:35.

SYSTEMAX. Easy Paint Tool SAI. Disponivel em: <https://www.systemax.jp/en/sai/>. Acesso em: 2 mar. 2015, 15:17.

TAMBORINI, R.; WEAVER, J. B. Horror films: current research on audience preferences and reactions. New York: Routledge, 2009. 216 p. [(Routledge Communication Series).]

VOORHIES, James. Surrealism. Department of European Paintings, The Metropolitan Museum of Art. Disponivel em: <http://www.metmuseum.org/toah/hd/surr/hd_surr.htm>. Acesso em: 25 fev 2015, 11:32.