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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES-URI
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTE
PROGRAMA DE PÓS-GGRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA
MEMÓRIA E TRAUMA EM MEMÓRIAS DO CÁRCERE, DE
GRACILIANO RAMOS
TANIRA GIACON
FREDERICO WESTPHALEN
FEVEREIRO, 2015
1
TANIRA GIACON
MEMÓRIA E TRAUMA EM MEMÓRIAS DO CÁRCERE, DE
GRACILIANO RAMOS
Dissertação apresentada a Programa de Mestrado em
Letras - área de concentração em Literatura
Comparada, na linha de pesquisa Literatura, História
e Memória, da Universidade Regional Integrada do
Alto Uruguai e das Missões, de Frederico
Westphalen. Orientadora: Profª. Drª. Ana Paula
Teixeira Porto.
FREDERICO WESTPHALEN, FEVEREIRO DE 2015.
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente a Deus,
autor da vida, que me sustenta em cada momento. Ele é presença constante, que me
dá forças para vencer as adversidades e prosseguir em busca dos meus sonhos.
À minha família,
por entender a minha ausência, pelo amor, carinho e por aceitarem e apoiarem
minhas escolhas.
Às amigas,
pelo carinho, compreensão e incentivo.
Aos professores do Mestrado em Letras da URI-FW,
pelos valiosos ensinamentos transmitidos.
Ao professor Dr. Lizandro Carlos Calegari e à professora Drª. Luana Teixeira Porto,
por aceitarem participar da minha banca examinadora, pela leitura atenta de meu
texto, pelas reflexões que contribuíram para a renovação de sentido deste trabalho.
Ao Professor Dr. Lizandro Carlos Calegari,
meu orientador, no início dessa dissertação, sempre com dedicação, competência,
sabedoria e amizade conduziu a fase inicial do trabalho. Obrigada pelo apoio,
paciência e o auxílio constante para que eu pudesse levar esse projeto a efeito.
À Professora Drª. Ana Paula Teixeira Porto,
um agradecimento especial pelas orientações, sempre com segurança, sabedoria,
competência, dedicação, incentivo e amizade. Pela incansável leitura de meus textos.
Devo a ela aprendizados que considero fundamentais e que levarei para minha vida.
Sua preocupação, orientação, capacidade de escutar e, quando necessário,
aconselhar, me fizeram perceber o seu grau de humanidade, algo fundamental para
quem ocupa a posição de professora e mestre.
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“A censura nunca acaba para aqueles que vivenciaram a experiência.
É uma marca no imaginário que afeta o indivíduo que sofreu. É para sempre.”
Noam Chomsky
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RESUMO
O objetivo principal dessa dissertação é analisar as relações entre memória e trauma
no livro Memórias do cárcere (1953), de Graciliano Ramos, levando em conta abordagens
sobre a tortura, a violência física e psicológica sofrida pelo personagem-narrador da obra. Este
trabalho dá ênfase a alguns tópicos da biografia do autor, bem como a um aporte teórico sobre
trauma e memória, para, com base nesses pressupostos, ser realizada uma análise da obra,
articulando-a com a realidade social e histórica do Estado Novo (1937 a 1945). O enfoque da
memória e do trauma é fundamentos teóricos de Márcio Seligmann-Silva e Maurice
Halbawachs. Analisando o livro de Graciliano Ramos, observa-se que o trauma e a memória
relatados pelo personagem constituem-se posicionamentos coletivos, mas com componentes
individuais, articulando um ao outro. O que liga o trauma à memória individual e coletiva é o
testemunho, um traço que caracteriza o texto do escritor ao mesmo tempo em que consolida o
diálogo que a obra estabelece com os episódios que singularizam o Estado Novo. Nesse
sentido, considerando o relato do testemunho de Graciliano Ramos, este avalia a degradação e
a miséria humana das prisões brasileiras por meio da narrativa em primeira pessoa e a
linearidade dos fatos. Aborda-se também a linguagem do discurso traumático presente nas
marcas linguísticas, como: o estado psicológico, as dificuldades de lembrar, falar e
compreender do narrador, diante do autoritarismo na prisão. Ressalta-se a narração como cura
e construção da memória na tentativa de o narrador curar suas lembranças traumáticas através
da narrativa. Por isso, a narrativa é um meio possível para construir uma memória dos fatos,
lutando que elas nãos sejam esquecidas. Por fim, salienta-se a função social e política da obra,
que apresenta uma visão mais crítica, reflexiva e a humanizadora diante dos fatos traumáticos
narrados.
Palavras-chave: Memórias do Cárcere. Trauma. História. Memória. Graciliano Ramos.
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ABSTRACT
The main objective of this dissertation is to analyze the relationship between memory
and trauma in prison Memories book (1953), by Graciliano Ramos, considering approaches to
torture, physical and psychological violence suffered by the work character-narrator. This
work emphasizes in some author's biography of topics and a theoretical contribution on
trauma and memory, based on these assumptions held a work analysis, articulating with the
social and historical reality of the Estado Novo (1937-1945). The focus of memory and
trauma is studied through theoretical assumptions as Márcio Seligmann-silva and Maurice
Halbawachs. Analyzing the book by Graciliano Ramos, it is observed that the trauma and
memory reported by the character constitute collective positions, but with individual
components, articulating each other. What connects the trauma to the individual and
collective memory is the testimony a trait that characterizes the writer of the text at the same
time consolidates the dialogue that the play sets with episodes that single out the New State.
Thus, considering the report of the Graciliano Ramos testimony, this evaluates the
degradation and human misery Brazilian prisons through the first-person narrative and the
linearity of the facts. Also tackles the language of traumatic discourse in this language brands
such as: the psychological state, to remember the difficulties, speak and understand the
narrator, before the authoritarianism in prison. We emphasize the narration as healing and
construction of memory in the attempt of the narrator heal their traumatic memories through
the narrative. Therefore, the narrative is a possible way to build a memory of facts, fighting
they no's are forgotten. Finally, we highlight the social and political function of the work,
which presents a more critical view, reflective and humanizing before narrated traumatic
events.
KEYWORDS: Memories of Prison. Trauma. History. Memory. Graciliano Ramos.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 7
1 LITERATURA E SOCIEDADE: CONTEXTO DA OBRA DE
GRACILIANO RAMOS.............................................................................................. 12
1.1 O autoritarismo do Estado novo............................................................... 12
1.2 Graciliano Ramos: vida e obra................................................................. 21
1.3 Memórias do Cárcere: a obra e a fortuna crítica...................................... 28
1.4 O teor Autobiográfico em Memórias do Cárcere..................................... 36
2 LITERATURA, HISTÓRIA, MEMÓRIA E TRAUMA:
ALGUNS APONTAMENTOS TEÓRICOS ............................................................. 40
2.1 Ficção, história e memória ...................................................................... 40
2.2 Literatura e trauma ................................................................................. 49
2.3 Memória e esquecimento ........................................................................ 58
3 MEMÓRIA E TRAUMA EM GRACILIANO RAMOS: MEMÓRIAS
DO CÁRCERE ............................................................................................................. 68
3.1 A forma narrativa de Memórias do Cárcere............................................ 69
3.2 A narração e a linguagem do discurso traumático................................. 80
3.3 Narração como cura e construção da memória ..................................... 84
3.4 Memórias do Cárcere: função social e política contrária ao
apagamento da memória através da literatura..................................... 88
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 92
REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 96
7
INTRODUÇÃO
A presente dissertação visa a articular discussões acerca da memória e do trauma na
obra Memórias do Cárcere (1953), de Graciliano Ramos. Os conceitos de memória e trauma
podem ser associados a uma reflexão do testemunho do personagem-narrador da obra de
Graciliano e, por meio dessa abordagem, é possível fazer uma leitura da sociedade brasileira
no período de 1937 a 1945, quando o Brasil viveu um regime autoritário vinculado ao Estado
Novo, liderado por Getúlio Vargas. Logo, são estabelecidas relações entre literatura e história
a partir de um viés sociológico.
Além disso, nosso trabalho pauta-se em premissas de Antonio Candido (2000), que
aponta que se deve determinar o valor de uma obra, pelo efeito da criação artística, com o
objetivo de proporcionar o efeito emocional ou uma sensação de prazer e emoção através do
estético. A crítica literária, como a desenvolvida nesse trabalho, vale-se das circunstâncias da
sociedade por meio de seus costumes, crenças e valores, dando suporte para uma criação da
obra literária.
Ao analisarmos uma obra como a de Graciliano Ramos, entendemos que o trabalho
de crítica refere-se ao texto literário não somente como expressão de uma dada época ou de
um grupo social, mas sim como produto resultante de ações da própria construção artística, o
qual conduz a um valor estético, que incorpora a dimensão social. Esses fatores estéticos e
sociais propiciam um novo enfoque para a crítica e a sociologia. Na visão de Antonio
Candido (2000), podemos observar que existe, na obra literária, uma integração entre
acontecimentos sociais e históricos, ou seja, elementos externos, e produção artística.
Segundo o autor, nesse processo
o externo se torna interno e crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica.
O elemento social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao
lado dos psicólogos, religiosos, lingüísticos e outros (CANDIDO, 2000, p. 8).
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No entender de Candido (2000), os estudos sociológicos em literatura, os quais
podem estar fundamentados nas premissas acima, enfatizam as diversas maneiras de analisar
uma obra, ou seja, como a obra está diretamente ligada aos reflexos tradicionais da sociologia
e da história. Dessa forma, os estudos sociológicos fazem uma relação com o conjunto da
literatura, assim como o gênero e o período, acrescentando a uma dada situação coletiva de
uma sociedade.
O texto dialoga com a comunidade, analisando tanto a estética como a linguagem,
numa construção do texto em si. Na definição antiga, os fatores externos apresentam-se
contrários, já que a estrutura não é dependente, pois combinam como condições de recursos
necessários para a compreensão de um texto. Nessa perspectiva, leva-se em consideração, na
análise de uma obra literária, o social, não se importando com conceito e nem com a causa,
mas sim enfatizando a importância dos elementos sociais na elaboração da estrutura, como
parte interna de um texto.
A sociologia na literatura não se detém ao valor em si da obra, porque possui um
interesse maior pelo modo de viver e de ser de uma dada sociedade, visando à divulgação de
um livro, o gosto pelo gênero, pela classe social e pela maneira como a vida social e política
podem interferir no conteúdo de uma obra. Ou seja, interessa saber como o autor constrói uma
dada realidade social através da visão do mundo de uma obra e transmite para seus leitores
esses ideais e vivências.
Com base nisso, o tema desta dissertação é importante para analisarmos de que
maneira as memórias e os traumas marcaram a sociedade brasileira na primeira metade do
século XX e como a literatura os representa, tomando como objeto de análise a obra de
Graciliano Ramos produzida no contexto do Estado Novo. Considerando esses pressupostos,
o objetivo geral da dissertação consiste em analisar as relações entre memória e trauma no
livro Memórias do Cárcere, levando-se em conta abordagens sobre a biografia do autor, a
tortura, a violência física e psicológica sofrida por ele na prisão. Visamos também a estudar a
questão da autobiografia de Graciliano Ramos, investigar o contexto histórico do Estado
Novo, com vistas a fundamentar o estudo sobre a obra, analisar o trauma de escritor e sua
relação com a forma estética do livro em questão, estudar referências sobre memória e trauma
na obra, avaliar a memória individual e coletiva presente no livro, relacionando-as à memória
e ao trauma de Graciliano Ramos no Estado Novo.
Para alcançar tais objetivos, primeiramente, no primeiro capítulo desta dissertação,
apresentamos um estudo sobre o contexto histórico do Estado Novo, ressaltando que, por
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meio da repressão e da violência, esse momento gerou no país transformações de diversas
ordens, pois as pessoas não tinham voz ativa e nem podiam opinar e se manifestar diante de
assuntos relacionados ao governo de Getúlio Vargas. Destacamos que o Estado Novo iniciou
em 1937, com a campanha presidencial para as eleições de 1938, num momento cheio de
tensão, pois o governo relembrava o movimento militar de 1935 e temia as possibilidades de
novas ameaças pelos comunistas no país. Em setembro de 1937, o pretexto de Vargas veio
com a invenção de um suposto plano de insurreição comunista, sendo um documento forjado,
com o nome de Plano Cohen, no qual tinha a assinatura de Cohen, um militante comunista
judeu, que tinha como pretensão a posse do poder com o apoio soviético.
Apontamos, nessa retomada histórica, que o Estado Novo era semelhante ao modelo
fascista europeu em voga naquele período. As modificações foram diversas, tais como os
direitos individuais suspensos, a instituição da pena de morte aplicada em casos de crimes
contra a organização do Estado Novo; nesse contexto, os estados perderam seus poderes,
ficando subordinados ao Executivo, tendo a colaboração do capitão Olímpio Mourão Filho,
membro do Estado-Maior do Exército e chefe do Serviço de Inteligência da Ação Integralista
Brasileira. Assim, surge a necessidade da implantação do Departamento Administrativo do
Serviço Público (DASP) com o objetivo de obter melhorias no serviço público, formado
apenas com funcionários concursados.
Acrescentamos no primeiro capítulo que o fim do Estado Novo veio com a derrota
nazista na Segunda Guerra Mundial, já que o Brasil envolvera-se na luta contra os nazistas
porque era a favor da democracia no país. Segundo Del Priore (2010, p. 261), “sob pressão do
Exército, o criador do Estado Novo deixa o poder”. Sendo assim, a pressão da sociedade
levou o governo a marcar para dois de dezembro de 1945 a realização de eleições gerais,
sendo autorizadas a formação de partidos políticos e a organização de campanhas publicitárias
dos candidatos ao governo.
Em seguida, damos ênfase à biografia de Graciliano Ramos quando esteve na prisão,
pois entendemos que conhecer o contexto de publicação de Memórias do Cárcere é
importante para compreendermos o trauma vivido pelo autor no cárcere. A obra Memórias do
Cárcere é composta de dois volumes e está inserida num período em que a literatura brasileira
estava numa nova fase em que os escritores da época retratavam a realidade social na qual
estavam inseridos. Em 1953, no mesmo ano da morte do escritor, publicou-se a obra póstuma,
intitulada, Memórias do Cárcere. Obra esta que relatou toda a dor, sofrimento e o testemunho
do personagem-narrador, Graciliano Ramos, quando esteve preso, na época da Era Vargas, no
10
ano de 1936. De acordo com os estudos de Luana Teixeira Porto e Ana Paula Teixeira Porto a
obra Memórias do Cárcere focaliza um estudo sobre a experiências de tortura e repressão do
regime autoritário brasileiro da época do governo Vetulista. (2012), o que nos aponta para um
singular diálogo do livro com o contexto social daquela época. Nesse sentido, Memórias do
Cárcere possibilita-nos uma reflexão sobre a violência e opressão, retratada na literatura, a
triste realidade de um governo ideologicamente autoritário, valendo-se da memória individual
do personagem-narrador e também da memória coletiva dos indivíduos que fizeram parte
dessa narrativa, diante do autoritarismo da Era Vargas.
Logo após, enfatizaremos dados da obra Memórias do Cárcere e sua fortuna crítica,
ressaltando o que críticos literários destacam sobre ela com o objetivo de mapear questões
relevantes do texto abordadas por pesquisadores diversos. Posteriormente, analisarmos a
autobiografia de Graciliano Ramos com enfoque dado ao gênero autobiográfico que
transparece na obra.
O terceiro capítulo do trabalho enfoca a análise do texto literário, correlacionando com
o aporte teórico sobre memória e trauma especialmente. Nessa perspectiva, o eixo de reflexão
está pautado em quatro enfoques: a forma da narrativa; a narração e a linguagem do discurso
traumático; a narração como cura e construção da memória; e por fim a função social e
política contrária ao apagamento da memória através da literatura. Esses quatro tópicos de
observação foram eleitos por considerarmos sua coerência com a proposta geral do estudo e
com o referencial teórico adotado.
Essa proposta de estudo está pautada em alguns fatores, entre os quais meu apreço e
admiração quanto aos textos do escritor Graciliano Ramos. Além disso, o caráter realista de
seus textos que oportunizam uma reflexão sobre a sociedade brasileira e sobre temas sociais
relevantes motiva a seleção do corpus e o recorte temático desenvolvido nessa dissertação.
Ainda salientamos que, além desse interesse e gosto pessoal por Memórias do Cárcere,
observamos a necessidade de ampliar o conhecimento sobre a memória e o trauma de
personagem Graciliano Ramos durante a época de repressão do Estado Novo, liderado por
Getúlio Vargas. Neste caso, o autor é relevante conhecer mais acerca da experiência
traumática vivida pro prisioneiros na época e como as narrativas literárias contam tais
episódios. Além disso, o estudo da obra contribui para registrar a uma política da memória.
Para o desenvolvimento da dissertação, são levadas em conta abordagens que auxiliam
na análise e na interpretação de elementos do trauma e da memória presentes na obra
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Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos. O estudo dá ênfase, basicamente, a alguns
tópicos acerca da biografia do autor e aos traumas e às memórias presentes na sua obra,
procurando articulá-las com a realidade social e histórica do Estado Novo. Para a abordagem
das temáticas selecionadas, busca-se respaldo em referências da História Social e Literária,
tendo em vista o estudo da memória e do trauma o que confere à pesquisa uma relação
intrínseca com a área da literatura comparada.
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1 LITERATURA E SOCIEDADE: CONTEXTO DA OBRA DE GRACILIANO
RAMOS
1.1 O autoritarismo do Estado Novo
Antes de estudarmos o Estado Novo, convém analisarmos o contexto histórico da
Revolução de 30, marco inicial que contribuiu para o autoritarismo da Era Vargas
posteriormente. A Revolução de 1930 surgiu com as transformações provocadas pela crise
mundial de 1929, as quais se refletiram na sociedade brasileira através das transformações na
área econômica, política e social. No entanto, a crise mundial gerou um desequilíbrio entre os
partidos políticos brasileiros, como a política café com leite e a formação de uma nova chapa
ao governo federal para concorrer às eleições de 1930, chamada Aliança Liberal, liderada por
João Pessoa e Getúlio Vergas, ambos com o apoio do estado de Minas Gerais. Conforme
afirma Antonio Pedro Tota (1987):
Nasceu em Minas Gerais, a Aliança Liberal. O objetivo era [...] concorrer às eleições
presidenciais como oposição. O apoio da oligarquia gaúcha foi imprescindível:
Getúlio Vargas foi escolhido como candidato para concorrer à presidência da
república pela aliança Liberal. (p. 10)
A Aliança Liberal era semelhante às propostas da oligarquia tradicional. Entretanto,
continha algumas inovações que iam ao encontro às reivindicações dos trabalhadores urbanos,
como o voto feminino secreto e melhores condições de trabalho para os operários. Sendo
assim, o Brasil do início da década de 1930 era marcado pela urbanização e industrialização,
no entanto, ainda permanecia no cenário social e econômico a predominância agrária. Apesar
do avanço social e econômico, o poder da oligarquia cafeeira era praticamente inabalável.
Em 1918, com o término da Primeira Guerra Mundial, o Brasil se viu inserido num
mundo bastante mudado. Os Estados Unidos tornam-se a nação mais poderosa do mundo. Ao
longo das décadas de 1920 e 1930, muitos países europeus adotaram os regimes ditatoriais. O
Brasil também passou por mudanças. Com o crescimento das indústrias, aumentou o número
de operários e de outros trabalhadores urbanos, crescendo e tornando-se mais importante nas
camadas médias urbanas. Intensificaram-se os movimentos operários, mas muitas vezes eram
reprimidos à força. Jovens oficiais voltavam-se contra a política tradicional, baseada no
autoritarismo, na oligarquia e na fraude eleitoral. Juntou-se a isso o agravamento da crise
econômica em fins da década de 1920, propiciando um cenário para inúmeras revoltas que
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culminaria com a Revolta de 1930, que depôs o presidente Washington Luís e levou Getúlio
Vargas ao poder.
A partir da Revolução de 1930, temos o início da Era Vargas. Conforme salienta
Rafael Pires Rocha (2008, p. 17) “Após a queda da República Velha, com a chamada
Revolução de 1930, implantou-se no Brasil uma „nova ordem‟, cuja proposta central era
erradicar as mazelas políticas e sociais do período anterior.” Sendo assim, a Revolução de
1930 trouxe mudanças significativas na política e na sociedade brasileira, por intermédio da
Era Vargas, sendo dividida em três períodos, tais como: Governo Provisório, Governo
Constitucional e Estado Novo. O primeiro período, Governo Provisório, cuja preocupação era
defender a cafeicultura, promoveu a valorização do café, tão desvalorizado na crise de 1929.
O Governo Constitucional preocupava-se em reorganizar uma nova constituinte, sendo
fundada em 16 de julho de 1934.
A Constituição de 1934 regularizou vários atos tomados durante o Governo
Provisório. Dentre eles, podemos destacar: extinção do cargo de vice-presidente e como isso o
presidente da câmara assumiria em caso de impedimento do presidente; e instituição da
Justiça do Trabalho, com jornada de oito horas, salário mínimo, repouso semanal obrigatório,
etc. Depois de aprovada a Constituição, foi elaborado um Código eleitoral, instituindo o voto
secreto, tendo o direito de votar homens e mulheres com mais de 18 anos. Antes, o voto era
apenas para os homens maiores de 21 anos.
O Estado Novo iniciou em 1937, com a campanha presidencial para as eleições de
1938, num momento cheio de tensão, pois o governo relembrava o movimento militar de
1935 e temia as possibilidades de novas ameaças pelos comunistas no país. Com as eleições a
caminho, foram lançados três candidatos: Armando de Sales Oliveira, Plínio Salgado e José
Américo de Almeida. Durante a campanha, Getúlio Vargas agiu com aparente naturalidade,
mostrando-se indiferente e com pouca simpatia pelos candidatos. A sua única preocupação era
preparar o golpe de Estado que garantiria sua permanência no poder.
Em setembro de 1937, o pretexto de Vargas para ascensão ao poder veio com a
invenção de um suposto plano de insurreição comunista a partir de um documento forjado,
com o nome de Plano Cohen, no qual tinha a assinatura de Cohen, um militante comunista
judeu, que tinha como pretensão a posse do poder com o apoio soviético. De acordo com os
estudos de José Raimundo Inocêncio Ferreira (2008, p. 9), “O pretexto para o Golpe de
Estado foi justificado com a „descoberta‟ de um documento que delineava um suposto golpe
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comunista, foi o conhecido „Plano Cohen‟”. O plano foi anunciado nos principais jornais do
país e, com isso, o Congresso apoiou a decretação do estado de guerra. Sendo assim, Vargas
deu um golpe de Estado em novembro de 1937, com o apoio da cúpula das Forças Armadas,
dos intelectuais e dos integralistas. Ao estabelecer o Estado Novo, pôs fim aos partidos
políticos, bem como à suspensão da constituição, dando início a uma era de autoritarismo que
se estenderia até 1945.
Assim, Vargas, após o golpe, organizou uma nova Constituição, que atribuía amplos
poderes aos executivos, já que a nova organização do Estado Novo era semelhante ao modelo
fascista europeu em voga naquele período. As modificações foram diversas, tais como os
direitos individuais suspensos, a instituição da pena de morte aplicada em casos de crimes
contra a organização do Estado Novo; nesse contexto, os estados perderam seus poderes,
ficando subordinados ao Executivo e tendo a colaboração do capitão Olímpio Mourão Filho,
membro do Estado-Maior do Exército e chefe do Serviço de Inteligência da Ação Integralista
Brasileira. Assim, surgiu a necessidade da implantação do Departamento Administrativo do
Serviço Público (DASP) com o objetivo de obter melhorias no serviço público, formado
apenas com funcionários concursados.
O Estado Novo passou a investir na política econômica, preocupando-se com a
valorização da produção interna das indústrias brasileiras e, com isso, contribuiu para um
crescimento na economia do país, cujo desenvolvimento foi através das indústrias e empresas.
No entender de Michael George (2008, p. 04) “A economia brasileira se desenvolvia em um
contexto estatizante composta de grandes corporações empresariais e industriais.”. Contudo,
com o crescimento empresarial e industrial no Estado Novo, o país deixou sua economia
voltada para as oligarquias e passou a direcionar-se para a burguesia. Nessa perspectiva, o
Governo apoiou a instalação da Companhia Vale do Rio Doce e a Siderúrgica Nacional. Logo
depois, em 1938, surgiram o Conselho Nacional do Petróleo e o Instituto Nacional do Pinho.
Já em 1939, houve a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP),
desempenhando um papel importante no Estado Novo: cuidar da censura aos meios de
comunicação, como o cinema, a imprensa escrita e o rádio, e também da propaganda oficial
do governo. O DIP tinha, por fim, segundo Antonio Pedro Tota (1987, p. 34), a meta de
centralizar, coordenar, orientar e superintender a propaganda nacional interna ou
externa e servir permanentemente como elemento auxiliar de informação dos
ministérios e entidades públicas e privadas na parte que interessa à propaganda
nacional.
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Para o processo de legitimação, o Estado utilizou meios de comunicação mais
modernos para atingir as massas populares. Mesmo sendo oficializado em 1939, esse
departamento já funcionava há muito tempo. Abrangia todos os veículos de comunicação, em
especial, o papel da imprensa com suas propagandas políticas, bem como o rádio. Este, por
sua vez, tornou-se um veículo da ideologia do trabalhador e também outras manifestações
culturais, como a canção popular. Assim, é visível o autoritarismo do governo Getulista, nos
meios de comunicação, bem como a imagem de “pai da nação” de Getúlio Vargas. O rádio
passa a transmitir em cadeia nacional, obrigatoriamente, a “Hora do Brasil”, anunciando os
informativos oficiais do Estado Novo e também propagandas culturais. Entretanto, havia
concursos, promovidos pelo DIP, para apurar as melhores canções escolhidas pela população.
Foi no autoritarismo que Getúlio Vargas manipulava sua ideologia de governo, para que a
mesma fosse transmitida a toda sociedade da época; tal ideologia era considerada pelos
governantes como um modelo ideal de sociedade para a população brasileira.
Todos os anos, no dia 1º de maio, o presidente Getúlio Vargas anunciava com
eloquência a história e a importância dos trabalhadores na sociedade brasileira. Conforme
afirma Tota: “símbolos e festejos tradicionais da classe operária, como o 1º de maio” (TOTA,
1987, p. 39). Assim, o populismo de Getúlio Vargas aumentava na proporção que seus
discursos exaltavam a importância dos operários para a industrialização brasileira. Em todos
os pronunciamentos, Getúlio Vargas anunciava uma inovação nas chamadas leis trabalhistas,
a qual era transmitida pelo rádio para todo o país.
O autoritarismo do Estado Novo estava presente em vários acontecimentos sociais no
Brasil, como a instituição, em 1º de maio de 1938, do Dia do Trabalho, no Estado Novo.
Getúlio Vargas declarou em tom autoritário, segundo Tota, que
O trabalhador é maior fator de elevação da dignidade humana [...] ninguém pode
viver sem trabalhar. O operário não pode viver ganhando apenas o indispensável
para não morrer de fome. O trabalho justamente remunerado eleva-o na dignidade
social. (VARGAS apud TOTA, 1987, p.41).
Primeiramente, o presidente falou sobre a valorização do cidadão brasileiro por meio
do trabalho, já que todos os indivíduos precisam trabalhar, defendia. A Legislação Trabalhista
foi fundada com o intuito de atribuir melhores condições de trabalho para os brasileiros,
juntamente com a criação do salário mínimo, em 1º de maio de 1942. Na visão de Simon
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Schwartzman (1983, p, 342), “Salário mínimo, (...) é capaz de satisfazer (...) as necessidades
normais de alimentação, habitação, (...) do trabalhador adulto, sem distinção de sexo.”.
Porém, Getúlio Vargas, além de prevalecer o autoritarismo na sua maneira de governar o país,
também se importou com seu povo, melhorando um pouco a vida dos moradores urbanos.
Contudo, os moradores rurais ainda eram sujeitos à exploração do grande proprietário. De
acordo com Nélson Jahr Garcia (2000, p. 41), “Os trabalhadores rurais encontravam-se
totalmente marginalizados.” Assim, esses trabalhadores possuíam um baixo nível de estudo e
cultural, sendo vulneráveis à manipulação constante dos coronéis, sendo inviável qualquer
forma de reivindicação trabalhista, o que permitiu, assim, o crescimento do setor do
capitalismo agrário.
Getúlio Vargas, na política externa, preferiu seguir uma linha de neutralidade,
negociando com outros países como a Grã-Bretanha, a Alemanha e os Estados Unidos, e
assinando acordos comerciais. Porém, no início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o
Brasil mantinha-se neutro e, com isso, os Estados Unidos pressionaram o país pelo
rompimento de relações diplomáticas e comerciais com os países do eixo que seriam
Alemanha, Itália e Japão. No entanto, em fevereiro de 1942, os navios brasileiros foram
afundados supostamente pelos alemães, e o Brasil determinou sua entrada no conflito mundial
na luta contra os nazistas. Sua contribuição foi no fornecimento de matérias-primas como a
borracha, minério e ferro e as bases militares em Belém, Natal, Recife e Salvador. De acordo
com Mary Del Priore (2010, p. 257), “o ditador aproveita-se da tensa situação internacional
do período anterior à Segunda Guerra Mundial para conseguir vantagens”. Getúlio Vargas
aproveitou a delicada situação internacional para receber vantagens pela participação no
combate contra a Alemanha na Itália. Esses créditos foram usados na recuperação da ferrovia
e construção da Usina Siderúrgica.
A cultura na era Vargas foi intensa, principalmente nos anos de 1930 e 1940. Segundo
Nelson Werneck Sodré (2004, p. 627), “a fase de liberdade, sempre relativa naturalmente,
inaugurada nos fins de 1930, é encerrada em fins de 1935, quando se abre uma fase de
repressão política”. Assim, antes de ir ao ar qualquer programa de rádio, a censura analisava a
programação para que fossem possíveis as devidas modificações quando necessário. O rádio
representou um importante veículo na divulgação da música popular brasileira, consagrando
cantores como Carmem Miranda, Orlando Silva e muitos outros. Portanto, o rádio tornou-se,
com seus programas de auditório, musicais e novelas, um dos entretenimentos preferidos da
população.
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Na arquitetura, Oscar Niemeyer ganhou destaque com o projeto arquitetônico de
Brasília, contratado pelo presidente da época, Juscelino Kubitschek, para planejar a estrutura
da nova capital do país. O artista plástico Candido Portinari destacou-se na retratação da
realidade brasileira em suas obras plásticas. Já na literatura, as obras Vidas secas (1938), de
Graciliano Ramos, Perto do coração selvagem (1943), de Clarice Lispector, e Terras do sem
fim (1942), de Jorge Amado, foram consagradas, por retratarem a sociedade brasileira.
O fim do Estado Novo surgiu com a derrota nazista na Segunda Guerra Mundial, já
que o Brasil envolvera-se na luta contra os nazistas porque era a favor da democracia no país.
Segundo Del Priore (2010, p. 261), “sob pressão do Exército, o criador do Estado Novo deixa
o poder”. Sendo assim, a pressão da sociedade levou o governo a marcar para dois de
dezembro de 1945 a realização de eleições gerais, sendo autorizadas a formação de partidos
políticos e a organização de campanhas publicitárias dos candidatos ao governo.
Getúlio Vargas também tinha interesse em permanecer no cargo, mas a oposição
pressionou e, em 30 de outubro de 1945, foi intimidado pelos militares a renunciar. A eleição
seguiu normalmente, sendo eleito Eurico Gaspar Dutra da coligação PSD-PTB. Porém,
Vargas passou a disputar ao mesmo tempo o cargo de senador, situação em que foi eleito e,
devido a isso, passou a residir em São Borja, no Rio Grande do Sul, para aguardar o momento
de retornar ao governo federal, o que ocorreu em 1951 quando foi eleito pelo voto popular.
O Estado Novo foi um dos momentos mais autoritários e repressivos de toda história
nacional. Uma época em que o Brasil tinha um líder severo: Getúlio Vargas. Segundo Moacyr
Flores (2008), “O presidente Vargas passou a governar por decretos; extinguiu os partidos e
instituiu a pena de morte para os crimes contra o Estado” (p. 222). O Estado Novo concluiu a
obra iniciada em 1930, aperfeiçoando as leis trabalhistas, passando por um processo de
conclusão e consolidação. Getúlio Vargas passou a governar o país com autoridade, e com
isso, a intervenção do Estado nos sindicatos contribuiu para o avanço da economia brasileira.
Sendo assim, o Estado Novo agradou os empresários industriais da época, porque facilitava a
importação de bens de produção. O Estado era um agente da industrialização, iniciando dois
planos, considerados arrojados para o país da época: a hidrelétrica de Paulo Afonso e as obras
da usina de Volta Redonda, com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional.
Segundo os estudos de Luiz Roberto Lopez (1983), com a implantação do Estado
Novo, foi publicada, no Diário Oficial, uma Carta Constitucional. Era o coroamento da queda
da política, tendo seu início a partir da Revolução de 30. Sendo assim, houve a união entre o
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fascismo internacional e o autoritarismo de Getúlio Vargas. Conforme reitera Lopes, “O
Estado Novo uniu a influência do fascismo internacional ao tom do autoritarismo Varguista”
(1983, p. 90). Com isso, o Estado Getulista salientou que a classe dominante estava disposta a
abrir mão da sua atuação direta para apoiar o processo da luta das classes, bem como a
garantia da sua segurança. Já para os militares, eles defendiam sua instituição de um regime
burocrático e repressivo, realizando no país uma mudança moderna, mas que ainda era
conservadora, imposta pelas lideranças militares.
A Carta Constitucional de 1937, elaborada por Francisco Campos, amparava o
presidente Getúlio Vargas, na possibilidade de interferir diretamente nos Estados por meio de
decretos e leis, conforme a realidade local de cada Estado. Conforme afirma o historiador
Luiz Roberto, “A nova constituição ampliava a possibilidade do presidente de intervir nos
Estados e dava-lhe a faculdade de expedir decretos-leis” (LOPEZ, 1983, p. 91). Com isso, o
Estado Novo foi o regime sintetizado na autoridade de um único líder, Getúlio Vargas. Assim,
o Governo Getulista suspendeu as funções do Poder Legislativo dos Estados, bem como
determinou o controle policial, a censura das manifestações intelectuais, através do DIP, e a
total suspensão da liberdade civil.
Para Maria Yedda Linhares (1990), a centralização do autoritarismo, imposta pelo
governo de Getúlio Vargas, vem ao encontro da nova definição do país. Conforme afirma a
pesquisadora, “Tratava-se, para o Estado, de fundar um novo Brasil, homogêneo e uniforme
em seus valores, comportamentos e mentalidades” (LINHARES, 1990, p. 344). Getúlio
Vargas, através da negação nas manifestações artísticas, como peças teatrais, músicas e obras
literárias, almejava um país com igualdade civil, ético e moral. Porém, ele procurava
inviabilizar as formas de expressão da sociedade, ou seja, a sociedade tinha um
comportamento limitado, diante dos acontecimentos sociais e políticos do país.
Getúlio Vargas governava com autoritarismo e utilizava a força policial como suporte
na manutenção do seu governo. Conforme afirma Elizabeth Cancelli (1991, p. 48), “a
existência de um Estado violento suportados pelas ações policiais, que se via no poder da
polícia um caráter administrativo”. A polícia no Estado Novo era extremamente violenta e
contra ideias democráticas. O Estado devia amparar o direito do cidadão; no entanto,
passaram a controlar a sociedade com inúmeros crimes, como a privação das ideias e
liberdade, a censura e as práticas de assassinatos e torturas. Qualquer pessoa, independente da
classe social, seja crítico social ou adversário político, sofria punições e repressões do Estado
Novo.
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O período pós-30, sobre a liderança de Getúlio Vargas, contribuiu para a definição de
uma nova realidade social no país, como o aumento significativo de operários nas grandes
cidades e a redefinição de um espaço urbano e político. As lideranças políticas preocupavam-
se com a dominação da sociedade e empregavam inovações no controle social, centralizando
a sociedade como um todo. Segundo Elizabeth Canelli:
Sob a direção e liderança de Getúlio Vargas, aparece ainda na história social do
Brasil delineado por uma nova realidade: a presença de multidões de trabalhadores
nas grandes cidades, a redefinição do espaço urbano e o projeto político de um
Estado que se autoimpunha a tarefa de promover a inovação moral e política de toda
a sociedade através de novas estratégias de dominação, que negavam, em sua
essência, os princípios políticos do liberalismo clássico. (CANELLI, 1991, p. 55)
Assim, o governo Getulista almejou a necessidade de disciplinar a sociedade. Aliou a
polícia nacional, impondo no Brasil uma nova forma de governar, através da violência e
repressão social a todo o cidadão brasileiro contrário às leis implantadas no Estado Novo. No
entanto, a sociedade brasileira estava sobre vigilância constante através de um aparato
policial, que exercia o controle social, disciplinando o dia a dia dos trabalhadores, bem como
a negação da individualidade das pessoas, com a imposição de sentimento e comportamento.
Getúlio Vargas teve o apoio do Exército, controlado pelos generais Góis Monteiro e
Gaspar Dutra, visto que o Exército precisava de Vargas, porque o processo de unificação do
país era recente. Assim, Getúlio Vargas, simpatizante do fascismo europeu, conta com a
presença policial na vigilância pública e na interferência da ordem do espaço privado para a
implementação das prisões, gerando terror e opressão à sociedade brasileira. Conforme reitera
Elizabeth Cancelli, “A prisão fazia parte do espaço extralegal dominado pelas forças policiais,
[...] seu caráter secreto e reservado contribuía no sentido da implantação do terror”
(CANCELLI, 1991, p. 64). Com isso, a dominação policial no complexo penitenciário
induzia o medo e o controle social como forma de “purificação da sociedade” para justificar a
ação da polícia, visto que os atos de violência tornaram-se rotina durante a Era Vargas.
Os alvos mais constantes de prisão eram os comunistas, seus militantes e
simpatizantes, considerados pela polícia inimigos da Era Vargas. Os comunistas tinham
lançado a tomada do poder em 1935 e, desde então, passaram a ser o primeiro inimigo a
combater. Entretanto, os métodos de tortura usados nas detenções se estendiam nas delegacias
e cadeias penitenciárias, levavam a óbito muitos presos pela falta de assistência médica básica
e pelo tratamento humano básico relacionado entre presos e carcerários.
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As técnicas e os métodos usados nas prisões para torturas das pessoas em busca de
depoimentos eram uma humilhação de todos os tipos. Os mais frequentes eram: socos e
pontapés, pancadas com cassetetes, arames serviam para enfiar em ouvidos ou uretra,
aquecimento com maçarico, até ficar em brasa, para queimar as mais diversas partes do corpo.
Havia falta de comida e de água. Para Elizabeth Cancelli:
A forma de tortura mais comum e generalizada, entretanto, era debilitar ao máximo
o corpo dos prisioneiros, a fim de que eles fossem morrendo aos poucos. Essa
debilidade dos corpos, [...] fazia com que os homens se tornassem também
prisioneiros de si mesmo, e que a vida na prisão se transformasse em uma luta
individual pela sobrevivência. (CANCELLI,1991, p. 395)
A tortura era uma política desumanizadora de governar para combater seus
adversários, desrespeitando e reduzindo-os a nada. O Estado, através da tortura, queria
mostrar a impotência dos presos diante de seus carcereiros, entretanto, os torturados
executavam ações autorizadas, baseada na ideologia da dominação do Estado Novo, sobre a
sociedade, diante da figura de Getúlio Vargas, sendo ele a representação de uma nação
autoritária.
A polícia mantinha o medo nas ruas, fazia a sociedade sentir-se impotente, mas todo o
tipo de tortura veio ao fim juntamente com a queda de Getúlio Vargas, em 1945, com a
derrota do nazismo na segunda Guerra Mundial. Os mesmos generais do Exército, Góis
Monteiro e Gaspar Dutra, que apoiaram Era Vargas, agora estavam apoiando as
manifestações da sociedade, autorizando a consolidação de novos partidos políticos, para uma
renovação ao governo.
No governo autoritário de Getúlio Vargas, vários escritores da literatura brasileira
sofreram os reflexos da concepção ideológica do Estado Novo. Alguns dos principais
escritores consagrados, como Graciliano Ramos, Jorge Amado e José Lins do Rego,
abordaram a realidade do seu tempo, ou seja, criaram um universo fictício, baseado nas suas
realidades sociais. Conforme manifestou Antonio Candido (1989, p. 187), “O decênio de
1930 foi a extensão das literaturas regionais e sua transformação em modalidades
expressivas.” Essa literatura regionalista e realista, escrita por críticos ou comunistas, ajudou
os indivíduos a refletir sobre os fatos sociais e históricos, nos quais estavam inseridos. Com
isso, o Estado Novo através do DIP censurou inúmeras obras literárias, ordenando queimá-las,
para que a população não tivesse acesso a esse tipo de leitura. Sendo assim, Graciliano
Ramos, após o término da Era Vargas, teve publicada em 1953, a obra póstuma Memórias do
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Cárcere, denunciando o drama, o sofrimento e a tortura física e psicológica enfrentada nas
prisões brasileiras daquela época. É um texto que merece atenção não apenas por suas
particularidades estéticas, mas pelo diálogo que constrói com o Estado Novo e pela interação
entre fatos sociais e produção artística.
Para compreendermos melhor sobre a sociedade do Estado Novo, convém abordarmos
o estudo de Peter Burke sobre a história. Conforme os estudos de Peter Burke (1992) surge, a
partir da década de 50, uma necessidade de atribuir novos conceitos acerca da história. Nesse
sentido, ele pondera que é importante a história ser analisada sobre o ponto de vista das
classes menos favorecidas. Para o autor: “a história vista de baixo, em outras palavras, com
as opiniões das pessoas comuns e com suas experiências da mudança social.” (BURKE, 1992,
p.03). Por esse viés, Peter Burke pondera que a história contada apenas pela visão da elite é
menos enfatizada, e passa a voltar sua atenção para as pessoas “comuns”, por essa razão surge
a chamada “história vista de baixo”. Portanto, homens que tinham suas histórias ignoradas e
silenciadas começam a serem ouvidos, pois suas experiências se tornam importantes para a
historiografia. Por essa razão, a obra Memórias do Cárcere vem ao encontro dos estudos de
Peter Burke fazendo alusão a “história vista de baixo”, pois Graciliano Ramos narra suas
experiências dolorosas e traumáticas decorrentes dos dez meses que esteve preso, nas diversas
prisões brasileiras, juntamente com outros indivíduos. Portanto, a obra é importante para a
historiografia porque acentua o testemunho de Graciliano Ramos sobre a vivência hostil, o
trauma e a autoridade da década de 30. Isso nos remete a pensar também em Graciliano autor,
sua vida e obra.
1.2 Graciliano Ramos: vida e obra
A obra Memórias do Cárcere, de autor Graciliano Ramos, é texto de um dos mais
importantes escritores da literatura brasileira moderna e um dos maiores representantes do
chamado romance de 30, no Brasil. Na visão de Ada Maria Hemilewski (2007, p. 65), “Os
trabalhos de Amando Fonte, Graciliano Ramos, (...) são geralmente enquadrados, tanto pela
crítica quanto pela história literária, no denominado „romance de 30‟”. Entretanto, Graciliano
Ramos escreveu de maneira a contemplar e a denunciar uma série de informações contextuais,
levando ao apontamento das estruturas sociais, sendo por isso denominada “regionalista” ou
“romance-social”. Sua atividade literária foi intensa, bem como o trabalho desenvolvido na
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comunidade de Alagoas, no qual se salienta a reformulação dos métodos de ensino com
técnicas inovadoras, que despertassem o interesse do estudante em aprender, trazendo a sua
realidade para a sala de aula.
O escritor nasceu em Quebrangulo, Alagoas, em 27 de outubro de 1892, época em que
se iniciava a liberação dos escravos e se instituía o trabalho assalariado para todos os
trabalhadores, além de se observar um crescimento monetário. Mudou-se com os pais
Sebastião Ramos e Mara Amélia Ferro Ramos para Buíque, Pernambuco, e depois para
Alagoas, residindo em Viçosa e Palmeira dos Índios até 1914. De acordo com Ana Paula de
Oliveira da Silva (2012), “Graciliano Ramos nasceu na cidade de Quebrangulo, mas saiu de lá
com dois anos de idade, (...) a família, então, decidiu abandonar o interior de Alagoas pelo de
Pernambuco, mais especificamente na cidade de Buíque, onde seu pai começou a trabalhar
com o comércio.” Assim, em 1915, teve uma rápida passagem pelo Rio de Janeiro,
trabalhando como jornalista. Ainda neste mesmo ano, retornou a Palmeira dos Índios, e casou
com Maria Augusta Barros, falecendo de parto cinco dias depois.
Em 1925, Graciliano começou a escrever uma história passada numa cidade do
interior, sendo uma antiga aldeia dos Caetés. Graciliano conheceu os problemas das escolas
municipais, quando foi presidente da Junta Escolar de Palmeira São Bernardo dos Índios.
Quando foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios, em 1928, abriu três escolas nas aldeias:
Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. Um mês depois de sua posse, casou com Heloísa
Medeiros com quem teve quatro filhos: Ricardo, Roberto, Luísa e Clara. Graciliano era rígido
com as filhas e liberal com os filhos.
Em 1930, Graciliano renunciou à prefeitura e foi para Maceió, onde foi nomeado
diretor da Imprensa Oficial, demitindo-se no ano seguinte. Já em 1932, retornou a Palmeira
dos Índios, fundando uma escola, e começou a escrever. Como estava doente, interrompeu o
trabalho e foi operado em Maceió.
Em 1933, publicou se primeiro romance, intitulado Caetés, cujo personagem
principal e narrador era João Valério, um caetés de olhos azuis, que falava um português
ruim. O romance tem como espaço a cidade de Palmeira dos Índios. De acordo com Marcelo
Magalhães Bulhões (1999, p. 29): “A narrativa transcorre em Palmeira dos Índios, cidade em
que Graciliano viveu (...); na época em que vivia em Palmeira dos Índios, Graciliano Ramos
escrevia Caetés”. Em Caetés, o enredo era o caso amoroso entre João Valério e Luiza, esposa
de Adrião, chefe de João Valério. Adrião, por meio de uma carta anônima, ficou sabendo do
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adultério de sua esposa e, em seguida, suicidou-se. João Valério, arrependido com o que fez,
afastou-se de Luiza. Assim, João passou a dedicar-se em seu livro, com o intuito de escrever
um romance histórico dos índios caetés, de seus antepassados. Segundo Marcelo Magalhães
Bulhões (1999, p. 29): “O narrador de Caetés, João Valério, escreve um livro sobre os índios
caetés.” Sendo assim, o leitor estava diante de dois livros, a obra Caetés de Graciliano Ramos
e o livro “caetés”, de João Valério, na qual ambos não têm semelhanças.
Ainda podemos ressaltar a questão metalinguística envolvida no enredo de Caetés,
visto que o romance sugere o livro dentro do livro. Segundo Afrânio Coutinho, (2001, p.
392): “A estrutura ficcional de Caetés desenvolve-se e constrói em dois planos nítidos, ora
alternando-se ora encruzando-se.” Contudo, a obra Caetés contém um plano interior e
exterior, que ressaltava a consciência dos seus personagens, visto que o personagem-narrador
relata a vida dos habitantes de sua cidade, porém os mesmos têm uma vida cheia de tédios e
sem glórias.
Ao deixar definitivamente Palmeira dos Índios, em 1933, Graciliano foi residir em
Maceió, sendo nomeado diretor da Instituição Pública de Alagoas. Lá trabalhou intensamente,
reformulando os métodos de ensino para se adequarem às escolas, tão necessitadas de amparo
e novos horizontes.
Em 1934, publicou o livro São Bernardo. A referida obra tem como cenário a
fazenda São Bernardo, na cidade de Viçosa, em Alagoas. Paulo Honório foi o personagem-
narrador, que decidiu escrever um livro sobre sua vida. Em referência a Paulo Honório,
Graciliano Ramos (2002, p.1) afirma que: “Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo
pela divisão do trabalho”. No entanto, o personagem-narrador produziu uma obra
autobiográfica, valendo-se da ajuda dos amigos para desenvolver o enredo. De acordo com
depoimento de Graciliano Ramos, (2002, p. 1), “Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos
consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais.”
Paulo Honório relembrava todos os fatos de sua vida. Da infância, não lembrava
muito. Já adulto lembrou-se do período em que esteve preso e com isso ficou obcecado em
obter dinheiro e ser o dono da fazenda São Bernardo, onde trabalhava. Ao sair da prisão,
algum tempo depois, comprou a fazenda e nela fundou uma escola, sendo Madalena a
professora. Paulo Honório e Madalena casaram. Paulo Honório foi um homem desconfiado e
sem escrúpulos. Já Madalena tinha ideias socialistas. Segundo André Luis Mitidieri (2012, p.
43) “Começa a se destacar a divergência entre as concepções de mundo de Madalena e Paulo
Honório.” Assim, Madalena entristeceu com facilidade, diante das desconfianças de traição e
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da diferença de pensamento entre ela e Paulo Honório, o que também ocasionou uma difícil
convivência entre ambos. Madalena, de tanta tristeza, suicidou-se. Paulo Honório, triste e sem
ânimo para seguir com os negócios da fazendo, acabou endividado e falido.
Para Vera Prola Farias (2012, p. 53), a obra São Bernardo está inserida na ideologia
da oligarquia brasileira, pois, “No âmbito ideológico do mundo das oligarquias de um Brasil
rural, Paulo Honório encara o mais caro mito da sociedade capitalista moderna.” No entanto,
o Brasil, nos anos 20, era capitalista e sua agricultura era baseada na oligarquia, oriunda do
coronelismo. Paulo Honório veio de uma infância pobre, ficou preso durante três anos, por um
crime que cometera, e mediante a violência do sertão, conseguiu prosperar na vida. Conforme
a pesquisadora, “apesar da infância miserável, (...) conseguiu „vencer‟ sozinho e tornar-se um
homem próspero.” (FARIAS, 2013, p. 53). Assim, o personagem-narrador, em meio às
dificuldades, venceu na vida. Para isso, valeu-se da falta de caráter, já que almejava inserir-se
na sociedade capitalista, sendo um sujeito dotado de poder.
De acordo com os estudos de André Luis Mitidieri (2012), a obra São Bernardo
apresenta uma construção memorialista por fazer uma alusão aos devaneios da vida
conturbada de Paulo Honório. No entender do pesquisador: “É assim que a memória contém a
totalidade do passado, (...) na memória do narrador-personagem, uma discussão entre Godim
e Padilha detalha outros traços de Madalena.” (MITIDIERI, 2012, p. 40-41). Contudo, Paulo
Honório, quando lembrava de sua trajetória, relacionava-a com um conjunto de lembranças
semelhantes, fazendo parte da memória individual e memória coletiva. Assim, ele escreveu
sua autobiografia.
Graciliano Ramos ainda trabalhava como diretor da Instituição Pública de Alagoas,
quando, no início de 1936, começou a receber misteriosos telefonemas, com ameaças ocultas.
Mesmo assim, Graciliano não se intimidou e continuou trabalhando normalmente, até que, no
dia 3 de março, foi surpreendido em sua residência em Maceió, foi preso por atividades
consideradas revolucionárias, sem, no entanto, ter sido acusado formalmente. Permaneceu
preso por dez meses e sofreu todo o tipo de humilhações. Percorreu vários presídios no Brasil.
Não se tendo provas de que Graciliano Ramos era comunista, foi inocentado e libertado, em
janeiro do ano seguinte. Após sair da prisão, Graciliano não voltou mais ao Nordeste e passou
a residir no Rio de Janeiro, num quarto de pensão com sua mulher e as filhas menores.
Escreveu nesse período, sendo premiado pelo Ministério da Educação no concurso de
literatura infantil, em 1937.
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Ainda morando no quarto de pensão, Graciliano Ramos escreveu seu último
romance, Vidas Secas, vindo a ser publicado em 1938. Essa obra relata a história da família de
retirantes: Fabiano, Sinha Vitória, o menino mais novo, o menino mais venho e a cachorra
Baleia. A história se passa no sertão nordestino, visto que o escritor retratou a realidade da
época, num ambiente precário e pobre, bem como a terra seca. Em referência à obra Vidas
Secas, Denise Almeida Silva (2012, p. 93) afirma que: “Em Vidas Secas, à terra áspera e seca
correspondem seres rudes, de poucas palavras, tão concentrados em sobreviver que quase não
lhe resta alento para „fraquezas‟”.
Vidas Secas, além de retratar o drama da seca enfrentada pela família de Fabiano,
também apresenta outro viés, como a frieza e aspereza na relação familiar, bem como a falta
de carinho e ternura. Segundo Graciliano Ramos, “Sinha Vitória não conversou um instante
com o menino mais velho.” (2002, p. 26). A falta de diálogo e carinho entre os filhos é
constante na obra, porém estes são chamados de menino mais novo e menino mais velho sem
referência que os identifique como nomes próprios. Assim, Sinha Vitória e Fabiano, tão
acostumados com a rudeza do sertão, esquecem de ser carinhosos com eles mesmos e com os
filhos, pois se preocupam somente com o trabalho na terra seca, onde o que se plantava,
pouco nascia, decorrente da seca nordestina.
Notamos, na narrativa de Vidas Secas, diversas situações de problemas sociais,
como a violência e a opressão. Na perspectiva de Luana Teixeira Porto e Ana Paula Teixeira
Porto (2012, p. 105): “Vidas Secas é também marcada por experiências de violência e
opressão: Fabiano, sua esposa e os filhos são oprimidos e explorados pelo patrão.” Entretanto,
a família de Fabiano e Sinha Vitória, além de sofrer com a difícil realidade social na qual
estavam inseridos, também sofre com a autoridade, representada pelo patrão de Fabiano e pela
força policial. Sendo assim, Fabiano é enganado pelo patrão e violentado pela polícia,
representado pelo Soldado Amarelo. Contudo, a forte influência do meio em que vivem, por
meio, do ambiente difícil, rude e áspero, os moldou de tal forma que a única preocupação é a
sobrevivência.
Em 1939, Graciliano Ramos é nomeado Inspetor Federal do Ensino. Nesse mesmo
ano escreveu Histórias de Alexandre, contendo histórias do folclore nordestino e destinadas,
principalmente, para a juventude e tendo um foco singular em sua produção: a literatura
infantojuvenil. Para Erwin Gimenez (2004, p. 188)
essas histórias de feitio popular se põem exato na passagem da ficção à confissão: o
escritor parece desprender-se então do romance, em textos curtos e descontínuos,
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ensaiando já os quadros da infância que, se aqui surgem por meio dos relatos
ouvidos no sertão (e ora recriados), adiante irão narrar as experiências pessoais.
A obra Infância foi publicada em 1945 quando o Brasil vivenciava o término do
Estado Novo, de Getúlio Vargas, bem como, no contexto internacional, o fim da Segunda
Guerra Mundial. A obra é o primeiro livro sobre memórias de Graciliano Ramos, podendo ser
lido como romance, no entanto é também um conjunto de contos. Conforme afirma Souza,
“Infância retoma a forma de composição estruturada sobre capítulos e contos e expõe também
questões de ordem social, mas com uma narrativa em primeira pessoa.” (SOUZA, 2001, p.
94). Assim, a obra possuiu contos com elementos que falam sobre a vida social e pessoal e
também os dramas enfrentados pela sociedade nordestina, narrados pelo narrador-
personagem.
O livro Infância consta de memória biográfica de Graciliano Ramos. De acordo com
Souza: “O tema da infância será finalmente o núcleo narrativo predominante (...) Graciliano
Ramos narra a partir da perspectiva da criança” (SOUZA, 2001, p. 52). Graciliano Ramos é o
personagem-narrador que conta sua vida desde menino até a fase de amadurecimento interior,
narrando toda a opressão de sua vida.
Contudo, o livro interage com as condições social e o desenvolvimento psicológico
das personagens, moldados pela triste realidade da seca no sertão nordestino. Conforme
reiteram Luana Teixeira Porto e Ana Paula Teixeira Porto: “Graciliano cria contos que
assumem um tom memorialista por fazerem alusão à infância, cuja vivência é acompanhada
de opressão, secura e frieza” (2012, p.101). Para dar conta dessa temática, a linguagem da
obra é simples, e a secura e a frieza estão presentes nas relações humanas, inclusive nos
diálogos curtos entre personagens. Assim, o meio difícil em que vive o personagem-narrador
deixa transparecer nos atos das pessoas a influência da difícil vida no sertão. Graciliano
Ramos escreve sua autobiografia, no período de 1892 a 1903, na faixa etária de 0 a 12 anos,
das suas origens em Quebrangulo, Alagoas, e também Buique, Pernambuco. Os contos de
Infância trazem as memórias de uma criança em crescimento, bem como suas lembranças,
detalhadas a partir dos sete anos. As memórias de Graciliano enquanto criança são retratadas
num texto rico em detalhes sobre a vida no engenho e os problemas sociais do nordeste e a
seca.
Graciliano participou em Salvador do Congresso para Escritores em 1950, onde foi
eleito presidente da Associação Brasileira de Escritores, participando também de congressos
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em Porto Alegre. Foi convidado também para participar das comemorações dos 150 anos de
nascimento de Vítor Hugo. Assim Graciliano foi a Paris, à Tchecoslováquia e à União
Soviética.
Ao retornar para o Brasil, Graciliano adoece, sendo diagnosticado com câncer. Em
setembro de 1952, vai a Buenos Aires fazer uma cirurgia. Em outubro voltou ao Brasil e
completou sessenta anos. Seu aniversário foi comemorado na Câmara Municipal do Rio de
Janeiro. A homenagem foi feita por seus amigos, dentre eles, Jorge amado, José Lins do
Rego, Jorge de Lima e entre outros, mas apenas a filha de Graciliano compareceu,
agradecendo a homenagem, já que o pai estava de cama. Em 23 de janeiro de 1953, internado
na Casa de Saúde e Maternidade, depois de dois meses, faleceu Graciliano, sem nunca ter
escrito nada sobre o Rio de Janeiro mesmo morando lá por dezessete anos.
Em 1953, no mesmo ano de sua morte, publicou-se a obra póstuma, intitulada
Memórias do Cárcere. Obra esta que relatou toda a dor, sofrimento e o testemunho do
personagem-narrador, Graciliano Ramos, quando esteve preso, na época da Era Vargas, no
ano de 1936. De acordo com os estudos de Luana Teixeira Porto e Ana Paula Teixeira Porto a
obra Memórias do Cárcere “está mais direcionada a experiências de tortura e repressão do
regime autoritário brasileiro da ditadura de Getúlio Vargas” (2012, p. 105). Memórias do
Cárcere possibilita-nos a reflexão sobre a violência e a opressão, retratada na literatura, a
triste realidade de um governo ideologicamente autoritário, valendo-se da memória individual
do personagem-narrador e também da memória coletiva dos indivíduos que fizeram parte
dessa narrativa. Acentua essas experiências com olhar sobre o autoritarismo da Era Vargas.
Para tanto, Graciliano Ramos apropria-se das lembranças do que viveu nas prisões
brasileiras para poder aproximar-se do real. Conforme reitera Ada Maria Hemilewski (2012,
p. 73), “É percebido o esforço, empreendido pelo Velho Graça, de aproximação ao real
vivido, quer dizer, aos cárceres do governo Getulista.” Porém, Graciliano Ramos, ao criar a
narrativa de Memórias do Cárcere, aproximou-a do real, já que ela referiu-se à realidade do
Estado Novo, relatando a opressão dos cárceres brasileiros. O texto é narrado de forma linear
de modo a obedecer à ocorrência dos acontecimentos, interagindo com o tempo histórico, já
que ele faz parte dos fatos da obra, sendo assim, Graciliano Ramos constituiu seu testemunho
literário. Sobre essa narrativa, é importante trazer algumas leituras críticas que contribuem
para melhor compreensão de sua estrutura e proposta, o que se contempla na seção a seguir.
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1.3 Memórias do Cárcere a obra e a fortuna crítica
A obra Memórias do Cárcere é composta de dois volumes e está inserida num período
em que a literatura brasileira estava numa nova fase em que os escritores da época retratavam
a realidade social em que estavam inseridos. O período de 1930 a 1945 marcou a estreia de
alguns escritores relevantes para a literatura brasileira no romance regionalista, que são
Rachel de Queiroz, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos.
Graciliano Ramos é o próprio personagem-narrador da obra Memórias do Cárcere,
sendo escrito dez anos após a ocorrência dos fatos ocorridos na prisão: “Revolvo-me a contar,
depois de muita hesitação, casos passados há dez anos” (RAMOS, 2004, p. 33). O escritor
conta suas memórias e seus traumas e os de tantas outras pessoas que estiveram presas
durante o Estado Novo. Graciliano foi preso em março de 1936, acusado de ligações com o
Partido Comunista. De acordo com Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira (2011, p. 144),
“No ano de 1936, ainda sob os ecos da Revolução de 30, já no governo de Getúlio Vargas, o
escritor Graciliano Ramos foi detido no dia 03 de março. Na ocasião era funcionário da
Instituição Pública de Alagoas.” No entanto, Graciliano Ramos, assim como inúmeras
pessoas, foi levado para vários presídios brasileiros e, em janeiro de 1937, foi libertado, já que
não tinham nenhuma prova do seu real envolvimento com os comunistas.
O livro é dividido em quatro partes: “Viagens”, “Pavilhão dos Primários”, “Colônia
Correcional” e “Casa de Correção”. Enquanto esteve preso, Graciliano descrevia diariamente
todo o pânico, sofrimento e torturas das pessoas que se encontravam no cárcere. Segundo
Massaud Moisés, o autor redigiu “páginas candentes de realismo cru, libelo contra o regime
penitenciário e político dos anos 30” (2001, p. 175). Pode-se entender como eram tratados os
presos nessa época, bem como sua memória traumática por meio do narrador-personagem que
saiu de Alagoas, sua terra natal, para os cárceres do Rio de Janeiro.
Na primeira parte, “Viagens”, Graciliano narra as ameaças recebidas por telefone na
Instrução Pública de Alagoas. Conforme afirma o próprio autor: “No começo de 1936,
funcionário na instrução Pública de Alagoas, tive a notícia de que misteriosos telefonemas,
com veladas ameaças, me procuravam o endereço” (RAMOS, 2004, p.38, v. 1). Graciliano
não considerou as ameaças, alegando ser apenas intriga de algum inimigo, todavia, ele não
imaginava que fosse de cunho oficial.
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Posteriormente, um amigo procura alertá-lo sobre sua possível demissão no cargo de
administrador. Segundo Graciliano: “(...) minha permanência na administração se tornara
impossível. Não me surpreendi” (RAMOS, 2004, p. 38, v. 1). Graciliano não estava surpreso
com a demissão, visto que, neste cargo, oito pessoas já haviam trabalhado, no entanto, ele
superou as dificuldades encontradas, permanecendo no cargo por três anos. Na sua gestão,
priorizou a educação, pedindo que nas escolas tocassem o Hino de Alagoas, mas foi infeliz na
sua atitude, interpretada por lideranças do governo como uma ofensa ao Estado de Alagoas. O
governador Osman Loureiro encontrava dificuldades para demiti-lo, pois seria necessário seu
afastamento involuntário.
Graciliano Ramos estava em casa, quando recebeu a visita de uma parente, assustada,
com a possível prisão de Graciliano. Ela insiste para Graciliano fugir da polícia. Segundo
Graciliano: “Ao meio-dia uma parente me visitou. (...) Essa pessoa indiscreta deu-me
conselhos e aludiu a crimes vários praticados por mim.” (RAMOS, 2004, p. 44). Graciliano,
mesmo diante das acusações, decidiu permanecer em casa e aguardar a polícia. Já não temia
mais a ideia de ser preso embora estivesse na conclusão de seu livro, achava que, se ficasse
alguns dias não prisão, seria produtivo para concluí-lo. Conforme afirma Ramos: “Naquele
momento a ideia da prisão dava-me quase prazer. (...) a cadeia era o único lugar que me
proporcionaria o mínimo de tranquilidade necessária para corrigir o livro”. Assim, a prisão
remete a Graciliano um ambiente sereno para a revisão de sua obra além de ficar longe das
pessoas de seu convívio profissional.
Graciliano arrumou a mala com algumas roupas e o livro. Acomodou-se na sala com
sua família, para aguardar a polícia que veio buscá-lo. Sobre esse momento relata Graciliano:
“Que demora, Tenente! Desde o meio-dia estou à sua espera.” (RAMOS, 2004, p. 47, v.1 ).
Graciliano esperava ansiosamente pela polícia. E quando chegaram, foi preso sem processo
formal, acusação ou interrogatórios. Por isso, “Nada afinal do que eu havia suposto: o
interrogatório, o diálogo cheio de alçapões, alguma carta apreendida, um romance com riscos
e anotações, testemunhas sumiram-se” (RAMOS, 2004, p. 52, v. 1). Graciliano estava
esperando justificativas e esclarecimentos sobre sua prisão, mas nada havia acontecido,
ninguém explicou o motivo de ele estar lá e tampouco da viagem que faria a Recife.
Graciliano julgava os militares ásperos e severos. Já no navio Manaus, os presos
conviviam com sujeira, calor, dormiam no chão ou nas redes onde jogavam cascas de laranjas
como se fossem lixeiras. O autor afirma: “Um chiqueiro, evidentemente. Era como se
fôssemos animais” (RAMOS, 2004, p. 167, v.1). Ramos comparou o tratamento que recebeu
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com animais, pois viviam com todo o tipo de sujeira, como o vômito e a urina, contribuindo
para o semblante desanimador dos presos. E assim Ramos ficava angustiado e preocupado,
porque não sabia o que mais ia enfrentar na viagem e no novo lugar que iam chegar.
Na segunda parte de Memórias do Cárcere, “Pavilhão dos Primários”, relata-se que
Graciliano e os demais presos, ao chegaram no Rio de Janeiro, deparam-se com um alto
edifício. Dirigem-se às celas. Ao entrar, são recepcionados pelos demais presos, que cantam
eufóricos uma pequena parte do Hino Nacional para saudar os revolucionários do norte.
Graciliano surpreende-se com a atitude dos presos e observa como essas pessoas estavam.
Segundo Ramos: “Quase todos ali vestiam pijamas, ou apenas traziam cuecas; usavam
tamancos. Eram trinta ou quarenta pessoas” (RAMOS, 2004, p. 208). Portanto, os presos
eram de uma simplicidade excessiva, magros e tristes. Em seguida, Graciliano é convidado
para juntar-se à cela com o Capitão Mata, Enzmann Cavalcante e Newton Freitas.
Conversaram sobre suas profissões. Segundo o relato do narrador-personagem, Graciliano
passava o dia conversando e conhecendo pessoas, olhando tudo ao seu redor com atenção. À
noite, Renato comandava e apresentava a “Rádio Libertadora”. Não era apenas um
divertimento para os presos, mas um momento de notícias de jornais, críticas ao governo,
comentários, algumas canções bastante patrióticas, cantadas pelas mulheres que ficavam no
alojamento ao lado.
As refeições na prisão eram péssimas. Serviam-lhe arroz sem gosto e carne misturada
com peixe. Não tinham faca nem garfo, apenas colher. De manhã, serviam ainda na cela, num
caneco de alumínio, café adocicado e enjoativo e pão amanhecido com manteiga rançosa.
Apenas Capitão Mata achava bom, porque motivava Graciliano, e este acabava comendo um
pouco.
Graciliano relata que conheceu muitas pessoas na prisão, fez novas amizades, mas o
ambiente ainda é de opressão intensa. Segundo o autor era claro, “o reflexo de gritos e uivos
causados por agulhas a penetrar unhas, maçaricos abrasando músculos” (RAMOS, 2004, p.
260, v. 1). Os policiais frequentemente valiam-se da violência para a tortura física e a pressão
psicológica, deixando os presos fracos e em péssimo estado físico e mental, porém a luta pela
sobrevivência na prisão é constante.
Ramos é avisado da visita de sua esposa na segunda-feira. Fica aborrecido e
preocupado com Eloisa. Imaginou a esposa desamparada, pobre e necessitada de sua ajuda.
Como estaria andando nas ruas desconhecidas do Rio de Janeiro?, perguntava. “Que
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estupidez! (...) imaginei-a pobre, desarmada e fraca, a mexer-se à toa na cidade grande”.
(RAMOS, 2004, p. 268, v. 1). Suas aflições desanimaram-no, visto que não podia ajudar
Eloisa, em nada. Não tinha dinheiro para dar-lhe. Sua saúde já não era mais a mesma, tinha
dormência na perna, pouca energia e não sentia os membros. Por essa razão, sentia-se inútil.
Eloisa veio visitar-lhe, na companhia de Luccarini, seu funcionário, em Alagoas.
Graciliano, ao vê-la, alegra-se. Sua raiva e preocupação desaparecem, dando lugar à
ansiedade de conversarem e saber como está sua família. Assim: “A raiva e o desatino
causados pelo súbito aviso em alguns dias se haviam decomposto, substituídos por uma
expectativa ansiosa.” (RAMOS, 2004, p. 271, v 1.). Entretanto, Graciliano, mais calmo,
conversa com Eloisa sobre sua situação na prisão. Ramos emociona-se ao perceber em Eloisa
sua força, dedicação, energia e determinação, para ajudá-lo na prisão. Ramos agradece
emocionado Luccarini, por ter vindo junto com sua esposa. Eloisa fala a Graciliano que foi
conversar com o editor José Olímpio, para a publicação do seu romance, mas Graciliano tem
medo de publicá-lo.
Na terceira parte, “Colônia Correcional”, o enredo tem como espaço o cenário carioca
localizado em Dois Rios na Ilha Grande, no Rio de Janeiro, Graciliano narra a sua difícil
mudança para a Colônia Correcional, tão temida pelos maus-tratos. O narrador, ao chegar à
Ilha Grande, analisa as condições precárias de onde vai ficar. Desce da lancha com cuidado
para não cair. Segue a pé, acompanhado de alguns soldados, mas a caminhada forçada reaviva
dores nas pernas, sequela de uma operação antiga. Segundo Graciliano: “A perna me
atormentava e não me seria possível correr. Declarei isto ao sargento.” (RAMOS, 2004, p. 47,
v. 2). Ramos explica ao sargento das dificuldades de continuar andando. O sargento oferece
um cavalo para Ramos continuar. Ele recusa e diz que poderá chegar ao local até o fim da
tarde.
Segundo o narrador da obra, na Colônia Correcional, os presos sofrem maus-tratos,
sentem-se indivíduos reduzidos à condição de sobrevivência humana. Ao toque da corneta,
são obrigados a fazer filas para a formatura geral. Nesse instante, o sargento de farda branca
diz frases desanimadoras. Segundo relata Ramos, o sargento dizia: “Aqui não há direito.
Escutem. Nenhum direito. Quem foi grande esqueça-se disto. Aqui não há grandes. Tudo
igual.” (RAMOS, 2004, p. 69, v. 2). Assim, os presos passam pelas piores privações, vivendo
num ambiente perigoso que despersonaliza os indivíduos, sendo entregues à própria sorte.
Conforme o relato, Graciliano passa por momentos de angústia e pela triste experiência da
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prisão, visto que os soldados podiam jogar os presos no chão e enchê-los de pontapés, porém,
o que leva o narrador a concluir que os prisioneiros viviam como bichos.
Os presos conviviam num ambiente desumano, desanimador, cercado de sujeira,
morte, dor e muita fome. Quando alguém morria, era enterrado em valas, como lixo. A
comida continha mistura de excrementos de ratos, provocando nos presos muita dor.
Conforme afirma Graciliano, “Na farinha escura havia excremento de rato” (2004, p. 77, v.
2). Essa mistura na comida provocava cólicas intensas, bem como a decomposição da
fisionomia. Graciliano também passava muito mal ao ingerir a comida, contorcendo-se de dor
intestinal. As condições de higiene eram péssimas, não tinham banheiro e nem vaso sanitário,
o que tinham eram apenas buracos. Os presos cada vez mais perdiam a paciência e a
educação, comportando-se muitas vezes como selvagens.
Graciliano estava doente, fez vários exames e não quis ser operado na prisão. Segundo
ele: “De fato, os pobres músculos haviam atrofiado. (...) afirmava-me com dificuldade, a
arrastar a perna trôpega” (RAMOS, 2004, p. 147, v. 2). Nessas memórias, Graciliano relata
que não se alimentava, estava em jejum por vários dias. Como consequência, ficou muito
fraco e, como não estava bem e não havia provas contra ele, foi transferido para a Casa de
Correção. Ao sair, prometeu ao médico que iria escrever um livro sobre o que viveu na prisão.
Na quarta parte do livro, “Casa de Correção”, tem-se o relato de que Graciliano e os
demais presos são transferidos para a Casa de Detenção. Somente nesse instante é que se dão
conta do quanto estavam magros, desfigurados, tristes e que pareciam cadáveres humanos. O
narrador enfatiza que “estava medonho. Magro, barbado, covas no rosto cheio de pregas, os
olhos duros, encovados. Demorei-me um pouco diante do espelho” (RAMOS, 2004, p. 191).
Com isso, Graciliano conclui que o Estado Novo desejava pessoas totalmente acabadas física
e psicologicamente para não terem poder de reação e argumentos perante as decisões do
governo.
No dia seguinte, logo pela manhã, o guarda Moreira trouxe a Graciliano lápis e papel.
Anota o nome de alguns médicos que queria consultar, já que tinha muita dor nas pernas,
pensava ser doença grave. Conforme ele declara: “As dores nas pernas anunciavam doença
grave. Iam do tornozelo ao joelho, era como se os ossos estivessem desfazendo.” (RAMOS,
2004, p. 200, v. 2). O narrador tinha dificuldades de se mexer, as pernas não tinham mais
consistência, tinha medo de caminhar e cair. Passara quinze dias de jejum na Colônia
33
Correcional. A fraqueza tomava-lhe conta do corpo e da alma. De noite, não conseguia dormir
muito bem, mas não se julgava tão mal assim.
Relata o narrador que, no Pavilhão dos Primários, à noite, houve gritos das mulheres,
visto que Olga Prestes e Elisa Berger iam ser entregues à Gestapo. A polícia alegou que as
duas seriam transferidas de prisão. Na prisão ao lado, José Brasil organizava o protesto.
Graciliano logo pensou nos campos de concentração na Alemanha. Conforme ele afirma:
“Sentado na cama, pensei com horror em campos de concentração, fornos crematórios,
câmaras de gases” (RAMOS, 2004, p. 274). Assim, Graciliano pensava na triste realidade dos
campos de concentração e o horror que Olga e Elisa iriam sofrer. A polícia prometeu aos
presos que Elisa e Olga não iriam sair do Brasil e que podiam levar dois amigos. Segundo
Ramos: “Olga e Elisa seriam acompanhadas por amigos, nenhum mal lhes fariam” (RAMOS,
2004, p. 278, v. 2). Os presos aceitaram a proposta e, junto com elas, foram Campos da Paz
Filho e Maria Werneck. Logo, Campos e Maria regressam ao Pavilhão dos Primários. Depois,
souberam que Olga e Elisa foram assassinadas no campo de concentração, na Alemanha.
Conforme relato do narrador, na sala da capela, houve luta física entre os presos. O
motivo da briga eram as palavras. Os presos já não se entendiam mais. Segundo Graciliano,
“Havia na sala da capela indivíduos assim, não tão rudes, mas férteis em absurdos e
inconciliáveis” (RAMOS, 2004, p. 313, v. 2). Tornavam-se comuns os gritos e a tolerância
era cada vez menos presente na prisão. A desordem era frequente. Falavam palavrões,
bagunçavam tudo o que estava ao seu redor. Uma tarde, na sala do café, uma nova bagunça
surgiu. Envolveram-se muitas pessoas. José Brasil esforçava-se para amenizar a gritaria dos
presos e xingava Graciliano por nunca se envolver nas folias.
No processo de construção dessa narrativa, morre o escritor: Graciliano Ramos faleceu
quando faltava apenas um capítulo para concluir Memórias do Cárcere. Segundo Ricardo
Ramos (2004); “Não tentou concluir suas Memórias do Cárcere.” (p. 318). Graciliano não se
importava em concluir a obra, pois a atenção era desviada para esquecer o sofrimento
prolongado vivido nas prisões do Recife e Rio de Janeiro.
Segundo Lamberto Puccinelli (1975), a obra Memórias do Cárcere não apresenta um
relato da atuação política do escritor, no entanto, relata as várias consequências que essa
atuação lhe causou. Assim, Graciliano, frustrado com a situação política do país e consigo
mesmo, tem a possibilidade de esclarecer sua psicologia, ou seja, tudo o que ele sofreu na
prisão, apropriando-se da produção literária em um processo artístico que confere a Memórias
34
do Cárcere a singularidade de registrar literariamente, a partir de uma perspectiva realista e
focada no trauma, a experiência de prisão no Estado Novo.
Quando Graciliano estava na prisão, no Recife, Capitão Lobo, ao informar que seria
transferido, ofereceu-lhe dinheiro. Conforme afirma Graciliano, “eu pus aí num banco
algumas economias que não me fazem falta por enquanto. Ignoro as suas posses, mas sei que
foi demitido inesperadamente” (RAMOS, 2004, p. 108). Graciliano Ramos ficou
surpreendido com a generosidade do Capitão Lobo ao oferecer dinheiro a ele, que neste
momento era apenas um preso que estava prestes a ser transferido, não sabia para onde ia e
tampouco qual era a razão da sua prisão.
Sendo assim, diante da atitude de bondade do capitão, Ramos chegaria a conhecer a
solidariedade humana. Para Puccinelli, “As criaturas não são apenas brutalidade e violência,
mas seria impossível que essa redescoberta do mundo lhe proporcionasse felicidade”
(PUCCINELLI, 1975, p. 106). No entanto, Graciliano, surpreso com a generosidade do
Capitão Lobo, percebe que nem todos os indivíduos que trabalham na prisão possuem atos de
violência e brutalidade, ou seja, alguns seres humanos ainda são menos ásperos. Mesmo
diante da revelação de uma humanidade mais compreensiva, Ramos não se alegra, visto que
sua sensibilidade fora arranhada e sua integridade ameaçada.
Já para Alfredo Bosi (2002), a obra Memórias do Cárcere remete aos laços que ligam
o autor Graciliano Ramos ao seu depoimento em relação à história política brasileira dos anos
de 30. Assim, a memória de fatos históricos se apropria da construção literária, através do
testemunho do personagem-narrador. Segundo Bosi; “O narrador contempla corpos sofridos,
que às vezes emitem palavras, talvez ideias, farrapos de ideias, (...) a solidariedade que lhe
inspiram aqueles homens.” (BOSI, 2002, p. 223). O personagem-narrador testemunha todo o
sofrimento das pessoas vitimizadas pela censura, tortura, repressão e violência. O que vemos
nessa narrativa de Memórias é um relato comovido de um sujeito à margem do sistema e que
luta pela sobrevivência.
Para Alfredo Bosi, a escrita do testemunho, em Memórias do Cárcere, é abordada
pelas memórias de Graciliano Ramos no seu testemunho de fatos históricos. Segundo o
pesquisador: “O testemunho é subjetivo e, por esse lado, se apresenta com a narrativa literária
em primeira pessoa” (BOSI, 2002, p. 222). O testemunho de Graciliano Ramos é o
depoimento emocionante e traumático do Estado Novo. No entanto, Graciliano apropria-se do
35
seu testemunho, para construir uma literatura realista de episódios que marcaram a história
brasileira da primeira metade do século XX.
Segundo os estudos de Hermenegildo Bastos (1998), em Memórias do Cárcere, o
leitor não pode esquecer o relato traumático, ou seja, a memória do testemunho. Porém,
testemunho é diferente de documento, visto que o testemunho é construído na visão do
sujeito-autor. Conforme afirma Hermenegildo Bastos: “Em Graciliano, a literatura é sempre
testemunha.” (1998, p. 20). Nesse sentido, o testemunho é feito em registros com a literatura,
e a obra Memórias do Cárcere é um testemunho baseado na realidade histórica das prisões
brasileiras a partir da perspectiva da experiência vivida pelo autor.
Memórias do Cárcere, além de ser uma obra com o denso relato carcerário do
personagem-narrador, configura-se como um livro dentro do livro, ou seja, a revisão da sua
própria obra Angústia (1936). Conforme afirma Marcelo Magalhães Bulhões (1999, p. 61):
“As várias referências a Angústia em Memórias do Cárcere configuram a correspondência
mútua entre os dois livros” Para Graciliano, tomar nota sobre a difícil realidade na prisão era
tão importante quanto revisar a obra Angústia (1936). No momento em que o narrador de
Memórias vê a semelhança com um personagem de sua criação - Angústia, o autor explica a
relação de intertextualidade entre as duas obras. Conforme afirma Graciliano: “A cadeia era o
único lugar que me proporcionaria o mínimo de tranquilidade necessária para corrigir o
livro.” (RAMOS, 2004, p. 45). A obra Memórias do Cárcere faz alusão a Angústia, já que se
refere ao momento de composição da obra dentro da cadeia. Graciliano julgava fácil a
correção do livro, ficaria horas concentrado, reescrevendo e consultando o dicionário em meio
aos homens com roupas zebradas que nada tinham a fazer. Ao construir essa metaficção,
vemos em memória outro aspecto singular da obra: o seu caráter autobiográfico.
1.4 O teor autobiográfico em Memórias do Cárcere
Memórias do Cárcere pode ser visto como um texto autobiográfico sobre as condições
traumáticas de Graciliano Ramos. Durante vários meses, esteve na prisão e conheceu a
crueldade do governo getulista, uma experiência que aparece narrada nessas memórias.
Segundo Alfredo Bosi, “Memórias do Cárcere, um dos mais tensos depoimentos da nossa
época, é por certo, o mais alto da nossa literatura” (1994, p. 404). Graciliano descreve não
apenas a sua experiência pessoal, mas retrata, com impressionante nitidez, o drama de uma
36
época histórica marcante de nosso país, por essa razão, a obra é cheia de depoimentos da
época.
Somente após dez anos de sua libertação, Graciliano começou a escrever suas
impressões do cárcere. A decisão em redigir suas memórias demandou muito tempo de
reflexão e amadurecimento. Isso porque o período em que esteve encarcerado foi muito
marcante. Ele foi metido no porão de um navio, misturado a outros indivíduos considerados
criminosos e, por fim, conduzido ao presídio situado numa ilha. Portanto, na vivência do
próprio autor, está o testemunho do fascismo, da situação daquelas pessoas sem destino,
entulhadas em navios, alojadas em porões, sujeitas às piores condições de sobrevivência
humana, com alimentação e higiene precárias, sofrendo todo tipo de torturas e privações.
Em Memórias do Cárcere, é perceptível uma visão não otimista de Graciliano Ramos
sobre a realidade humana. O narrador avalia o homem como um ser pessimista, sem
esperança, desencorajado e com a possibilidade de uma vida anulada pela triste realidade da
prisão. Segundo o próprio narrador-personagem, “provavelmente não havia lugar para nós,
éramos fantasmas, rolaríamos de cárcere em cárcere” (RAMOS, 2004, p. 179, v. 1), uma
passagem da obra que pode explicitar tanto a memória do personagem narrador quanto a do
próprio escritor, dada que na biografia deste a prisão fora uma realidade cruel. Assim,
podemos entender que Graciliano não destaca apenas o drama individual, mas o coletivo, uma
vez que a experiência narrada pode se referir ainda a indivíduos que carregam em si traumas,
incertezas e pessimismo interior decorrentes das políticas de um governo autoritário.
A obra Memórias do Cárcere vem ao encontro da perspectiva de Antonio Candido
(2000). À luz dos estudos de literatura e sociedade, o crítico estabelece uma relação entre a
obra e seu meio social. Para o crítico, a obra literária passou a ser vista de modo diferente no
decorrer do século: antes a obra não precisava necessariamente apresentar um conteúdo que
expressasse a realidade social, pois ela já possuía seu valor e sentido, o que definia um
conteúdo fundamental. Posteriormente, mostrou-se o contrário, confirmando-se que a obra
possuía um sentido secundário, como podemos observar na citação abaixo:
procurando-se mostrar que a matéria de uma obra é secundária, e que a sua
importância deriva das operações formais postas em jogo, conferindo uma
peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos,
sobretudo sociais (...) ( p.5)
37
Graciliano Ramos, na obra Memórias do Cárcere, retratou, de forma traumática, a
violência sofrida na prisão, durante o Estado Novo, e também retrato as inúmeras pessoas,
assim como o próprio personagem-narrador vivenciou, no ano de 1937, mostrando, através de
sua obra, uma sociedade governada pelo forte autoritarismo da época. Assim, nos dias de
hoje, é praticamente impossível ler a obra sem relacioná-la ao seu conteúdo social, pois
só podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialética íntegra
e que o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro,
norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se
combinam como momentos necessários do processo interpretativo. (CANDIDO,
2000, p. 6)
Graciliano Ramos, com sua literatura de cunho denunciador da realidade social
brasileira, instiga seu público leitor a refletir diante dos inúmeros acontecimentos de uma
época, marcada pela repressão social e política, mediante seu testemunho. Ao discorrer sobre
Memórias do Cárcere, Ada Maria Hemilewski (2007, p. 66) revela que “O alagoano explora
diferentes facetas das escritas do eu, (...) as experiências do homem adulto, réu encarcerado
pela ditadura Vargas.” No entanto, Graciliano Ramos constrói uma autobiografia através de
suas memórias, marcadas por um testemunho traumático da difícil realidade encontrada nos
cárceres brasileiros da época Vargas. Sendo assim, a crítica literária analisa a obra como
comunicação íntima e familiar, interessando-se em certificar as ações que estruturam-na de
maneira particular, bem como a organização interna da obra. Conforme reitera Candido:
Tomando o fato social, procuraríamos determinar se ele fornece apenas matéria
(ambiente, costumes, traços, grupos, ideias), que serve de veículo para conduzir a
corrente criadora (nos termos de Lukács, se apenas possibilita a realização do valor
estético). (CANDIDO, 2000, p.6)
Graciliano Ramos, no tempo em que escreveu Memórias do Cárcere, possuía uma
nova visão da realidade brasileira, passando por momentos em que modificou sua concepção
de mundo, ampliando seus pensamentos diante da sociedade brasileira. Quanto aos estudos
sobre o universo sócio-cultural na prisão, perceptíveis em Memórias do Cárcere, Amadeu da
Silva Guedes (2011, p. 254) salienta:
38
podemos afirmar dois tempos próximos no texto de Graciliano: o tempo em que ele
viveu as experiências e o tempo em que ele colocou essas experiências na literatura,
este último já marcado pela visão amadurecida diante das experiências passadas.
Para Graciliano Ramos, as vivências e experiências acarretaram no seu
amadurecimento, bem como na ampliação dos seus horizontes mediante a realidade
angustiante na prisão, transpondo isso para a literatura. Assim, Antonio Candido diz que as
obras retratam a sociedade, falando dos seus diversos aspectos, mostrando suas diversidades
sociais. De acordo com o crítico (2000, p. 10):
As obras espelham ou representam a sociedade, descrevendo os seus vários
aspectos. É a modalidade mais simples e mais comum, consistindo basicamente em
estabelecer correlações entre os aspectos reais e os que aparecem no livro.
Na obra literária, era retratada a realidade social na qual o escritor estava inserido.
Assim, Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere, mostrou o perfil da sociedade dos anos
de 1937 a 1945, narrando um país autoritário que sofreu com a repressão do Estado Novo.
Através do livro tem-se uma representação dos indivíduos, com seus costumes e valores que
são representação da sociedade, como, por exemplo, na representação de contos nas peças de
teatro o russo Checov, contextualizando em uma obra a história e as relações sociais,
oferecendo aos leitores uma visão realista sobre a sociedade. Tal ponto de vista pode ser
desenvolvido sob o olhar da sociologia da literatura.
A sociologia da literatura concentra-se na investigação sobre relações entre obra e
público, analisando como é a aprovação e o efeito de ambos e também focalizando o escritor
com suas relações. Conforme Candido, essa perspectiva de reflexão “estuda a posição e a
função social do escritor, procurando relacionar a sua posição com a natureza da sua produção
e ambas com a organização da sociedade.” (CANDIDO, 2000, p.11). O escritor está
diretamente ligado à estrutura da sociedade, porque ele focaliza um assunto e organiza-o de
acordo com os seus ideais, retratando uma determinada época, assim ele faz uma articulação
do seu ponto de vista, levando em consideração sua posição social.
Nos estudos sociológicos, temos o objetivo de apontar a função política das obras,
analisando-as a fim de averiguar a ideologia do texto e também a investigação de alguns
gêneros literários e sobre a literatura em geral; nos estudos da sociologia na literatura
consideram-se a obra e o ambiente social, como articuladores da função de uma sociedade.
Como podemos observar na citação: “nota-se o deslocamento e o interesse da obra para os
39
elementos sociais que formam a sua matéria, para as circunstâncias do meio que influíram na
sua elaboração.” (CANDIDO, 2000, p.12). Entretanto, a sociedade influencia a obra, com
seus elementos sociais, por meio das descrições de hábitos, casas, roupas e seus personagens,
bem como suas características próprias, marcadas pelas ideias e sonhos.
Quando discorremos sobre Memórias do Cárcere, percebemos que esse diálogo entre
a obra e os condicionamentos sociais da época, assim como acontecimentos que se referem
diretamente à vida do escritor Graciliano Ramos, são articulados na matéria narrativa. Tudo
isso é levado em consideração na elaboração da obra, já que Graciliano Ramos vale-se de sua
experiência vivida numa época em que a expressão da sociedade era banida e que a tortura e a
violência eram usadas como forma de controle e repressão, como foram na Era Vargas. Mas
representa esse contexto a partir da voz de um narrador-personagem que apresenta suas
memórias, sendo estas caracterizadas como as de um sujeito traumatizado com essa
experiência. Um sujeito cuja história se assemelha com a história do próprio Graciliano autor,
o que nos permite identificar o caráter autobiográfico presente no texto.
Podemos pensar que o caráter autobiográfico do texto não é simplesmente um
arranjo formal criado pelo artista. De acordo com Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira
(2011, p. 145): “Apesar de estar num ambiente sem higiene e sem condições mínimas de
sobrevivência para um ser humano, o autor sentia um imperioso desejo de escrever, de relatar
sua situação insólita e humilhante.” Graciliano Ramos sentia a necessidade de escrever o seu
testemunho diante de tanta barbárie, logo o meio em que ele estava vivendo influenciou
diretamente na elaboração da obra Memórias do Cárcere, caracterizada pela tensão da
realidade do personagem-narrador. O tempo narrado está relacionado ao universo do Estado
Novo, mais exatamente, o ano de 1936.
40
2 LITERATURA, HISTÓRIA, MEMÓRIA E TRAUMA: ALGUNS
APONTAMENTOS TEÓRICOS
2.1 Ficção, história e testemunho
De acordo com os estudos de Paul Ricoeur (2010), a ficção cruza-se com a história,
por meio de um passado histórico a ser transferido do mundo fictício do texto para o universo
efetivo do leitor. Assim sendo, a história e a ficção levam-nos a uma teoria da recepção, visto
que o ato de leitura é fundamental. Segundo Paul Ricoeur, “As análises do entrecruzamento
da história e da ficção (...) remetem a uma teoria ampliada da recepção, na qual, o ato de
leitura é fenomenológico.” (2010, p. 311). Contudo, o ato de ler proporciona a teoria da
leitura, uma inversão para as narrativas históricas e ficcionais, valendo-se da divergência para
a convergência dessas narrativas, uma vez que a história e a ficção possuem uma estrutura
fundamental, que é a concretização de suas intenções tomadas de empréstimo à
intencionalidade da outra. Conforme reitera Paul Ricoeur: “A história se serve de alguma
maneira da ficção para refigurar o tempo, (...) a ficção se serve da história com o mesmo
intuito” (2010, p. 311-312). Num processo de mão dupla, a história apropria-se da ficção para
recriar o tempo, bem como a ficção vale-se da história com a mesma razão.
A ficcionalização de uma história serve-se da imaginação da perspectiva de um fato
passado tal como ele foi, visto que a imaginação incorpora-se no passado de histórias
possivelmente vividas. Em referência à imaginação, Paul Ricoeur declara que: “O imaginário
se incorpora à perspectiva do ter sido, sem enfraquecer sua perspectiva realista.” (2010, p.
312). Porém, a ficção está presente na narrativa, na medida em que há um passado possível e
semelhante e um mundo “irreal”, baseado a fatos reais na imaginação de uma história,
valendo-se de uma tese realista diante de um passado histórico, para reinscrever o tempo da
narrativa no tempo do universo. De acordo com os estudos de Carla Luciane Klôs Schöninger
(2010); “As reflexões sobre a ficção imaginária e a realidade (...) pretendem ressaltar o estudo
das relações dos textos entre si no tempo e dos textos no seu contexto histórico.” (2010).
Assim, o texto literário serve-se da ficção imaginária aliada à realidade para narrar os fatos
reais de acordo com o seu tempo, bem como o seu contexto histórico.
Já para Wolfgang Iser (2003) apud Umbach (2008), existem três elementos
importantes relacionados à criação literária, formada pela tríade que compõe a realidade, a
ficção e o imaginário. Rosani Ketzer Umbach (2008, p. 13) salienta que: “No modelo
41
proposto por Wolfgang Iser também existem três elementos relacionados à criação literária,
(...) trata-se da tríade formada pelas instâncias do real, ficcional e imaginário.” Para Iser
(2003), os textos ficcionais contêm elementos da realidade. Já os textos não-ficcionais, como
as autobiografias, na maioria das vezes contêm elementos ficcionais. No entanto, a ficção está
presente também nos textos literários, mediante a apresentação de situações reais. Já o
imaginário imerge no entrelaçamento do texto ficcional com elementos da realidade,
enfatizando o imaginário.
Os elos entre literatura e história também podem estar direcionados à função
testemunhal da obra de arte. De acordo com os estudos de Márcio Seligmann-Silva (2005), a
ficção está ligada com o testemunho diante de uma cena traumática. Segundo o crítico (2005,
p. 105), “devemos abrir mão da diferença entre a noção de ficção e a de construção da cena
traumática.” Assim, a ficção constrói-se na medida em que um indivíduo passa a testemunhar
algo traumático, compreendido como uma narração que procura registrar possíveis fatos
ocorridos. No entender de Marisel Valerio Porto e Aulus Mandagará Martins (2011, p. 2) “A
realidade a que o testemunho se reporta é a experiência que, pelo trabalho de ficção, ressoa na
memória coletiva do evento histórico.” Nesse sentido, o testemunho na literatura não apaga
um acontecimento traumático da história, mas a realidade em que ele está inserido, podendo
apropriar-se da ficção para narrar suas experiências do passado.
No ensaio “A literatura do trauma”, Márcio Seligmann-Silva salienta que há
algumas indagações acerca da literatura de testemunho e sua relação entre literatura e
realidade. Conforme afirma o autor, “não só aquele que viveu um „martírio‟ pode
testemunhar; a literatura sempre tem um teor testemunhal” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.
48). A ideia de testemunho não é apenas das pessoas que vivenciaram um sofrimento, sendo
capazes de testemunhá-lo, mas também a literatura apropria-se desse conteúdo traumático
para testemunhar. Seja como for, essa literatura de testemunho provoca um repensar na visão
da história. Segundo Paul Ricoeur (2007, p. 41); “o testemunho constitui a estrutura
fundamental de transição entre a memória e a literatura.” Porém, o testemunho faz um
intermédio entre memória e literatura, uma vez que a literatura precisa da memória e da
história do testemunho para constituir-se.
Desde os anos de 1970, a questão do testemunho tem sido cada vez mais estudada.
Ao averiguar o testemunho, almeja-se a caracterização do teor testemunhal, uma vez que
marca toda a obra literária, por meio da relação metonímica entre o real e a escritura. De
acordo com Seligmann-Silva é “(...) uma face da literatura que vem à tona na nossa época de
42
catástrofes e que faz com que toda a história da literatura (...) a partir do questionamento e do
seu compromisso com o real.” (2003, p. 1). O real não é no sentido da “realidade” tal como
era pensada pelos escritores naturalistas e românticos, mas o real a ser estudado é no enfoque
do trauma, uma vez que não pode ser representado pelos autores românticos e naturalistas,
porque o trauma é conservador à representação.
O conceito de testemunho remete a inúmeras reflexões sobre a literatura,
apropriando-se de algumas interrogações entre o literário, o fictício e o descritivo. O
testemunho aborda uma ética na escrita, valorizando sua maneira de se exprimir, ou seja, a
literatura está presente nas diversas ações e manifestações do testemunho traumático presente
nas narrativas. Na visão de Seligmann-Silva; “o testemunho aporta uma ética da escritura. (...)
a literatura está ali onde o sujeito se manifesta na narrativa” (2003, p.1). É nesse sentido que
a literatura, juntamente com uma base histórica que acompanha o testemunho, salienta uma
visão referente ao real e à ficção literária, com o propósito de reflexão sobre os modos e os
limites da representação. Portanto, nas últimas décadas, o testemunho tornou-se o objeto
principal da teoria literária devido a sua capacidade de relatar o seu trauma e pensar num
espaço para a escrita e a leitura daqueles que antes não tinham direito a elas.
Ao testemunhar algo deplorável, exige-se uma descrição detalhada do que está se
relatando, mas o ato de testemunhar é obtido por parte do real, podendo ser, em algumas
circunstâncias, ser constantemente traumático. Segundo Seligmann-Silva (2003, p. 48), “a
experiência traumática é [...] aquela que não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre”.
O trauma não se constitui enquanto tal no momento do acontecimento, como, por exemplo,
um acidente, mas após esse acontecimento, já que é, nesse instante, que a vítima narra os fatos
violentos, visto que, muitas vezes, encontra resistência na compreensão dos acontecimentos
traumáticos.
A literatura tem uma tensão dupla com a representação da realidade, podendo ser de
negação ou afirmação. A literatura e o testemunho passam a existir por meio do espaço entre
as palavras e as “coisas”. Nesse sentido, as experiências reais e a possibilidade de registrá-las
fazem parte do testemunho. Segundo Seligmann-Silva, “o testemunho tem sempre parte com
a possibilidade ao menos da ficção, (...) nenhum testemunho será possível e, de todo o modo,
não terá mais o sentido do testemunho” (p. 2003, p. 374). O limite ente “realidade” e ficção
não são delimitados porque o testemunho almeja resgatar no “real”, importando-se com tudo
o que existe de cruel para expô-lo, podendo necessitar da literatura.
43
Paul Ricoeur (2010), em seu ensaio sobre História, abordou-a epistemologicamente,
salientando que a história apropriou-se do passado através da memória. Paul Ricoeur (2010)
declara que: “É na possibilidade e pretensão de reduzir a memória a um simples objeto da
história entre outros fenômenos culturais que se diferenciam muito claramente as duas
abordagens” (RICOEUR 2010, p. 3). Essa redução da memória a um objeto da história foi
decorrente pelo desenvolvimento da história como ciência humana. Nesse sentido, a história e
a memória desenvolveram-se na escrita, sendo uma maneira de inscrever a experiência
humana por meio de um suporte material, como cartaz, disco compacto, livros, pergaminho e
etc. Já os jardins, as estrelas, os monumentos não transcrevem a voz humana. Essas foram a
linha da memória ao longo das etapas de construção da história.
O trabalho da historiografia foi abordado por alguns fenômenos por Paul Ricoeur
(2010). Inicialmente, o papel do testemunho num período de apuração documental. Conforme
abordou Ricoeur; “O testemunho é, num sentido, uma extensão da memória” (RICOEUR
2010, p. 3). Essa extensão da memória concretizou-se na fase da construção da narrativa,
visto que o testemunho apropriou-se de um dado acontecimento, afirmando a outro indivíduo
por meio da sua experiência, levando em consideração que só há testemunho se a narrativa de
um acontecimento foi divulgada. Nesse sentido, Ricoeur salientou que “o indivíduo afirma a
alguém que foi testemunha de alguma coisa que teve lugar; a testemunha diz: “creiam ou não,
em mim, eu estava lá”. (RICOEUR, 2010, p. 3). Portanto, o indivíduo, ao afirmar alguma
experiência as pessoas, transmite o seu testemunho com convicção de que o fato ocorrido diz
respeito a si e a suas memórias, mesmo podendo surgir dúvidas quanto a isso. O outro
indivíduo, ao receber o seu testemunho, escreve-o e conserva-o. E, assim, pode-se haver a
necessidade de se testemunhar novamente, o que implica, de uma certa forma, o que implica
estabelecer a prova documental, já que foi possível opor os testemunhos uns aos outros, e em
relação à fidelidade dos fatos relatados.
Nessa perspectiva, Ricoeur reitera que “nasce a confrontação dos testemunhos,
principalmente dos escritores; são levantadas questões: por que foram preservados? Por
quem? Para benefício de quem?” (RICOEUR, 2010, p. 3). Essas questões conflitantes não
podem ficar apenas no campo da história como ciência, uma vez que elas surgiram dos
conflitos contemporâneos, remetendo às vezes a perguntas formuladas coletivamente e
destacando uma tradição da memória contrapondo outras diversas memórias tradicionais.
Dando sequência aos fenômenos da historiografia, deparamo-nos com a importância
da interpretação diante do que o historiador queria transmitir com suas histórias, por meio do
44
comprometimento em abordar algumas temáticas. Conforme Ricoeur, “Com a interpretação,
passa a primeiro plano a implicação pessoal do historiador. Sem subestimar os preconceitos,
as paixões, a parcialidade do comprometimento do historiador (RICOEUR, 2010, p. 4). A
interpretação não foi apenas um conjunto de operações históricas, e sim, um trabalho que
visou ao estabelecimento do arquivo e dos testemunhos juntamente com a explicação da
causalidade ou da finalidade que teve como base uma determinada cultura abordada pelo
escritor.
O ensaio intitulado “Sobre o conceito da história”, de Walter Benjamin (1994),
remete-nos a algumas indagações acerca da história, mais precisamente no período de 1940. O
filósofo escreveu dezoito teses, com o objetivo de refletir o seu pessimismo, a sua desilusão e
o seu descontentamento com o desenrolar dos acontecimentos que cercavam principalmente à
Europa dos anos 30 e 40, bem como o rumo que a história seguia, juntamente com os avanços
da tecnologia e da ciência. Foi nesse contexto que Walter Benjamin deparou-se com o
progresso crescente da sociedade industrial e capitalista e previu uma onda de catástrofes para
a humanidade decorrentes das transformações da sociedade principalmente após a Segunda
Guerra Mundial e o fascismo alemão.
Conforme os estudos de Renata Ribeiro Gomes de Queiroz Soares (2012), no que
tange às teses de “Sobre o conceito da história”, de Walter Benjamin, “as teses Sobre o
conceito da história propõem uma visão histórica „do ponto de vista dos vencidos‟, das
classes oprimidas.” (SOARES, 2012, p. 95). De acordo com essas abordagens, a história foi
considerada como uma sucessão de derrotas aliadas às opressões das pessoas dominadas pelo
dominante maior, ou seja, o fascismo. Este, por sua vez, possuía a capacidade de dominar e
manipular facilmente a população, já que ele foi responsável por um falso passado sem a
detenção de precedentes, como os testemunhos das catástrofes da humanidade.
Sob esse prisma, Walter Benjamin, em suas teses “Sobre o conceito da história”,
alegou o materialismo histórico e o historicismo. Este último, ao qual Benjamin se referiu, foi
o que norteou a escrita da história universal. Nessa perspectiva, o tempo foi criado como
linear e de acordo com o espaço sendo dividido em momentos iguais. Por essas rações, o
tempo é nomeado pelo autor como “homogêneo e vazio”. Nesse ideal, o passado foi
apresentado ao historiador como uma imagem eterna. Segundo Walter Benjamin (1994); “O
passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em
que é reconhecido” (BENJAMIN, 1994, p. 224). Portanto, a imagem remete-nos a marcas do
passado, tornado-as inesquecíveis ao passo em que o historiador se detém a um instante
45
histórico, podendo resgatar alguns acontecimentos e identificando-se com as condições de
uma determinada época.
A historiografia em voga importou-se com as narrativas das vitórias históricas das
classes dominantes que eram formadas por imperadores, reis e papas. Por isso, elas obtinham
o poder político e econômico bem como o domínio das classes subalternas. Sob esse viés,
Walter Benjamin atribuiu o conceito de cultura aliado à barbárie. Para o autor: “Nunca houve
um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. (...) como a
cultura não é isento de barbárie, não o é, (...) o processo de transmissão da cultura”
(BENJAMIN, 1994, p. 225). Logo, o autor compreendeu que a cultura e a barbárie eram
documentos históricos, e seu registro serve de testemunho da civilização como confirmação
das guerras e da crueldade delas resultantes.
Já o materialismo histórico, no entender de Walter Benjamin (1994), denota a
oposição ao historicismo. Dessa forma, deixa de ser importante a sua ligação entre os vários
momentos da história. O materialismo histórico tem como base o princípio construtivo do
tempo histórico porque ela não foi um momento fechado em si mesmo, e sim teve uma
relação com outras épocas, períodos e movimentos da história. Segundo Walter Benjamin; “O
materialismo histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição,
mas para no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define (...) aquele que descreve a
história” (BENJAMIN, 1994, p. 230). Portanto, é nesse contexto que o historicista apresenta
uma imagem do passado. Já o materialismo histórico apropria-se desse passado e transforma-
o em uma única experiência, obtendo-se um vigor para dar continuidade a outras histórias.
De acordo com os estudos sobre história de José Martins Rodrigues Remedi (2002),
“Benjamin queria romper com duas concepções em que se baseavam a historiografia burguesa
e a progressista” (REMEDI, 2002, p. 200). Walter Benjamin (1994), em suas concepções
abordou a historiografia burguesa como cronologia e linear enquanto que a progressista teve
como ideia a do progresso da humanidade sem limites. Por esse viés, o autor queria criar um
novo conceito de tempo, por intermédio de um historiador que pudesse visualizar, no passado,
a violência e a maldade de uma outra história, considerando o sofrimento da classe
trabalhadora e valorizando as suas experiências frustradas.
Em relação ao texto de Walter Benjamin, Márcio Seligmann-Silva explicou que as
teorias de história serviram de inúmeras pesquisas sobre a literatura do testemunho sendo
abordada como uma arte, na medida em que foram produzidos textos a partir da Shoah, na
46
qual Walter Benjamin relatou nos seus textos de testemunho. Por esse viés, Seligmann-Silva
salientou:
Se a arte e a literatura contemporânea têm como seu centro de gravidade o trabalho
da memória, a literatura que situa a tarefa do testemunho no seu núcleo, por sua vez,
é a literatura par excellence da memória.” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 388)
Portanto, a literatura contemporânea e a arte em geral têm como centro o trabalho da
memória, porém não se constituem apenas uma rememoração memorialismo, uma vez que o
campo da literatura tinha como necessidade lembrar de alguma situação desagradável ou até
impossível. Para ela não houve adversidade entre a memória e o esquecimento. Walter
Benjamin (1994), em meados do século XX, reduziu a relação do passado com os registros da
historiografia. Nesse sentido, a historiografia tradicional, principalmente a historiografia
alemã, manifestou-se, alegando que havia uma integração entre a historiografia e as
experiências dos indivíduos, ou seja, suas experiências pessoais do seu passado, servindo para
eliminar a característica do testemunho, porque o passado deve ficar limitado à ciência do
passado, bem como a memória coletiva.
Já o historicismo referiu-se à consciência temporal, ou seja, aos experimentos dos
indivíduos, independente em que tempo da vida, podendo ser no passado, no presente ou no
futuro. Essas experiências pessoais deviam ser sempre história e, mediante isso, também
eliminou-se a memória individual. Marcio Seligmann-Silva reiterou que Walter Benjamin
reafirmou o esforço do trabalho da memória:
... o Historicismo- que apenas reproduziu a alienação entre a experiência e o
indivíduo moderno. -, Benjamin reafirmou a força do trabalho da memória: que a
um só tempo destrói os nexos (na medida em que trabalho um conceito forte de
presente) e (re)inscreve o passado no presente. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.
389)
Dentro dessa perspectiva, o materialismo histórico abordou as experiências do
indivíduo moderno, servindo de estudo para Walter Benjamin em relação ao trabalho da
memória, como os fatos ocorridos no passado, escrevendo-o no presente, surgindo assim, uma
nova Historiografia baseada na memória, servindo-se de testemunha para relatar os sonhos
não concretizados, bem como as insatisfações com o presente e as promessas não cumpridas,
na medida em que as reescrituras foram ascendentes no campo da história. Na visão de
Márcio Seligmann-Silva; “ao invés da linearidade limpa do percurso ascendente da história
47
(...) na historiografia tradicional, encontramos um palimpsesto aberto a infinitas re-leituras e
re-escrituras” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 389). Nesse contexto, a historiografia
tradicional valia-se de várias possibilidades tanto na releitura quanto na escritura no
transcorrer da história.
Na concepção de Márcio Seligmann-Silva, Walter Benjamin não foi apenas um
filósofo da história, mas, sim, um pensador e filósofo do tempo. O filósofo referiu-se ao
tempo e ao espaço sendo transcendental ao nosso modo de pensar, já a História tinha o modo
linear em direção à sociedade racionalista. Para Walter Benjamin (1994), o tempo não é vazio,
mas sim matéria e compacto. Mediante isso, a teoria de História, que era ligada a ciência da
História, passa a ser uma teoria da memória, pois se aproxima dos trabalhos artesanais, cujo
historiador deixa suas marcas digitais na sua obra. Márcio Seligmann-Silva reitera que:
A historiografia com essa concepção de tempo- deixa de ser a narração de uma
história de sucessos (e do sucesso) e explode em fragmentos e estilhaços- vale dizer:
em ruínas. Ruínas representam aqui justamente a síntese paradigmática entre tempo
e espaço; a ruína é uma imagem-tempo. (SELIGMANN-SILVA 2003, p. 390)
Como destacou Márcio Seligmann-Silva (2003) sobre a historiografia, esta deixou de
estar estagnada no tempo como uma simples narração de história bem sucedidas e passou a
relatar as ruínas, ou seja, as narrativas de catástrofes que permearam toda a concepção de
história de Walter Benjamin. Por isso, o historiador defendido por Walter Benjamin (1994) é
aquele que aborda a manifestação de acontecimentos sociais e políticos as catástrofes e as
ruínas da história para recolher o que sobrou, ou seja, relatar as histórias catastróficas, por
exemplo: as guerras mundiais e o Nazismo na Alemanha, podendo se reescrita, porém jamais
traduzida.
De acordo com Márcio Seligmann-Silva; “(...) em uma escritura imagética, (...) que
pode, por um lado, ser infinitamente re-inscrita, mas nunca definitivamente traduzida, e, por
outro, a visão do mundo dominado por Ausnahmezustand.” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p,
394). Nesse contexto, podemos destacar a escritura imagética como o centro da concepção
freudiana do nosso aparelho psíquico. Em Walter Benjamin (1994), a historiografia é vista
como um “aparelho”, semelhante ao nosso aparelho psíquico, porque o passado é lido como
uma escritura num determinado presente, ou seja, o agora. Assim, a concepção de
48
Ausnahmezustand possibilita-nos analisar a literatura dos campos de concentração na
Alemanha Nazista.
Por esse viés, Márcio Seligmann-Silva, à luz dos estudos de catástrofes em Walter
Benjamin, pondera que: “O mundo moderno seria o mundo dos choques e os seus habitantes
estariam totalmente mobilizados para apará-los, e desse modo, impedir o esfacelamento do
Eu.” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 395). Essa concepção de mundo moderno atendeu à
construção do choque e da real experiência humana em conjunto com a memória,
evidenciando certos acontecimentos do passado, tanto individual como coletivo. Walter
Benjamin (1994) detectou a experiência da Segunda Guerra mundial e em Shoah como um
choque das catástrofes ocorridas na História, podendo ser vista como ruína e aniquilação,
porque exigiu e resistiu a sua (re) escritura.
Dentro dessa perspectiva, o estudioso Michael Löwy (2002) destaca que “Benjamin
coloca no centro de sua filosofia da história o conceito de catástrofe. (...) A catástrofe é o
progresso, o progresso é a catástrofe. A catástrofe é o contínuo da história” (LÖWY 2002, p.
204). Walter Benjamin (1994) assimilou o progresso e a catástrofe como uma significação
histórica; sob a ótica dos vencidos o passado é um encadeamento de inacabadas derrotas
catastróficas. Conforme reitera Michael Löwy; “uma teoria da história a partir da qual o
fascismo possa ser percebido. (...) as irregularidades do fascismo são apenas o avesso da
racionalidade instrumental moderna.” (LÖWY 2002, p. 204). Portanto, o fascismo ocupou
um lugar importante e central nas teses de Walter Benjamin devido à tristeza e o sofrimento
das pessoas, bem como a tortura, a morte e o extermínio. Essas ruínas serviram como
reflexões históricas, evidenciando o fascismo alemão e por essa razão foi comparado como
um regresso da sociedade moderna.
Em relação às proposições de Walter Benjamin sobre o conceito de história, a
professora Jeanne Marie Gagnebin (2009) explica que as teses de “Sobre o conceito de
História” abordam não somente uma crítica à ideologia do progresso da social-democracia e
da sabedoria do historicismo, como também evidenciam o tempo homogêneo e vazio.
Conforme destacou Jeanne Marie Gagnebin (2009):
(...) a historiografia que se baseia nesta concepção trivial do tempo como cronologia
linear opera com dois princípios narrativos complementares: primeiro um conceito
totalmente embotado de causalidade histórica, como se a sucessão cronologia fosse
sinônimo de uma relação substancial de necessidade histórica. (GAGNEBIN, 2009,
p. 96)
49
Dentro dessa perspectiva, Jeanne Marie Gagnebin (2009) salienta que Walter
Benjamin (1994) entende que o tempo é homogêneo e vazio como indiferente e infinito por
retratar o sofrimento e o horror, bem como a felicidade. Já o historicismo concentra-se em
determinar uma conexão causal entre os vários momentos da história. Por isso, todo o fato por
ser causa é história. Para Walter Benjamin (1994), toda a causa da história remete o tempo e
ao presente, ou seja, o surgimento do passado e do presente. De acordo com Jeanne Marie
Gagnebin (2009); “(...) esse desenvolvimento temporal infinito que se esvazia e se esgota e
que chamamos- rapidamente demais- de história. (GAGNEBIN, 2009, p. 97).” Essa história
de oprimidos pode resultar uma narrativa que apresenta o trauma resultante de uma catástrofe,
e a literatura pode ser um instrumento dessa representação.
2.2 Literatura e trauma
Para refletir sobre a relação entre literatura e trauma, primeiramente, convém
apresentar o conceito de trauma. Conforme o dicionário Aurélio, “trauma é uma desagradável
experiência emocional de tal intensidade, que deixa uma marca duradoura na mente do
indivíduo.” É visto também como é um tipo de lesão psicológica, causada por algum
acontecimento difícil ou até mesmo drástico. Nesse sentido, sua raiz pode vir de um
acontecimento traumático, originado pelas guerras, agressões em geral, atentados e as demais
experiências traumáticas, sofridas pelo indivíduo.
Dentro dessa concepção, Márcio Seligmann-Silva (2005), em seu ensaio intitulado
“Literatura e trauma: um novo paradigma,” pondera que, ao longo do século XX, a
humanidade viveu o que o crítico denomina de catástrofes, ou seja, acontecimentos pautados
nas tragédias, sendo caracterizadas como o pós-massacre, por exemplo, sendo o pós- Primeira
e segunda Guerra Mundial, pós- Shoah e etc. Segundo Seligmann-Silva (2005):
Esse prefixo “pós” não deve levar a crer, de jeito nenhum, em algo próximo do
conceito de “superação”, ou de “passado, que passou”. Estar no tempo “pós-
catástrofe” significa habitar essas catástrofes”. E claro para qualquer um de nós que
a continuidade das mesmas não permite que sequer “tomemos pé” a cada evento
novo e aventemos uma mudança de curso. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 63)
50
Como destacou Márcio Seligmann-Silva (2005), o significado do prefixo “pós” não é
uma mera superação das dificuldades de compreender o passado trágico da humanidade
diante das catástrofes ocorridas. Porém, as catástrofes do pós-Guerras Mundiais chocam-se
contra nós, porque novamente fomos ao encontro delas. Nesse contexto de terror, a
humanidade mergulha nessas experiências de dor e trauma porque, segundo Marcio
Seligmann-Silva (2005), “Estamos e somos revelados como parte de uma encenação da
catástrofe” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 63). Portanto, os indivíduos fizeram parte do
contexto da guerra, e com isso contar sua história tornou-se singular para o mundo por meio
da sua representação de trauma e catástrofe.
A sociedade do século XX esteve sob um dilema: a guerra mata pessoas, assim como
o terrorismo também mata pessoas. Diante dessa constatação, assistiu-se pela televisão aos
inúmeros casos de terrorismo. Foi assim que se passou a guerra novamente em meio à política
de imagens, porque, ao produzir essas imagens, reproduziu-se a catástrofe e também
multiplicou-se o trauma. Dentro dessa perspectiva, em relação ao texto de Walter Benjamin,
Márcio Seligmann-Silva (2005) explicou que o autor diagnosticou, em 1936, as várias
repetições da imagem do terror na televisão e na mente das pessoas. Deixou-se de produzir a
arte propriamente dita para representar por exemplo, o horror pós-Primeira Guerra. Márcio
Seligmann-Silva destaca que:
Essas imagens são tanto sintetizadas quanto têm um caráter indicial da escritura
luminosa dos eventos. Aqui, síntese e reprodução são inseparáveis. O universo da
informação só funciona através do culto da novidade e da estratégia de exploração
dos choques em doses cada vez maiores, cujas imagens são atiradas contra um
telespectador cada vez menos sensível. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 64)
Nesse contexto, foi no universo da informação que tivemos acesso tanto às
informações sobre as catástrofes, como também sobre a atualidade. Já a encenação
catastrófica foi vivenciada por alguma vez na nossa vida pelos nossos processos individuais,
porque nossa sociedade esteve regredida diante das situações catastróficas. Por isso, nossa
reação podia ser de bloqueio através de um agir que esconde o evento traumático, impedindo
a recordação.
Diante dessas concepções sobre a catástrofe e sua representação, Marcio Seligmann-
Silva (2005) sugere uma reflexão sobre a literatura e a sua relação com o trauma. Algumas de
suas ponderações indagam se seria realmente válido insistir em continuar com uma literatura
tradicional, abordando o formalismo e o poético, ignorando o mundo dominado pelas
51
informações ideológicas e abalado pela presença do choque, ou seja, o trauma. Segundo
Márcio Seligmann-silva (2005), “O trauma é um conceito central da psicanálise, e (...) ele não
pode ser pensado independentemente da noção de realidade traumática” (SELIGMANN-
SILVA, 2005, p. 64). Portanto, o elemento traumático dos acontecimentos da história invade
nossa vida real, servindo de alicerce para o nosso passado. Diante desses acontecimentos
temporais, é importante a questão da representação nos mais diversos veículos de
comunicação tanto no rádio, televisão, jornais, cinema, na arte, e, enfim, na literatura.
De acordo com os estudiosos Augusto Sarmento-Pantoja e Ana Maria Baía
Rodrigues (2008), o trauma pode ser coletivo ou individual. No entender de Ana Maria Baía
Rodrigues e Augusto Sarmento-Pantoja (2008, p. 1): “O trauma coletivo é fruto da opressão,
(...) o trauma individual é vivenciado por um único ser humano”. Assim, o trauma coletivo é
oriundo da tortura, opressão e extermínio de vários indivíduos, da guerra ou de ditaduras. Já o
trauma individual provém da vivência de um único ser humano, sendo a tortura um exemplo
de trauma individual. Conforme reitera Rodrigues Sarmento-Pantoja (2008, p. 1): “A tortura
acontece quando uma pessoa (o torturador) causa sofrimento, dor (seja de natureza física ou
psicológica) a outro indivíduo.” Porém, a tortura foi causada pelo torturador, acarretando dor
e sofrimento físico e psicológico ao indivíduo que a vivenciou. Assim, quando o indivíduo
sofre a tortura, fica abalado psicologicamente, uma vez que ele não consegue assimilar
totalmente a tortura, ou seja, o que aconteceu. A partir dessas concepções, pode-se enfocar a
teoria psicanalítica do trauma de Sigmund Freud para, em seguida, analisar a literatura do
trauma.
A questão do trauma está ligada aos estudos da história e das ciências humanas que
se desenvolveram no século XX a partir de um diálogo com a psicanálise, cujo importante
criador foi Sigmund Freud, responsável pela transformação no estudo da mente humana.
Partindo desses pressupostos, o trauma era visto como um problema psicológico, chegando a
ser comparado com uma ferida na memória. Já a história do trauma é marcada pela narrativa
de um choque violento e também de um desencontro com a realidade. Assim a linguagem
apropria-se dos limites do que não foi subentendido no ato de sua recepção, e o traumatizado
repete constantemente a cena violenta.
De acordo com os pressupostos da teoria psicanalítica do trauma de Sigmund Freud
(1996), a noção de trauma constitui-se na observação e tratamento de seus pacientes
neuróticos, em particular, os que tinham histeria. Assim, Freud analisa a causa do sofrimento
52
de seus pacientes e chegou à constatação de que os mesmos sofriam de acontecimentos reais
ou imaginários, decorrentes do passado.
A base da situação traumática encontra-se nas diversas vivências sexuais prematuras
na infância, decorrentes do abuso sexual, de um adulto, geralmente da própria família.
Naquela época, os valores morais eram rígidos e os desejos, principalmente de natureza
sexual, eram reprovados. É nesse sentido que Freud (1996) encontra a causa da histeria,
alegando ser de natureza sexual, devido a temores, repressões e reprovação. Conforme
afirmam os estudos de Leopoldo Fulgencio, “A histeria já era concebida como uma
psicopatologia que tinha na sua origem, um acontecimento traumático de natureza emocional,
muitas vezes de conteúdo sexual.” (FULGENCIO, p. 2). Portanto, a concepção de conflito
psíquico seria a consequência da repressão, determinada pelo trauma de fundo real e sexual,
sofrido na infância, criando, na criança, repressões depositadas no seu inconsciente. A
probabilidade de a criança ficar traumatizada, pela experiência sexual, é através do grau de
trauma vivido, porém, quanto mais intenso for o trauma, maior é a força da repressão.
Nessa perspectiva, o tratamento da histeria seria feito a partir da consciência das
cenas enterradas na memória, no entanto, os sintomas histéricos provêm de recordações que
atuam no inconsciente. A histeria é uma doença desencadeada através da reação e defesa,
mediante nova situação que provocasse o estado de recalcamento da pessoa diante de
recordações inaceitáveis. Porém, a cena de sedução é a base da situação traumática.
Segundo Sigmund Freud (1996), o trauma está presente na vida do indivíduo,
quando ele se detém a fatos passados. Conforme afirma Sigmund Freud, “o trauma é capaz de
vincular um indivíduo ao passado e deter sua vida de tal forma que ele pode ignorar
totalmente o presente e o futuro.” (FREUD, 1996, p. 282). Nessa perspectiva, o indivíduo
tende a afastar-se do seu convívio social, na busca de subsídios para suportar dificuldades e
traumas na sua vida. Portanto, o indivíduo afastou-se do tempo presente, ou seja, distanciou-
se da sua realidade da qual estava vivendo, e passou a não ter mais perspectivas em relação a
seu futuro, já que o trauma, ocorrido no passado, influenciava diretamente sua vida,
impedindo-o de viver socialmente bem como banindo os sonhos de melhorar sua vida.
O estudo do trauma foi retomado novamente com o fim da Primeira Guerra Mundial
(1918). Conforme manifestou Márcio Seligmann-Silva (2003, p. 65), “Freud trata das
neuroses traumáticas a partir da experiência coetânea dos soldados e sobreviventes daquele
evento.” No entanto, indivíduos que viveram ou testemunharam as situações traumáticas de
Guerra ou de Governo autoritário, como a Era Vargas (1937-1945), relembraram esses
53
acontecimentos habitualmente, revivendo o sofrimento do evento traumático, seja ele
consciente ou inconsciente do indivíduo.
Os efeitos dos eventos traumáticos da guerra tornaram-se objeto de estudo para a
“Teoria da neurose de guerra” em 1918, apresentada em Budapeste, em congresso sobre a
psicanálise das neuroses de guerra e onde estiveram presentes vários teóricos do trauma,
como: Ferenczi, Abraham, Simmel e Jones. Todos contribuíram para uma reflexão, da
vivência pós-guerra dos indivíduos, bem como seu trauma. No entender de Márcio
Seligmann-Silva: “O trauma é descrito com fixação psíquica na situação de ruptura. Esse tipo
de fixação, Freud compara à do paciente com hésterico. (...) é alguém que sofre de
reminiscência.” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 66). Portanto, a raiz da neurose traumática
está situada em uma fixação, no mesmo instante em que acontece um acidente traumático, no
qual essa situação violenta pode se repedir com frequência através do sonho, levando o
indivíduo a um completo evento traumático. Segundo Freud (1996, p. 282), “O indivíduo
revive tal situação como se ela não tivesse terminado, com a impressão de que essa
circunstância ainda faz parte do presente.” Entretanto, pessoas que foram testemunhas ou
vivenciaram situações traumáticas, como o Estado Novo de Getúlio Vargas revivem tais
acontecimentos traumáticos com frequência.
Sob esse prisma, o trauma marcou o século XX pelas suas catástrofes e as
experiências extremas vividas pelas pessoas nos mais diversos tipos de acontecimentos
traumáticos; dentre eles, no contexto histórico brasileiro podemos destacar o drama, a
repressão e o trauma sofridos pelas pessoas na época de tortura nas prisões brasileiras, diante
do governo autoritário brasileiro, vigente nos ano de 1937 a 1945.
Conforme reitera Seligmann-Silva (2003), diversos autores desenvolveram a teoria
do trauma para uma melhor compreensão do que de fato foi o trauma na era das catástrofes do
século XX. Os estudos sobre os sobreviventes dos campos de concentração nazista
contribuíram para novas reflexões e elementos sobre a teoria do trauma. Conforme manifestou
Seligmann-Silva (2003, p. 68), “O sobrevivente é caracterizado por uma situação crônica de
angústia e depressão, marcado por distúrbios de sono”, e esse sobrevivente pode ser um
sujeito que sofre de trauma. Assim, a angústia e a depressão, presentes nos sobreviventes de
guerra, contribuíram para o pesadelo, recorrentes de problemas somáticos, bem como a
incapacidade de narrar sua experiência traumática na guerra.
Com relação ao trauma, Bohleber faz uma síntese, baseada nas pesquisas de Martin
Bergmann (1996), ponderando que, há cinco consequências aos sobreviventes conforme a
54
teoria do trauma. A primeira é a importância para a duração e a intensidade do terror a que os
sobreviventes foram submetidos; a segunda é a incapacidade de causar ou sofrer grande
mágoa, causando a depressão; a terceira consequência é indispensável para abordar a
representação da cena traumática; na quarta é o distúrbio traumático, caracterizado pelo
sentimento oculto, por um longo período, podendo chegar a atingir décadas. Passado essa
fase, a neurose traumática, surge; já na quinta consequência, os sofrimentos traumáticos dos
sobreviventes marcaram gerações seguintes, visto que as famílias negavam-se a falar do
trauma, mediante as vivências que os pais sofreram. Porém, as crianças recebiam essas
informações de modo superficial, ou seja, de modo inconsciente dos fatos ocorridos, com os
quais elas fantasiavam essas informações.
Outra importante contribuição para a reflexão do trauma foi do teórico Dori Laub
(1995), que destaca o trauma e o testemunho dos sobreviventes de KZ. Conforme manifestou
Dori Laud (1995), “Existe em cada sobrevivente uma necessidade imperativa de contar e
portanto, de conhecer a sua própria história.” (LAUB, 1995, P. 63, apud SELIGMANN-
SILVA, 2003, p. 70). Porém, quando o sobrevivente conhece a sua história, deixa de lado os
fantasmas que o atormentam, e, com isso, o indivíduo passa a viver melhor consigo mesmo,
uma vez que aprendeu a administrar os seus anseios e traumas, sofridos numa determinada
situação traumática. Nesse sentido, os estudos de Zilah Bernd (1998) contribuem para a
literatura. A estudiosa destaca que “a literatura é a representação da realidade e a história de
certa forma também o é” (BERND, 1998, p. 127) e que foi através de um texto literário que
tivemos acesso às verdades históricas de uma realidade, ou seja, tanto a história quanto a
literatura, ambas têm o mesmo objeto de estudo que é o texto, valendo-se da palavra para
formar uma relação entre as duas disciplinas.
Dentro dessa perspectiva, Lizandro Carlos Calegari (2010), em seu ensaio intitulado
“Autoritarismo, memória e trauma no filme Araguaia: a conspiração do silêncio, de Ronaldo
Duque”, contribui para a reflexão do trauma no que diz respeito aos atos de violência nas
narrativas orais sobre um acontecimento no passado. Segundo Lizandro Carlos Calegari
(2010): “atos de violência cometidos no passado, devem-se levar em conta os diversos
mecanismos de traumatização. Pesquisas sobre o trauma têm aumentado significativamente
nas últimas décadas” (CALEGARI, 2010, p. 78). Portanto, todo o acontecimento individual
ou coletivo que gerou sofrimento para a humanidade, ou seja, todo o trauma gerado por
situações que marcaram a história, como, Holocausto, suscitaram investigações feitas para
estudar o que aconteceu com os sobreviventes no campo de concentração nazista. Assim,
55
esses testemunhos contribuíram para a literatura retratar e enfocar o trauma nas suas
temáticas, já que o estudo do trauma vem aumentando significativamente ao longo dos
séculos, tendo como um dos objetivos compreender os problemas psíquicos dos sobreviventes
que seriam a depressão, pesadelos, angústias, distúrbios do sono, incapacidade de narrar a
experiência traumática e, dentre outras. Essas características desconfortáveis foram
decorrentes da sobrevivência.
Em relação à teoria do trauma de Sigmund Frued, Lizandro Carlos Calegari (2010)
explica que o trauma foi analisado como uma ferida na memória que, não cicatrizada, poderia
causar um sofrimento a partir do momento em que houvesse uma repetição do evento.
Segundo Lizandro Carlos Calegari: “O trauma, então, seria algo não findado e atemporal. A
sua cura, ou pelo menos o alívio da dor, repousaria na necessidade de um processo
hermenêutico do episódio traumático” (CALEGARI, 2010 p. 77). Por isso, para haver a cura,
seria necessário que o paciente narrasse algumas situações traumáticas e, com isso, tem a
possibilidade de trazer à memória determinados acontecimentos e exterminá-los.
Nesse contexto, Jaime Ginzburg (2012), em seu ensaio intitulado “Escritas da
tortura”, também aborda a importância da literatura para a superação de fatos ocorridos no
passado. Conforme Jaime Ginzburg (2012): “A importância da literatura para a consciência
social (...) é enorme, por conseguir, por recursos de construção, certa fidelidade ao impacto da
violência (...) aos que viveram o impacto da experiência da tortura.” (GINZBURG, 2012, P.
490). Portanto, a leitura de textos literários voltados para a violência remete-nos a uma
aproximação do leitor no que diz respeito ao procedimento do torturador. O indivíduo, após
viver a dor extrema, perde suas referências para a construção de um sujeito.
Walter Benjamin (1987), em seu breve ensaio intitulado “Conto e cura”, usa
argumentos oriundos de uma antiga tradição para explicar o poder curativo das palavras. De
acordo com Walter Benjamin: “A criança está doente. A mãe a leva para a cama e se senta ao
lado. E então começa a lhe contar uma história, seus movimentos eram altamente
expressivos.” (BENJAMIN, 1987 p. 269). Na visão de Walter Benjamin, a mãe da criança
conta a história e em algumas vezes com gestos para encená-los, porque para ela a narrativa
era uma maneira curativa. Nesse contexto, Walter Benjamin (1987) afirma que “o relato que o
paciente faz ao médico no início do tratamento pode se tornar o começo de um processo
curativo.” Por isso, Walter Benjamin (1987) pressupõe que a narrativa tornaria o clima
propício para a condição de cura. Contudo, ao se referir sobre a dor comparada a uma
barragem que se opõe a corrente da narrativa, o autor percebe todo o amor materno diante de
56
uma força capaz de superar tudo. Segundo Walter Benjamin (1987): “Se torna acentuada o
bastante para largar tudo o que encontra em seu caminho ao mar do ditoso esquecimento.”
(BENJAMIN, 1987, p. 269).
Walter Benjamin (1994), em seu ensaio “Experiência e pobreza”, menciona que,
após a Primeira Guerra Mundial, a maioria dos soldados sobreviventes, ao retornarem para
seus países, apresentam um comportamento diferente em relação ao que tinham antes de ir à
Guerra. Conforme reitera Walter Benjamin (1994):
[...] entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. (...) Na
época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de
batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de
guerra inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes.” (BENJAMIN, 1994,
P. 114 E 115)
Nesse sentido, o ponto mais crítico do comportamento dos soldados dizia respeito
aos distúrbios mentais e à impossibilidade de uma elaboração de discurso mediante as
experiências vividas nos campos de batalhas. Com o passar dos anos, surgiu a problemática
em torno da organização das ideias no testemunho de guerra, gerando uma triste característica
e um desconforto mental dos testemunhos, porque jamais houve experiências radicais no
sentido da desmoralização que a vivência da estratégia de guerra de trincheiras, assim como a
experiência do corpo pela fome.
Para a crítica Cathy Caruth (2000), o trauma, além de ser apresentado como uma
patologia, como também é observado por Freud, é em sua definição, uma resposta a um
evento traumático arrebatador e imprevisto, visto que ele não foi compreendido no mesmo
instante, retornando posteriormente como distúrbios do sono, pesadelos e flashback.
Conforme Cathy Caruth (2000):
A noção de trauma nos confronta não somente com uma simples patologia, mas
também com um enigma fundamental que diz respeito à relação da psique com a
realidade. Em sua definição genérica, o trauma é descrito como a resposta a um
evento ou eventos violentos inesperados ou arrebatadores, que não são inteiramente
compreendidos quando acontecem, mas retornam mais tarde em flash-back,
pesadelos e outros fenômenos respectivos.( CARUTH, 2000 p. 111)
Cathy Caruth (2000) acredita que o trauma não pode ser analisado como uma ferida
no corpo, porque uma cicatriz pode ser curada ou desaparecer com o tempo, porém ela deixa
uma marca na memória. Para a autora, o fato de os soldados sobreviventes terem passado por
situações e experiências inexplicáveis e traumáticas nos campos de concentrações foi o que
57
ocasionou na memória a ferida aberta que sempre irá retornar eternamente, por ações
repetitivas, dificuldades de assimilação dos acontecimentos, pesadelos, entre outros.
Seligmann-Silva (2003), em seu ensaio sobre trauma e literatura, cita os estudos de
Walter Benjamin acerca da teoria da modernidade e do homem moderno, concebendo este
como um indivíduo que acumulou experiências estéreis. Também menciona a importância da
construção de narrativas que se nutririam posteriormente de experiências autênticas. Assim,
segundo Seligmann-Silva, “Essa experiência, para Benjamin, só seria capaz de perdurar na
modernidade de modo fragmentado, como uma memória involuntária.” (SELIGMANN-
SILVA, 2003, p. 72). Diante disso, as características do choque na modernidade fazem com
que surja a mobilização no homem moderno de uma lembrança consciente. Nessa perspectiva,
Benjamin afirma que as experiências da modernidade comparam-se com as experiências do
choque.
A propósito de tais ponderações, Seligmann-Silva (2003) completa seu pensamento,
afirmando que a característica da literatura é não ter limites, passando, assim, a existir
continuamente e com isso ela nega o seu limite. O autor ainda explica que a literatura, na
visão de Walter Benjamin, ensina-nos a jogar com a linguagem. Ela é a marca de
representação da realidade e, por isso, ela nos fala da vida e da morte. A literatura é vista
como uma cripta. Esta, cripta era uma tentativa de dar conta de uma nova realidade do homem
moderno, tanto psíquica, quanto social, fazendo parte desse contexto a realidade violenta do
pavor das guerras. De acordo com Seligmann-Silva:
A cripta é criada como resposta à incapacidade de enlutar, à recusa de introjeção.
Assim como a teoria do trauma em Freud corresponde em linhas gerias a uma
tentativa de dar conta de uma nova “realidade” psíquica e social do homem
moderno- incluindo aí a realidade cotidiana violenta e a do terror das guerras- do
mesmo modo seria equivalente desvincular a teoria da cripta da experiência histórica
do século XX. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 72)
Nessa perspectiva, a realidade do século XX, por meio da escala demográfica, gerou
um número tal de assassinatos nunca antes ocorrido na história mundial. Com isso a realidade
da morte ficou evidente na proporção em que ela era silenciada. Posteriormente, as
indagações acerca dos assassinatos retornam na mente de uma sociedade que não consegue
entender a sua história. Perante tais considerações, Seligmann-silva cita a literatura de Kafka,
voltada para uma linguagem sem esperança, decaída, sem a utilização de metáforas, levando
seus leitores ao desespero. Como a catástrofe era um resumo da vida real, ela foi representada
como se fosse um acontecimento trivial. Portanto, as narrativas de Kafka tinham uma
58
temporalidade estagnada, por apresentarem uma redução do mundo a imagens, limitando o
vínculo entre elas.
Diante disso, Seligmann-Silva apresenta o “trauma” do indivíduo alienado moderno
que porta em si a marca do choque. Kafka nos fala de uma “ferida... rasgada por um raio que
ainda perdura. Esse raio é o mesmo flash „real‟” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 75). Por
isso, a sociedade real foi considerada “midiática” por Kafka, porque produz imagens sem
significados. Essa reflexão mostra que nos identificamos com a literatura de Kafka, porque de
alguma maneira nos reconhecemos com os sobreviventes e nos sentimos culpados pelo que
aconteceu, pondera Seligmann-Silva (2005). Esse sentimento de culpa remonta à história da
humanidade como uma história de recalcamento e barbárie.
Perante tais considerações, a literatura no século XX, em grande parte, é marcada
pelo seu presente traumático e diante de tais acontecimentos, obtém um teor testemunhal.
Diante de tais ponderações, Seligmann-Silva esclarece que “cabe a nós aprendermos a ler esse
teor testemunhal: assim como aprendemos que os sobreviventes necessitam de um
interlocutor para seus testemunhos.” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 77). Portanto, a
literatura de uma era de catástrofes desperta nos indivíduos a sensibilidade para ler e
reescrever uma história do ponto de vista do testemunho. Nesse caso, por exemplo, o livro A
trégua (1963), escrito por Primo Levi, retoma a era da catástrofe pelo testemunho traumático
do autor, ao narrar a terrível passagem no campo de concentração nazista de Auschwitz, e
dessa forma, como o fez Levi, a literatura é um instrumento que traz à tona a memória,
fugindo de uma perspectiva do esquecimento de experiências de dor, violência e barbárie.
2.3 Memória e esquecimento
De acordo com os estudos sobre memória, Márcio Seligmann-Silva declara que a
memória é uma criação ao lado do esquecimento, completando um ao outro. Segundo o
crítico, “um complementa e alimenta o outro, um é o fundo sobre o qual o outro se inscreve”
(SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 53). A memória é uma elaboração feita no presente
momento, a partir das experiências que ocorreram no passado e está junto com as lembranças
dos acontecimentos da vida da humanidade.
No texto “Catástrofe e a arte da memória”, Seligmann-Silva declara que uma pessoa
consegue recordar uma dada situação passada traumática por meio de sua memória
59
topográfica, conectada ao momento a ser lembrado. Conforme afirma o estudioso, “a memória
topográfica é também, antes de qualquer coisa, uma memória imagética” (SELIGMANN-
SILVA, 2003, p. 56). Assim, a memória topográfica está na concentração de ideias e imagens
a serem lembradas, remetendo-as a ambientes conhecidos anteriormente. Já para os que se
lembram desse ambiente passa-se, assim, a percorrer as paisagens mnemônicas ocultas no
conceito das imagens.
A literatura de testemunho mantém relações com um determinado trauma, e este, por
sua vez, estabelece um determinado vínculo com a memória. Segundo Seligmann-Silva, a
teoria da memória ganhou novo olhar no século XX com os teóricos Walter Benjamin e
Maurice Halbwachs. Para esse último, a memória individual existe a partir da memória
coletiva, pois elas são criadas na interiorização de grupos, tendo sua origem nos sentimentos,
reflexões e ideias, baseadas na memória individual. Entretanto, as lembranças de
acontecimentos dos indivíduos continuam coletivas, já que nunca estamos sozinhos. Assim, o
autor afirma que “nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros”
(HALBWACHS, 2006, p. 39). No entanto, mesmo estando distante da época dos
acontecimentos e das pessoas que fizeram parte da nossa vida, lembramos delas por meio da
coletividade.
Segundo Maurice Halbwachs, ao retornarmos a uma casa ou cidade, onde já
estávamos, constatamos um cenário com algumas partes esquecidas pela memória. Assim,
Maurice afirma: “[...] voltamos a uma cidade em que já havíamos estado e o que percebemos
nos ajuda a reconstruir um quadro de que muitas partes foram esquecidas. [...]”
(HALBWACHS, 2006, p. 29). É nesse sentido que nossas lembranças antigas se adaptam a
nossa memória como um todo por meio da recepção do pensamento em constatar o conhecido
do passado, relembrando ao observarmos o ambiente.
O autor toma como base uma lembrança qualquer vista como um conjunto de
consciência plenamente individual, chamado de intuição sensível, que nos remete ao
entendimento dos elementos do pensamento social, no qual existe momento em que as
sensações refletidas em objetos exteriores fazem ligação com outras pessoas e seres ao seu
redor. Já na lembrança infantil, ela não tem uma ligação tão significativa a nenhuma base,
pois a criança ainda não se tornou um ser social, no entanto ela nunca está sozinha e, sim,
cercada de pessoas, como seus familiares, professores e amigos.
Com relação à memória, Maurice Halbwachs (2006) pondera que ela se constrói a
partir do momento em que o indivíduo torna-se um ser social, porém, é difícil lembrar da
60
primeira infância, visto que as impressões que a criança tem ainda não estão ligadas a
nenhuma base até o momento em que o indivíduo se torna um ser social. Conforme
manifestou o autor (2006, p. 251); “No primeiro plano da memória de um grupo se destacam
as lembranças dos eventos e das experiências que dizem respeito à maioria de seus membros e
que resultam de sua própria vida ou de suas relações com os grupos mais próximos.”
Entretanto, os grupos podem ter lembranças e pensamentos em comum, mediante contato com
seu grupo social.
A memória de um grupo evidencia as lembranças dos acontecimentos e da prática de
seus membros como resultado das relações com grupos mais próximos, bem como os que
possuem um maior contato com ele, porém, passamos à significação que aquele grupo tem
para nós. Ao se tratar de lembranças, às vezes, não as encontramos quando solicitamos: “[...]
Nem sempre encontramos as lembranças que procuramos, porque temos de esperar. [...]”
(HALBWACHS, 2006, p. 53). As lembranças nos remetem a novas situações em que nem
sempre nosso desejo tem muita influência de representação. Entretanto, as lembranças
reaparecem devido à aproximação e à percepção em que estão expostos os objetos sensíveis.
O testemunho e a memória mantêm uma íntima relação. Os estudos de memória têm
ocupado um grande espaço na sociedade pós-guerra e pós-ditadura na América Latina, já que
as memórias são construídas, e os testemunhos são publicados. É nesse contexto de memória
e testemunho que surgem os estudos de Walter Benjamin sobre a memória para auxiliar na
construção de uma cultura da memória, sendo também uma luta contra as injustiças sofridas
nas guerras e nas ditaduras, e o esquecimento de ambas.
Para Seligmann-Silva (2003), a memória é sempre coletiva, e o trauma também é
coletivo, com componentes individuais, articulando um com o outro. Por isso, o que liga o
trauma à memória individual e coletiva é o conceito de testemunho e também o testemunho
histórico dos sobreviventes de guerras e ditaduras. A partir do seu testemunho, ele apresenta o
trauma individual e, por sua vez, apropria-se dele como um todo para se trabalhar uma
memória coletiva, portanto, o autor, através do seu relato, apresenta um trauma individual e,
em certa medida, coletivo.
Já para a memória individual, é difícil de esquecer e falar sobre ela diante de
situações traumáticas. Conforme afirma Seligmann-Silva, “a memória procura um sentido e
encadeia-o em outras construções, que do ponto de vista da identidade pessoal, fazem sentido,
criam nexos e explicações, constroem uma espécie de auto-história” (SELIGMANN-SILVA,
61
2003, p. 131). A memória busca amenizar os conflitos interiores, fechar as feridas,
reconstruindo uma nova história pessoal, esquecendo as lembranças que afetaram
psicologicamente inúmeras pessoas.
Nessa perspectiva, Rosani Ketzer Umbach (2008) declara que a memória e a
literatura relacionam-se tanto na dimensão individual quanto na coletiva, apropriando-se de
autobiografias, relatos de viagens, memórias e romances históricos, valendo-se de temas
culturais de primeira ordem. Com isso, constrói-se uma temática voltada para as relações de
memória e literatura. Segundo a autora (2008, p. 11):
A relação da literatura com a memória, tanto em sua dimensão individual como
coletiva, tornou-se um tema cultural de primeira ordem, como comprovam
autobiografias, diários, relatos de viagem, memórias romances históricos que
inundaram o mercado editorial nos últimos vinte anos, não só na Europa e Estados
Unidos, como também no Brasil.
A literatura e a memória estão ligadas por um elo de temáticas e produzem as mais
diversas possibilidades de acesso às leituras. Tal associação propicia a interdisciplinaridade,
como a da literatura e os estudos culturais, valendo-se da memória de uma dada época
relatada através da obras literárias. De acordo com Rosani Ketzer Umbach; “Com a temática
da memória, abordam-se, portanto, concepções distintas advindas de diferentes disciplinas.”
(UMBACH, 2008, p. 11). Porém, a literatura, aliada à memória individual do personagem-
narrador, denuncia um período histórico, como o Estado Novo, e evidencia a retratação
conturbada da sociedade brasileira através da repressão e, assim, valendo-se da memória
coletiva.
Sendo assim, a memória está presente nos estudos literários, em três possíveis
categorias, de acordo com Erll, apud Umbach (2008, p. 11): Na primeira categoria, a memória
da literatura é baseada no sistema de memória simbólica da literatura, manifestando-se de
diversas maneiras, como nos textos com referências intertextuais, ou seja, é quando uma obra
literária vale-se de uma literatura anterior, nomeada de intertextualidade distintas, baseando-
se nos esquemas de pensamentos, expressões, bem como a tradição. No que tange à teoria da
literatura pós-estruturalista, os estudos de Rosani Ketzer Umbach afirmam que “a
intertextualidade é definida explicitamente como a „memória da literatura‟” (UMBACH,
2008, p. 12). A memória da literatura apropria-se da intertextualidade, podendo incluir os
gêneros literários. Essa apropriação resulta na memória intertextual, recebendo uma forte
62
contribuição dos gêneros memorialísticos, como a autobiografia, o romance histórico, a
epopeia e o romance de formação. Analisando pelo viés da memória da literatura, ela adquire
uma importante inserção, considerada a memória no sistema social literário, tendo como
representante a história da literatura e os cânones, institucionalizando a memória de uma
literatura social e tradicional.
Já na segunda categoria, sobre os estudos de memória na literatura, Rosani Umbach
(2008) destaca a mímese da memória, encontrada na encenação da memória, sendo atribuída
nos textos literários por meio das lembranças e recordações, permitindo, assim, um diálogo
direto com o discurso da memória, produzindo e trazendo seus processos na problematização,
de acordo com Assmann apud Umbach (2008): “trazendo à mostra o funcionamento,
processos e problemas da memória (individual e coletiva) no campo ficcional.” (2008, p. 12).
Nesse sentido, a memória individual e coletiva, na área ficcional, atribui-se aos procedimentos
estéticos de uma obra literária.
Sendo assim, na terceira categoria, Rosani Ketzer Umback (2008) pondera que a
literatura é vista como um veículo da memória coletiva, ressaltando a história como atribuição
importante e necessária, na formação das culturas memorialistas. Nesse sentido, a literatura
adquire novas funções, dentre elas, podemos ressaltar a função de veículo da memória.
Segundo a autora (2008, p. 12): “a literatura preenche diversas funções como veículo da
memória, por exemplo, na formação de versões do passado.” Nessa linha, a literatura faz um
elo com a memória, valendo-se na formação de inúmeras situações do passado e, com isso,
cria uma nova versão dos fatos antigos para valer-se da construção da identidade coletiva,
visto que a memória passa a adquirir funções de supervisionar e criticar os processos
culturais, relacionando-se à memória.
Já para Paul Ricoeur (2007), há várias indagações a respeito da memória individual
e coletiva, pondo-as em sentidos opostos. Paul Ricoeur (2007, p. 106) afirma que: “memória
individual e coletiva são postas em posição de rivalidade, (...) mas em universos de discursos
que se tornaram alheios um ao outro.” Paul Ricoeur faz alusão à memória individual e
coletiva, sob a qual se apropria da teoria da memória individual e coletiva de Maurice
Halbwachs (2006), fazendo algumas reflexões do real sentido da teoria de Maurice, alegando
ser uma superficial. Paul Ricoeur propõe a relação de memória individual e coletiva como
uma aproximação, para com isso fazer uma mediação entre o eu e os coletivos.
63
Paul Ricoeur (2007) salienta que, em relação à memória individual, esta faz uma
ligação com o uso da linguagem. Paul Ricoeur (2007, p. 107) reitera que “a memória
individual tem vínculos nos usos da linguagem comum e na psicologia (...) que avalia esses
usos.” Porém, a psicologia assume o papel de avaliadora da linguagem comum por meio da
experiência dos sujeitos, uma vez que, ao lembrar de algo, alguém pode lembrar de si mesmo.
Com isso, há três traços distintos que se relacionam com a memória. No primeiro traço, Paul
Ricoeur (2007) aborda a memória como radicalmente singular, visto que uma lembrança
individual não é coletiva. Segundo Ricoeur: “Minhas lembranças não são as suas. Não se
pode transferir as lembranças de um para a memória do outro.” (2007, p. 107). A memória é
um paradigma de posse, ou seja, é algo privado como as experiências do sujeito, adquiridas ao
longo da vida. Já no segundo traço, é retratado o vínculo da presença constante do passado na
memória. No entender de Paul Ricoeur: “a memória passado, e esse passado é o de minhas
impressões; nesse sentido, esse passado é meu passado.” (2007, p. 107). O passado deixa
marca na memória e, assim, tem-se a continuidade temporal da pessoa, contribuindo para a
identidade pessoal, marcada pelos traços da lembrança onde elas distribuem e organizam o
sentido de um acontecimento mais longínquo da vida, enquanto a memória. Vale-se da
capacidade de percorrer e remontar, por meio da lembrança, o tempo passado. No terceiro
traço, a memória está orientando e dando sentido na passagem do tempo. Conforme Paul
Ricoeur: “À memória que está vinculado ao sentido na orientação na passagem do tempo;
orienta em mão dupla, do passado para o futuro.” (2007, p. 107). A memória remete aos
acontecimentos do passado, trazendo para o tempo presente, e, com isso, a memória gera
expectativas à lembrança, através do presente vivido.
A concepção sobre a memória remete-nos aos receptáculos das experiências da
humanidade, importando-se com o passado, enfatizando suas experiências temporais e
religiosas, podendo transformar-se de acordo com novas experiências, resultando em novos
conhecimentos adquiridos pelas reflexões. Nesse sentido, para Santo Agostinho, apud José
Caros da Costa e Lurdes Kaminski Alves (2010, p. 101), destaca que:
Eis-me diante dos campos dos vastos palácios da memória, onde estão os tesouros
de inúmeras imagens trazidas por percepções, (...) lá estão guardados todos os
nossos pensamentos, (...) de qualquer modo as aquisições de nosso sentimento, e
tudo o que ai depositamos ou reservamos, se ainda não foi sepultado ou absorvido
pelo esquecimento.
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Santo Agostinho reitera que o conhecimento e a experiência de vida permanecem na
memória como um conjunto de imagens, visto que essas vivências dos humanos penetram na
memória através das imagens sensíveis e dos pensamentos que se evoca. Assim sendo, é
compreensível que a memória seja uma imagem que nos remeta à lembrança, trazendo as
experiências para serem avaliadas de acordo com os nossos princípios, onde estamos inseridos
socialmente.
Rosani Ketzer Umbach (2012), ao se referir sobre os estudos de memória, salienta
que a escrita era vista como um meio mais seguro de conservação da memória. De acordo
com Umbach (2012), conceber a escrita como uma força conservadora da memória pressupõe
a ideia de que memória e escrita são inseparáveis. A escrita não é um meio de imortalização,
no entanto funciona como base da memória, já que os textos e as imagens servem de apoio
para estabelecer relações com o passado.
Rosani Ketzer Umbach (2012) aborda a memória na dimensão individual e coletiva
como um dos assuntos mais densos da literatura. Para muitos escritores que consideravam a
escrita um recordação do passado, a memória tem uma importância significativa nas
narrativas memorialísticas. Segundo Umbach: “E, no processo de escrita de memória,
misturam-se elementos construtivos à narrativa.” (UMBACH, 2012, p. 16). Portanto, a
memória individual e coletiva é de uma importância central nas narrativas memorialísticas da
literatura, e, por esse motivo, convém salientar sobre o relacionamento da memória com a
experiência de repressão, principalmente ao se tratar do testemunho no qual a narrativa torna-
se ficção. Nesse sentido, a memória da repressão foi associada, interiormente, às experiências
individuais de violência, ligando a memória coletiva, encontrando-se na passagem entre a
literatura, a cultura e a história.
Márcio Seligmann-Silva, ao citar Walter Benjamin, argumenta que esse autor, em
um dos seus ensaios sobre a historiografia, discute que historiografia é uma invenção do
século XIX, porém concebido no século XX. Diante dessa abordagem, Marcio Seligmann-
Silva destaca que “Pode-se dizer com Walter Benjamin que essa historiografia representaria
mais um dos sonhos que penetraram o umbral da nossa Era.” (SELIGMANN-SILVA, 2003,
p. 60). Portanto, a humanidade está despertando desse sonho, refletindo sobre o passado
recorrente do historicismo que acreditava na possibilidade de conhecer os acontecimentos do
passado e o que de fato aconteceu.
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Diante dessas reflexões, Walter Benjamin foi um dos estudiosos que melhor abordou
o despertar dos sonhos e suas interpretações na historiografia. Seligmann-Silva, ao citar
Nietzsche, comenta que, em seu texto “Dos usos e desvantagens da história da vida”, o autor
menciona que “é totalmente impossível de se viver sem o esquecimento”. (SELIGMANN-
SILVA, 2003, p. 60). Nesse sentido, o esquecimento passa a ser percebido como uma parte
importante e necessária na vida da humanidade. Nietzsche estava convicto nas suas reflexões
sobre o esquecimento de que era importante o bem estar dos indivíduos. Segundo Nietzsche
(apud SELIGMANN-SILVA, 2003):
A alegria, a boa consciência, o ato feliz, a confiança naquilo que vem- tudo depende
de cada indivíduo, assim como do povo, da existência do que separa o visível claro,
do que não pode ser clareado ou escuro, de que se saiba tanto esquecer na hora certa,
como também que se recorde na hora certa, de que as pessoas sintam um instinto
forte quando é necessário senti-se de modo histórico. (NIETZSCHER, apud
SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 61)
De acordo com as concepções de Nietzsche sobre o esquecimento, é essencial o
estado de alegria dos indivíduos bem como a confiança no que estavam presenciando. Por
isso, é necessário que os indivíduos saibam esquecer e lembrar no momento certo. E, com
isso, para a saúde de cada indivíduo, de um povo e de uma cultura, ao lembrarem o passado,
podem ser incapazes de transmitir o seu aprendizado oriundo da experiência e da dor.
Márcio Seligmann-Silva (2003), em seu ensaio sobre “Reflexões sobre a memória,
história e o esquecimento”, ao citar Nietzsche, salienta que “(...) o tempo certo para se
esquecer e o tempo certo para se lembrar pode levar à ideia inocente de que podemos
controlar nossa memória.” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 61). Nesse sentido, Nietzsche
(apud Seligmann-silva, 2003) defende a ideia de que houve um tempo certo para o
esquecimento e um tempo certo para lembrar. Assim, gera um conceito segundo o qual houve
a possibilidade de controlar a memória. Porém, a historiografia é a que mais aproximou dessa
concepção, porque ela é capaz de arquivar os inúmeros acontecimentos. Foi sob esse enfoque
da história que Nietzsche abordou sua crítica, já que a memória, ao fazer registros, foi seletiva
nas lembranças e nos esquecimentos. Sob esse prisma, Márcio Seligmann-Silva (2003), ao
citar Walter Benjamin, alega que o autor, ao descrever o trabalho de Penélope sobre a
reminiscência, ponderou: “Assim como nos devemos „lembrar de esquecer‟, do mesmo modo
não nos devemos esquecer-nos de lembrar”. Nesse contexto, essas concepções são
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mandamentos da memória e são válidas para a História, portanto, História e memória, no que
tange a um registro, não devem apagar um ao outro.
Já para as estudiosas Caroline Cristina Sousa Silva e Juliana Ventura de Souza
Fernandes (2010) e para o estudioso e professor Matheus Henrique de Faria Pereira (2010), o
esquecimento propõe um novo sentido para os estudos dos fenômenos da memória; eles
observam que o esquecimento é para a memória um afastamento e um distanciamento. Já o
esquecimento de reserva provavelmente tem a preservação da memória, por meio que os
mecanismos ocultos são vistos como a dimensão feliz do esquecimento. Analisando o
esquecimento por esse viés, ele esteve relacionado com a memória feliz, ou seja, o
reconhecimento. Nesse contexto, os estudiosos afirmam que “O reconhecimento que pode
assumir formas distintas: daquilo que se teve e „retornou‟ e daquilo que parece da ordem do
inédito.” (FERNANDES, PEREIRA, SOUZA, 2010, p. 7). Portanto, reconhecer uma
lembrança é reencontrá-la e torná-la disponível com a espera da recordação, no âmbito da
experiência do reconhecimento, o que remete ao estado de lembrança da impressão de
imagens construídas de uma percepção e interpretação do tempo.
Para refletir sobre a relação da memória e do esquecimento, primeiramente convém
ressaltar o conceito de esquecimento. Conforme o dicionário Aurélio, esquecimento é o ato de
esquecer, falta da memória e descuido. É também como um dano a confiabilidade da
memória, ou seja, uma luta contra o esquecimento. Diante da importância do esquecimento
em relação à memória, os estudos do filósofo francês do século XX Paul Ricoeur (2007)
contribuem para analisar de que maneira as lembranças, o esquecimento e a memória
relacionam-se. Nesse sentido, o esquecimento manifesta-se através da noção de rastro
cerebral. Isso também é abordado nos documentos escritos presentes na nossa memória bem
como nas impressões psíquicas. Portanto, rastro e esquecimento têm uma noção em comum
que foi a destruição e o apagamento dos rastros. Dentro dessa concepção, Paul Ricoeur (2007)
aborda que
Nas ciências neuronais, costuma-se enfrentar diretamente o problema dos rastros
mnésicos, visando a localizá-los ou a subordinar as questões de topografia às de
conexidade, (...) daí, passa-se às relações entre organização e função e, com base
nessa correlação, identifica-se o correspondente mental (ou psíquico) do cortical em
termos de representações e de imagens, entre as quais as imagens mnésicas. O
esquecimento é então evocado nas proximidades das disfunções das operações
mnésicas, na fronteira incerta entre o normal e o patológico.” (RICOEUR, 2007, p.
428)
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Na concepção de Paul Ricoeur (2007), no que tange ao esquecimento, foi papel do
filósofo fazer relações com os rastros mnésicos e a problemática central do passado através da
fenomenologia. As releituras do passado foram comandadas pela dialética das imagens
mnemônicas. O esquecimento é a distorção da memória quando ele é definitivo devido ao
apagamento dos rastros e passou a ser vivido como uma ameaça para a memória, já que o
esquecimento está associado a mesma. Quanto ao fenômeno mnemônico, foram vividos no
silêncio e o esquecimento comum, esteve ao mesmo lado da memória comum. Já para o
esquecimento de recordação manifestou-se nas figuras do esquecimento, desafiando a
tipografia, como as expressões verbais, os ditos de sabedoria popular, os ditados e os
provérbios. Portanto, essas manifestações individuais do esquecimento estão misturadas em
suas formas coletivas.
Quanto aos estudos de esquecimento e à memória impedida, Paul Ricoeur (2007)
reiterou que a memória impelida lembra a repetição, rememoração e também ela está
relacionada com: “um „luto de melancolia‟ é uma memória esquecidiça.” (RICOEUR, 2007,
p. 452). Portanto, essa memória faz alusão à facilidade de esquecer aliada à tristeza e ao
abatimento do indivíduo. Baseada nessa concepção, Paul Ricoeur citou Sigmund Freud em
seu ensaio “O esquecimento e a memória impelida” e destacou que:
Lembramos da reflexão de Freud, (...) o paciente repete ao invés de se lembrar. Ao
invés de: a repetição vale esquecimento. E o próprio esquecimento é chamado de
trabalho na medida em que é a obra da compulsão de repetição, a qual impede a
conscientização do acontecimento traumático. (RICOEUR, 2007, p. 452)
Dentro dessa perspectiva, um dos ensinamentos da psicanálise abordou a repetição
de histórias constante dos pacientes, sendo relevante para o esquecimento, porque o excesso
de repetições baniu a noção de atitudes traumáticas. Nesse sentido, havia duas lições da
psicanálise que destacou: em primeiro, o trauma, mesmo sendo inacessível, e depois deste
surgiram sintomas que mascararam o possível retorno do recalque das mais diversas formas
estudadas nos indivíduos. Já a segunda lição tange partes inteiras do passado em situações
particulares, cujos conceitos esquecidos e perdidos podem retornar. Contudo, Paul Ricoeur
(2007) reitera que “umas das convicções mais firmes de Freud foi mesmo que o passado
vivenciado é indestrutível.” (RICOEUR, 2007, p. 453).
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3 MEMÓRIA E TRAUMA EM GRACILIANO RAMOS: MEMÓRIAS
DO CÁRCERE
Esta seção está centrada na análise de Memórias do Cárcere e abordará a forma
narrativa, a linguagem no discurso do narrador, a narração como cura, a construção da
memória, a função social e política da obra ao aparecimento da memória por meio da
literatura. Para isso, os enfoques eleitos serão divididos em quatro partes tendo como objeto
de estudo a obra já mencionada. Com isso, o objetivo será aprimorar a compreensão de como
o autor construiu suas memórias através da visão degradante da prisão por meio da
coletividade. Vamos nos apropriar de textos dos estudiosos renomeados da teoria e da crítica
literária à luz de Márcio Seligmann-Silva, Theodor Adorno, Antonio Candido, Walter
Benjamin, entre outros.
O primeiro enfoque a ser analisado será a forma narrativa de Memórias do Cárcere,
tendo como objetivo a observação da estrutura dos capítulos, a linearidade do enredo, a
fragmentação, o discurso em primeira pessoa e as lembranças do narrador, ressaltando a
presença da voz- testemunha, que conta o que viveu e dá a sua versão sobre os fatos, a qual
pode ser diferente da visão da história oficial.
Abordaremos também, a narração e a linguagem do discurso traumático tendo como
objetivo o estudo do trauma no discurso traumático, as marcas linguísticas, o estado
psicológico, as dificuldades de lembras, falar e compreender do narrador, e como ele vê o
Estado. Posteriormente analisaremos a narração como cura e construção da memória, tendo
como objetivo a tentativa do narrador de curar suas lembranças traumáticas através da
narrativa. Com isso, mostraremos que a narração é um meio possível para se construir uma
memória dos fatos, lutando para que eles nãos sejam esquecidos. Portanto, essa perspectiva
pode ser ampliada no sentido de que a obra é uma luta contra a repetição da barbárie.
Por fim, vamos estudar a função social e política da obra ressaltando a luta da
literatura contra o apagamento da memória. Nosso objetivo será ressaltar, em que sentido a
obra nos ajudará a compreender melhor a sociedade da época do Estado Novo. Com isso,
instigar a uma visão mais detalhada e crítica, através da reflexão e posteriormente a
humanização diante dos efeitos narrados.
69
3.1 A forma da narrativa
Será dada ênfase inicialmente à observação à estruturação dos capítulos de Memórias
do Cárcere com objetivo de analisar a linearidade, a fragmentação (entendida apenas como a
divisão da obra em partes) e se a obra é de memória ou ficção através da presença da voz-
testemunho, ressaltando a legitimidade da voz do narrador que conta o que viveu dando a sua
versão sobre os fatos. O primeiro aspecto que chama atenção antes da primeira e segunda
parte do livro é uma nota explicativa, redigida pelo historiador e literato Nelson Werneck
Sodré, na qual estão destacados os motivos que levaram Graciliano Ramos a escrever
Memórias do Cárcere. No prefácio, Nelson Werneck Sodré (2004) salienta que:
Graciliano dizia como pensava em escrever estas memórias, como abordaria certos
aspectos, como definiria alguns ângulos. Foi muito depois de pensar e projetar que
se lançou a tarefa, para ele muitas vezes penosa de se passar ao papel os capítulos
em que descreveu, passo a passo, não a sua experiência pessoal, mas, o que é
importante, o que é fundamental, o retrato de uma época. (SODRÉ, 2004, p. 09)
Essa justificativa deixa o leitor preparado para a compreensão de que estamos diante
de uma obra densa com significados expressivos de uma época, aliando as memórias de
Graciliano Ramos, as quais de certa forma trazem um cunho testemunhal de momentos
específicos. Portanto, o testemunho de Graciliano Ramos, interpretado por Sodré (2004) como
“retrato de uma época”, apresenta uma dimensão histórica ratificada tanto pelas memórias
apresentadas, quanto pelas referências a episódios e personagens reais, como Olga Prestes, e
pela própria nota explicativa da edição do livro. É assim um depoimento, um testemunho de
um momento histórico doloroso de nossa história.
Quando nos referimos à questão do depoimento, precisamos fazer algumas
observações. Antonio Candido (1992) pondera que o livro mescla depoimento e testemunho:
“é o depoimento, relato que se esforça por ser direto e desataviado, o testemunho sobre o
mundo da prisão, visto do ângulo da sua experiência pessoal, (...) o livro é desigual.”
(CANDIDO, 1992, p. 88). Graciliano Ramos, por um lado, deixaria de produzir obras
exclusivamente ficcionais, como fazia desde então, e se dedicaria, em Memórias, a sua última
obra de cunho biográfico, testemunhal, concentrando-se na documentação dos fatos por meio
de sua arte narrativa e de sua visão de mundo. Por essa razão, Candido, considera uma obra
70
desigual, por obter uma longa elaboração dos fatos ocorridos no Brasil na década de 30
unidos a uma perspectiva artística.
Mesmo estando com a saúde debilitada, o escritor insistentemente escreve o seu
testemunho, deixando seus amigos e familiares preocupados com o declínio de sua saúde e
temendo que essa situação viesse a se agravar de súbito e também interrompendo a
possibilidade daquele depoimento indispensável. Diante dessa situação, o autor usou o bom
humor para prosseguir a sua profunda exigência sobre a necessidade do seu depoimento, de
pô-las no papel sem pretender tornar-se a figura central da sua obra, sem a pretensão de
alimentar a sua vaidade sem rabiscar um triste e ridículo depoimento pessoal, por ser um
escritor equilibrado e lúcido. Diante de tais considerações, a obra Memórias do Cárcere é
estruturada em dois volumes com aproximadamente 697 páginas, seguindo uma narrativa
linear mesmo que o narrador não mantenha uma progressão temática linear entre parágrafos.
A obra é dividida em quatro partes para melhor compreensão do leitor, nas quais o
escritor Graciliano Ramos deixa-nos cientes das suas impressões sobre o que ocorreu no
Brasil na época da Era Vargas. Por esse viés, passamos a analisar o que essas partes nos
dizem sobre a história relatada pelo testemunho de Graciliano Ramos, conduzindo um relato
linear.
A divisão linear presente no livro é fundamental para que o leitor acompanhe e tenha
compreensão dos fatos narrados, como a prisão sem justa causa de Graciliano Ramos e sua
viagem ao navio Manaus. Por esse motivo, a primeira parte é intitulada “Viagem”, trazendo a
reflexão do narrador sobre o governo Getulista e a degradante viagem até o Pavilhão dos
Primários, o que podemos observar na passagem a seguir: “Algumas dúzias de criaturas vivas
agitavam-se, falavam, davam-me a impressão de passear num cemitério. Eram as que me
interessavam. As trouxas humanas abatidas pelos cantos.” (RAMOS, 2004, p. 178, v.I). Nessa
passagem, Graciliano Ramos testemunha a realidade sofrida do porão do Manaus; quando usa
a palavra “cemitério”, ele acentua um subsolo de miséria e dor, sendo impossível ignorar
tamanho infortúnio. A viagem segue até o Pavilhão dos Primários.
Dando sequência à obra, temos, na segunda parte “Pavilhão dos Primários”, a
exposição da gradativa e cada vez mais acentuada dor e desumanização na prisão. Nesse
sentido, o próprio título dessa parte nos remete a um pavilhão, sendo a prisão onde se
concentram pesos primários, ou seja, é a primeira vez que esses indivíduos estão vivendo
numa prisão e que aos poucos vão moldando-se, adquirindo novas características físicas,
como o corpo debilitado, magro, doente e fraco, decorrente da alimentação precária. A tortura
71
física também era outro agravante. Conforme Graciliano Ramos acentua: “Ao deixar a sala de
tortura, Sérgio mexia-se a custo: andava na ponta dos pés feridos, arrastando os sapatos, os
calcanhares fora dos tacões: a rigidez do couro magoava-lhe a carne viva, sangrenta”
(RAMOS, 2004, p. 230. V. I). Esses atos de tortura física, feitos pela polícia carcerária, eram
de cunho investigativo, e, na medida em que acontecia a tortura, geravam-se a dor física e a
dor na alma, originando o trauma psicológico.
Nesse sentido, Graciliano Ramos, ao escrever Memórias do Cárcere, vai preparando
o leitor “sutilmente” com a situação degradante que viria em seguida. Por isso, em sua
narrativa, há um certo caráter “didático”, pois mostra a sequenciação da experiência de prisão
através do seu testemunho na Era Vargas. Por essa razão, na terceira parte do livro, “Colônia
Correcional”, cujos fatos são localizados no litoral do Rio de Janeiro, o narrador destaca as
condições desumanas a que os presos eram submetidos: maus tratos, estupros, assassinatos e
toda forma de violência faziam parte da rotina dos presos. Diante dessa abordagem,
observamos um fragmento de Graciliano Ramos: “Vemos um sujeito sem as unhas dos pés,
sabemos que elas foram arrancadas a torquês.” (RAMOS, 2004, p. 29 v. II). Portanto, esse
local paradisíaco, cujo isolamento facilitava os objetivos do governo com a “correção” ao
indivíduos que tinham ideias contrárias ao Estado Novo. Por isso, na colônia eles eram
dominados pela tortura física conforme notamos nas palavras “sem unhas dos pés” e
“arrancados com torquês”; ao lermos tais fragmentos, deparamo-nos com muita crueldade e o
autoritarismo da polícia sob o prisma de quem viveu ou viu essa dor de perto.
Por fim, na quarta parte, na “Casa de Correção”, tem-se o momento em que
Graciliano Ramos, com a saúde debilitada, é internado para exames médicos e para uma
possível cirurgia, mas ele nega em fazê-la nesse lugar hostil e traumático. De acordo com
Graciliano Ramos: “Levaram-me à enfermaria, (...) Demorei-me numa saleta. Chamaram-me
ao consultório médico e um rapaz taciturno examinou-me, prescreveu injeções de vitaminas e
estricnina” (RAMOS, 2004, p. 231, v. II). Nessa passagem, Graciliano Ramos caracteriza o
médico de “taciturno” porque remete à melancolia, à tristeza, enfim a algo bem familiar com
o ambiente em que vive. A prescrição de vitaminas é decorrente da sua fraqueza nas pernas
que vinha se acentuando desde sua permanência na Colônia Correcional. Portanto, com o
enfraquecimento de Graciliano Ramos e não havendo provas concretas sobre o seu real
envolvimento com o partido comunista, ele é posto em liberdade. O leitor presencia a
acentuação da tortura e com as penas disciplinares violentas, que iam das chicotadas às
péssimas condições de higiene vividos pelo personagem da Era Vargas.
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Dando sequência à narrativa do livro, destacamos os estudos de Hermenegildo
Bastos (1998) sobre Memórias do Cárcere (1953) no qual o pesquisador caracteriza a obra
como uma narrativa primitiva e atual. De acordo com Hermenegildo Bastos (1998); “a
narrativa primitiva era obra do eu narrado, a narrativa atual é obra do eu- narrador.”
(BASTOS, 1998, p. 132). Segundo Bastos (1998), a narrativa primitiva são as anotações de
acontecimentos vividos e observados por Graciliano Ramos enquanto esteve no Pavilhão dos
Primários. Ao viajar de lancha para a Colônia Correcional, decide desfazer-se de suas
anotações para não criar maiores problemas, conforme podemos constatar no livro: “as folhas
de papel cobertas de letras miúdas joguei-as na água. Representavam meses de esforço (...)
mas naquele momento experimentei uma sensação de alívio” (RAMOS, 2004, p. 39, v. II).
Nesse sentido, a narrativa primitiva é jogada na água por prudência, mesmo que ela
representasse muito trabalho para redigir e o cuidado que teve para esconder dos carcerários.
A perda da narrativa vem associada à consolação, porque ter em mãos essas anotações que
assinalam o aspecto degradante da prisão pode ser analisado por dois pontos de vista.
Primeiro, a escrita é vista como uma arma, pelas vinganças e maus tratos e, segundo, pela
denúncia das condições carcerárias. Sob esse enfoque, podia acarretar-lhe aborrecimento, ou
seja, punições na prisão.
Por outro lado, a narrativa atual é o testemunho de Graciliano Ramos, sem anotações,
contando com suas memórias. Por esse viés, podemos destacar a estrutura do primeiro volume
disposta pela fragmentação da obra com a primeira parte, intitulada “Viagens” que abrange
200 páginas e com 33 capítulos e aborda desde os acontecimentos que antecedem a prisão de
Graciliano Ramos até a sua chegada no Pavilhão dos Primários. Esse período corresponde às
viagens realizadas nos vários tipos de prisões brasileiras, bem como sua breve estadia nelas.
No início da primeira parte, Graciliano Ramos relata que foi conduzido ao 20º Batalhão de
Alagoas em Maceió, permanecendo lá por algumas horas. Conforme afirmou Graciliano:
“Mal fechara os olhos numa leve sonolência, alguém me sacudira e soprara ao ouvido: “-
Viaja.” Para onde?” (RAMOS, 2004, p. 62, V. I). Graciliano Ramos sentia-se angustiado com
a ideia de levá-lo a cada instante para algum lugar sem explicações. Depois foi conduzido de
trem para o Recife. Segundo Graciliano Ramos: “Depois de uma noite de insônia,
despachavam-me para o Recife. Que diabo queriam de mim no Recife?” (RAMOS, 2004, p.
60, V. I). Nessa passagem, percebemos que o escritor ficou lá por algumas horas. Após,
viajou no porão do navio Manaus para chegar ao Pavilhão dos Primários. Nesse sentido, o
73
período da prisão e da viagem deixou marcas na memória de Graciliano Ramos porque sua
prisão não teve uma justificativa formal, e durante a viagem as condições de instalação eram
péssimas; tudo isso acentuou os questionamentos sobre o autoritarismo da polícia na sua voz
testemunhal, posicionando-se de maneira crítica e reflexiva. Quando o autor refere-se a
“despacharam-me” é o tom testemunhal do narrador que transparece porque ele conta o que
mais marcou lhe dos acontecimentos que testemunhou. Por essa razão, podemos compreender
que o testemunho, no entender de Márcio Seligmann-Silva, é abordado como o que
“justamente quer resgatar o que existe de mais terrível no „real‟ para apresentá-lo”
(SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 375). Portanto, o caráter testemunhal de Memórias do
Cárcere resgata do narrador a sua memória individual e coletiva, enfim o que existe de mais
marcante para testemunhar através de literatura.
A segunda parte, “Pavilhão dos Primários”, abrange 185 páginas, contendo 31
capítulos que abarcam os acontecimentos acerca da chegada na prisão esta localizada no
Recife. Quando Graciliano Ramos e outras pessoas chegaram lá, foram recepcionados com o
Hino Nacional. De acordo com Graciliano: “Avançamos entre duas filas de homens que, de
punhos erguidos, se puseram a cantar, na música do hino Nacional (RAMOS, 2004, p. 207 V.
I).” Diante dessa atitude dos presos, Graciliano recordou do que ouvira falar na véspera sobre
o Pavilhão, achando engraçado, e pensou ter entendido quando contaram a ele, que ali vivam
cantando e berrando como uns loucos. Essa parte concentra-se na retratação das pessoas e do
ambiente precário, desanimador e submetidos a violência física e mental. Para Graciliano:
“As violências estão próximas, (...) o reflexo dos gritos e uivos causados por agulhas a
penetrar unhas, maçaricos abrasando músculos.” (RAMOS, 2004, p. 260, V. I).
A estrutura do segundo volume traz a terceira parte, intitulada “Colônia
Correcional”, e abarca 186 páginas, dispostas em 35 capítulos. O discurso autobiográfico
segue com detalhes do temida Colônia Correcional1. Nela, encontravam-se cerca de
novecentas pessoas e Graciliano presenciou os maiores atos de desumanização e a
impossibilidade de pensar em algo melhor para sua vida, chegando a comprá-los como
animais. Graciliano reitera que: “Novecentos homens num curral de arame. Pensei na
estridência nos arrepios Tamanduá: - Bichos, vivíamos como bichos. (...)criaturas meio nuas,
varrendo a prisão” (RAMOS, 2004, p. 71, V. I).
Dando sequência à obra, temos a quarta e última parte, que traz como título “Casa de
Correção”. A presente parte aborda o estado da saúde debilitada de Graciliano Ramos que foi
1 Colônia Correcional, localizada na Ilha Grande no Rio de Janeiro.
74
hospitalizado algumas vezes para fazer exames e uma possível cirurgia. Já doente e sem
nenhuma prova concreta de que o escritor pertencia ao partido comunista, é deportado para a
Casa de Correção, onde passa seus últimos momentos na prisão. Não havendo provas sobre o
seu suposto envolvimento com o Partido Comunista, partido este de esquerda, o escritor é
liberado da prisão.
Nesse sentido, podemos perceber a intensidade e a preocupação de Graciliano Ramos
em narrar o que ocorreu com ele nos dez meses em que esteve no exílio. Sua narrativa é em
primeira pessoa, já que é ele o próprio narrador, havendo então uma associação entre escritor
e narrador, que é também personagem. Podemos salientar que Graciliano usa verbos no tempo
passado, no transcorrer de sua narrativa, conforme podemos notar na obra de Graciliano
Ramos:
Não era o que pretendiam. Nada de requerimentos: queriam visitar-me em casa. (...)
Pedi que não me transmitissem mais essas tolices, (...) e esqueci-as: nenhum minuto
supus que tivessem cunho oficial. (...) um amigo me procurou com a delicada tarefa
de anunciar-me. (...) o aviso que me traziam era, pois, razoável, e até devia
confessar-me grato por me haverem conservado tanto tempo. (RAMOS, 2004, p.
38, V. I)
Em tal passagem, podemos perceber como Graciliano utiliza os verbos tanto no
tempo passado do modo indicativo como também no modo subjuntivo por meio dos verbos
“transmitisse” e “tivessem”, Graciliano vale-se desses tempos e modos verbais para abordar a
sua narrativa autobiográfica. Nesse sentido, ele usa o “eu” como uma maneira de salientar a
vontade de voltar para sua realidade e chamar a atenção do leitor, acentuando que o “eu” não
é um simples pronome. De acordo com os estudos de Hermenegildo Bastos (1998) sobre a
narrativa autobiográfica, “O eu dirige o olhar do leitor para fora do texto para encontrá-lo: eis-
me aqui. Mas depois desse esforço descomunal, a conversação ainda assim é inevitável.”
(BASTOS, 1998, p. 118). Analisando por esse viés, o propósito não é limitar o eu da narrativa
autobiográfica, já que ela é referencial a um ser de linguagem. Porém, o relato autobiográfico
é definido como um diálogo entre o sujeito que se oculta com a sinceridade na sua escrita e
sua figura relativa ao domínio da linguagem. Portanto, isso faz com que tenhamos os objetos
da escrita memorialística, já que o que se refere ao “eu” passa a ter a um conjunto dos seres da
linguagem. Nesse sentido, podemos observar neste trecho que o “eu” aparece de forma
enfática nas memórias relatadas:
Pus-me a fumar, embalado por uma doce tontura. (...) Sentia-me realmente bem. As
pessoas e as coisas em redor esmoreciam na fumaça do cigarro, as ideias escassas
decompunham-se, volatizavam-se, e afinal eu já nem sabia se aquela tênue neblina
75
estava dentro ou fora de mim. Adormecia, acordava a brasa do cigarro cobria de
cinza e avivava-se. As pálpebras uniam-se, descerravam-se penosamente. (RAMOS,
2004, p. 166, V. I)
Analisando por esse prisma, Graciliano Ramos usa o pronome “eu” para caracterizar
sua narrativa autobiográfica, acentuando que ele evita invocar o seu nome, ao escrever, por
exemplo: “sentia-me”, “adormecia”, “acordava”, de acordo com a citação acima, para se
referir ao que ele estava sentindo na viagem do navio Manaus. Além disso, a forma verbal
selecionada pelo narrador é também esclarecedora: o uso dos verbos no pretérito imperfeito
do modo indicativo acentua a ideia de que tais experiências eram contínuas, habituais em sua
rotina a ponto de dificultar até mesmo a distinção entre o que de fato era novo e o que se
repetia.
Diante de tal constatação, Graciliano deixa transparecer ao leitor que ele deposita na
pele de outro “eu”, de modo oblíquo, a questão da subjetividade e a identidade. Por isso, o
“eu” é o ser que tem como nome Graciliano Ramos. Nesse sentido, é curioso perceber que
esse ser real não atende, na obra Memórias do Cárcere, pelo nome de Graciliano Ramos, pois
o escrito evita dizer seu nome. Podemos abordar que Graciliano Ramos, além de ocultar a sua
identidade, também a fez com alguns companheiros de cadeia. Conforme reitera Graciliano
Ramos (2004):
(...) afligiu a ideia de jogar no papel criaturas vivas sem disfarces, com os nomes que
tem no registro civil. Repugnava-me deformá-las, dar-lhes pseudônimos, fazer do
livro uma espécie de romance; mas teria eu o direito de utilizá-las em histórias
presumivelmente verdadeiras? (RAMOS, 2004, p. 7 V. I).
Portanto, a mudança no sentido de identidade procede, tornando-se um problema.
Sob esse viés, a resolução possível é a narração, porque é através dela que a obra Memórias
do Cárcere, por intermédio de Graciliano Ramos, o personagem-narrador, propicia espaço e
tempo para narrar às experiências da prisão, conforme afirma Antonio Candido (1992): “o
testemunho sobre o mundo da prisão, visto do ângulo da sua experiência pessoal (CANDIDO,
1992, p. 88)”. Logo, Graciliano Ramos escreve sobre si mesmo, correspondendo abandonar as
maneiras de escrever ficção para centralizar no texto documental, Memórias do Cárcere, onde
o autor Graciliano Ramos aborda os traços da sua arte narrativa e sua visão do mundo.
Na forma narrativa dessas memórias, o personagem-narrador destaca: “Era o
pavilhão dos militares. O chão liso, as paredes nuas valorizavam demais o conforto escasso
76
perdido uma hora antes. (...) iríamos para a colônia? Essa pergunta muitas vezes se repetiu”
(RAMOS, 2004, p. 09 V. II). Diante de tais observações do narrador, no momento em que
estavam no pavilhão dos militares, ele e seus colegas de prisão deparam-se com um ambiente
hostil. O personagem-narrador utiliza os adjetivos “liso” e “conforto” para caracterizar o lugar
a fim de destacar o cenário como um ambiente frio, pouco aconchegante. O ambiente descrito
por Graciliano Ramos dá indícios do lugar precário que é a prisão, reforçando a visão de
desconforto tanto das instalações como do desconforto físico e psicológico que os detentos
ainda iriam presenciar.
Ainda no excerto em questão, diante da pergunta sobre a Colônia, Graciliano Ramos
analisa que era um lugar pior que este onde estava, no Pavilhão dos Primários, com mais
torturas e maus tratos, por isso a insistência em saber se iriam para lá. Essa memória do
narrador assinala para uma projeção do gradativo mal-estar presente na rotina dos prisioneiros
do Estado Novo que, a cada momento, são levados a lugares cada vez mais depreciativos que
o anterior em um processo que acentua as condições marginais de sobrevivência. Essa visão
sobre esse momento histórico é acentuada pela presença de um narrador que relata esses
acontecimentos a partir de um tempo distante daquele quando os fatos ocorreram.
A propósito de tais ponderações, é relevante relacionar algumas proposições de
Walter Benjamin que, em 1936, escreve um importante ensaio intitulado “O narrador:
considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, com o desígnio de discutir como a arte de
narrar, de transmitir o conhecimento de geração em geração, entra em declínio no instante em
que a experiência coletiva perde a força e abre espaço para a experiência solitária. Dessa
maneira, o narrador não está presente entre nós porque encontra dificuldades de narrar para
uma coletividade. Walter Benjamin (1994) pondera que:
Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse
ângulo de observação. É a experiência de que a arte de narrar está em vias de
extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente.
Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se
generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia
segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 1994,
p. 197-198)
Nesse sentido, Walter Benjamin (1994) acentua o quanto a dificuldade de saber
narrar está presente nas ações da humanidade como as experiências de vida, fenômeno este
cada vez mais em baixa. Diante de tais considerações, acentuamos que o contexto do Estado
77
Novo, período este de 1937 a 1945, narrado no texto de Graciliano, torna-se um manifesto das
prisões brasileiras a partir de uma perspectiva narrativa que revela dor em ter de contar
experiências dolorosas, como se a faculdade de intercambiar experiências como essa fosse
algo penoso para quem as viveu. Isso poderia justificar a escolha por memórias e não, por
exemplo, contos ou romance, pois construir memórias é uma forma de narrar inclusive
experiências de dor.
Nas memórias, percebemos que os detentos voltavam mudos das prisões, de forma
que suas experiências comunicáveis tornaram-se mais raras. Analisando por esse viés, o
narrador justifica a ausência de comunicação ao sair da prisão, alegando que os motivos que
os levaram ao silêncio foram uma série de fatores ligados ao período político vigente da época
e o quanto era difícil relembrar o sofrimento da prisão, o que nos remete novamente à ideia de
Benjamin (1994) que defende a ideia de que é difícil narrar experiências de barbárie. De
acordo com o narrador, a opção em relatar o que lhe acontecera na prisão foi uma decisão
penosa e, como se passaram muitos anos entre os acontecimentos e os relatos, muitos dados
se perderam. Logo o que se apresenta nas memórias são recortes da época:
Revolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos, (...)
Não conservo notas: algumas que tomei foram inutilizadas, e assim, com o decorrer
do tempo, ia parecendo cada vez mais difícil, quase impossível, redigir esta
narrativa. Além disso, julgando a matéria superior às minhas forças, esperei que
outros mais aptos se ocupassem dela. (RAMOS, 2004, p. 35, V. I)
A opção do narrador da obra de relatar, mesmo que com dificuldades, o que
experienciou na prisão durante o Estado Novo é também uma forma de o escritor registrar
memórias de sua biografia, dando não apenas uma dimensão pessoal sobre o período, mas
também induzindo a uma leitura de acontecimentos coletivos, comuns a tantos outros sujeitos
oprimidos pelo sistema de Vargas. Graciliano Ramos, após dez anos de sua libertação da
prisão, por meio da obra Memórias do Cárcere, sente a necessidade de narrar com o intuito de
construir um testemunho pessoal de fatos tipicamente recorrentes a inúmeros indivíduos que
lá se encontravam, dando dessa forma uma dimensão coletiva às memórias. Diante disso,
Graciliano Ramos, com sua saúde debilitada, decide tornar público através da literatura, sua
experiência de vida marcada pelo tempo, deixada por recordações dolorosas em que esteve
preso, o que confere a Memórias do Cárcere uma mescla de testemunho e autobiografia.
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Ainda sobre a forma narrativa, é importante fazer algumas observações. O narrador
da literatura contemporânea é um sujeito que dialoga suas experiências com o leitor,
possibilitando uma construção, em conjunto, do sentido da narrativa. Esse novo narrador é
abordado pelo estudioso Theodor Adorno (1983), em seu ensaio sob o título “A posição do
narrador no romance contemporâneo”, no qual explica que o ato de narrar se confronta com
os tempos de catástrofes. Essa proposição contribui para uma perspectiva crítica na
reelaboração de um novo modo de narrar. Nessa perspectiva, Theodor Adorno(1983) salienta
que: “Ela se caracteriza, hoje, por um paradoxo: não se pode mais narrar, embora a forma do
romance exija essa narração. O romance foi a forma literária específica da era burguesa.
(ADORNO, 1983, p. 269). Adorno (1983) nos remete a um novo horizonte na caracterização
do narrador moderno, na qual o ato de narrar se desprende das formas do romantismo
valorizada pela burguesia e ganha atributos de cunho realista, principalmente, após atos de
barbárie, pós-guerras, ao longo da história.
Por esse viés defendido por Adorno (1983), a obra Memórias do Cárcere apresenta
um narrador-personagem pós Era-Vargas e sua memória oculta dados da história política, mas
através do contexto entendemos o que suas memórias acentuam: uma dificuldade de narrar
episódios como os que caracterizam essa era. Ainda nessa perspectiva o relato de Graciliano
aborda as relações entre os indivíduos na prisão e com isso possibilita um diálogo entre o
texto e o leitor a partir de um ponto de vista que aproxima o leitor do que é narrado. Como o
narrador compartilha suas experiências marcadas pelo tom pessoal da narrativa, o leitor fica
na dúvida se o que está lendo é apenas ficção ou tem fundo de representação da realidade.
Podemos compartilhar a ideia de que a forma narrativa em tom pessoal, frases curtas,
por vezes com desarticulações entre parágrafos e seções e marcada pela referência à
dificuldade de contar o que aconteceu ao narrador-personagem confere a Memórias o caráter
híbrido do texto. Esse aspecto ganha ênfase com o cunho realista, marcado pelo testemunho e
trauma, gerando um novo olhar narrativo, voltado para a individualização à medida que a
memória é individual, mas ainda é coletiva, pois apresenta uma visão global.
Perante tais considerações, podemos lembrar a ideia de Antonio Candido (1992) que
se refere ao narrador como aquele sujeito maduro que tem condições de narrar experiências de
dor: “O adulto se empenha nas coisas do século, é preso, jogado dum canto para outro e desce
a fundo na experiência humana dos homens” (CANDIDO, 1994, p. 54). Nesse sentido,
podemos salientar uma fala do narrador de Memórias do Cárcere em que acentua seu
sentimento de raiva:
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Ótimo. Num instante decidi-me. Não me arredaria, esperaria tranquilo que me viesse
buscar. Se quisesse andar alguns metros chegaria à praia, esconder-me-ia por detrás
de uma duna, lá ficaria em segurança. Se me resolvesse a tomar o bonde, iria até o
fim da linha, saltaria em Bebedouro, passaria o resto do dia a percorrer aqueles
lugares. (...) Expliquei em voz alta que não valia a pena. Entrei na sala de jantar.
Entrei na sala de jantar, abri uma garrafa de aguardente, sentei-me à mesa, bebi
alguns cálices, a monologar, a dar vazão à raiva que me assaltara. (RAMOS, 2004,
p. 44-45, V. I)
Nesse sentido, o narrador de Memórias do Cárcere, na referida citação, não
menciona a coletividade, porém apenas aborda a si mesmo, denominando como um sujeito
oculto, “eu”, quando menciona: decidi-me, chegaria, passaria, explique, entrei. Esses verbos
caracterizam a narrativa em primeira pessoa, na qual o narrador salienta os seus anseios e
inquietações diante da espera da polícia e menciona: à raiva que me assaltava. Esse
sentimento de rancor aflora no narrador a partir do momento em que ele decide ficar em casa
e enfrentar a situação esperando a polícia vir buscá-lo.
No que tange à questão da polícia, o país, na época, vivia a repressão da Era Vargas,
sendo motivo de prisão para inúmeras pessoas que fossem contrárias as suas ideias. Esse fator
é retomado quando, nos dois primeiros capítulos do livro, Graciliano está diante de uma
situação delicada, ainda em Alagoas, e recebe ligações anônimas em tom ameaçador,
alegando sua suposta prisão caso não deixasse de trabalhar de forma humanitária, visto que
ele estava sempre preocupado com as condições sociais e educacionais frente a seu cargo de
diretor da Instituição Pública de Alagoas. Por essa razão, destacamos um fragmento de
Graciliano Ramos: “o gabinete pequeno se transformara numa espécie de loja: montes de
fazenda e cadernos, que oferecíamos às crianças pobres.” (RAMOS, 2004, p. 39, v. I).
Através dessa passagem, o propósito de Graciliano Ramos era conceder “fazenda” e
“cadernos” à população carente e, diante dessa ação sensibilizadora, ele instiga a atenção do
governo Getulista de maneira negativa, porque a postura do Estado Novo não era
humanizadora com os pobres, mas opressora, violenta e autoritária. Por essa razão, nas
primeiras páginas de Memórias do Cárcere, é acentuada a presença constante do opressor,
com misteriosos telefonemas com objetivo de intimidar Graciliano Ramos, que tampouco
deixa abalar-se. Por isso, ele é visto como um membro do partido comunista, porém apenas
em 1945 ele alia-se ao partido. Essa postura corajosa e sociável com a população de Alagoas
resultou-lhe em dez meses exilado, testemunhando as atrocidades cometidas na prisão.
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Diante desse contexto de violência em que o narrador está inserido, Theodor Adorno
reitera que: “É preciso apenas ter presente a impossibilidade de quem quer que seja, que tenha
participado da guerra, a narrasse como antes uma pessoa contava suas aventuras. (ADORNO,
1983, p, 269)”. Portanto, somente após algum tempo, o narrador consegue narrar as
dificuldade, atribuindo o seu ponto de vista diante de situações violentas. É o que ocorre com
o narrador de Memórias do Cárcere, a impossibilidade de narrar o que aconteceu nas prisões
brasileiras, serve como fuga do passado. Portanto, a obra apresenta um narrador que
compartilha sua perspectiva degradante da prisão, marcada pela sua descrição pessoal pela
violência e, após algum tempo, o autor decide relatar o fato ocorrido, por ser um narrador
contemporâneo.
3.2 A narração e a linguagem do discurso traumático
Ao narrar suas experiências na prisão a partir de um discurso de memórias,
transparece na voz no narrador uma visão traumática sobre os eventos. O trauma aparece no
discurso do narrador salientando, no decorrer da obra, a política do Estado Novo, decorrentes
da tortura sofrida por ele na prisão. Dessa maneira, o narrador destaca em sua obra memórias
que destacam sempre uma perspectiva sombria daquela época, relatada também com certa
ironia quando, por exemplo, afirma que os guardiões eram criaturas amáveis em excesso que
lhe traziam sentimentos negativos, como o de angústia, exemplificando no caso da passagem
a seguir:
A vigilância continua, embora exercida por uma estátua armada a fuzil ou por uma
criatura amável em excesso, começava a angustia-me. Isso e a instabilidade. Mal
fechara os olhos numa leve sonolência, alguém me sacudira e soprara ao ouvido: “-
Viajar.” Para onde? Essa ideia de nos poderem levar para um lado ou para outro,
sem explicações, é extremamente dolorosa, não conseguimos familiarizarmos com
ela. Deve haver uma razão para que assim procedam, mas ignorando-a, achamo-nos
cercados de incongruências. Temos a impressão de que apenas desejam esmagar-
nos, pulverizar-nos, suprir o direito de nos sentarmos ou dormir se estamos
cansados. Será necessária essa despersonalização? (RAMOS, 2004, p. 62-63. V.I)
Esse fragmento é uma imagem do passado que ficou na memória do narrador e que
expressa indignação diante da maneira como os carcereiros são tratados. Primeiramente, é
ressaltada a postura dos policiais na delegacia, em Alagoas, “estátua armada a fuzil”, que
81
expressa um cuidado redobrado com os prisioneiros que em seguida iriam viajar no porão do
navio Manaus com destino a Recife. Viagem esta, sem explicações, deixando marcas
traumáticas no narrador, porque para ele isso demonstrava o quanto o Estado abusava de seu
poder, sem dar explicações sobre o motivo e o destino da viagem. Podemos observar também,
no fragmento em questão, os seguintes vocábulos: “esmagar-nos”, “pulverizar-nos”,
“suprimir”, “despersonalização”; essas palavras nos remetem ao descaso com o ser humano,
provocando incógnitas a respeito da sua dignidade. Além disso, aludem à ideia de que são
trabalhos como objetos passíveis de serem manipulados e oprimidos. Diante disso, a angústia
vai se agravando por não serem tratados com respeito, pois o que prevalece é a severidade,
porque para a polícia essas pessoas eram seus desafetos.
Outra reflexão importante de Graciliano Ramos, no seu discurso, foi quando ele e
mais dezessete colegas de prisão foram conduzidos a celas separadas do Pavilhão dos
Primários, novamente, sem dar maiores informações da presença deles lá. Porém alguns
colegas de Graciliano Ramos já imaginavam para onde iriam, para a Colônia Correcional, tão
temida pelos presos. O próprio nome do local nos dá indícios de que seria um local afastado,
localizado numa ilha com o desígnio de “corrigir” os presos. De fato, o Estado apropriava-se
da autoridade para torturar as pessoas. Nesse sentido, Graciliano Ramos analisa alguns
homens que estavam voltando da Colônia Correcional, como podemos observar no seguinte
fragmento:
encontrei um bando a comprimir-se numa abertura estreita, e nos espaços que
haviam entre os corpos surgiam rostos magros e desbotados. (...) Os homens da
frente, quase nus, cabeças lisas, tinham muita sujeira, muita amarelidão, órbitas
cavadas, bochechas murchas. Deixavam provavelmente a enfermaria. À primeira
vista não reconheci nenhum. Quando principiaram a falar, depressa, em desordem,
como se o tempo não desse para todos, fui notando aqui e ali sinais guardados
inconscientemente. Sorriam, descobrindo as gengivas pálidas. O esqueleto que o
moço da rouparia tinha no punho voltou-me ao espírito. Os ácidos não haviam
desfeitos a medonha tatuagem. Por cima da cicatriz que repuxava a pele e se
estendia num desenho róseo, sobressaiam costelas, vértebras, o riso da caveira.
(RAMOS, 2004, p. 15, v. II)
Diante desse fragmento, notamos a visão do narrador quando ele observa seus ex-
colegas da prisão, provavelmente localizados num lugar pequeno e estreito. Com isso, os
presos ficavam aglomerados num ambiente sujo, conforme o narrador menciona, “tinha muita
sujeira”. Outra observação importante é o estado físico dos presos, quando são usadas as
palavras “rostos magros e desbotados”, “quase nus, cabeças lisas”, isso deixa em evidência a
precariedade, o descaso com o ser humano porque eram muito magros, tinham o tom da pele
82
amarelado, eram pálidos, não tinham roupas o suficiente para que ficasses relativamente
vestidos, seus cabelos foram cortados para que sentissem mais o frio e o calor. Isso deixava-os
vulneráveis às doenças físicas e mentais. Essa referência do narrador ao estado físico dos
companheiros de cela acentua uma visão traumática também sobre episódios na prisão.
Ainda no excerto em questão, observamos a tristeza e a melancolia que estão
impregnadas na vida dessas pessoas a tal ponto de os presos não terem mais noção do tempo
da oralidade, suas falas são rápidas e desordenadas, acham que o tempo de que dispõem não é
o suficiente para se comunicarem. Diante dessa situação, essas pessoas estão traumatizadas
pelo seu estado físico e psicológico.
Márcio Seligmann-Silva, em seu importante estudo sobre o trauma, ele pondera que:
“A fonte da situação traumática pode ser tanto uma excitação pulsional interna como vir de
uma vivência externa” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 67). Nesse sentido, o trauma é
decorrente de uma ferida psicológica, de indivíduos que presenciaram situações difíceis, como
as torturas físicas. Percebemos através do narrador a vida hostil quando ele menciona que “os
ácidos não haviam desfeito as tatuagem”, notamos assim violência que as pessoas eram
submetidas originando a dor física e também abalando o estado psicológico. Isso gera a
dificuldade de falar, pois abordar a violência e o trauma constitui-se em desafios àqueles que
foram vítimas de acontecimentos catastróficos, de dor e de barbárie.
Essa dificuldade de comunicação que se refere também ao trauma do sujeito é
reiterada várias vezes no livro. Observamos um fragmento da obra no qual Graciliano Ramos
narra o seguinte: “Sebastião Félix, mudo e sombrio, ausente do mundo, em contato com os
espíritos num cubículo do Pavilhão dos Primários.” (RAMOS, 2004, p. 23, v. II). Nessa
passagem constatamos o isolamento, a falta de comunicação e expressão, a tristeza e a solidão
do preso, pois ele sente-se desamparado e chocado psicologicamente. Logo, sua condição não
permite que supere o trauma vivido.
Ao identificarmos, na voz do narrador, as experiências traumáticas dele e de outros
carcereiros, podemos relacionar esse discurso ao modo como esses sujeitos veem suas
experiências. Relacionando conceitos acerca do trauma (SELIGMANN-SILVA, 2005),
acentuamos que, quando os acontecimentos traumáticos são gerados, não queremos lembrar,
porque isso fere profundamente, a primeira defesa é tentar esquecer o que aconteceu, porque
essas lembranças que assombram continuam a nos ferir e magoar. Quando lembramos de algo
que nos magoou, é como se fôssemos vivenciar novamente a cena traumática. Após algum
tempo, sentimos a necessidade de narrar esses fatos como uma tentativa de sanar a situação
83
traumática. É isso o que se observa no discurso do narrador de Memórias, porque o trauma
está além da violência física, ele deixa feridas na alma não cicatrizadas.
O trauma e a violência instalados no ser humano geram uma dificuldade de falar o
que aconteceu porque o ser humano não quer lembrar de cenas tristes, já que elas ainda
incomodam como se fossem uma ferida que nunca vai curar. No contexto da obra de
Graciliano Ramos, essa perspectiva é notável, pois percebemos, através das frases
incompletas que aparecem no discurso do narrador, o quão precária era a condição de vida de
quem contrariava as ideias do governo: “- Bichos, exclamou Tamanduá. Vivemos como
bichos. (...) – Num curra de arames farpados, como bichos, prosseguiu Tamanduá” (RAMOS,
2004, p. 16, v. II). Na citação, podemos destacar duas leituras. A primeira através da narrativa
podemos contemplar as frases breves, usadas na comunicação, pelos presos. Nesse caso, é
pela voz do personagem Tamanduá, na Colônia Correcional, que se compreende a falta de
explicação quando é proferido as frases: “vivemos como bichos”, “num curral de arames
farpados”, um ambiente cheio de dificuldades, porque viviam largados, sujos, dormiam num
pavilhão em cima de tábuas. Já a segunda possibilidade de leitura diz respeito à maneira como
os indivíduos eram tratados na prisão, com muito rigor, pois a severidade do governo
ignorava que aquelas pessoas, acima de qualquer partido político ou posição social, eram
dignas de serem respeitadas. A indignação dos presos não era unicamente uma luta partidária,
mas sim uma indignação quanto ao seu modo de viver diante daquelas condições adversas.
Diante dessas considerações, a dificuldade de falar sobre episódios de dor e violência
remete à lembrança, e esta, por sua vez, traz a experiência ao consciente da memória.
Conforme os estudos de José Carlos da Costa e Lourdes Kaminski Alves (2010), no ensaio
intitulado “Representação da memória na literatura e na cultura” no qual citam Santo
Agostinho, “a experiência e o conhecimento das coisas são mantidos na memória como
imagens.” (AGOSTINHO, apud ALVES, CASTRO, 2010, p. 191). Agostinho (apud,
ALVES, CASTRO, 2010) compara a memória como imagem e compreende a lembrança
como resgate e transformação em linguagem. Portanto, no livro Memórias do Cárcere, as
lembranças do narrador, como a de que “vivíamos como bichos”, remetem a imagens de
experiências armazenadas no consciente da memória do narrador. Por essa razão, essas
lembranças são resgatadas da memória e convertidas na oralidade na tentativa de mostrar para
o leitor o quanto hostil e desprezível fora a vida na prisão.
84
3.3 Narração como cura e construção da memória
Na obra Memórias do Cárcere, Graciliano Ramos busca superar o trauma à medida
que o narrador tenta contar, mesmo que com dificuldades, as memórias da época da prisão
durante o Estado Novo. Nesse sentido, através da narrativa, podemos encontrar um meio para
se construir uma memória dos fatos, lutando para que eles não sejam esquecidos. Portanto, é
importante narrar essas memórias de dor, violência e trauma porque seria uma forma de
resolver os conflitos e amenizar a dor e o trauma.
Diante dessa reflexão, ressaltamos um importante ensaio intitulado “Narrar o trauma
- a questão dos testemunhos de catástrofes históricas”, de Márcio Seligmann-Silva (2008),
com o intuito de discutir sobre o testemunho, a memória do trauma, a política da memória e o
trauma. Márcio Seligmann-Silva (2008) pondera que: “A memória do trauma é sempre em
busca do compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela
sociedade. (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 75). Nesse sentido, Seligmann-Silva acentua que
as catástrofes históricas como violências e perseguições geram a memória do trauma e é por
meio dela que o testemunho apropria-se da sua memória individual e também da memória
coletiva para dar o seu depoimento.
Com base nessas considerações, ressaltamos um fragmento de Memórias do Cárcere
(1953), com o objetivo de refletir como a memória individual do narrador faz parte também
da memória da coletividade. O trecho abaixo ilustra tal colocação:
Os percevejos da Detenção eram na verdade uma praga, e em vão tentávamos saber
onde se escondiam. (...) Deviam alojar-se nos ferros das grades, nas juntas das
camas, nas grades dos guarda-ventos. Examinávamos pacientemente os lugares
suspeitos, esmiuçávamos a roupa, as cobertas, os colchões, os travesseiros. Nenhum
sinal dos miseráveis. Durante o dia era possível esquecê-los. (...) À noite deixavam-
nos repousar alguns minutos: era como se calculassem o tempo, soubessem a hora
de atormentar-nos. Quando íamos adormecendo, uma ferroada nos despertava,
sentíamos carreirinha na pele, cócegas, comichões. A trave de ferro já não me
incomodava: habituara-me depressa a arrumar os ossos no colchão. Agora o
tormento era aquele, picadas, o teimoso fervilhar. Virava-me, coçava-me, erguia-me
afinal desesperado, sacudia os panos, em busca dos terríveis inimigos. Invisíveis,
pertenciam com certeza ao organismo policial, realizavam fiéis a tarefa de
importunar-nos da melhor maneira. (RAMOS, 2004, p. 245 v. I)
Através dessa passagem, Graciliano Ramos apresenta algumas características do
cotidiano de medo, dor e pânico em que estavam mergulhados os indivíduos. É uma imagem
85
do passado que ficou na memória individual do narrador porque expressa o trauma, a dor e a
indignação por ter que passar todas as noites cuidando para não serem picados pelos insetos.
Dessa maneira, a memória do trauma, nesse fragmento, além de ser individual, é coletiva,
porque está transmitindo uma situação traumática da coletividade. É o que notamos no
fragmento em análise, quando os presos, assim como o narrador-personagem, acreditam que
as picadas do inseto e o fervilhar serviram para deixá-los impacientes e agitados, impedidos
de dormir, e chegam à conclusão de que isso acontecia pela influência da polícia, já que os
policiais queriam importuná-los, até mesmo à noite. Portanto, a memória é sempre coletiva
por ser resultante de indivíduos que interagem entre si no presente.
A narração de Memórias do Cárcere é importante porque está contando os
acontecimentos vividos e presenciados pelas vítimas da prisão e também o que Graciliano
Ramos escritor teria experienciado, o que confere à obra uma consciência social e política
acerca da era Vargas. Com isso, surge a necessidade de Graciliano Ramos compartilhar com
as pessoas, através da obra, a sua aflição, como se, ao contar tais experiências, pudesse
amenizar a dor, livrar-se daquele passado doloroso, difícil de superar e de lembrar. Essa
atitude adotada é necessária para o ato da narração do trauma ou da dor. Nesse sentido, de
acordo com Walter Benjamin (1987) em seu ensaio intitulado “Conto e cura”, ele apropriou-
se dos argumentos de uma antiga tradição no que diz respeito ao poder da cura através das
palavras. Para Walter Benjamin:
A cura através da narrativa, (...) Daí vem a pergunta se a narração não formulário o
clima propício e a condição mais favorável de muitas curas, e mesmo se não seriam
todas as doenças curáveis se apenas se deixassem flutuar para bem longe (...) na
correnteza da imaginação. (BENJAMIN, 1987, p. 269)
De acordo com Benjamin, a narração proporciona o clima e condição apropriada para
muitas curas. Diante dessa reflexão, Graciliano Ramos, por meio da narrativa, busca contar
fatos resgatados da memória como uma maneira de resolver os conflitos e amenizar as dores e
os traumas. Segundo Graciliano Ramos:
As figuras estranhas apinhadas ali riam. Riam para mim como se eu fosse uma
carcaça também. (...) Estremeci. Não me acharia também daquele jeito? olhei para o
pijama curto e rasgado. Ultimamente dormia pouco, alimentava-me com dificuldade.
Extingui a comparação desagradável. Farrapos. Regressavam da Colônia, farrapos.
Iriam reconstituir-se, renascer, mas ali eram farrapos. (RAMOS, 2004, p. 15-16 v.II)
86
O trecho menciona as feições físicas dos prisioneiros vindo da Colônia. Graciliano
Ramos compara-os com o seu porte físico e assusta-se por constatar que também estava
magro, com o pijama rasgado como se fosse farrapo. Alega ainda, que vão se recuperar, mas
não na prisão. Ao narrar esse episódio da prisão, Graciliano Ramos estava atribuindo a cura
através das palavras, resgatando na memória a dor e a violência com o intuito de resolver os
conflitos.
Diante de tais considerações, o ato narrativo, para Graciliano Ramos, é uma
possibilidade de diminuir a dor interior, já que contar é externar, desabafar o que ele viveu e
presenciou calado sem ao menos poder defender seus colegas de prisão diante das atrocidades
da violência, tortura e dor causados aos carcerários. Por essa razão é importante, para
Graciliano Ramos, desabafar não somente o que ele viu, mas também o que ele sentiu perante
tais acontecimentos porque esses eventos trouxeram algumas mudanças na sua vida, como a
dificuldade de dormir, problemas respiratórios e o hábito de acordar às três da manhã para
escrever.
Após sair da prisão, Graciliano Ramos passou a residir na cidade do Rio de Janeiro e
a frequentar diariamente a livraria José Olímpio, onde frequentemente conversava com alguns
jornalistas renomados dos anos 40 e 50. Eles insistiam para que Graciliano contasse o que
realmente aconteceu na sua passagem pela prisão. Graciliano Ramos alegava que não tinha o
hábito de conceder entrevistas, principalmente sobre uma questão delicada, que diz respeito
não somente da sua experiência carcerária, mas de outros indivíduos que enfrentaram com
veemência a violência física e psicológica. Nesse sentido, os estudiosos Ieda Lebensztayn e
Thiago Mio Salla (2014) reuniram as conversas e as raras entrevistas de Graciliano Ramos,
numa obra importante sobre vida e obra do escritor. Conforme Lebensztayn e Salla:
Quando saiu da cadeia, por intermédio, de amigos, a saúde do homem, que não era
mais jovem, estava muito abalada: o homem tossia e ardiam os pulmões. Nunca
mais ele seria o mesmo. p. 173. “Nunca mais fui o mesmo. (...) Desde que deixei a
cadeia, minha saúde vai em altos e baixo. Um dia estou bem, outro dia passo mal
que é uma desgraça. Mas a casca é forte e teimosa: creio que morrerei de velhice.”
(LEBENSZTAYN, SALLA 2014, p. 174)
Diante do excerto em questão, é abordada a saúde de Graciliano Ramos,
evidenciando fragilidade de seus pulmões, resultado do frio e da umidade da Colônia
Correcional, já que dormia em cima de tábuas, postas diretamente no chão e pelo fato de usar
poucas roupas, ou melhor, a que tinha eram peças sujas e rasgadas, deixando-o pouco ou
87
quase nada aquecido. Outra observação significativa é quando Graciliano Ramos mencionou
“nunca mais fui o mesmo”: essa expressão possibilita-nos a interpretação não somente da
saúde física, mas também da psicológica. O fato de nunca mais ser o mesmo remete à
exteriorização da sua angústia e o quanto esse ressentimento provavelmente contribuía para
sua dor física. À medida que lembrava, tinha a convicção, apesar do sofrimento, que era uma
pessoa forte, o que notamos quando ele menciona “mas a casaca é forte e teimosa”.
Por essa razão, Graciliano Ramos, sempre leal com seus leitores, sentia a necessidade
de contar essas experiências tristes, porque a prisão abriu mais os seus olhos, aproximando-o
de uma realidade da prisão desde então desconhecida, fazendo enxergar a vida por outro
ângulo até então imperceptível. Nesse sentido, Graciliano Ramos, ao deixar a Colônia
Correcional, deixou claro para o diretor que um dia escreveria um livro relatando o que
aconteceu nos dez meses em que esteve preso. Conforme Graciliano Ramos:
– Levo recordações excelentes, doutor. E hei de pagar um dia a hospitalidade que os
senhores me deram.
- Pagar como? Exclamou a personagem.
- Contando lá fora o que existe na Ilha Grande.
- Contando?
- Sim, doutor, escrevendo. Ponho tudo isso no papel.
O diretor suplente recuou, esbugalhou os olhos e inquiriu carrancudo:
- O senhor é jornalista?
- Não senhor. Faço livros. Vou fazer um sobre a Colônia Correcional. Duzentas
páginas ou mais. Os senhores me deram assunto magnífico. Uma história curiosa,
sem dúvida.
O médico enterrou-me os olhos duros, o rosto cortante e cheio de sombras. Deu-me
as costas e saiu resmungando:
- A culpa é desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever.
(RAMOS, 2004, p. 158, v. II).
No fragmento em estudo, percebemos que Graciliano Ramos já estava determinado a
escrever uma obra destinada à Colônia Correcional. Ao declarar “Os senhores me deram
assunto magnífico”, na ironia da expressão, possivelmente pressupomos uma intenção de
cunho denunciador da violência, maus tratos e torturas que eram submetidos diariamente dos
presos. Essa informação deixou o diretor intrigado e surpreso, na qual percebemos quando ele
menciona: “A culpa é desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever.”, a
palavra “culpa” é usada porque não seria conveniente, para o partido em voga, que um de seus
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presos relatasse, de uma maneira denunciadora, o que aconteceu na Colônia Correcional, ou
seja, todos os maus tratos, os serviços forçados e as péssimas condições de sobrevivência
nesse ambiente sombrio. Nesse sentido, Graciliano Ramos sentia a vontade, o desejo de tornar
a público o que presenciou, como um ato de desabafo para que a sociedade tivesse
discernimento do governo Getulista. Graciliano Ramos viveu como preso comum, com a
roupa zebrada dos criminosos, condenado a trabalhos forçados, de cabeça raspada, por
simples suspeita de ser comunista, porém não havia nenhum fato concreto e nenhuma prova
que o incriminasse. Por essa razão, narrar às suas experiências da prisão podem ser vistas
como uma possibilidade de amenizar os conflitos e diminuir a dor reprimida.
3.4 Memórias do Cárcere: função social e política contrária ao apagamento da
memória através da literatura
Com o passar do tempo, a literatura ganhou mais espaço na sociedade através de suas
obras literárias. No século XX, mais exatamente a partir da década de 50, surgem estudiosos e
críticos literários com o desígnio de explicar o papel da literatura na vida dos indivíduos.
Nesse sentido, o crítico Antonio Candido, em uma conferência em 1972, apresentou o texto
“A literatura e a formação do homem” com o intuito de falar sobre a humanização através da
literatura destacando o papel que a obra literária tem na sociedade. Para Antonio Candido
(2002):
A literatura pode formar; mas não segundo a forma pedagogia oficial, que costuma
vê-la ideologicamente como um veículo da tríade famosa- o Verdadeiro, o Bom, o
Belo, definidos conforme os interesses dos grupos dominantes, para reforço da sua
concepção de vida.” (CANDIDO, 2002, p. 83)
Com base nessas considerações, podemos nos perguntar em que medida a obra de
Graciliano Ramos pode formar e ainda qual seria sua função social. Ela pode formar na
medida que a literatura retrata a realidade e não apenas o “Bom” e o “Belo”. À proporção que
Memórias do Cárcere reflete uma possível versão dos fatos e a “Verdade”, o “Belo” e o
“Bom” não condizem com a narrativa, o historicista tradicional o leitor é convidado a
enxergar que na prisão não há nada de agradável e bonito, mas há o contrário, e ainda pode
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perceber que essa visão dos fatos é omitida pelo Estado Novo. Por essa razão, a obra forma
leitores críticos e reflexivos, porque ela nos induz, nos sensibiliza e humaniza, toca-nos não
somente pelo que o livro conta, mas também pela forma como narra essas experiências desse
momento histórico, dando poder de fala a quem estava à mercê da voz autoritária do governo.
É portanto uma narração de uma história a contrapelo o que remete a ideia de Benjamin da
narrativa como uma tentativa de amenizar a dor.
Ao trabalhar também com questões temáticas relacionadas com a violência, o trauma
e a dor, Memórias do Cárcere aborda a perspectiva carcerária assumindo, assim, a função de
texto denunciador das atrocidades e do autoritarismo do governo e dos militares para a
sociedade. Com isso, induz a sensibilidade do leitor diante dos fatos narrados, como podemos
exemplificar com o seguinte fragmento:
Ouvimos um barulho grande, vozeria para os lados do Pavilhão dos Primários e o
faxina preto nos cochichou que a polícia especial tinha aparecido lá e quebrado
muita cabeça. Porquê? O informante erguia os ombros; tinham lhe dito apenas
aquilo: várias cabeças partidas. (RAMOS, 2004, p. 28 v. II)
Nesse sentido, a obra Memórias do Cárcere aproxima o leitor dos efeitos como a
violência, o susto ao escutar muito barulho e ao mesmo tempo, a angústia de não saber o que
exatamente aconteceu com os presos e o motivo de a política ter violentado ou até matado as
pessoas que lá estavam. Por isso, a obra literária aproxima o leitor dos efeitos narrados porque
ele terá conhecimento de uma realidade desde então desconhecida.
Uma das funções sociais da obra Memórias do Cárcere é aproximar o leitor dos
eventos do Estado Novo de forma reflexiva e analítica, assumindo, assim, uma visão mais
detalhada dos fatos ocorridos. A obra teve uma publicação bastante expressiva nos anos 1950,
sendo um livro relativamente caro e lançado em quatro volumes, e desde logo virou um best-
seller. Igualmente repercutiu na crítica com vários artigos de autores renomeados. Diante
desse sucesso, apenas os jornais comunistas silenciaram, ignorando-o, porque a obra
representava, para eles, um assombro em relação ao documento da época e o depoimento
estarrecedor sobre as misérias do governo de Getúlio Vargas.
Cabe aqui abordarmos o interessante estudo feito por Ricardo Ramos com a obra
intitulada “Graciliano: retrato fragmentado”2 sobre o pai e escritor, Graciliano Ramos. No
2 Ricardo Ramos morreu em 20 de março de 1992, deixando os fragmentos memoriais de Graciliano: retrato
fragmentado manuscritos e datilografados. Passados vinte anos é publicado o livro novamente.
90
referido estudo, Ricardo Ramos abordou algumas passagens da vida pessoal e profissional do
pai com o intento de tornar públicos alguns detalhes significativos no que diz respeito as suas
obras, um dos maiores escritores já lidos por retratar tão bem a realidade brasileira, por meio
dos contos, romances e autobiografias, algumas obras que problematizam a violência social,
como é o caso da obra Memórias do Cárcere. Nesse sentido, Ricardo Ramos (2011) alerta
para a crítica social em volta de Memórias do Cárcere. Ele pondera que
A leitura continuada de Memórias do Cárcere nos revela nitidamente, a extensão da
sua crítica. Ao militarismo que imperava no partido, herança do tenentismo,
dominando os altos escalões e, sem excluir ninguém, desde o seu principal dirigente,
afastava qualquer possibilidade de democracia ou simples discussão interna.
(RAMOS, 2011, p.213)
Através dessa passagem, na medida em a leitura da obra avança, os leitores deparam-
se com a turbulenta realidade carcerária e partidária do país, mas sem ter em mãos uma
perspectiva panfletária, estritamente documental ou jornalística. Com isso, os eventos do
Estado Novo emergiram para a sociedade através da narrativa, mostrando desde o militarismo
que dominava o governo em voga, passando pelo seu domínio exagerado com prisões e
torturas em que qualquer pessoa podia ser mandada para lá e o afastamento de ideias
democráticas que seriam contra a sua forma de governar. Nessa mesma linha de raciocínio,
encontramos na narrativa de Graciliano Ramos uma referência ao passado não democrático da
época Vargas:
Sem dúvida tencionavam provar-nos que eram fortes, podiam fazer conosco um jogo
de gato com rato. Ao mesmo tempo, em notas oficiais e em discursos badalados no
congresso, tentavam abafar tênues rumores, notícias vagas de maus tratos. A
liberdade de imprensa funcionava contra nós, achava o governo excessivamente
generoso, e essas mentiras me davam de que a reação ainda precisava enganar o
público e não dispunha de muita força, como nos queria fazer supor. (RAMOS,
2004, p. 343, v. I)
Em tal passagem, podemos perceber a análise de Graciliano Ramos ao escrever
sobre os policiais, que se achavam mais fortes porque tinham a autoridade e dispunham de
artifícios para mal tratá-los. Nesse sentido, surgem boatos, na sociedade sobre a violência na
prisão, porém foi negado no Congresso na tentativa de abafar essas informações do mal trato
com os prisioneiros. Com essa atitude, a imprensa apoiava o governo ao omitir fatos. Já os
presos, como também Graciliano Ramos, indignavam-se com tamanha esse fato, porque eram
91
eles que estavam sofrendo as mais diversas humilhações e nada podiam fazer. Diante das
ocultações de violência, a sociedade não se manifestava porque não tinha certeza sobre o que
acontecia nas prisões, já que nelas estavam líderes políticos e militares, escritores junto com
assassinos e assaltantes.
Ao narrar tais cenas que caracterizam aquela época, podemos identificar uma função
social da obra no que tange ao discurso que narra a história. Tem-se uma função social à
medida que se narra uma outra versão da história, não sendo uma versão oficial, mas uma que
expõe as fissuras, a dor e a violência a partir do olhar de quem as sofreu e não de quem está
no poder. Lendo tais memórias, deparamo-nos com uma perspectiva mais pormenorizada de
uma história que não se quer repetir, dado o trauma que acarreta na vida do sujeitos.
Dentro dessa perspectiva, Memórias do Cárcere pode ser associada a alguns
pressupostos teóricos de Candido quando este afirma que: “a literatura como representação de
uma dada realidade social e humana, que faculta maior inteligibilidade com relação a esta
realidade” (CANDIDO, 2002, p. 86). Portanto, uma das funções da literatura é uma aspiração
de representação da realidade, refletindo sobre o que de humano nós temos. Nesse sentido,
Graciliano Ramos através de Memórias do Cárcere aproximou o leitor dos eventos do Estado
Novo ao narrar momentos de pânico e péssimas condições carcerárias. Na passagem a seguir,
notamos essa aproximação, esse tom de realismo na narrativa de Graciliano Ramos:
Os homens do trabalho foram chegando, sujos de pó, vermelhos, suarentos. Cerca de
meio-dia saímos do galpão, outra vez nos dirigimos ao refeitório. (...) logo veio a
comida: feijão negro, farinha, um pedaço de carne. Uma insignificância, ninguém
podia alimentar-se com tão pouco. Mas o que me assombrava era o aspecto da boia.
Horrorizei-me, pensando em vômito, em lata de lixo. Afirmando a mim mesmo ser
impossível um estômago suportar aquilo. (RAMOS, 2004, p. 77 v. II)
Diante desse fragmento, notamos que os presos eram obrigados a trabalhar no sol,
não podiam tomar água, eram mal alimentados porque a comida, além de vir em pouca
quantidade, não era saudável e bem preparada. Graciliano Ramos, apavorado, não consegue
comer a comida. Com isso, a obra retrata a realidade do país e a dos presos sendo
desumanizados e desrespeitados. O leitor depara-se com uma obra que aborda o ser humano,
nesse ambiente, como despersonalizado e reprimido dos seus direitos. Por isso, essa literatura
aproxima o leitor dos efeitos narrados de Memórias do Cárcere e ajuda a compreender melhor
a sociedade da época do Estado Novo, sensibilizando e humanizando o leitor com os atos de
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violência e desumanização. Tem-se assim uma visão acerca desse momento a qual é diferente
daquela apresenta por representantes do poder.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta dissertação teve como objetivo analisar as relações entre memória e trauma no
livro Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, levando em conta abordagens sobre a
biografia do autor, a tortura, a violência física e psicológica sofrida por ele na prisão. O
objetivo foi alcançado por meio da leitura de estudiosos renomados da crítica e da teoria
literária que contribuíram para uma reflexão da memória individual e coletiva e do trauma
retratado sob uma perspectiva teórica que elucidou a compreensão sobre a história do Estado
Novo e as experiências de um narrador-personagem, assim com as de outros carcereiros que
estavam na prisão, sofrendo os reflexos da sociedade autoritária e repressora da Era Vargas.
Sendo assim, a obra é muito importante não apenas pelo seu valor histórico, mas também pelo
seu valor literário e ainda por retratar uma sociedade desumana, desmascarando um lado
obscuro e sombrio da história do país.
Na forma narrativa da obra, encontramos uma mescla de memória, testemunho e
autobiografia que estão relacionadas com o sujeito que tem a necessidade de narrar suas
experiências, e por isso as memórias surgem como uma opção. Nesse sentido, o narrador de
Graciliano Ramos traz à literatura brasileira um sujeito reflexivo e denunciador, dando uma
nova ótica ao narrador, ao modo de contar experiências de dor, violência e barbárie. Esse
narrador, por sua vez, sente a necessidade de compartilhar suas vivências carcerárias,
proporcionando um diálogo com o leitor que deve se tornar ativo, participando da construção
do sentido da narrativa.
Embora a obra apresente uma mescla de autobiografia e as memórias do autor que
conte algumas de suas lembranças, trazendo uma memória que se articula com o passado
porque é lá que ele busca informações para articular no presente as informações repressoras
capazes de se inserir na situação atual, não há como negar o cunho testemunhal do livro. Este
enfatiza o testemunho de Graciliano Ramos na prisão, abordando uma ética na escrita para
representar diversas ações de violência e dor através da sua capacidade de relatar o seu trauma
e o da coletividade. Sob esse prisma, o trauma de Graciliano Ramos e dos presos não se
constituíram no momento em que estavam encarcerados, porém após esses acontecimento, é
nesse instante que Graciliano Ramos narra os fatos violentos, visto que, muitas vezes,
encontra resistência na compreensão dos acontecimentos traumáticos e até mesmo dificuldade
de lembrar o que gostaria de esquecer.
94
A escolha estética abordada na obra permite ao leitor melhor conhecer as
experiências do cárcere, porque estamos diante da voz de quem viveu e observou à margem
naquela época. Por essa razão, Graciliano Ramos faz a obra fragmentada em quatro partes
divididas em dois volumes, para mostrar a sequenciação da experiência de prisão do
personagem. Entendemos também que a fragmentação em sequência é uma forma gradativa
de acentuar o horror, a violência e a dor vividos pelos personagens da Era Vargas. A primeira
parte intitulada “Viagens” ressalta a viagem no navio Manaus para a prisão no Rio de Janeiro,
sem acusações ou interrogatórios. No porão do navio Manaus, os presos viviam diariamente
com o calor, o lixo, a sujeira e as instalações eram precários. Graciliano Ramos compara os
indivíduos como cadáveres por serem sonâmbulos e terem uma aparência horrível. Ali são os
primeiros indícios da degradação. Na segunda parte, intitulada “Pavilhão dos Primários”, o
narrador observa o clima de opressão é intenso, pois os policiais usavam da tortura física e da
pressão psicológica para servir de cunho confessional. Nessa parte, percebemos o gradativo
aumento da tortura e da dor. Na terceira parte, intitulada “Colônia Correcional”, temos o grau
mais expressivo da degradação dos indivíduos. Os presos conviviam com a fome, sujeira, dor,
enfim, com a morte. Os presos já não tinham mais paciência e educação com eles mesmos e a
indignação com o governo do Estado novo aumentava diante das condições que estavam
expostos. Por fim, na quarta parte, intitulada “Casa de Correção”, retrata-se a transferência de
Graciliano Ramos e outros sobreviventes da Colônia Correcional para a Casa de Correção.
Nesse local, Graciliano Ramos observa o seu estado lastimável, desfigurado, um fantasma
decorrente da dor suportada. Nesse sentido, as quatro partes são divisões feitas para o leitor
compreender melhor com um certo caráter didático porque assim mostra a sequência
gradativa da tortura física e psicológica sofrida pelos presos na Era Vargas.
A obra estabelece diálogo com a história porque nela temos fatos verídicos
relacionados com o período de repressão que o Brasil viveu nos anos de 1936 a 1945. Esta
fase conturbada da história do país foi marcada pela violência, pelo autoritarismo e pelas
repressões que refletiam na sociedade da época no governo liderado por Getúlio Vargas e
incitara a sua narrativa em uma obra artística de cunho testemunhal. Nesse sentido, o diálogo
se faz na medida em que o narrador vai apropriando-se desses fatos históricos para fazer
ligações com Memórias do Cárcere através do testemunho de Graciliano Ramos, assumindo
um tom pessoal de seu depoimento para atribuir um maior efeito e com isso os fatos de tortura
física, maus tratos, alimentação precária serviram para aproximar mais a obra ao leitor com
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uma sensibilidade maior. Por essa razão, a obra dá uma maior verossimilhança dos fatos
ocorridos na prisão.
De acordo com os pressupostos teóricos estudados, entendemos que, a partir do
século XX, a teoria da memória obteve um novo enfoque, ressaltando que ela tem laços com a
literatura de testemunho que sustenta relações com um determinado trauma. Nesse sentido, a
construção da memória individual e coletiva da obra se dá pelas memórias de Graciliano
Ramos, a partir das suas memórias individuais da prisão existe a memória coletiva que é
atribuída aos demais presos, tendo sua origem na vida degradante e traumática na prisão. Por
isso, o narrador de Memórias do Cárcere não reproduz apenas suas memórias de prisioneiro.
São memórias do imenso e sombrio cárcere do Brasil naqueles difíceis tempos de tortura,
brutalidade e intolerância. Por essa razão, as Memórias de Graciliano podem ser analisadas
como expressão de autonomia, especialmente pelos acontecimentos e pessoas ligadas aos
movimentos da Era Vargas já em atividade. Portanto, a memória individual torna-se coletiva
na medida em que as lembranças dos indivíduos, na prisão, continuam coletivas, já que nunca
estiveram sozinhos naquele ambiente hostil. Graciliano Ramos conta a história que é dele,
porém conta a história que é dos outros prisioneiros.
A função social da obra Memórias do Cárcere parece que é a de trazer uma visão
mais detalhada e crítica da sociedade da época e isso faz com que o leitor aproxime-se dos
fatos narrados em primeira pessoa; é uma opção narrativa que dá um efeito mais interessante
ao texto, ou seja, deixa-o mais atrativo por retratar a realidade dos anos 30. Por isso, através
da obra a sociedade tem a oportunidade de conhecer melhor o Brasil politicamente; nesse
sentido, Graciliano Ramos apresenta um lado sombrio do país, já que as prisões estavam
sendo usadas como uma forma de reprimir a opinião dos indivíduos, com uma sociedade
voltada para o autoritarismo. A obra fez muito sucesso, principalmente no ano de sua
publicação, em 1953, quando a população ficou sensibilizada com o sofrimento e as duras
punições a que os presos eram submetidos, contribuindo para a reflexão mais democrática da
sociedade da época.
O ato de contar pode ser visto como uma tentativa de cura porque, ao narrar, é como
se Graciliano Ramos estivesse tentando superar a dor daquele passado sombrio. Por isso, é
importante narrar para não esquecer os fatos dolorosos, e contar essas memórias seria uma
maneira de solucionar os conflitos e amenizar a dor e o trauma da prisão. Nesse sentido,
narrar pode ser uma experiência da cura dos traumas, pois este, além da violência física, deixa
feridas na alma não cicatrizadas. Ao narrar, é como se Graciliano Ramos tirasse do seu
96
interior a dor, a indignação de ter testemunhado não somente a sua passagem traumática na
prisão, mas de seus companheiros. Para o narrador, a violência física com o tempo é
remediada, já a psicológica fica impregnada e é por intermédio da narrativa que o leitor vive
juntamente com o narrador as memórias da prisão que deixou marcas físicas e psicológicas.
Tem-se uma ênfase ao olhar constantemente para corpos magros e debilitados, a dor, a sujeira
e aos maus tratos contínuos, decorrentes da desumanização das prisões, o que nos permite
conhecer uma história a contrapelo, diferente daquela oficial.
Enfatizamos ainda que o processo narrativo é entendido pelo narrador como uma
possibilidade de transmitir suas experiências da prisão, valendo-se das suas memórias para
melhor compreender o Estado Novo. A narrativa do trauma colabora para que o leitor tenha
uma nova visão do governo, na proporção que Graciliano Ramos enfatiza os acontecimentos
violentos na prisão, tais como: as punições de dor ao torturar os presos para adquirir
informações, as unhas arrancadas, surras e a sujeira. Por essa razão, Graciliano Ramos é um
socialista, porque revela sua oposição ao sistema opressor do Estado Novo sempre
preocupado em ajudar a sociedade, como comprova sua dedicação à educação nos cargos
públicos que ocupou e com isso apresenta a sua visão pessoal da violência, a questão
subumana formando uma outra visão sobre a política da época e sobre o seu enfoque, o leitor
compreende melhor o autoritarismo do Estado Novo. Portanto, as Memórias do Cárcere são
uma forma de se ter contato com a realidade da década de 30, pois nos remetem ao
testemunho da violência, do atraso político-social e das estratégias governamentais de
reprimiras classes sociais, sufocando a sociedade com autoritarismo na tentativa de assegurar
a total dominação da era Vargas no país.
97
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