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SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13 CAPÍTULO 1: DESCAMINHOS DO REGIME....................................................................31 I - O Acolhimento da Excepcionalidade e as Contradições Pós-64.............................46 II - Conflitos Após o Refinamento do Estado..............................................................54 III - A Percepção da Crise do Estado...........................................................................57 IV - Caracterizando a Dupla Fuga - Democracia a Pulso.............................................60 V - A Construção do Ordenamento Democrático.........................................................86 CAPÍTULO 2: A CRISE DO ESTADO.................................................................................91 I - Condicionantes da Mudança....................................................................................94 II - Legitimidade e Transição.....................................................................................100 III - A Crise do Estado e a Construção do Novo Ordenamento Político....................107 IV - A Refundação da Transição: As Interpretações do Projeto e Processo Distencionista..............................................................................................................117 V - Prenúncio dos Novos Tempos..............................................................................140 VI - Condicionantes da Redefinição do Estado..........................................................147 CAPÍTULO 3: A FLEXIBILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES POLÍTICAS E AS PECULIARIDADES DA CENA POLÍTICA SUL-RIO-GRANDENSE..............................155 I - A Flexibilização das Relações Políticas.................................................................161 II - A Descentralização de Poder Como Pressuposto Para a Reestatização das Relações Sociais..........................................................................................................173 III - As Peculiaridades da Política Gaúcha.................................................................180 IV - O Parlamento Gaúcho: Conflitos na Estruturação do Novo Ordenamento Político.................................................................................................193 V - O Discurso............................................................................................................211 CAPÍTULO 4: O PARLAMENTO GAÚCHO EM TEMPOS DE FLEXIBILIZAÇÃO.....220 I - 8ª/44ª Legislatura (29/01/75-jan.79): O Tempo da Dupla Fuga............................257 CAPÍTULO 5: OS AVANÇOS E RETROCESSOS DA FLEXIBILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES POLÍTICAS..............................................................................................316 I - O Receio É A Dúvida Com Temor........................................................................338 II - O Significado do “Pacote das Reformas”.............................................................372 CAPÍTULO 6: O COROAMENTO DA REDEFINIÇÃO DO ESTADO EM CINCO ATOS......................................................................................................................................385 I – ATO 1: A Lei da Anistia – Institucionalização da “Pacificação da Família

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  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13

    CAPÍTULO 1: DESCAMINHOS DO REGIME....................................................................31

    I - O Acolhimento da Excepcionalidade e as Contradições Pós-64.............................46 II - Conflitos Após o Refinamento do Estado..............................................................54 III - A Percepção da Crise do Estado...........................................................................57 IV - Caracterizando a Dupla Fuga - Democracia a Pulso.............................................60 V - A Construção do Ordenamento Democrático.........................................................86

    CAPÍTULO 2: A CRISE DO ESTADO.................................................................................91

    I - Condicionantes da Mudança....................................................................................94 II - Legitimidade e Transição.....................................................................................100 III - A Crise do Estado e a Construção do Novo Ordenamento Político....................107

    IV - A Refundação da Transição: As Interpretações do Projeto e Processo Distencionista..............................................................................................................117

    V - Prenúncio dos Novos Tempos..............................................................................140 VI - Condicionantes da Redefinição do Estado..........................................................147

    CAPÍTULO 3: A FLEXIBILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES POLÍTICAS E AS

    PECULIARIDADES DA CENA POLÍTICA SUL-RIO-GRANDENSE..............................155

    I - A Flexibilização das Relações Políticas.................................................................161 II - A Descentralização de Poder Como Pressuposto Para a Reestatização das Relações Sociais..........................................................................................................173

    III - As Peculiaridades da Política Gaúcha.................................................................180 IV - O Parlamento Gaúcho: Conflitos na Estruturação do Novo

    Ordenamento Político.................................................................................................193 V - O Discurso............................................................................................................211

    CAPÍTULO 4: O PARLAMENTO GAÚCHO EM TEMPOS DE FLEXIBILIZAÇÃO.....220

    I - 8ª/44ª Legislatura (29/01/75-jan.79): O Tempo da Dupla Fuga............................257 CAPÍTULO 5: OS AVANÇOS E RETROCESSOS DA FLEXIBILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES POLÍTICAS..............................................................................................316

    I - O Receio É A Dúvida Com Temor........................................................................338 II - O Significado do “Pacote das Reformas”.............................................................372

    CAPÍTULO 6: O COROAMENTO DA REDEFINIÇÃO DO ESTADO EM CINCO ATOS......................................................................................................................................385 I – ATO 1: A Lei da Anistia – Institucionalização da “Pacificação da Família

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    Brasileira”...................................................................................................................399 II – ATO II: Reforma Partidária – Reinstitucionalização e Atomização Política.......405

    III – ATO III: A Resistência Doméstica de Poder.......................................................439 IV – ATO IV: As Eleições Gerais de 1982..................................................................447 V – ATO V: A Conciliação Pela Transição e a Transição Pela Conciliação - Do Bom Senso ao Senso Comum.............................................................................462

    CONCLUSÃO.......................................................................................................................482

    BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................496

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    RESUMO

    Desde sua instauração em 1964, o regime autoritário brasileiro baseou sua permanência no poder

    na manutenção de dois ordenamentos distintos: a manutenção da ordem liberal-democrática anterior à intervenção (definidas constitucionalmente) e outra, oriunda da própria intervenção no processo político, a de exceção (autoritária). Esta dualidade de ordenamentos garantiu a manutenção da base de sustentação do grupo que ascendeu ao poder e, com os recursos do arbítrio, impôs a previsibilidade política necessária na aplicação de um determinado projeto histórico. Contudo, definiu a constante instabilidade do regime.

    No momento em que a intervenção foi definida como permanente, com a adoção do Ato Institucional nº 5 em 1968, o bloco dirigente suspendeu a dualidade de ordenamentos em nome da militarização dos centros decisórios de poder: o regime assumia a explícita face de uma ditadura militar. Este é o chamado processo de refinamento do Estado.

    Contudo, o regime de exceção brasileiro não reunia condições de se prolongar no tempo a não ser pela implementação de um conjunto de mudanças que, ao fim, alterariam sua forma original.

    Em grande parte, a necessidade da aplicação destas mudanças atendeu às imposições do processo de “dupla-fuga”, ou seja, a insubordinação como seqüela do projeto implementado desde 1964 e, simbolizando a crise do regime, a fuga desta insubordinação por parte de setores fundamentais no pacto de dominação.

    Na impossibilidade do regime se manter, setores do bloco dominante passaram a aplicar a política de flexibilização das relações como forma de reestatizar o dissenso. A partir de então se definia o processo de redefinição do Estado. Nestes termos foi construída a “transição política” no Brasil, cujo corte temporal inicial identifica-se ao início da administração do presidente Ernesto Geisel em 1974 e seu marco final, para as questões propostas neste trabalho, a concretização da circulação do poder com a vitória da candidatura de oposição na disputa pela presidência da República em 1984.

    O conteúdo deste trabalho busca analisar a dinâmica política deste processo observando as relações nas instâncias de representação política institucionais (o parlamento).

    Especificamente, dedica-se à análise das contradições do processo de transição e a confrontação destas com as peças oratórias produzidas na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.

    Para tal tarefa, são discutidas determinadas peculiaridades da formação política do estado gaúcho, entre tantas, sua relação de oposição ao poder central, sua vinculação à política platina e a partidarização das opções políticas. Estas questões são confrontadas com cinco momentos compreendidos como crucias na transformação do Estado brasileiro: a lei da Anistia, a Reforma Partidária, as ações de organizações clandestinas vinculadas aos centros de poder, as eleições de 1982 e a derrota da emenda constitucional “Dante de Oliveira” a qual propunha eleições diretas para presidente.

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    INTRODUÇÃO

    Esta tese versa sobre a transformação derradeira do regime político instaurado em 1964 no Brasil, conceituada habitualmente como “transição”, a qual ensejou a reorganização do poder pactuada entre um restrito grupo de forças políticas.

    A hipótese central de trabalho, presente nos sucessivos capítulos, vislumbra a redefinição do Estado, problematizada a partir do movimento das instâncias de representação política formais (o parlamento), especificamente, das peças oratórias produzidas nestas (discursos), enquanto representação do real.

    Portanto, o objetivo prioritário desta tese, bem como sua opção teórica, esteve em estabelecer a conexão entre o processo de mudança de ordenamento político (a transição propriamente) e a redefinição do Estado. Compondo tal objetivo, esta pesquisa se concentrou na análise dos movimentos político-institucionais do Rio Grande de Sul, ponderando as especificidades da formação política do estado em relação à dinâmica de mudanças deste período. Desta forma, o estudo está concentrado em dois níveis: um geral - o projeto e o processo em si - e outro específico - a forma como estes foram apreendidos e ressignificados no parlamento sul-rio-grandense.

    Para tal empreitada, esta pesquisa pautou-se por documentos que, mesmo não sendo inéditos, foram sistematicamente preteridos nas análises sobre a questão do trânsito entre o ordenamento autoritário e a situação democrática: as manifestações das instâncias de representação política reunidas nos Diários e Anais das Sessões da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, no período compreendido entre os anos de 1974 e 1984.1

    Para ser justo. Tal desconsideração por este tipo de material é tributária de dois impulsos limitadores básicos: um primeiro, por freqüentemente ser identificada uma possível inocuidade do Poder Legislativo, quando inserido em regimes pautados pela excepcionalidade e pela concentração de poderes no Executivo. Sob esta ótica, os debates parlamentares resignavam-se com a ausência de qualquer contribuição nas definições políticas do regime. Isso se baseia no fato de que durante o processo aqui compreendido, a militarização dos centros decisórios de poder segregou qualquer possibilidade de participação nas decisões do Estado.

    Inclinando-se sobre estas reservas, esta tese também procurará comprovar que as peculiaridades do regime instaurado em 1964 acabaram por definir no Parlamento o fiel da balança no processo de redefinição do Estado autoritário.2

    Um segundo obstáculo reside nas veementes indisposições quanto à interpretação da história recente a qual, certamente, não é tarefa sem riscos. Intriga e ao mesmo tempo, afasta os historiadores em virtude da proximidade dos acontecimentos, dos possíveis envolvimentos que atentariam contra a objetividade científica da pesquisa. Por certo, a confusão entre denúncia e explicação, relato e interpretação, encontram terreno fértil nos processos políticos recentes; contudo, a escrita da história, em qualquer época, sofre os condicionantes de seu tempo, o que não anula o fato da necessidade do preenchimento das lacunas na história política do país.3

    1 Como lembrara Schaff: tomamos o facto histórico como ponto de partida das nossas análises sobre a objectividade da verdade histórica, porque se admite geralmente que as divergências surgem entre os historiadores no momento em que estes passam à interpretação dos factos, enquanto que a sua acumulação, se se supõe um certo nível de conhecimentos e de tenacidade na investigação, é mais ou menos semelhante. SCHAFF, Adam. História e Verdade. 2ª Edição. Lisboa: Editorial Estampa, 1988. 2 Interessante perceber que os marcos, inicial e final, do regime civil-militar brasileiro residiram em ações político-institucionais: tão importante quanto a mobilização de tropas intervencionistas comandadas pelo Gen. Olympio Mourão Filho foi a decisão de Auro Moura Andradre, presidente do Congresso Nacional em 1964, declarar vaga a presidência da República mesmo João Goulart estando em território brasileiro (no Rio Grande do Sul), em lugar certo e sabido. No dia 1º de abril dava-se a ocupação do governo e no segundo dia daquele mês, Ranieri Mazzilli (presidente da Câmara dos Deputados) assumia interinamente a presidência. Da mesma maneira, a eleição indireta de Tancredo Neves através do Colégio Eleitoral definiu os encaminhamentos da transição política. 3 Portanto, esta tese caminha em direção contrária à definição dada pelo, então deputado estadual emedebista Pedro Simon, de que a História só se escreve quando aqueles que a fizeram não tenham mais condições de influir – por prestígio ou por poder – sobre aqueles que vão escrevê-la. SIMON, Pedro. MDB: Uma Opção Democrática. Porto Alegre: L&PM, 1976, p. 19. Declaração originalmente publicada nos Anais da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 21ª Sessão

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    Em Brasília, às dez horas da manhã de 15 de março de 1985, encerrava-se formalmente o regime de exceção brasileiro com a posse do primeiro presidente civil desde 1961. A cerimônia teve ares de emoção, apreensão e, acima de tudo, incredulidade. Emoção pelo fato de que incontáveis pessoas festejavam o que acreditavam o ponto inicial da reversão da grave crise que assolava o país. Apreensão pela própria fragilidade em que foram lançadas as bases do novo ordenamento político, sem rupturas decisivas na estrutura de poder. A incredulidade verificava-se na medida em que chegavam as notícias da enfermidade que acometia o presidente Tancredo Neves, no exato momento em que se aproximava a hora da cerimônia de posse.

    O país que sobreviveu ao fim do regime de exceção não sabia ao certo quem foram os vencedores, até mesmo porque a identificação com o passado repousou fundalmentalmente sobre a oficialidade militar. Após 20 anos e 11 meses morria a ditadura, iniciava-se a agonia do presidente eleito e afirmava-se a projeção de um futuro melhor.

    Nos sucessivos processos de rupturas e continuidades, pelos quais a história política do país havia transcorrido, o novo regime, prenhe de esperanças, surgiu das entranhas do velho regime.

    A passagem, atestando os paradoxos da vida pública brasileira, se deu pela mão de José Sarney, efetivado como presidente da República. Este, um ano antes, defendia e encaminhava as articulações parlamentares como líder do governo Figueiredo.

    Entre a campanha das “Diretas Já!” e a tragédia pessoal de Tancredo Neves – tornada pública pelos meios de comunicação - a “Nova República” iniciava sob a égide da comoção nacional.

    A transição ainda esperaria mais alguns anos para alcançar a plenitude, através da elaboração de uma nova Constituição e das primeiras eleições diretas para presidente desde a vitória de Jânio Quadros. Porém, para alcançar tal desenlace, o processo político sofreu uma série de formulações. Estas foram ditadas através de uma complexa relação entre concessões e conquistas, adaptações e inovações, projetos e processos que por fim, vieram a garantir rupturas e continuidades na reformulação do Estado autoritário brasileiro.

    Um ano após ter sido deflagrada, a intervenção civil-militar de 1964 assumiu contornos inéditos à medida que a oficialidade perpetuava-se nos centros decisórios de poder, para além das tarefas reativas da intervenção: depurar o sistema político-institucional, redirecionar as políticas econômicas, conter a imprevisibilidade política, desarticular setores que poderiam representar entraves à estrutura de poder, etc.4

    Contudo, esta “inovação” da oficialidade militar atentava mais contra os interesses imediatos de setores da coalizão intervencionista, do que propriamente contra o conjunto da sociedade, historicamente excluída de maior participação política.

    Assim sendo, nos limites definidos por esta tese, o regime civil-militar, e não a intervenção em si, rompeu com o processo de consolidação do sistema político que estava em curso. Com efeito, o marco temporal para a análise das instituições de representação política no Brasil, sob efetivo controle dos centros decisórios de poder, não se localiza estritamente na intervenção de 1964, mas, isto sim, na promulgação do AI-2 e a criação do sistema bipartidário em 1966.

    Nessa oportunidade, tornou-se perceptível, mais uma vez, a existência de um limite, no dissenso e no conflito próprio dos países em processo de desenvolvimento. Este limite foi verificado na medida em que eram impostas faixas de interesses não negociáveis dos setores ou frações sociais dominantes. Em 1964, afirmava-se uma certa tendência a uma linha de tolerância, dos setores econômica e politicamente hegemônicos para com as reivindicações de setores excluídos, não-representados ou representados inadequadamente nas esferas decisórias de poder. Na medida em que essa linha era ultrapassada

    em 30 de março de 1976, p. 492. Em outra passagem, o mesmo Simon, ao fazer referência ao mandato do presidente Médici que se encerrava, decretou da tribuna que a História, como os quadros de arte, só se vêem à distância e não de perto. In.: Id., 12ª Sessão em 18 de março de 1974, p. 223. A partir desta referência, como forma de facilitar a leitura, as menções a este tipo de fonte serão identificadas pela sigla AAL, seguida da respectiva sessão, data do pronunciamento e página da transcrição do discurso na publicação de consulta, sendo adotado o mesmo procedimento quando da outra fonte documental - Diário da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, período 1978 e 1979 – sendo esta identificada por DAL e com a data de publicação da edição do jornal, distinta da sessão em questão. Na compilação de ensaios sobre a escrita da História, Hobsbawm problematiza a produção histórica do próprio tempo do historiador. HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Tradução de Cid Knipel Moreira. 4ª Reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 243-255. 4 Como bem demonstrou Alfred Stepan acerca da intervenção de 1964: uma entre tantas interferências alienígenas no sistema político. STEPAN, Alfred. Os Militares na Política – As Mudanças de Padrões na Vida Brasileira. Tradução Ítalo Tronca. São Cristóvão: Editora Artenova, 1975.

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    instaurava-se a crise. Como soluções constituíam-se amplas coalizões com propostas conservadoras e excludentes, configurando então um padrão de ajustamento adequado à nova ordem política.

    Percebe-se que a criação de condições para a instauração da excepcionalidade representou modos que garantiram mutações, sem rompimentos com a continuidade da assimetria básica, ou seja, a exceção foi função de normalização. Ao longo da metade final do século XX, tornaram-se aceitáveis medidas salvacionistas para “evitar custos maiores”. A intervenção de 1964, sob determinados aspectos, inscreve-se como resposta à emergência da crise política da sociedade e do próprio Estado.

    Mais do que a saída de uma crise conjuntural, a coalizão intervencionista afirmava-se portadora de um projeto histórico que, embora não sendo a única expressão do bloco dominante, foi endossado pelo conjunto das frações deste.5

    Esse projeto concretizava-se na medida em que propunha a transformação do conjunto da sociedade em uma direção específica: a reestruturação capitalista interna e reinserção no sistema econômico mundial.6 O procedimento político para tal, esteve na reversão das bases de organização sócio-políticas e no controle do dissenso. Visava então garantir, previsibilidade política.

    Democracia supõe liberdade, mas não exclui responsabilidade nem importa em licença para contrariar a própria vocação política da Nação. Não se pode desconstituir a Revolução, implantada para restabelecer a paz, promover a honra nacional. (...) (...) o país precisa de tranqüilidade para o trabalho em prol do seu desenvolvimento econômico e do bem-estar do Povo, e que não pode haver paz sem autoridade, que é também condição essencial da ordem.7

    O processo que depôs João Goulart teve êxito em razão da ampla coalizão formada, a qual reuniu

    segmentos de praticamente todos os setores sociais do país, do arcaico ao moderno, do conservador ao progressista.8 Tamanha convergência de interesses, com setores, correntes e frações tão díspares, foi a um só tempo, a força necessária no acolhimento do regime de exceção e a primeira limitação na consolidação deste.

    O colapso das estruturas e instituições do Estado e o desejo de previsibilidade política (estabilidade), levaram segmentos com interesses distintos a encampar ou minimamente, anuir, a coalizão intervencionista.

    Agregando uma série de interesses imediatos, a coalizão que se mostrou adequada na destituição do presidente, cedo encontrou seus limites quando da estruturação do regime. Essa dinâmica “doméstica”, respondia às alterações nas posições junto aos centros decisórios de poder, deslocadas conforme a superação de etapas do projeto dominante, da aplicação ou sonegação de determinadas políticas públicas e, por fim, da participação nas decisões fundamentais do regime. Em outros termos: a coalizão se redefinia conforme a satisfação ou a obstacularização de interesses imediatos.

    Os setores dissidentes, não percebiam a garantia da realização dos interesses históricos que o regime propunha. A insubordinação do final dos anos 70 e início dos anos 80, voltou a solidificar o bloco dominante, demonstrando a inconstância de frações consideradas progressistas.

    As estratégias de manutenção da base de sustentação do regime, em seus primeiros momentos, partiram da garantia de reformulação e adequação do sistema político. Esta aglutinação se revelou fundamental na consolidação de estruturas a feição do projeto hegemônico.

    Pelos seus impulsos fundadores e pela amplitude da coalizão, a ação intervencionista praticamente anulou qualquer ponto de oposição significativa imediata.

    Para garantir a continuidade do processo intervencionista, o bloco dirigente do regime teve a necessidade de manter elementos do ordenamento anterior. Entre 1964 e 1968, as condições políticas e 5 A aplicação de um determinado projeto veiculado pelo Estado, excluiu dos benefícios não apenas as camadas dominadas, também frações do bloco dominante não são contempladas prioritariamente em seus interesses, com efeito, no núcleo das posições de poder do Estado prepondera um sistema de posições relativas, conforme o projeto dominante. Esta questão levou setores do bloco dominante a compor articulações com a oposição moderada. 6 GARRETÓN, Manuel Antonio. Em Torno da Discussão Sobre os Novos Regimes Autoritários na América Latina. In.: DADOS – Revista de Ciências Sociais do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Rio de Janeiro: Editora Campus, 1982, Vol. 25, nº 2, p. 170. 7 Ato Institucional Nº 2. In.: Diário Oficial da União. Ano CIII, nº 206, 26 de outubro de 1965. 8 Como muito bem apontaram: VELASCO e CRUZ & Sebastião C.; MARTINS, Carlos Estevam. De Castello a Figueiredo: Uma Incursão na Pré-História da “Abertura”. In.: SORJ, Bernardo; ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares (orgs.). Sociedade e Política no Brasil Pós-64. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983.

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    sociais mostravam-se desfavoráveis na criação de uma estrutura de “exceção” a qual fosse condizente com o propagado caráter de ruptura da intervenção.

    O deslocamento do centro do poder e as mudanças substanciais protagonizadas por este movimento, determinaram a preservação da forma de dominação típica do regime enfaticamente contestado. A manutenção da forma institucional anterior por parte de um regime que se estabeleceu por variantes não constitucionais, instaurou um primeiro elemento emblemático.

    Esse compromisso com a forma de dominação anterior criou os alicerces para a própria afirmação do regime.

    Esta característica compõe o primeiro dos elementos fundamentais na interpretação do processo de transição de ordenamentos verificados ao final da década de 70 e início dos anos 80: a dualidade de ordenamentos ou de outra forma, a situação autoritária em contradição.

    Esta condição, atestando o caráter híbrido do regime, ao mesmo tempo, limitou a estrutura de poder e equilibrou o próprio regime ao manter, através de um conjunto de artifícios, uma série de prerrogativas políticas que forneceram a base inicial de legitimação.

    Ora, não se faz política sem políticos. Nem se faz democracia sem partidos organizados e representativos. É o óbvio. A Revolução de 64 não liquidou com os partidos, nem com os políticos. Os militares assumiram o poder, não o Governo. Que desejaria mais o Congresso? A que aspiram mais os políticos.9

    A dualidade de ordenamentos também atendia a necessidade de encaminhar os interesses

    imediatos discordantes da ampla coalizão intervencionista e os desacordos entre as frações que ocuparam os centros decisórios de poder.

    Desde seus primeiros momentos, a manutenção de duas ordens legais (a ordinária e a de exceção), das estruturas e instituições do pré-64, necessitaram a prática das “engenharias políticas” como forma de ponderação da imprevisibilidade política, adequando a dinâmica do sistema político a parâmetros tolerados.

    O regime manteve o parlamento, mas descaracterizou suas atribuições e prerrogativas; garantiu a continuação do poder Judiciário, mas restringiu sua abrangência; estabeleceu as realizações periódicas de eleições, respeitando calendários e resultados, mas desequilibrou as disputas com a prática da depuração do sistema via expurgos e cassações; manteve o sistema de partidos, porém, impôs normas de reorganização do sistema partidário que resultaram na construção assimétrica de agremiações com a possibilidade de criação de um partido de oposição.

    O projeto de desenvolvimento nacional proposto pela coalizão teve, como primeiro obstáculo, o enfrentamento de uma série de dissonâncias “domésticas”. A superação destas querelas e oposições, demandou certo período de negociação.

    Entre entre 1964 e 1968 o regime reordenou o espaço da política, estruturando as bases da afirmação do projeto hegemônico – sintetizado no binômio “segurança e desenvolvimento”.

    Neste período, a dualidade de ordenamentos, a alimentação do “inimigo interno” e a possibilidade de circulação de poder decisório, garantiram as bases de sustentação do regime.

    A edição do Ato Institucional nº 5, superou uma questão que estava em aberto desde a deflagração da intervenção. A partir de então, a opção por um processo de intervenção permanente, solapou os desejos quanto à circulação do poder em um curto espaço de tempo.

    A partir de então, o país viveu um novo processo, reconhecido como refinamento do Estado, por que pautado na transformação de todas as questões políticas, econômicas e sociais como tributárias da segurança nacional, em outros termos: militarização dos centros decisórios de poder e no rediresionamento das estruturas do Estado.

    O regime avançava na execução do projeto de desenvolvimento modernizante-conservador, tendo como característica, a máxima restrição da imprevisibilidade política. As estruturas do Estado foram deslocadas de forma a garantir a supressão o dissenso e conflitos de interesses antagônicos, que pudessem causar qualquer tipo de desequilíbrio político.10

    Porém, o “fechamento do poder”, não atendeu única e exclusivamente aos interesses de um segmento específico, no caso os grupos ortodoxos da caserna.11 Estes setores da oficialidade militar

    9 BARROS, Adirson de. Geisel e a Revolução Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Artenova S. A., 1976, p. 241. 10 Período muito bem caracterizado no trabalho de coleta de depoimentos de: D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso. Os Anos de Chumbo: A Memória Militar Sobre a Repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994b. 11 A análise habitual estabelece a hegemonia de uma corrente da oficialidade militar como a responsável pelo fechamento de poder, quando este foi uma decorrência do próprio projeto veiculado pelo regime.

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    garantiram a preservação de uma correlação de forças políticas adequadas ao projeto de desenvolvimento.12

    No momento em que a instituição militar assumiu a primazia da condução política, internalizou os conflitos na corporação, tanto que a solução das tensões no âmbito do governo dava-se pela “unidade de crise” na caserna, ora apelando aos anteparos corporativistas (disciplina e hierarquia), ora no deslocamento das questões para o inimigo interno (a subversão).

    Transferia-se o debate político para as Forças Armadas, estas assumiram definitivamente a promoção do desenvolvimento pela garantia da segurança. O projeto nacional seria direcionado para a construção do país enquanto potência mundial. Para tal, a estabilidade política passou a representar ponto fundamental.

    O parlamento, gradativamente, perdia sua função primeira ao ser cerceado na tarefa de constituir laços de integração política entre a população e o governo central. Os movimentos inaugurais do regime, foram direcionados para a construção artificial desta relação (entre a sociedade e o Estado). Esta tarefa seria dificultada pelas proposições políticas e econômicas, de médio e longo prazo do novo ordenamento político. Essas não representavam as demandas reais e imediatas dos interesses gerais, mesmo os identificados na própria coalizão intervencionista.

    O processo de refinamento do Estado foi precipitado por um conjunto de fatores, sendo destaques a incompatibilidade da estrutura política, herdada do ordenamento anterior e a necessidade de definição do papel do próprio Estado no desenvolvimento do modo de acumulação no país. O regime postava-se, definitivamente, enquanto fase de transição, fundamental na construção das condições necessárias à plena modernização do país.

    Neste período, a dualidade de ordenamentos ficou em suspensão, desequilibrada em nome da

    excepcionalidade.

    Porém, esse processo teve um efeito imediato: ao desconsiderar as alianças que viabilizaram a

    intervenção, o bloco dirigente possibilitou “rachaduras na base de sustentação do regime”, tensões

    encobertas artificialmente pelo período do chamado “milagre econômico”.

    A ausência de espaços de dissenso e interlocutores autênticos e autônomos, definiu ainda no governo Médici, a hegemonia dos órgãos ligados à segurança interna e ao sistema de informações no núcleo do bloco dirigente. Esta definição instaurou outro paradoxo: quanto maior a força utilizada na repressão e neutralização da oposição, maior eram as possibilidades de imprevisibilidade política. Isso acarretou em um novo problema: o deslocamento dos pontos de tensão para além das instâncias de representação políticas, tornando a oposição difusa.

    O regime teve de ser rearticulado como forma de garantir sua continuidade. Os desdobramentos desta questão formam a base do primeiro capítulo desta tese, Os Descaminhos do Regime de Exceção, que se dedica a abordar as razões e os condicionamentos que levaram a estabilidade política do regime repousar em frágeis bases, praticamente, desde seus movimentos iniciais.

    A opção por este recorte temporal deve-se, fundamentalmente, à exaustão do processo de refinamento do Estado, uma etapa de realizações e pragmatismos que, não obstante seus avanços na materialização do projeto veiculado pelo bloco dirigente, desconstituiu a estrutura de poder, principalmente no período final do governo Médici.

    Deste ponto em diante, agregava-se um caráter militarizado ao regime, de tal modo que, com Médici no poder, já se poderia falar simplesmente em regime militar, pois o processo conduziria a instituição militar para o exercício soberano do poder decisório.

    A militarização dos centros de poder acionou um conjunto de contradições que alimentaram a crise do Estado. Esta crise foi imediatamente identificada ao colapso de suas estruturas políticas, na decomposição da base de sustentação do regime, na emergência de novos sujeitos políticos e na resistência às instâncias políticas formais.

    Sendo evidentes os sintomas de que o projeto de desenvolvimento nacional proposto pelo regime era inviável e, agregando o privilégio dado a determinadas frações do bloco dominante, as dissidências foram inevitáveis. Assim, “ilhas de interesses” foram formadas na base de sustentação do regime, reivindicando espaços maiores nos processos decisórios.

    Entre tantos autores que defendem esta posição ver: DROSDOFF, Daniel. Linha-Dura no Brasil: O Governo Médici 1969-1974. Tradução de Norberto de Paula Lima. São Paulo: Global, 1986. 12 A questão do “fechamento do poder” foi analisada por: OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. As Forças Armadas: Política e Ideologia no Brasil (1964-1969). Petrópolis: Vozes, 1976.

  • 39

    A militarização dos centros decisórios, cumprindo função determinante no projeto político do

    regime, alcançou uma situação limite. O fechamento do poder somente poderia ser sustentado com a

    intensificação do próprio arbítrio. Enquanto o regime conseguiu reverter a centralização do poder em

    benefícios para setores estratégicos, a militarização dos centros decisórios se manteve. Contudo, os

    choques entre interesses divergentes na base de sustentação do regime e a autonomização dos aparelhos

    de Estado ligados à informação e segurança, definiram as resistências à forma do sistema político por

    parte daqueles estratos.

    Não restando canais de manifestação do dissenso, dado o fechamento de poder, as insatisfações

    para com o governo foram transformadas tanto em votos de oposição quanto em mobilizações políticas

    para além das instâncias de representação.

    A partir de 1974, a desconstituição do regime partia de amplos setores, conduzindo o regime a uma condição de isolamento. Ou seja, resultou na recusa difusa à dominação imposta pelo regime, denominada insubordinação.

    A crise de funcionamento do Estado, em razão do colapso de suas estruturas e instituições, fez com que gradativamente o regime deixasse de ser funcional. Nesse momento ocorreu a fuga da insubordinação: um racha no bloco de poder, decorrendo deste aspecto, a denominação “dupla fuga” como referência à recusa mútua do regime. A dupla fuga determinou mudanças profundas nas relações de poder.

    As seqüelas da prorrogação da condição de excepcionalidade para além de suas inclinações fundadoras, alimentaram a tendência de desarticulação do pacto de dominação e desagregação da sua base de sustentação, principalmente, na forma estabelecida, durante o processo de refinamento do Estado. A militarização das estruturas e funções políticas do Estado cumpriu uma etapa do regime mas, teve uma série de conseqüências danosas para a própria estrutura de poder.

    A partir destas questões, a administração de Ernesto Geisel, estabeleceu a proposta de aprimoramento do regime do regime como mecanismo de contenção. Este é o tema do segundo capítulo, A Crise do Estado, o qual tem por preocupação, interpretar a proposta de flexibilização das relações políticas proposta na administração de Ernesto Geisel, entendida como mecanismo de dissimulação dos estrangulamentos e dos pontos de tensão do regime, externos e domésticos, a qual foi identificada como o projeto de “distensão”.

    O regime tornava-se inviável em sua formatação original, sendo desenvolvido de tal forma que a sua continuidade dependeria de mudanças. Estas por sua vez, alterariam profundamente sua própria condição. A partir deste ponto, tornaram-se perceptíveis dois projetos em disputa: um procurando definir a dualidade de ordenamentos pela adoção de um regime exclusivamente de força e outro, propondo a institucionalização definitiva. Sendo assim: o regime desfigurava-se pela sua perpetuação no tempo.

    O objetivo imediato do governo Geisel, ainda em 1974, foi o alcance da condição de equilíbrio entre a diminuição da imprevisibilidade política, índices satisfatórios para os grupos estratégicos de crescimento econômico, recomposição de uma base civil de apoio, contenção social (da insubordinação) e neutralização de crises domésticas (na caserna essencialmente).

    Este capítulo procura confirmar a hipótese do que a administração de Ernesto Geisel, consagrada como promotora da distensão e abertura política, imprimiu um projeto de aprimoramento do regime visando sua institucionalização. Em virtude destas construções interpretativas, este capítulo rediscute as principais teses a respeito da descentralização política como base da futura transição. Procura compreender, se as análises que foram pautadas pelas definições oficiais - “abertura, a distensão e a transição” - contemplam a complexidade da questão.

    Instaurado o projeto de flexibilização das relações políticas, o sintoma imediato esteve no revigoramento das instâncias de representação políticas como canais adequados no processamento do dissenso. A renovação do ordenamento político-institucional detinha os objetivos de superar as limitações impostas pela ausência de canais políticos adequados.

    O debate entre os resultados da centralização política e a necessidade de políticas de descentralização, definido como ponto central das questões políticas neste período, compõe o terceiro capítulo desta tese, A Flexibilização das Relações Políticas e as Peculiaridades da Cena Política Sul-Rio-Grandense. Tem como proposta, a ponderação da ênfase às peculiaridades da política sul-rio-grandense, visando relacionar os debates parlamentares na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul ao contexto de mudanças, vislumbrando nuances diferenciadas nas relações político-partidárias. Este

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    capítulo busca compreender, os reflexos da centralização política em pleno processo de dupla fuga, nas relações parlamentares.

    A concentração da investigação no Rio Grande do Sul se deve a três motivos fundamentais: a intenção de reforçar os estudos sobre o período em questão na região meridional do país, o registro das posições político-parlamentares em meio ao processo de redefinição do Estado e, por fim, a constatação da relevância de peculiaridades típicas do regionalismo gaúcho no processo histórico em questão.

    A definição da Assembléia Legislativa do estado do Rio Grande do Sul como corpus analítico, parte do reconhecimento de que a sociedade sul-rio-grandense forjou, ao longo de sua construção histórica, posições distintas daquelas predominantes na política nacional, sobressaindo estas questões, no campo político. Assim, a cultura política regional e a identidade sul-rio-grandense acabaram por singularizar o Rio Grande do Sul, aproximando-o mais da tradição política platina, ao mesmo tempo em que o afastava, em determinados momentos, do centralismo de Estado.

    A questão neste ponto está em reconhecer a possível singularidade das relações político-parlamentares no estado em circunstâncias de centralização política. Como complemento desta questão, o capítulo investiga a percepção do Parlamento acerca da dualidade de ordenamentos.

    Estas questões se definem no quarto capítulo, O Parlamento Gaúcho Em tempos de Flexibilização, que problematiza a visão do parlamento gaúcho do processo de flexibilização das relações políticas enquanto estratégia de aprimoramento do regime.

    Aqui, agregar-se-á o fato do MDB gaúcho, na fase posterior às vitoriosas eleições de 1974, assumir um discurso contundente, como base da análise do revigoramento das instâncias políticas. Pretende-se então, contrastar a tese da necessidade da descentralização de poder decisório, como pressuposto para a futura reestatização das relações sociais com as peças oratórias parlamentares que defendiam a “normalização da política”.

    A partir de tais ponderações, o quinto capítulo, Os Avanços e Retrocessos da Flexibilização das Relações Políticas, procura estabelecer a explicitação teórica e os sentidos do processo de redefinição do Estado através de seus inúmeros aspectos, os quais viabilizaram a implementação de um regime, ainda autoritário, mas capaz de conter a dupla fuga por outros instrumentos que não a utilização do monopólio da força legal e a exclusão das instâncias de representação política.

    Procurará analisar as políticas desenvolvidas no governo Geisel como o estabelecimento das bases da institucionalização do regime, mesmo que a adversa correlação de forças políticas tenha imposto uma ofensiva radical-conservadora de parte do bloco dirigente como mecanismo de controle da imprevisibilidade política.

    Esta imprevisibilidade foi manifestada nas fissuras no bloco dominante – como a construção da Frente Nacional Pela Redemocratização, a dissidência dos empresários e o deslocamento das camadas médias provocado pelo protagonismo da insubordinação. Neste momento, agregava-se mais uma “onda” dos movimentos de insubordinação com a explosão da atividade sindical e o acirramento das relações capital versus trabalho pela organização dos trabalhadores.

    Desta correlação de forças, o bloco dirigente retirou a base para a aplicação de mudanças na estrutura do Estado que definiram o processo de descompressão política, não obstante, o processo político ter imposto a reformulação constante do projeto oficial.

    Com resguardado de medidas prévias e a materialização de novas engenharias políticas com o intuito de ponderar o movimento político, partidário, parlamentar e eleitoral (como o Pacote de Abril), ocorreu à transição entre a “legalidade revolucionária” e elementos do Estado de Direito. Os movimentos do bloco dirigente (até mesmo os expurgos e depurações na base de alianças do regime), cumpriram a tarefa de dimensionar o espaço de manobra do bloco dirigente.

    Onde grande parte do parlamento poderia a vir a denunciar a incoerência das ações do governo, residia a aplicação do projeto de institucionalização da excepcionalidade, com vistas a superação da dualidade de ordenamento (agregando, pois, um caráter de estabilidade até então não desfrutado pelo regime). A partir de então, condicionava-se a redefinição do Estado.

    Por fim, o capítulo sexto - O Coroamento da Redefinição do Estado em Cinco Atos - dedica-se aos movimentos político-institucionais durante o governo Figueiredo. A tese procurará problematizar a impossibilidade do regime se reproduzir e, através desta, discutir os processos de reestatização política e disciplinamento do dissenso travestidos de conciliação.

    A reestatização das relações políticas como forma de controle da dupla fuga teve dois momentos distintos e interdependentes. Na flexibilização das relações políticas, aplicadas durante o governo Geisel, a qual instituiu um conjunto de mudanças como forma de impedir a desconstituição do Estado e, um segundo, na estabilização conservadora proposta na gestão Figueiredo. Esta última, está sintetizada em cinco momentos que definiram os parâmetros da transição de ordenamentos no país: o projeto de Anistia, a legislação acerca da pluralização partidária, o controle das resistências domésticas (sendo caso

  • 41

    sintomático, o frustrado atentado do Centro de Convenções do Rio de Janeiro, o Riocentro), as eleições gerais de 1982 e por fim, a conciliação pela transição, com derrota da emenda Dante de Oliveira.

    O Estado sofreu um processo de redefinição, ressignificando a insubordinação em demandas político-parlamentares. Como conseqüência do processo geral de transição, a distância crônica entre a sociedade civil e as instâncias de representação política inviabilizariam a base idealizada da “Nova República”.

    As aludidas características do regime civil-militar brasileiro – dando origem a

    sucessivos processos de instabilidade e crise – relacionadas à dinâmica própria do

    processo político com impulsos de mudança e conservação, estabeleceram a forma, o

    conteúdo e o tempo da instauração de um remodelado ordenamento político.

    Mesmo apontando as contradições do processo e o choque entre projetos, esta tese não chega ao extremo, como fizera Rezende, de qualificar a transição como “inventada” pois, implicitamente veicula a concepção de que os processos políticos coincidem com o projeto elaborado pelo bloco dirigente quando, e se procura apontar esta questão no corpo do texto, ocorreu no Brasil, especificamente a partir de 1974, um evidente entrecruzamento de projetos em disputa (mesmo entre o bloco dominante), ou seja, tal posição nega o processo e a dialogicidade das questões políticas.13

    Definia-se no Estado e em suas instâncias político-representativas, os locais únicos de exercício do poder, sendo esta a base da reestatização das relações. Definitivamente a insubordinação e a fuga desta haviam sido debeladas ao serem canalizadas com todo o fervor para a disputa, em regras rigidamente definidas, pelo poder do Estado. Esta seria a direção única possível e sinal de maturidade política.

    O que inicialmente surgia como um primeiro impulso de insubordinação, logo negativo à correlação de forças políticas de então (rechaço generalizado ao governo, ao regime e até mesmo ao Estado), foi convertido em algo positivo (a reconstrução das instituições e a refundação do poder) ou passível de instrumentalização (a reconciliação nacional como forma de superar a crise econômica).

    Para melhor compreender este processo e as problematizações sugeridas, faz-se necessário definir os muitos conceitos utilizados no decorrer desta tese, porque passíveis de compreensões distintas.

    Algumas definições mínimas, com a finalidade de identificar adequadamente os objetos em questão, são importantes na medida em que a eficácia deste instrumento analítico está fundada nos seus resultados explicativos.14

    Nesta tese, o sistema político é definido a partir dos limites da perspectiva da institucionalidade: da relação entre sistema político, ordem política e a mediação através do ordenamento constitucional. Esses são expressos na representação política baseada na correlação de forças, impasses e conflitos, instrumentos de ação e processos de cooptação.

    O sistema político, objeto especificado então a partir do domínio especificado, revela-se como instância ou sujeito coletivo integrado à sociedade organizada, donde as deliberações de porte político são aquelas que incidem e decidem questões afetas à sociedade civil como um todo.

    Independente das definições e nomenclaturas, as formas assumidas pelo Estado de exceção são definições de formas de Estado de crise. Estas crises por sua vez, manifestaram-se em duas instâncias e em períodos distintos: a instituição militar e os fóruns de representação política.

    De outro modo, utiliza-se fartamente neste trabalho a noção de blocos (bloco de poder, dirigente e dominante). Estas definições não guardam relação com a teoria de bloco histórico formulada por Gramsci.15

    Os blocos aqui mencionados, possuem significados restritos e relacionam-se ao poder, sendo este compreendido como a capacidade de uma classe social de realizar os seus interesses objetivos

    13 REZENDE, Maria José. A Transição Como Forma de Dominação - O Brasil na Era da Abertura (1980-1984). Londrina: Editora da UEL, 1996. Original e pertinente em muitos aspectos, as lacunas desta análise, possivelmente estejam relacionadas ao fato da autora observar o processo de transição apenas em sua fase final, ignorando que tal processo foi desenvolvido ao longo de mais de uma década. 14 As “definições mínimas” são discutidas em: SARTORI, Giovanni. Partidos e Sistemas Partidários. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982, pp. 81-86. 15 Para tais definições ver: GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.

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    específicos.16 Definem-se, portanto, ao campo da luta de classes, especificamente no conjunto dos dissensos sociais de interesses antagônicos.

    A definição do poder, parte do conflito causado pelo movimento de uma classe concretizar seus interesses e no movimento inverso, na oposição de outras a esta concretização. A relação de poder implica em uma relação específica de dominação e subordinação das práticas de classes.17

    Bloco dominante diz respeito aos setores que, por sua posição econômica ou posição na esfera de produção, dominam e orientam as práticas sociais através do domínio das estruturas jurídico-políticas e dos aparelhos que lhe correspondem, sem que isso implique, a ocupação concreta dos centros decisórios. Ao seu turno, bloco dirigente refere-se à face visível dos centros decisórios de poder, aqueles que “governam” – no específico caso em questão - a oficialidade militar e a tecnocracia.18 Estes garantiram ao bloco dominante, um Estado suficientemente forte e um planejamento administrativo adequado na aplicação do projeto de desenvolvimento. Logo, também se compreende o Estado como centro do exercício do poder político ou como constituinte da unidade política das classes dominantes.19

    A análise da sociedade organizada circunscreve-se aos limites da perspectiva da institucionalidade. Com efeito, a idéia de representação política no corpo do texto, esta não está equiparada à noção de representatividade. Sendo objetos distintos e interdependentes, entende-se a representação política como mecanismo primordial da política moderna baseada na delegação do poder, tendo em organismos fundamentais – o Parlamento por exemplo – a competição regulamentada (no sentido de legalizadas, não necessariamente legitimadas), a qual introduz a disjunção entre sociedade civil e sociedade política ou o poder apropriável por transferência de titularidade.20

    Por regime político compreende-se, sob um ótica ampliada, um conjunto de instituições que regulam e regulamentam a luta pelo poder e o exercício deste, ou seja, a organização e a seleção da classe política dirigente. Contudo nesta tese, dizem respeito especificamente, ao padrão de organização da luta política, assim apresentada por Saes:

    Luta entre as classes sociais, luta entre frações da classe dominante, luta entre as camadas de uma mesma classe -, no que esta luta se desenvolve dentro dos limites fixados pelo Estado burguês (aceitação objetiva do capitalismo e do próprio Estado burguês). Numa frase: regime político designa aqui a configuração da cena política, e não do aparelho de Estado.21

    16 POULANTZAS, Nicos. Poder Político e Classes Sociais. Tradução de Francisco Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1977, p. 100. Difere portanto, da definição weberiana de que o poder estabelece-se como probabilidade de um certo comando de conteúdo específico ser obedecido por um grupo determinado. As elaborações teóricas deste autor serão fartamente utilizadas nesta tese. Mesmo com uma série de ressalvas de parcela da academia, as quais consideraram superada a produção deste teórico. Todavia, especificamente a obra “Poder Político e Classes Sociais”, guarda contribuições fabulosas acerca da complexa relação entre o Estado (burguês na acepção de Décio Saes, capitalista para Poulantzas) e as classes sociais no decorrer do processo de reprodução das relações de produção. Para esta definição de Saes ver: SAES, Décio. República do Capital: Capitalismo e Processo Político no Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001. Ver também: SAES, Décio. A Formação do Estado Burguês no Brasil (1888-1891). 2ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. 17 POULANTZAS, Nicos. Op. Cit., p. 101. 18 Bloco dirigente não está equiparado portando à noção de governo, na medida em que este último é compreendido como o conjunto da administração. 19 POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. Tradução de José Saramago. Lisboa: Moraes Editores, 1978, p. 121. 20 Não se adentrando portanto, à polêmica sobre as noções de sociedade civil e sociedade política em: GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, A Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. 21 SAES, Décio.Op. Cit., p. 35. A modalidade ditatorial de regime político, burguês na definição de Saes, designa por sua vez: a impossibilidade prática de exercício das liberdades políticas (como a liberdade da palavra, a de reunião ou a de propaganda), a inviabilização da participação do sistema partidário “civil”, pela via do Parlamento, no processo decisório estatal e a cristalização das Forças Armadas (ou do Exército, em particular) como o único partido real na cena política. In.: Id. Mesmo qpresentando questões discutíveis - como o “partido militar” - e de outro modo, sendo uma definição mínima, portanto, não abarcando a complexidade do termo, este quadro conceitual auxilia na caracterização da estrutura de poder no pós-64. A noção de hegemonia, refere-se restritamente ao que Saes denomina de “seio do bloco dominante” ou “bloco de poder”: uma fração de classe que prepondera politicamente sobre as demais, satisfazendo seus interesses prioritariamente, esta preponderância designa-

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    A partir destes esclarecimentos teóricos e explicitação de conceitos fundamentais, acredita-se que as teses aqui propostas e defendidas em torno de uma problemática essencialmente complexa, possam ser melhores apreendidas e discutidas.22

    se hegemonia. In.: Id., p. 50. Definições que também tomam por base as análises de Poulantzas: POULANTZAS, Nicos. Poder Político e Classes Sociais. Op. Cit. 22 No corpo do texto, sempre que necessário, a ênfase à questões, termos, expressões ou conceitos são destacadas através de grifos, no caso o recurso do negrito. As citações por sua vez, estão em destaque pelo recurso do itálico.

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    CAPÍTULO 1

    DESCAMINHOS DO REGIME DE EXCEÇÃO

    Complexidade. Possivelmente, esta tenha sido a característica distintiva de

    grande parte das pesquisas e estudos acerca do regime de exceção brasileiro. Regime

    este, construído e reconstruído, definido e redefinido incessantemente, desde seus

    momentos iniciais no outono de 1964, acima de tudo, após a afirmação do processo de

    militarização dos centros decisórios no final da década de 60.

    Na questão política, especificamente, o regime ungido pela intervenção de 1964

    não criou instâncias compatíveis com o propagado caráter de excepcionalidade. Não

    rompeu com o sistema partidário-eleitoral nem suprimiu as casas de representação

    política e, ao mesmo tempo, manteve uma série de formalidades democráticas (mesmo

    tendo uma evidente inclinação em restringir o “mundo do político”). Reside justamente

    aqui a base e o fomento à permanente discussão sobre a consolidação ou não de uma

    efetiva ruptura em 1964.

    Se complexa foi a compreensão do movimento da sociedade sob um governo e

    um regime de exceção - ambos aqueles compreendidos e acolhidos como transitórios -

    peculiar como o brasileiro, o foi mais complexa ainda quando o corpus analítico

    debruçava-se na questão da gradativa substituição da ordem autoritária por um novo

    ordenamento político (que em meados dos anos 70 reunia indícios, não mais que isso,

    de que poderia vir a ser democrático).23

    A própria natureza das transições políticas negociadas e, de outro modo, a longa

    duração deste processo no Brasil (ampliando assim as possibilidades de controle dos

    setores que tomaram a iniciativa do processo), somadas ao fato de que não haver uma

    23 Peculiaridades estas que o distinguem dos demais casos recentes de regimes autoritários na América Latina (Argentina, Chile e Uruguai principalmente) e no sul da Europa (Espanha, Grécia, Portugal e Itália). As particularidades da estruturação e consolidação do regime civil-militar brasileiro tiveram uma definitiva influência nos condicionantes da instauração do ideário democrático mais ainda, das bases e formas de construção do consenso e aceitabilidade de um ordenamento autoritário/centralizador em detrimento de valores consagrados do ideário liberal. Referente às tendências dos cientistas e intelectuais brasileiros no tocante à análise política do país ver: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Seis Interpretações Sobre o Brasil. In.: Dados – Revista de Ciências Sociais do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Vol. 25, nº 3, 1982, pp. 269-306. PACKENHAM, Robert A. O Discurso Político Brasileiro em Transformação: 1964-1985. In.: SELCHER, Wayne A. (org.). A Abertura Política no Brasil: Dinâmica, Dilemas e Perspectivas. São Paulo: Convívio, 1988, pp. 185-229.

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    única concepção de democracia em jogo (da mesma forma que não havia definição

    quanto ao término do processo) se encarregaram de obstacularizar ainda mais a

    apreensão e interpretação desta realidade.

    Devido à multiplicidade de fatores, sucederam-se leituras distintas e muitas

    vezes antagônicas, onde o gradativo processo final do regime autoritário deteve variadas

    significações. Com efeito, as visões do passado recente tenderam tanto a ressaltar

    manifestos êxitos e capacidades políticas de negociação e pacto como, por outro lado, a

    denunciar um possível atraso político, social e uma crônica incapacidade de mobilização

    popular autônoma.

    A dificuldade de interpretação da saída de um sistema do tipo civil-militar

    conservador, com a agravante das ambigüidades próprias da trajetória do “político” no

    país, também foi tributária do recorrente risco de retrocesso, visto o permanente estado

    de fusão entre concessões e conquistas, que de uma forma ou outra, nebulou a distinção

    histórica, portanto também, a analítica, entre crise do regime, crise do sistema, crise do

    Estado e também do projeto histórico que ambos veicularam. 24 25

    A possibilidade de uma “volta ao passado” – referência aos chamados “anos de

    chumbo” – possuía concretude, pois ao mesmo tempo em que o debate político-

    partidário, portanto institucionalizado e legitimado, avançava na construção da pauta

    democrática, sendo acolhido com crescente intensidade pelo bloco dirigente (resultante

    ou mesmo condicionante da repactuação política que estava em curso), uma crescente

    crise econômica inseria-se no cotidiano do país, alimentando novos focos de tensão

    social, potencializando a imprevisibilidade política e os riscos de uma solução mais

    conservadora do que a que estava em curso (alternativa experimentada anteriormente,

    vide a situação de 1968).

    Por outras palavras, se havia - como posteriormente se comprovou - uma série

    de contingências que viabilizaram uma intervenção de tipo civil-militar e o acolhimento

    de um regime de exceção, a supressão destas mesmas contingências necessariamente

    não indicava que o sistema político reproduzisse ou fosse conduzido ao ordenamento

    anterior.

    24 As ambigüidades aqui mencionadas dizem respeito ao sistema político - ainda em processo de consolidação no momento da intervenção civil-militar, ao capital cultural-político acumulado pela parcela politicamente ativa da sociedade, intimamente articulada a uma dinâmica de funcionamento das instituições políticas. 25 A necessidade de distinção das simultâneas crises (nem por isso desconexas) e tudo o mais que lhe é inerente foi destacada por: GARRETÓN, Manuel Antonio. Em Torno da Discussão Sobre os Novos

  • 47

    Percebia-se, assim, um sensível e instável equilíbrio entre forças

    autoritárias/conservadoras e democráticas/progressistas, visto que a velocidade da

    flexibilização das relações políticas (a liberalização) estava diretamente ligada à

    possibilidade de recrudescimento (recompressão), de “retorno ao passado”, mas sem a

    restauração do modelo pré-64.26

    Por outro lado, a forma assumida pela estrutura de poder, tendo consumido os

    primeiros 10 anos do regime, atuou de tal modo que o arcabouço institucional

    deliberadamente separou os campos de intervenção da sociedade, ou seja, o Estado

    (principalmente nas questões administrativas e econômicas) e os demais organismos

    políticos dissociaram-se. Esta característica teria um peso fundamental quando da saída

    do ordenamento de exceção.

    Somente com a separação aludida acima, a condução tecnocrática conseguiu

    movimentar-se independentemente dos processos e disputas políticas e, em última

    instância, das demandas oriundas do conjunto da sociedade, não apenas daqueles setores

    excluídos do pacto de dominação mas também, de parcelas que constituíam a antiga

    coalizão intervencionista.

    Na prática política autoritária, o discurso demarcaria dois campos distintos e

    assimétricos: a política e o mundo da administração pública ou o domínio público e o

    domínio privado (por outros termos: a desvinculação e o rompimento entre política e

    gestão). Esta impessoalidade foi viabilizada por um conjunto de normas de

    representação, características de um Estado não mobilizador como o implementado em

    1964 e aprimorado na década seguinte. O esvaziamento das funções dos demais poderes

    e o disciplinamento do dissenso obedeceram esta lógica.

    A instauração do regime civil-militar - impulsionada por uma ação tão coesa

    quanto abrupta – não reuniu condições de superar definitivamente o ordenamento

    anterior (nem mesmo simbolicamente), visto a legitimidade da ação intervencionista

    Regimes Autoritários na América Latina. In.: Dados – Revista de Ciências Sociais do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro: Editora Campus, Vol. 25, nº 2, 1982, pp. 183-184. 26 Neste sentido, Abranches chegou a utilizar, e de forma compreensível, a expressão aparentemente contraditória democratização autoritária. Dado o contexto em que fôra elaborada, esta análise representou mais um esforço teórico em interpretar o cenário ambíguo e complexo do processo de transição. ABRANCHES, Sérgio Henrique. Crise e Transição: Uma Interpretação do Momento Político Nacional. In.: Dados – Revista de Ciências Sociais do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Vol. 25, nº 3, 1982, pp. 307-329. A percepção da gravidade da crise que assolou o país no final dos anos 70 e que iria persistir nos anos 80, rendeu uma série de debates nos círculos acadêmicos, como exemplo ver: MALAN, Pedro [Et. All.]. Debate Sobre a Crise Brasileira. In.: Revista Encontros com a Civilização Brasileira – Vol. 11. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, pp. 175-217.

  • 48

    estar exatamente na neutralização de um conjunto de tensões e problemas imediatos

    que, entendia-se naquela oportunidade, colocavam sob risco a legalidade institucional.

    Superado este, por assim dizer, primeiro estágio e mantida a intervenção,

    afirmava-se a dualidade de ordenamentos, expressa na disputa entre a consolidação e

    institucionalização do regime autoritário e, em outro extremo, a restauração dos padrões

    políticos preexistentes após os devidos expurgos, adequações no planejamento

    econômico-redistributivo e revisões jurídicas.

    Com uma construção nestas bases, a transição final deste mesmo regime

    instaurado em 1964 - como resultado de uma ampla negociação e antecipação de

    demandas políticas e sociais - não poderia ser diferente.

    Por conseqüência, a dubiedade marcaria, então, mais este processo político pelo

    qual passou o país.

    Tão logo se ampliou o trânsito dos documentos (a tão esperada abertura dos

    arquivos dos atores diretos deste período), deram-se vozes a personagens fundamentais

    neste processo (a recuperação das fontes orais) ao mesmo tempo em que era confirmado

    o caráter intrinsecamente ambíguo da transição brasileira. Esta, de certa forma, tornou

    complicada qualquer tipificação ou associação com casos correlatos na América Latina

    ou mesmo, do sul da Europa Ocidental.

    Não obstante as peculiaridades próprias do período, o processo de transição de

    ordenamentos políticos entre os anos 70 e 80 nada fugiu ao histórico da dinâmica

    política brasileira.

    Em sua fase republicana, as transições políticas, em última medida, foram

    constituídas, historicamente, de modo ora a se opor e evitar um processo de

    consolidação da insubordinação e de ruptura revolucionária, ora a reestatizar relações

    sociais e políticas de grupos e frações que tentavam se inserir nas “arenas” de

    representação política, as quais poderiam solapar o pacto de dominação vigente.

    A transição de ordenamentos que serve de base analítica nesta tese, pelo fato de

    inovar nos mecanismos de poder sem, contudo, transformar as posições de poder,

    atestou mais um dado de permanências na construção histórico-política do país – logo

    compreendido como inserida em um fenômeno de longa duração.

  • 49

    Originalmente, a condução da primeira experiência de transição democratizante

    – pós-regime varguista – demonstrou ser uma simbiose entre o ordenamento autoritário

    e aquele que se pretendia pautar por relações mais fluídas.27

    Recentemente, o trânsito de um ordenamento autoritário a uma situação

    democrática, processo reconhecido e consagrado pelas produções acadêmicas entre o

    início dos anos 70 (na passagem do governo Médici ao de Geisel), e a eleição de

    Tancredo Neves em 1984, não reuniu as condições para assumir um caráter de

    estabilidade. Nem mesmo a transição negociada pela conciliação e antecipação foi

    tranqüila.

    Estando permeada por impulsos autoritários e democratizantes, teve uma

    construção peculiar, sem que uma força política pudesse ser rotulada de vitoriosa ou

    derrotada, sem que os segmentos identificados à centralização política tivessem saído

    efetivamente dos centros decisórios e, ao mesmo tempo, sem que os setores que

    encontravam coesão na oposição à arbitrariedade do regime incorporassem a defesa da

    democracia de massa como pressuposto da mudança.

    O próprio tempo de construção da nova fase democrática definiu-se pelo tempo

    de organização e estabelecimento da repactuação e reacomodação das forças políticas.

    Nem antes, nem depois.

    Uma das teses defendidas neste trabalho é a de que o fechamento do sistema,

    reconhecido a partir da transformação de todas as questões políticas, econômicas e

    sociais como tributárias da segurança nacional – em outros termos: militarização dos

    centros decisórios de poder - fora pré-condição para o projeto de abertura política. No

    decorrer deste capítulo tais teses serão explicitadas de forma detalhada.

    27 Sintomaticamente, o processo de transição do Estado Novo ao ordenamento liberal-democrático teve em suas fileiras segmentos da própria elite estadonovista, cujo comportamento foi simbolicamente representado pelo ministro da Justiça do governo autoritário, Agamenon Magalhães, mentor da nova legislação envolta pela normalidade institucional. Aqui se compartilha da mesma opinião de Campello de Souza, em seu clássico estudo acerca do sistema político-partidário brasileiro entre os anos 30 e a crise de 1964: uma leitura mesmo superficial da história política de 1943-1946 mostra sem ambigüidades que a maciça maioria dos legisladores e políticos responsáveis pela formulação teórica da vida partidária democrática nacional não só não se renovara, como também, o que é mais contundente, era a mesma que na década anterior havia encontrado nas doutrinas antiliberais a solução para os problemas políticos que o país enfrentava. SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estado e Partidos Políticos no Brasil (1930 a 1964). 2ª Edição. São Paulo: Alfa-Omega, 1983, p. 64. Desta argumentação, Pandolfi retira as bases de análise - e descrença - na instauração e consolidação de um regime democrático no país, comparando, inclusive, a conjuntura de 46/47 à transição dos anos 80, PANDOLFI, Dulce Chaves. A Construção da Democracia no Brasil: Avanços e Retrocessos (1946-1947). In.: Ciências Sociais Hoje (Anuário Publicado Pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – ANPOCS). São Paulo: Vértice: Editora Revista dos Tribunais, 1989, pp. 158-184.

  • 50

    A partir destas inferências afirma-se que, durante os dois primeiros governos

    autoritários, a forma-regime ainda estava indefinida. Isto tanto para aqueles que não

    compunham as instâncias políticas legalizadas quanto para o conjunto dos atores

    inseridos nestas e investidos de representação – visto que até a decretação do AI-5 os

    agentes políticos civis ainda indagavam se a intervenção teria caráter transitório ou

    permanente (logo, intensificavam ou atenuavam sua ação política pautada por estas

    especulações).

    Atestando aquilo que a prorrogação do mandato do presidente Castelo Branco

    tornou possível suspeitar, a definição da intervenção como permanente após 4 anos de

    exercício do poder esteve diretamente relacionada à gênese do regime, visto que o

    período que antecedeu a queda de Goulart foi caracterizado por uma manifesta intenção

    de implementar um projeto histórico divergente do proposto pelo governo.

    Como base de aglutinação de amplos setores, este projeto a princípio, deveria

    definir o tempo de exercício do poder de exceção. Não foi outro o sentido da

    enunciação, no preâmbulo do Ato Institucional (ainda sem número), pelo Comando

    Supremo da Revolução: A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder

    Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma

    mais expressiva e mais radical de Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa,

    como o Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o Governo anterior e

    tem a capacidade de constituir o novo Governo.28

    O trecho acima atesta uma inversão das mais importantes na estruturação

    política do aparelho de Estado, dado que até 1964 o poder Legislativo - não obstante

    seus inúmeros conflitos com o governo Goulart – estava comprometido com um

    determinado pacto de dominação. Esta relação garantia ao parlamento um papel

    importante nas regras de funcionamento do sistema político, essencialmente por atuar

    como uma caixa de ressonância (limitada por certo) das insatisfações da sociedade. A

    28 Assinado em 9 de abril de 1964 pelo general Arthur da Costa e Silva, pelo tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Mello e pelo vice-almirante Augusto Hamann Rademaker Grunewald, publicado no Diário Oficial da União em 9 e 11 de abril daquele ano, o primeiro Ato Institucional profetizava: Fica assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação. Duas obras essenciais, pelos detalhes que fundamentam suas afirmações, possibilitam uma visão apurada deste processo inicial: DINES, Alberto [Et. All.]. Os Idos de Março e a Queda Em Abril. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1964. MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Op. Cit., pp. 52-79. Especificamente tratando da questão jurídica e suas relações com o processo político ver: BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O Projeto Político Brasileiro e as Eleições Nacionais. In.: Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais. Nº 57, julho de 1983, pp. 29-133.

  • 51

    partir da intervenção civil-militar, o pacto de dominação prescindiria do Congresso. A

    existência do Poder Legislativo (e as limitações de atuação deste), passaram a derivar do

    poder “revolucionário”.29

    Chegando ao ápice com a militarização dos centros decisórios, o aval civil

    institucional serviria para legitimar e dar suporte legal às regras do novo pacto de

    dominação, defendidas em restritos e restritivos debates.

    Através da condução do novo bloco no poder (o bloco dirigente),

    gradativamente se implementaria uma inovação: a dissociação da crise política de

    dominação enquanto crise no pacto de poder - sobretudo de sustentação deste - da crise

    social produzida pela adoção de um determinado modelo econômico e de um padrão de

    desenvolvimento, reconhecido no período de afirmação da democracia liberal no país

    (1945-1964).

    Ao cortar aquela correlação, a coalizão intervencionista reuniu maiores

    condições de ter suas ações acolhidas pelo conjunto da sociedade – mesmo entre as

    camadas dominadas e excluídas do novo pacto de dominação. Com efeito, passaram a

    admitir a efetivação de um regime político tido como emergencial. Daí a substituição,

    processada pelo novo discurso oficial, da noção de prazo da excepcionalidade pelas

    metas a serem alcançadas.30

    Ao mencionar a função de salvaguardar valores caros à sociedade brasileira, faz-

    se referência aqui à tendência da oficialidade militar, independentemente da corrente

    interna que se tome como referência analítica, enquanto ator político preponderante,

    protagonista da intervenção e dirigente do regime que se seguiu, em projetar seus

    valores mais caros para o conjunto da sociedade. Mesmo que se entenda às Forças

    Armadas como uma instituição heterogênea, com clivagens internas que a cortavam

    horizontal e verticalmente, não se pode desconsiderar que determinados valores

    uniformizavam e concediam um caráter quase monolítico aos procedimentos político-

    institucionais.

    Por certo, ainda está para ser feita uma discussão aprofundada sobre até que

    ponto estes valores foram incorporados pelos diferentes estratos sociais e, de outra

    maneira, como interferiram na correlação de forças políticas estabelecidas para além da

    caserna. Sendo um trabalho à parte, fora das pretensões desta tese, estas questões não

    29 LAFER, Celso. O Sistema Político Brasileiro: Estrutura e Processo. 2ª Edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978, pp. 72-73. 30 GARRETÓN, Manuel Antônio. Op. Cit., p. 183.

  • 52

    serão tratadas aqui; sempre que se fizer necessário, a menção a questões específicas

    próprias da instituição militar para além da problemática aqui proposta, será remetida

    aos autores que a tomaram como base analítica.31

    Para as necessidades do momento, pode-se afirmar que o respeito inabalável à

    hierarquia, à disciplina, o apelo à unidade da corporação e o rígido posicionamento

    anticomunista, fundamentaram e cimentaram elementos do compromisso e da pauta

    autoritária desde os últimos momentos do general Figueiredo na presidência.

    Mesmo assim, o fracionamento político e as tensões em decorrência deste, foram

    características genéricas da instituição militar. Com isso, afirma-se que as disputas

    militares domésticas não foram especificidade da oficialidade intervencionista, a qual,

    em questões de fundo, manteve sua unidade (sendo caso exemplar a condução do

    projeto de anistia e o encaminhamento do inquérito do atentado no Riocentro). Contudo,

    para manter tal equilíbrio, a cúpula da oficialidade militar no bloco dirigente, através de

    inúmeros expedientes, expurgou suas “anomalias” domésticas. Sendo um regime

    duradouro, os casos de tensões concretas que abalaram a estrutura de poder foram

    mínimos, apesar de seus efeitos ressoarem com intensidade (vide a demissão do

    Ministro do Exército, general Frota, a qual será tratada posteriormente). 32

    Esta percepção não anula o fato de que a crise fez morada na instituição militar,

    chegando ao extremo de ser confundida como crise do regime. Diga-se: quando se

    31 Existe uma farta produção, entre tantas, um exemplo de análise sucinta porém elucidativa pode ser encontrado no artigo de um estudioso da questão dos militares e sua participação na política brasileira: GOÉS, Walder de. Os Militares e a Transição Política. In.: Ciências Sociais Hoje (Anuário de Antropologia, Política e Sociologia) – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS). São Paulo: Cortez Editora, 1986, pp. 240-257. 32 Mesmo que se pondere a influência e os vínculos da origem de classe social nos quadros da instituição militar, tanto àquela oficialidade ligada à elite econômica quanto àquela oriunda das camadas médias, os valores da corporação acabaram por garantir uma coesão que superou as tensões internas em momentos de profunda crise, principalmente nos momentos envolvendo questões da sucessão presidencial e nos embates domésticos referente à forma de condução do regime (sendo casos notórios o desterro pratocinado pela oficialidade a Albuquerque Lima em razão de sua auto-candidatura e campanha presidencial à revelia do Alto Comando; a exoneração do Ministro do Exército, general Frota e a demissão do general Golbery). Possivelmente, e aqui isso se coloca somente como especulação, a “homogeneização”, ou mais coerentemente, a uniformização da instituição militar seria produto também da formação proposta pelas escolas de oficiais na efervescência da Guerra Fria. Portanto, a partir desta especulação, infere-se que os oficiais formados posteriormente teriam uma tendência menos ortodoxa em relação a estas questões, voltando-se para discussões acerca da soberania nacional, integridade e defesa territorial (atualmente no fechamento de fronteiras e programas de combate ao narcotráfico). Para tais discussões ver: CASTRO, Celso. A Origem Social dos Militares. In.: Novos Estudos CEBRAP – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. São Paulo: nº 37, novembro de 1993, pp. 225-231. Na questão de análises específicas acerca da participação militar no processo de estruturação do regime de exceção e da abertura política, tornaram-se referências para consultas: OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. De Geisel a Collor: Forças Armadas, Transição e Democracia. Campinas: Papirus, 1994. OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. As Forças Armadas: Política e Ideologia no Brasil (1964-1969). Petrópolis: Vozes, 1976. OLIVEIRA, Eliézer Rizzo (org.). Militares: Pensamento e Ação Política. Campinas: Papirus, 1987.

  • 53

    aponta uma crise do Estado cogita-se a eminência de um colapso no sistema pelo qual

    as classes e frações sociais estruturam-se de forma a permitir a manutenção do pacto de

    dominação. Infere-se, a partir de então, acerca da crise de suas instituições consagradas,

    caso do parlamento, dos partidos políticos, do poder Judiciário e até mesmo, da Igreja

    Católica e dos sindicatos.

    Ainda assim, poucos poderiam afirmar que as tensões na caserna causaram a

    precipitação da desconcentração do poder e, conseqüentemente, a necessidade de

    abertura política.

    Entre os analistas que se filiam a esta forma particular de interpretação,

    encontra-se Gama de Andrade. Este autor observou na instituição militar,

    especificamente nas sucessões presidenciais, fatores determinantes da “abertura

    política”.33 Ao afirmar a permanência do pretorianismo na política brasileira – qualquer

    que seja o regime analisado, pré, pós-64 ou pós-84 – apontou que as acanhadas

    mudanças na política brasileira na Nova República (se existiram), limitaram-se em

    grande parte pela presença e influência dos militares nos rumos políticos do país que,

    somada à debilidades flagrantes dos partidos políticos e dos métodos de pressão

    política, que impuseram um quadro rígido de dificuldades para a implementação

    definitiva da democracia. 34

    A superioridade do poder civil não estaria consagrada nem mesmo com a

    efetivação do sistema legislativo democrático.

    Esqueceu-se o autor, contudo, que a interpretação da transição política brasileira,

    baseada primordialmente na consecução ou na intervenção da hegemonia do poder civil

    sobre o poder militar, é limitada por várias razões. Primeiro por sustentar-se apenas nos

    acontecimentos (o momento da afirmação do poder civil) e, ao proceder assim, cortar o

    caráter processual da abertura política, dito de outra forma: as permanências de um

    33 ANDRADE, Luis Aureliano Gama de. Pretorianismo e Democracia: Notas Sobre a Transição Política no Brasil. In.: Ciências Sociais Hoje (Anuário Publicado Pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – ANPOCS). São Paulo: Vértice: Editora Revista dos Tribunais, 1989, pp. 189-191 34Id. Em tese, quando inserido em conjunturas (econômicas, políticas, sociais...) extremamente desfavoráveis, sem possibilidades de recuperação a curto e médio prazos, um regime autoritário possui a vantagem em relação aos regimes democráticos - com plenos mecanismos de delegação de poder - de poder sinalizar, como forma de contenção social ou reestatização das relações sociais, com a possibilidade de retorno à normalidade democrática. Ao passo que, mesmo com uma série de mecanismos institucionais – eleições, plebiscitos, emendas parlamentares – um ordenamento democrático não aponta para aprimoramentos do regime que não o acolhimento de demandas das camadas subordinadas, potencializando assim, a imprevisibilidade social e política ou o risco de fragmentação, polarização e radicalização. Contudo, não sendo esta a preocupação desta tese, uma afirmação desta monta requer

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    processo de longa duração – Braudel já há muito afirmara que a história forjou a ilusão

    de que os acontecimentos supririam totalmente as deduções.35 Depois, o autor

    desconsiderou os demais condicionantes (conjunturas, estruturas e até mesmo, atores

    relevantes) do processo. Também, apegou-se a um certo formalismo ao observar, no

    retorno à caserna, uma implicação direta na estabilidade democrática, ignorando o fato

    de que o militarismo era apenas uma variante do regime autoritário, podendo ser

    alterada a titularidade da autoridade visível do Estado: um regime de exceção

    (ditatorial) pode prescindir da oficialidade militar e ainda assim manter mecanismos e

    pautas excludentes. Por fim, ao observar no regime pós-64 o fator que desencadeou a

    acentuada “politização” da caserna, ignorou o fato de que a instituição castrense possuía

    um histórico de intervenções políticas e na política brasileira (se não a corporação, ao

    menos setores e correntes militares muito bem articulados com parcelas significativas

    da sociedade).

    Ademais – utilizando-se as próprias argumentações do autor - naquele momento

    seria inviável a exclusão ou limitação da participação da instituição militar nas relações

    de poder, qualquer que fosse a condução do processo de abertura, visto esta ser uma

    força política considerável, com uma credibilidade sem parâmetros, estando desde a

    instauração da república no centro de praticamente todas as decisões políticas. Dito de

    outra forma, não havia mecanismo jurídico-institucional – como ainda não há - que

    pudesse condenar a oficialidade militar aos limites da caserna, segregando-a dos debates

    políticos. Este controle civil sobre a caserna somente pôde ser acentuado na medida em

    que a conjuntura - e o próprio processo histórico – inviabilizaram formulações baseadas

    na polarização oriundas da Guerra-Fria (guerra revolucionária e subversão interna.)

    Nas sucessivas fases pelas quais passou o regime de exceção, compreendendo

    sua instalação, estruturação, consolidação e institucionalização, o debate doméstico

    mais acentuado esteve entre aqueles setores que, de um lado, defendiam uma linha

    cuidados; tal discussão, para ser minimamente plausível, demandaria a reunião de uma série de elementos (fontes) os quais no momento não estão entre as prioridades desta pesquisa. 35 BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. 2ª Edição. Tradução de Carlos Braga e Inácia Canelas. Lisboa: Editorial Presença: São Paulo: Martins Fontes, 1976, p. 39. A utilização de Braudel deve-se ao fato de que, tendo desenvolvido, entre outros temas, q