Sousa, maisa ferreira de. paisagens. monografia graduação 2011

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MAISA FERREIRA DE SOUSA PAISAGENS BRASÍLIA 2011

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MAISA FERREIRA DE SOUSA

PAISAGENS

BRASÍLIA 2011

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MAISA FERREIRA DE SOUSA

PAISAGENS

Trabalho de graduação apresentado à disciplina de Diplomação em Artes Plásticas do Curso de Artes Plásticas – Bacharelado, do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília. Orientador: Prof. Pedro de Andrade Alvim

BRASÍLIA 2011

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“Meu caro Desnoyers, você me pede versos para seu pequeno volume, versos sobre a

Natureza, não é? Sobre os bosques, os grandes carvalhos, a verdura, os insetos, -- o sol, sem dúvida? Mas você bem sabe que sou incapaz de me enternecer pelos vegetais, e que minha alma é rebelde a essa singular Religião nova, que terá sempre, me parece, para todo o ser

espiritual um não sei quê de shocking. Jamais acreditarei que a alma de Deus habita as plantas, e, mesmo que ele as habitasse, me importaria muito pouco com isso, e consideraria a

minha como de bem mais alto valor do que a daqueles legumes santificados. Eu mesmo sempre pensei que havia na Natureza, florescente e rejuvenescida, algo de aflitivo, duro,

cruel, -- um não sei quê que frisa a impudência. Diante da impossibilidade de satisfazer-lhe completamente segundo os termos estritos do programa, envio-lhe dois fragmentos poéticos,

que representam quase a soma de devaneios que me assaltam nas horas crepusculares. No fundo dos bosques, encerrados sob essas abóbadas semelhantes àquelas das sacristias e das

catedrais, penso em nossas surpreendentes cidades, e a prodigiosa música que flui no topo me parece a tradução das lamentações humanas.”

(Baudelaire)

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SUMÁRIO

I INTRODUÇÃO .......................................................................................................................4 II DESCRIÇÃO DO TRABALHO PRÁTICO ..........................................................................5 III NATUREZA, PAISAGEM E PINTURA .............................................................................6 IV PINTURA DE PAISAGEM - Tópicos do desenvolvimento histórico do gênero ................9

Representação factual..........................................................................................................9 Autonomia da paisagem ....................................................................................................11 Pintura ao ar livre ..............................................................................................................12 Luz e movimento...............................................................................................................15 Paisagem urbana................................................................................................................18

V ARTE E CIDADE ................................................................................................................21 VI CONCLUSÃO ....................................................................................................................23 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................................24 ANEXO – IMAGENS..............................................................................................................25

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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I INTRODUÇÃO

O seguinte texto tem como objetivo fundamentar a produção de uma série de pinturas

de paisagem desenvolvidas antes e durante a disciplina de Diplomação.

Ele se inicia com uma breve descrição do trabalho prático e segue para a

apresentação de conceitos que norteiam a pintura. Em seguida, utiliza (na maior parte de seu

desenvolvimento) tópicos de história da arte como pretexto para a sugestão de focos temáticos

que são associados à discussão de características do trabalho prático, seguindo assim uma

estrutura de diálogo entre os dois assuntos. Por fim, aborda algumas relações entre arte e

cidade chegando à pintura de paisagem urbana.

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II DESCRIÇÃO DO TRABALHO PRÁTICO

A pintura a óleo persiste como uma das técnicas mais utilizadas na produção de arte,

pois permite infinitas possibilidades de exploração, pela grande qualidade visual e capacidade

de permanência.1 Por esse motivo, essa técnica foi escolhida como base para a confecção dos

trabalhos apresentados, que consistem em uma série de telas de tamanhos e formatos variados,

preparadas com uma base de pigmento branco e adesivo vinílico e pintadas com tinta a óleo

[ver ANEXO, Figuras 1, 2, 3, 4 e 5].

A pintura de paisagem é o tema central deste trabalho. Os quadros, baseados em

vistas comuns aos habitantes do Distrito Federal, têm como motivo lugares públicos da vida

urbana, e enfatizam certos elementos pertencentes à infra-estrutura das cidades que são vistos

cotidianamente pelas pessoas sem despertar um interesse estético. O procedimento de pintura

é executado em campo, com a confecção de desenhos e estudos em aquarela [ver ANEXO,

Figuras 6, 7, 8, 9 e 10], além da pintura da própria tela no local, e em estúdio, alternadamente.

                                                            1 MAYER, R. Manual do Artista. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 179. Embora todas as outras técnicas sejam praticadas em virtude de certas vantagens que possuem sobre a pintura a óleo, esta última permanece como padrão porque a maioria doas pintores considera que suas vantagens excedem em valor seus defeitos, e que, em termos de seu alcance e das variações da qualidade ótica, ela ultrapassa a aquarela, a têmpera, o afresco, o acrílico e o pastel.

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III NATUREZA, PAISAGEM E PINTURA

A natureza se dava apenas por meio de um projeto de quadro, e nós [seres humanos] desenhávamos o visível com o auxílio de formas e de cores tomadas de empréstimo a nosso arsenal cultural [...] Desse modo, aquilo que olhávamos apaixonadamente como a manifestação absoluta da presença do mundo em torno de nós, a natureza, para a qual lançávamos olhares admirativos e quase religiosos, era em suma apenas a convergência em um único ponto de projetos que tinham atravessado a história, obras que se apoiavam umas às outras até formar esse conjunto coerente na diversidade e que conferiam ao espetáculo a evidência de uma natureza. (CAUQUELIN, 2007, p. 26)

A forma de ver o mundo natural – as coisas a nossa volta, os recortes que fazemos da

realidade – é influenciada, em boa parte, pela cultura visual. Não vemos as coisas

simplesmente como elas são, mas relacionamos, de alguma forma, com experiências passadas,

informações complementares, etc. Temos uma visão de mundo moldada culturalmente. Isso

afeta diretamente a nossa visão do ambiente que nos circunda, e o que entendemos por

paisagem. No caso da tradição ocidental, o surgimento do conceito de paisagem tem uma

relação recíproca com a forma como vemos a própria natureza, chegando ao ponto de às vezes

avaliarmos a própria imagem natural com base em parâmetros estipulados pela tradição da

produção de imagens paisagísticas.

Aquilo que um pintor investiga não é a natureza do mundo físico, mas a natureza de nossas reações a esse mundo. Ele não se preocupa com as causas, mas com o mecanismo de certos efeitos. Seu problema é de natureza psicológica – trata-se de conjurar uma imagem convincente apesar do fato de que nenhum tom isolado corresponde ao que chamamos de ‘realidade’. (GOMBRICH, 2007, p. 46)

Nesse contexto a pintura de paisagem é a seleção de um trecho (ou vários) da

realidade física em que nosso corpo está inserido, onde algumas características são

apreendidas, sintetizadas, manipuladas e traduzidas pelo pintor, para o meio pictórico, e

mesmo não havendo a intenção de representação literal do mundo, sua imagem pode ser

identificada como a representação de uma paisagem.

Sendo assim, a área de atuação do pintor não se dá no campo da investigação da

natureza física, mas sim de uma reação à percepção sensorial da realidade exterior natural e

artificial. O que está em questão quando se analisa uma pintura, é como ela é constituída a

partir percepção sensorial e da visão culturalmente constituída de mundo de seu autor ou

autora.

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De acordo com John Constable, “A arte agrada por recordar e não por enganar.”, 2

logo o intuito não é simular a natureza de uma forma verossímil – criando uma ilusão visual

de expansão de um ambiente – ou tomar seu lugar como componente da realidade, mas

sugerir uma natureza, indicar uma realidade, buscando um determinado efeito psicológico no

observador, usando como referência a natureza como tal e sua própria subjetividade,

provocando com isso uma reação por parte do observador. Bem como observa Baudelaire:

“Se tal conjunto de árvores, montanhas, águas e casa que chamamos de paisagem é belo, não

é por si mesmo, mas por mim, por minha própria graça, pela idéia ou sentimento que a ele

atribuo.” 3

Não há dúvidas de que temos aqui uma condição sine qua non: a janela e a moldura são “passagens” para a vedute, para ver paisagem ali onde, sem elas, haveria apenas... natureza [...] Porque a moldura corta e recorta, vence sozinha o infinito do mundo natural, faz recuar o excedente, a diversidade. O limite que impõe é indispensável à constituição de uma paisagem como tal. Sua lei rege a relação de nosso ponto de vista (singular, infinitesimal) com a “coisa” múltipla e monstruosa. (CAUQUELIN, 2007, p. 137)

Deste modo, a tela funciona como uma seleção de um trecho paralelo ao real. A

pintura de paisagem recorta e filtra culturalmente elementos da realidade exterior, de forma

que ela se torne apreensível pela sensibilidade.

Freqüentemente, no caso da paisagem, e às vezes apenas no caso de alguma obra, o que é dado como parte de um sistema radicalmente estranho a nosso funcionamento mental (a natureza física, o Outro) entra em acordo e ressoa nessa mesma construção: a natureza, pura exterioridade, passa a ser também pura interioridade. (CAUQUELIN, 2007, p. 124)

                                                            2 GOMBRICH, E. H. Arte e ilusão. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 33. O próprio Constable teve ocasião de tecer comentários sobre um expediente como esse. Descrevendo em carta a nova invenção conhecida como “diorama”, que estava sendo exibida na década de 1820, diz: “É, em parte, uma transparência; o espectador está numa câmara escura, e é muito agradável, e a ilusão é admirável. Escapa ao campo da arte, porque seu objeto é a impostura. A arte agrada por recordar e não por enganar. [...] Se Constable escrevesse isso hoje, provavelmente usaria a palavra “sugerir”. O artista não pode copiar um gramado banhado de sol, mas pode sugeri-lo. Exatamente como o fará, em um caso ou em outro, é segredo seu, mas as poderosas palavras que tornam a mágica possível são do conhecimento de todos os artistas: “relações”. 3 BAUDELAIRE, C. Salão de 1859: a paisagem. In: BAUDELAIRE, C.; RUSKIN, J. Paisagem Moderna. Porto Alegre: Sulina, 2010. p. 51. [...] É dizer suficientemente, penso, que todo o paisagista que não sabe traduzir um sentimento por um conjunto de matéria vegetal ou mineral não é um artista. Bem sei que a imaginação humana pode, por um esforço singular, conceber por um instante a natureza sem o homem, e toda a massa sugestiva espalhada no espaço, sem um contemplador para lhe extrair a comparação, a metáfora e a alegoria. É certo que toda essa ordem e toda essa alegoria não guardam menos qualidade inspiradora que ali foi providencialmente depositada: mas, nesse caso, carente de uma inteligência que ela pudesse inspirar, seria como se essa qualidade não existisse.

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Como não podemos nos isolar da realidade exterior – pois afinal de contas estamos

imersos nela, somos parte de sua constituição – isso dificulta uma reflexão mais elaborada

acerca do que nos circunda. De certo modo, a pintura pode propiciar esse distanciamento e

abre caminho para uma análise que transita entre realidade externa e a realidade interna,

utilizando como base a expressão visual. Acredito que essa possibilidade seja o que mais me

interessa na pintura de paisagem.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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IV PINTURA DE PAISAGEM - Tópicos do desenvolvimento histórico do gênero

Representação factual

No início da Idade Média a representação de paisagens passa a receber mais atenção

por parte dos pintores. Nesse período em geral, a carga simbólica da imagem prevalece sobre

seu caráter sensível o que faz com que elementos como árvores e flores possuam apenas

características básicas que permitam sua identificação, ou seja, a cor e a forma nesses

elementos aparecem de uma maneira sintética.4 Um padrão de vegetação era escolhido e

mantido para compor o cenário da pintura, às vezes diminuindo gradativamente o tamanho da

matriz, dando assim um efeito rudimentar de profundidade [ver ANEXO, Figura 11]. Isso

dava a impressão de que a imagem era composta da seleção de vários elementos, colados no

espaço imaginado por seu autor.

Uma estratégia semelhante a essa é utilizada algumas vezes em minhas pinturas. Meu

procedimento de construção parte de alguns objetos e características observados em outros

lugares (que não o representado), que são incluídos nas pinturas ou transformados em padrões

de composição, como por exemplo, silhuetas de árvores, cores de grama, e textura de

concreto. Isso torna a pintura uma espécie de colagem de informações feita em alternância

com a observação em campo, como acontece com as caixas d’água do quadro

“Estacionamento” [ver ANEXO, Figura 5], que foram observadas em outro local e depois

incluídas no trabalho.

Por volta do séc. XV, no norte europeu, como a dinâmica de iluminação dos objetos

já é aplicada à paisagem, a apresentação da pintura passa por uma mudança de foco, do

simbólico para o factual, dando espaço à observação do natural (estudos em campo),

chegando a tal nível de similitude com o modelo que o lugar específico utilizado como motivo

se torna identificável [ver ANEXO, Figura 12]. (CLARK, K., 1961)

Em minha produção isso ocorre em praticamente todos os quadros, uma vez que eles

conferem bastante importância ao uso de observações de campo, seja por meio de desenhos e

estudos em aquarela [ver ANEXO, Figuras 9 e 10] ou pela própria execução da pintura no

                                                             4 CLARK, K. Landscape into art. Boston: Beacon Press, 1961. p. 2. All art is to some degree symbolic, and the readiness with which we accepted symbols as real depends, to a certain extent, on familiarity. But we must admit that the symbols by which early medieval art acknowledged the existence of natural objects bore unusually little relation to their actual appearance

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local.

No sul da Europa, ainda por volta do séc. XV, a busca de uma representação

realística da paisagem era feita por outro caminho: pela aplicação da perspectiva geométrica,

que dá mais ênfase ao equilíbrio formal da composição, ao invés da observação direta, que em

geral tende a enfatizar o uso da cor. (CLARK, K., 1961)

O resultado da diferença entre esses dois procedimentos – representação literal de

uma local através da ênfase na percepção da luz ou da ênfase na construção do desenho

utilizando a perspectiva geométrica – é perceptível em meu trabalho quando comparo os

quadros diurnos (que tiveram um maior tempo de execução em campo) [ver ANEXO, Figuras

1, 4 e 5] aos noturnos (que foram executados somente em estúdio com o uso de apenas

algumas anotações feitas em campo) [ver ANEXO, Figuras 2 e 3]. Nos primeiros o uso da cor

é um pouco mais complexo e os limites dos objetos se fundem mais, enquanto nos segundos a

ilusão de volume é mais utilizada e se observa maior definição do desenho, explicitando o

processo de construção.

Thus perspective achieved certezze. But there was one element in landscape which could not be brought under control: the sky. The continual flux of change in the sky can only be suggested from memory, not determined by mathematics: and Brunellesco, perfectly recognizing the limitations of his own approach, did not attempt to paint the sky behind his piazza, but put instead a piece of polished silver. (CLARK, 1961, p. 21)

Essa limitação da perspectiva geométrica na representação do céu impulsionou a

aplicação da perspectiva atmosférica, onde a mesma lógica matemática de diminuição dos

elementos do desenho era utilizada para definir o grau de saturação de cor e definição de

contorno entre objetos em primeiro plano e em último plano, buscando com isso uma ilusão

de profundidade.

Pude experienciar essa dificuldade em representar o céu – devido a seu “contínuo

fluxo de mudança” – durante a execução das paisagens noturnas, já que não obtive uma forma

segura de levá-las a campo para pintar o céu observando-o diretamente, assim como foi feito

com as diurnas. Dessa forma, (assim como os paisagistas italianos dessa época [ver ANEXO,

Figura 13] os quadros acabaram com uma cor de céu mais homogênea enquanto os outros são

mais ricos nesse aspecto.

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Autonomia da paisagem

Foi só a partir dos séculos XIV-XV, e principalmente no século XVI, que novamente surgiram temas mais específicos na pintura – vale dizer, gêneros: sucessivamente, o retrato (sobretudo imagens de doadores), a natureza-morta ( com as “vaidades” evocando o caráter efêmero dos prazeres), a paisagem (em Veneza, no início do século XVI) e, por último, a “pintura de gênero”, isto é, a evocação da vida cotidiana, descrição portadora ou não de uma dimensão moral. (LICHTENSTEIN, 2006, p. 09)

Assim que a pintura de paisagem se torna mais autônoma, aumenta a quantidade de

quadros onde a paisagem aparece sem a presença de uma narrativa ou de figuras humanas, ou

mesmo quando esses dois elementos estão presentes, a materialidade da pintura e seu poder de

representação se sobrepõem a eles.

Foi uma mudança deveras importante. Até os gregos, apesar de seu amor à natureza, tinham pintado paisagens somente como fundo de suas cenas bucólicas. Na Idade Média, uma pintura que não ilustrasse claramente um tema, fosse sagrado ou profano, era quase inconcebível. Só quando a habilidade do pintor começou a merecer por si mesma o interesse das pessoas, é que se tornou possível vender um quadro isento de qualquer outro propósito que não fosse registrar o deleite pessoal do artista ante um belo trecho de paisagem. (GOMBRICH, 2000, p. 355-356)

Esse interesse pela “habilidade do pintor” direcionou a pintura para um caminho

onde a percepção individual do autor obtém maior relevância, chegando posteriormente ao

patamar de motivação central da pintura.

Os trabalhos em questão se valem dessa visão da pintura de paisagem como algo

independente – com um fim em si mesmo – sem que seja necessário enfatizar seu caráter

narrativo, embora ele atue como elemento importante em sua constituição, abrindo espaço

para outros aspectos da pintura, como seus processos de produção e seus resultados.

A pintura holandesa desse período demonstra bem essa nova condição da pintura de

paisagem. Foi atribuída à impressão geral da paisagem o status de objeto principal da pintura.

Outro aspecto interessante é o poder de dramaticidade de seus céus,5 como percebido nos

trabalhos de Ruysdael [ver ANEXO, Figura 14], que apresenta paisagens onde há uma grande

área de céu ricamente trabalhada em termos de luz e variações de texturas que sugerem

                                                            5 CLARK, K. Landscape into art. Boston: Beacon Press, 1961. p. 31. ...and it was the Sky which inspired those Dutch painters who first made an impression of landscape their whole subject. Holland is a country of a great skies and it was through the influence of what Constable called ‘the chief organ of sentiment’ that her painters transformed the mannered picturesque of Velvet Breughel and Momper into a true school of landscape painting

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movimento.

Assim, voltando a questão da dificuldade de representação do céu devido a seu

estado de constante movimento, dentro de minhas experiências optei pelo uso de alguns

processos. Comecei pintando em estúdio – diretamente na tela – áreas de cores básicas que se

aproximam das cores comuns do céu do Distrito Federal, que serviram como base para a

primeira sessão em campo – onde o céu foi executado de uma só vez –, assim como nos

trabalhos Paisagem I, II e III [ver ANEXO, Figuras 15, 1 e 16]. Mas mesmo mantendo certa

rapidez, é praticamente impossível conseguir manter a disposição dos elementos

(principalmente das nuvens) que foram observados no primeiro dia de trabalho em campo. O

interessante é que isso força a acrescentar elementos imaginativos à composição, a emendar

pedaços de nuvens, supor uma luz em algum local do qual você tem apenas uma vaga

lembrança, etc. A falta de uniformidade ou padrão no que está sendo observado favorece a

experimentação, o que, de acordo com minha experiência, ocorre menos quando se trata de

representar objetos com formas muito definidas, pois sua clareza de limites é mais impositiva,

o que acaba induzindo a um desenho igualmente mais definido e mais fiel ao modelo.

A pintura Estacionamento [ver ANEXO, Figura 5], – na qual uma porção do céu foi

iniciada em estúdio como as outras – tem, possivelmente, maior identificação com a obra de

Ruysdael. Nela, pintei uma grande faixa de céu e, ao invés de fazer uma área de cor plana,

esbocei algumas nuvens com poucos padrões de cor, na primeira sessão. Após a secagem,

levei-a a campo para uma execução rápida (pois uma chuva estava a caminho), onde observei

a diferença entre uma parte de céu mais calma e a invasão das nuvens de chuva.

Logo, a pintura do céu serviu como base para a exploração de informações captadas

pela memória, que conseqüentemente sofrem influência da imaginação, não representando

apenas a paisagem de forma objetiva, mas também considerando uma visão subjetiva da

exterioridade.

Pintura ao ar livre

Nos séculos XVIII e XIX houve uma expansão da prática da pintura em campo

devido à criação da bisnaga de tinta, o que permitiu que os pintores pudessem executar

estudos ou até mesmo as próprias paisagens diretamente no local escolhido. Isso despertou

um questionamento sobre o que teria mais valor como pintura, conforme Kenneth Clark

(1961, p. 88-89): aquela executada completamente em campo, que reproduz com maior

fidelidade a sensação visual proporcionada pela observação do local ou a paisagem ideal, feita

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em estúdio, levando em consideração critérios da beleza clássica em sua construção?

A primeira opção, já ao final do séc. XIX foi levada ao extremo pelo grupo

conhecido como impressionista.

It was Monet, the real inventor of impressionism, who alone, had the courage to push its doctrines through to their conclusion. Not content with the sparkle of this Riviera scenes he undertook to prove that the object painted was of no importance, the sensation of light was the only true subject. (CLARK, K., 1961, p. 94)

Essa vertente – onde a importância da sensação luminosa se transforma no único e

verdadeiro motivo da pintura, e conseqüentemente o objeto pintado perde seu valor simbólico

– conduziu a uma interpretação onde o pintor funciona quase como um mero instrumento

utilizado apenas para transpor a “cor-luz” para a “cor-pigmento”, anulando teoricamente

qualquer traço psicológico em seu trabalho.

Infelizmente, esse objetivo é muito restritivo em vista das possibilidades que a

pintura oferece.

Art is concerned with our whole being -- our knowledge, our memories, our associations. To confine painting to purely visual sensations is to touch only de surface of our spirits. Perhaps, in the end, the idealist doctrine is right, we are more impressed by concepts than by sensations, as any child's drawing will show. (CLARK, K., 1961, p. 96)

A indagação de Clark nos remete à segunda opção, que é muito bem exemplificada

pela paisagem acadêmica. Anterior ao impressionismo, por muito tempo referencia dominante

na produção paisagística, tem como principal característica a idealização da pintura, buscando

satisfazer parâmetros da beleza clássica como equilíbrio, proporção, suavidade, harmonia de

cores, etc. Sua construção se dava pela junção de estudos individuais do natural, combinados

em estúdio de acordo com regras tradicionais de composição, abordando principalmente

narrativas bíblicas, históricas e arcádicas. Um dos modelos de referência em relação a esse

tipo de pintura são as paisagens de Claude Gellée [ver ANEXO, Figura 17], também

conhecido como Claude Lorrain (oriundo da Lorena). (CLARK. K., 1961), que foi combatido

principalmente pelos pintores dos séculos XVIII e XVX, como Alexander Cozens:

Cozens tinha-se cansado das paisagens idílicas, à maneira de Claude Lorrain, que eram ao tempo admiradas. Segundo ele, os artistas que as usavam como modelo apenas poderiam produzir variações estereotipadas de um tema já batido. Por outro lado, o estudo direto da Natureza (embora importante) não

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podia constituir um novo ponto de partida, porque não oferecia a qualidade imaginativa e poética que era, pra Cozens, a essência da pintura paisagística. (JANSON, 1992, p. 593)

Essa dualidade de abordagens6 gerou uma reação por parte daqueles que acreditavam

que o caráter subjetivo da paisagem era tão importante quanto sua verossimilhança e que para

a paisagem ter alguma beleza era necessário que alguém lhe atribuísse isso, sendo obrigação

do paisagista traduzir o mundo físico através do sentimento humano (retornando assim ao

discurso de Baudelaire na nota número 3).

Com isso, temos nesse período o que ficou conhecido como paisagem romântica.

Assim como nas paisagens de Rembrandt [ver ANEXO, Figura 18] e Rubens [ver ANEXO,

Figura 19], – onde, apesar da fidelidade e variedade na representação dos elementos naturais,

o que mais chama atenção são o nível de dramaticidade e a liberdade que ambos têm em criar

associações entre os elementos naturais e as emoções humanas (CLARK. K.,1961, p. 31) – os

românticos valorizavam o caráter imaginativo na representação da natureza.

Entretanto a consciência da subjetividade na representação pictórica da natureza é

bem mais antiga. Leonardo da Vinci em seu Tratado da Pintura sugeria como técnica para

“vivificar o espírito de invenção” nas composições de paisagens, olhar para paredes

manchadas pela umidade ou pedras com tonalidades diferentes onde seria possível ver uma

semelhança com paisagens “divinas” com todo o tipo de elemento natural, como montanhas e

vegetação. Mas ele acrescenta que, para transformar isso em imagem primeiro é preciso

conhecer bem todas as formas que “se deseja descrever”. Essa idéia demonstra bem a atenção

dada para a interação entre a razão e a imaginação na criação artística.7

Assim, voltando ao séc. XVIII, um pintor que explorou esse mesmo assunto, mas de

outro modo, na produção de paisagens foi o já mencionado Alexander Cozens em sua

publicação A New Method of Assisting the Invention in Drawning Original Compositions of

                                                            6 Mesmo antes de se chegar ao extremo impressionista de observação em campo, que apesar de enfatizar a busca de objetividade na representação, também afirma a sensação individual do pintor. 7 CLARK, K. Landscape into art. Boston: Beacon Press, 1961. p. 45-46. How highly Leonardo valued a free play of imagination is show in the most famous passage in his Treatise on Painting, where he says that he will not refrain ‘from including among these precepts a new and speculative idea, which although it may seem trivial and almost laughable, is none the less of great value in quickening the spirit of the invention. It is this: that you should look at certain walls stained with damp or at stones of uneven colour. If you have to invent some setting you will be able to see in these the likeness of divine landscapes, adorned with mountains, ruins, rocks, woods, great plains, hills and valleys in great variety; and then again you will see there battles and strange figures in violent action, expressions of faces and clothes and an infinity of things which you will be able to reduce to their complete and proper form… But’ he adds, ‘first be sure know all the members of all the things you wish to depict, both the members of animal and the members of landscapes, that is to say, rocks, plants and so forth.’

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Landscape [ver ANEXO, Figura 20], onde ele propunha que o início da composição de uma

paisagem deveria ser feita com a aplicação de manchas aleatórias que, de acordo com a

imaginação do artista, iam se tornando base para o desenho de elementos da paisagem.

(JANSON, 1992, p. 593)

Relacionando com meu trabalho, esse processo está presente em alguns pontos. Nos

quadros Parada e Esquina ver ANEXO, Figura 2 e 3], o desenho principal foi feito de forma

objetiva com anotações de observação em campo e (no caso desses e do Paisagem II [ver

ANEXO, Figura 1] de consulta a fotografias dos locais. Contudo, a escolha de cores, a

iluminação noturna (feita por postes), a textura do concreto e do asfalto, a figura humana e o

efeito de água (que aparecem apenas no Parada) foram elementos executados somente em

estúdio, com base em recordações de observações da noite e da suposição de como essas

coisas funcionariam numa situação noturna. Enquanto nos quadros Paisagem II, Tapume [ver

ANEXO, Figura 4] e Estacionamento [ver ANEXO, Figura 5], além do desenho executado

em campo, as cores principais também foram observadas diretamente do natural, porém as

texturas do asfalto, do concreto, da madeira e da grama foram também recordadas e

imaginadas.

Além disso, bem como antes de iniciar a pintura de cada tela, havia uma hipótese de

trabalho que ao longo do processo sofreu alterações chegando a um resultado que não

necessariamente era compatível com a primeira intenção. Portanto, todos os quadros passaram

por vários ajustes posteriores até atingirem um ponto de realização onde consegui algum tipo

de unidade.

Durante esse processo de produção, em alguns pontos, me deparei com a

representação de elementos como as árvores, a grama e, principalmente, os céus, onde há a

formação de manchas que se transformam em objetos identificáveis ou voltam a serem

manchas de acordo com o andamento da pintura. Neles, inclusive na fase de observação do

natural, o limite entre o reconhecível e o confuso é realmente muito tênue.

Luz e movimento

Once more light lifts these facts on to a new plane of reality; but here light has a new character. It is no longer static and saturating as in Bellini. It is a continual movement. (CLARK, K., 1961, p. 32)

A luz em “movimento contínuo” foi outro aspecto interessante retomado pelos

românticos: o tratamento da luz não mais como algo estático e localizado, mas circulando por

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toda a composição. Esse ponto já havia sido tocado por outros pintores mais antigos, como

Rembrandt [ver ANEXO, Figura 18], que costumava representar o movimento da vegetação e

o reflexo da água8, e Ruysdael [ver ANEXO, Figura 14], que trabalhava esses efeitos em suas

nuvens e céus turbulentos.9 Mas o séc. XIX conheceu dois pintores que tornaram o

movimento, de fato, o tema central de suas pinturas. John Constable [ver ANEXO, Figura 21],

que se destacou por perseguir essa sensação, assim como William Turner [ver ANEXO,

Figura 22], sintetizou bem esse conceito: ‘Remember light and shadow never stand still’

(CLARK, K., 1967, p. 32). Os trabalhos de Constable se baseavam em uma representação

naturalista de mundo (Ibidem, 1967, p. 74), utilizando vários estudos de campo e buscando

além da fidelidade com o local representado, o compromisso com a impressão total da

pintura. Enquanto os de Turner suprimiam elementos identificáveis em prol da dramaticidade

do efeito e da percepção do todo, e apesar de seus constates estudos do natural, seus trabalhos

eram em maioria realizados de memória: ele tinha a capacidade de encontrar um “equivalente

gráfico para cada fenômeno” (Ibidem, 1967, p. 99).

Em minhas paisagens diurnas acredito que há uma busca pelo movimento da luz,

talvez não com um fluxo tão extremo e confuso como em Turner, mas, de alguma maneira,

elas se aproximam das motivações estéticas de Constable. Tal movimento é percebido com

mais evidência nas nuvens, nos gramados, na vegetação e na luzes dos postes.

Com a importância atribuída ao movimento, outro ponto de discussão vem à tona: a

definição do grau de acabamento dado às pinturas.10 Na pintura de paisagem, esse ponto é

especialmente relevante, uma vez que a ênfase no contorno e na padronização do contraste e

das pinceladas de cor costuma acarretar em um endurecimento da pintura, embora seu

extremo oposto também não me pareça tão atraente, pois pode se chegar a um nível tão alto

                                                             8 CLARK, K. Landscape into art. Boston: Beacon Press, 1961. p. 31. And Rembrandt loved the facts of landscape: he had an appetite for the movement of rushes, the reflection of canals, the shadows on old mills, as voracious as that of Constable 9 CLARK, K. Landscape into art. Boston: Beacon Press, 1961. p. 75. … Constable had certainly seen Dutch landscapes in the local collections. His feeling for moving light, shadows cast by clouds in a large windy sky, must have been derived from, Ruysdael, as well as from his own observations.

10 BAUDELAIRE, C. Salão de 1845: paisagens. In: BAUDELAIRE, C.; RUSKIN, J. Paisagem Moderna. Porto Alegre: Sulina, 2010. p. 30. Brava gente essa que ignora a princípio que uma obra de gênio, ou, se se prefere, uma obra da alma, em que tudo é bem visto, bem observado, bem compreendido, bem imaginado, é sempre muito bem executada, quando o é suficientemente. Em seguida, que há uma grande diferença entre uma parte feita e uma parte acabada, que em geral o que é feito não é acabado, e que uma coisa muito acabada não pode não ser de modo algum feita, que o valor de um toque espiritual, importante e bem colocado é enorme...etc...etc...de onde se segue que Corot pinta como os grandes mestres.

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de fragmentação que a pintura recai num grau extremo de generalização ou ambigüidade.

Acredito que um dos maiores desafios no processo de pintura é saber quando parar a

pintura de um quadro. Com esses trabalhos, percebi que as paisagens noturnas foram mais

fáceis para finalizar, pela menor quantidade de elementos (por conta da iluminação escassa) e

pela limitação de fontes de informação (por terem sido executadas em estúdio), enquanto nas

diurnas foi bem mais difícil fazer uma seleção de objetos para representar e não se deixar

levar pelo desejo de exceder na quantidade de detalhes, texturas e gradações de cor, caso

contrário acarretaria a perda da impressão de conjunto.

De aquí, tal vez, la resistencia de Constable a dejar de trabajar y dar por concluidos sus cuadros – solía considerarlos como <<abandonados>> más que como <<terminados>> --, no porque fuera un <<perfeccionista>>, sino porque, en um mundo en constante <<fluir>>, precisaban de constantes reajustes. (HONOUR, 2004, p. 93)

Outro ponto muito interessante levantado pela escola naturalista do séc XIX é a

busca de uma unidade de atmosfera dentro da composição, considerando o quadro como um

todo e não tratando cada objeto representado como um elemento destacado (CLARK, K.,

1967, p. 90). Ou seja, sempre prestando atenção à relação de uma parte com a outra, de uma

cor com o restante das cores dentro da imagem, lembrando que por mais que algo funcione

perfeitamente bem na paisagem natural, isso não necessariamente se aplica à pintura, afinal de

contas ela é uma imagem autônoma e artificial, portanto não deve ser submetida a esse tipo de

limitação, como sugere a definição de Cézanne, de que a pintura é como uma harmonia

paralela a natureza. (CLARK, K., 1967, p. 124)

Ao final do séc. XIX, influenciado em parte pela pintura de Constable, surge dentro

da vertente realista francesa um grupo que aborda temas rurais (camponeses) que ficou

conhecido como escola de Barbizon. Um dos pintores dessa linha que se destacou em relação

à paisagem foi Camille Corot [ver ANEXO, Figura 23] que, apesar de seguir a tendência da

escola naturalista de paisagem como Constable, associa seus estudos em campo ao interesse

pelo equilíbrio estático da paisagem acadêmica, chegando á um nível de seleção de elementos

e simplificação bastante elaborado. Seu poder de síntese da paisagem também se refletia na

escolha das cores, dando ao conjunto da pintura um caráter de simplicidade e equilíbrio.

(CLARK, K., 1967, p.81 e 84)

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Paisagem urbana

A escolha de fundamentar a construção da paisagem na redução a alguns elementos

também é observada nos trabalhos de James Whistler [ver ANEXO, Figura 24] e,

posteriormente, Edward Hopper [ver ANEXO, Figura 25]. Ambos se dedicaram à pintura de

paisagens urbanas, mas em Whistler, a simplicidade do desenho e da escolha das cores se dá

de forma fluida, a pintura explora efeitos de luz na água e na neblina, conseguindo um

equilíbrio tonal bastante delicado, principalmente em seus quadros noturnos, onde as formas

dos objetos praticamente se dissipam.

O que interessou nos trabalhos de Whistler para a minha produção, foi a maneira

como ele trata o tema da noite na cidade. Uma das coisas que constatei durante a execução de

meus quadros noturnos, foi que a luz artificial (na ausência da luz natural) incidindo nos

objetos de infra-estrutura urbana, provoca um efeito de redução do espectro de cores, e, como

isso diminui a quantidade de objetos perceptíveis, dando uma impressão de esvaziamento do

espaço que é muito bem explorada nos Noturnos de Whistler.

Já em Hopper, essa economia de elementos aparece de uma forma sólida e focada na

arquitetura urbana. Ele explora bastante a luz projetada, criando campos chapados de cor que

conduzem toda a composição, chegando a um nível de disciplina formal que, em alguns casos

remete à abstração geométrica. (JANSON, 1992, p. 718)

Essa solidez, junto à horizontalidade também observada em Hopper, são aspectos

com os quais os meus trabalhos se identificam, principalmente os três mais antigos (Paisagem

II, Parada e Esquina), neles as linhas principais são bem definidas e existe uma certa

estabilidade, com o uso de grandes horizontais e a subordinação dos demais elementos a elas.

Já nos mais recentes (Tapume e Estacionamento) a composição se tornou mais instável, com o

uso de diagonais e menos definição nos limites entre um objeto e outro.

Constable dijo de uma perspectiva de los downs de Sussex que era <<tal vez el paisaje natural más grandioso e impressionante del mundo, y em consecuencia, el menos indicado para retratarlo em um cuadro>>. Creía que la <<misión de um pintor no es competir com la naturaleza, y reproducir esa escena (un valle de 50 millas de longitud lleno de imágenes) em um lienzo de unas pocas pulgadas, sino sacar algo de la nada, objetivo que casi le obliga a actuar poéticamente>>. (HONOUR, 2004, p. 71)

Portanto, além da síntese dos elementos da paisagem, Hopper se aproxima de

Constable, nos parâmetros de escolha de seus temas. Seus cenários não apresentam

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naturalmente um atrativo estético, mas a ação do pintor sobre a tela e como ele interpreta

esses locais comuns é que torna a pintura interessante. Na maior parte de sua obra, ele discute

a relação do indivíduo com o espaço urbano, compondo vistas arquitetônicas ou interiores

com a presença apenas de uma ou poucas figuras humanas, enfatizando o sentimento

opressivo de isolamento da vida na cidade.

O esvaziamento da personalidade de suas figuras transfere a verdadeira emoção

humana para o cenário que as circunda, atribuindo dramaticidade a representação do espaço.

Solitárias, elas observam o ambiente de uma forma apática, o que lembra os trabalhos do

românico Caspar David Friedrich [ver ANEXO, Figura 26]. Mas enquanto nos quadros de

Friedrich a relação da figura com a paisagem é de contemplação da natureza e reflexão sobre

seu caráter sublime, em Hopper as figuras “olham para o nada”, a tensão vem da

insensibilidade ao espaço causadas pela vida nas grandes cidades.

Não deve haver mais vida cotidiana alguma; ou melhor, ela deve se converter numa questão de consumo, em oposição à “indústria” – entendida esta ultima palavra no sentido amplo e peculiar dos realizadores do censo de 1866. (CLARK, T. J., 2004, p. 117)

Essa relação com o espaço é um dos pontos que mais me instiga em representar

paisagens urbanas. A escolha de locais onde nada chama a atenção do olhar também está

presente em minhas pinturas, mas as figuras humanas estão ausentes em praticamente todos

os quadros, o que acaba enfatizando os elementos de infra-estrutura urbana em oposição ao

aos elementos naturais. Deste modo, a composição apresenta em várias partes uma tensão

entre elementos artificiais (construções humanas) e elementos naturais (vegetação, atmosfera,

etc.). Considerados em um contexto de cidade, esses elementos naturais não são tão naturais

assim, pois na maioria das vezes a vegetação nas cidades, é selecionada e disposta de forma

intencional pelo ser humano, apresentando também, certo nível de artificialidade.

Isso pode ser observado em meus quadros, pois eles usam como referencia lugares

do Distrito Federal - DF, que – pelo fato da maioria de suas cidades seguir um projeto

urbanístico recente – têm padrões de infra-estrutura urbana muito bem definidos e ordenados,

onde a tensão entre natural e artificial é gritante. Assim como na fala de T. J. Clark, ao se

referir a mudanças feitas na estrutura urbana de Paris no séc. XIX:

...a monotonia, a mesmice, a regularidade dos novos prédios e ruas – [suas representações] foram consideradas apropriadas à capital por trinta anos ou mais antes de o barão chegar ao poder. (CLARK, T. J., 2004, p. 69)

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Outra influencia derivada do DF são as vistas predominantemente horizontais, onde,

por causa do relevo de planalto e, novamente, do projeto urbanístico das cidades – que

restringe a altura de construção de edifícios – temos paisagens amplas e achatadas. O espaço

urbano, de modo geral, tem um grande nível de ocupação humana, afinal, ele é em principio

uma aglomeração de pessoas em um lugar específico. Contrariando isso, as cidades do DF

tendem a apresentar esse tipo de agrupamento em apenas alguns pontos em ocasiões

específicas. Mas, mesmo sem a presença física de seres humanos, podemos inferir essa

ocupação pelos elementos indicadores da presença. Nos trabalhos desenvolvidos, isso é

sugerido pelas edificações e pelos elementos de infra-estrutura urbana, como pavimentação,

postes, manilhas, etc.

Uma, pergunta natural a se fazer é a seguinte: será que uma pintura pode metaforizar o corpo sem representá-lo? Isto é sem fazer dele o objeto central da representação? [...] A reposta é sim, isso é possível. O fato de que uma pintura pode metaforizar o corpo sem representá-lo deriva do que eu afirmei no início dessa palestra: não há necessidade de uma relação preexistente, embora ela possa existir entre o que a pintura representa e o que ela metaforiza [...] E é exatamente isso que veremos nas próximas pinturas que examinarei, pois são casos que metaforizam o corpo humano sem representá-lo. As obras metaforizam o corpo humano e representam algo que há muito tempo é evocado na metáfora do corpo. Trata-se de quadros que representam a arquitetura ou paisagens com edificação. O que direi sobre elas, e sobre como um tipo de significado ajuda o outro, também vale para algumas paisagens. (WOLLHEIM, 2002, p. 336)

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V ARTE E CIDADE

Como atividade ligada desde as mais remotas origens (da primeira oposição do ferreiro ao guerreiro, ou, recuando um pouco mais no tempo, do cultivador ao caçador) à burguesia, a arte aparece como uma atividade tipicamente urbana. E não apenas inerente, mas constitutiva da cidade, que de fato, foi considerada durante muito tempo (até a atual degradação do fenômeno urbano, devido justamente a renegação e abjuração, por parte da burguesia capitalista, do historicismo burguês) a obra de arte por antonomásia11. (ARGAN, 1995, p. 43)

Existe uma influência mútua: tanto a cidade é pensada, estruturada e composta com

base em elementos vindos da arte, – como planejamento urbanístico, construções

arquitetônicas e o próprio produto de arte – quanto o processo de criação artística é

influenciado pelo espaço urbano – servindo como motivo de representação, tomando

organizações típicas da malha urbana como referência para a estrutura do trabalho,

funcionando como suporte para a apresentação dos objetos de arte e, em alguns casos, sendo a

própria cidade utilizada como elemento constitutivo da obra.

Um dos motivos para essa troca dinâmica entre arte e cidade é a vivência em espaços

urbanos, o que interfere diretamente em nosso acervo imagético mental. Segundo a

Organização das Nações Unidas (ONU), em 2007 o mundo ultrapassou a faixa de 50% de

pessoas vivendo em cidades, e no caso da América Latina, esse número sobe para 75%.12

É evidente que, se nove décimos da nossa existência transcorrem na cidade, a cidade é a fonte de nove décimos das imagens sedimentadas em diversos níveis da nossa memória. Essas imagens podem ser visuais ou auditivas e, como todas as imagens, podem ser mnemônicas, perceptivas, eidéticas. Cada um de nós, em seus itinerários urbanos diários, deixa trabalhar a memória e a imaginação: anota as mínimas mudanças, a nova pintura de uma fachada, o novo letreiro de uma loja; curioso com as mudanças em andamento olhará pelas frestas de um tapume para ver o que estão fazendo do outro lado... (CAUQUELIN, 2007, p. 150)

Como habitantes de cidades, nós percorremos o espaço urbano diariamente e

dificilmente temos um olhar atento para suas peculiaridades. Somente quando saímos dele, e

                                                             11 FERREIRA, A. B. de H. (Ed.). Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1945, p. 108. Definição de Antonomásia: Substituição de um nome próprio por um comum ou uma perífrase: o cisne de Mântua (Virgilio); [...] ou vice-versa: um Nero (um homem cruel); [...] 12 Site da Rádio ONU (Organização das Nações Unidas): http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/detail/155399.html

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vamos para outro espaço, uma área rural, ou uma cidade diferente, é que temos um

distanciamento suficiente para analisá-lo, e na maioria dos casos, o fazemos por meio de

comparação com o outro lugar em que nos encontramos. Com isso percebemos como a

atmosfera da cidade é diferente, como o céu muda de cor, como as noites são mais claras e os

dias mais escuros, como o cinza do concreto interfere em nossa visão geral, como a vegetação

artificialmente distribuída tenta simular um ambiente natural, como o linear campo de grama,

que na verdade é uma espécie de tapete urbano, se alia as calçadas, de forma que tudo fique

limpo e geometricamente organizado, guiando o fluxo dos pedestres, e impondo caminhos

específicos para o trajeto humano na cidade.

Nesse contexto, a pintura de paisagem urbana cria uma situação, onde a

representação do espaço se apresente de forma que a observação e a reflexão sejam

facilitadas, pois se cria uma imagem estática, em contraste ao intenso movimento urbano.

Logo, espaços que na visão diária da cidade não possuem quase nenhum interesse visual,

apropriados pela pintura, ganham uma nova posição diante do observador, transformando a

visão cotidiana do espaço da cidade em uma imagem que desperta interesse estético.

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VI CONCLUSÃO

O desenvolvimento desse trabalho me proporcionou uma reflexão sobre a pintura de

paisagem dentro do contexto artístico. Através do estudo de questões que se apresentaram

durante a história desse gênero, pude pensar sobre pontos que estão presentes em minha

prática de pintura, e com isso desenvolver um trabalho de forma mais consciente.

Alguns desses pontos são: o distanciamento que a pintura provoca, facilitando assim

uma reflexão sobre a realidade externa e interna; o potencial de criação imaginativa da pintura

em campo devido ao seu constante movimento; a discussão sobre a finalização da pintura em

relação à unidade; a autonomia da imagem pintada e a relação de influencia mútua entre a arte

e a cidade, sendo a pintura objeto que transforma a visão cotidiana do espaço em uma imagem

que desperta interesse estético.

A pesquisa realizada durante as matérias finais do curso de Artes Plásticas

contribuíram de forma efetiva para a ampliação e inicio do amadurecimento de minhas idéias

acerca da arte. Certamente todo esse percurso contribuirá de forma positiva para o

desenvolvimento de meus trabalhos futuros.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARGAN, G. C. História da arte como história da cidade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. BAUDELAIRE, C. Os dois crepúsculos. In: BAUDELAIRE, C.; RUSKIN, J. Paisagem Moderna. Porto Alegre: Sulina, 2010. p. 46. BAUDELAIRE, C. Salão de 1845: paisagens. In: BAUDELAIRE, C.; RUSKIN, J. Paisagem Moderna. Porto Alegre: Sulina, 2010. p. 30. BAUDELAIRE, C. Salão de 1859: a paisagem. In: BAUDELAIRE, C.; RUSKIN, J. Paisagem Moderna. Porto Alegre: Sulina, 2010. p. 51. CAUQUELIN, A. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007. CLARK, K. Landscape into art. Boston: Beacon Press, 1961. CLARK, T. J. Pintura da vida moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. CRAVEN, W. American Art: history and culture. Londres: Laurence King Publishing Ltd., 2003. FERREIRA, A. B. de H. (Ed.). Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1975. GOMBRICH, E. H. Arte e ilusão. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. GOMBRICH, E. H. A história da arte. 16. ed. [s.l.]: LTC, 2000. HONOUR, H.; FORMA, A. El romanticismo. Salamanca: Alianza Editorial, 2004. JANSON, H. W. História da arte. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992. LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). A pintura: textos essenciais. São Paulo: Ed. 34, 2006. (Vol. 10: os gêneros pictóricos). MAYER, R. Manual do artista. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. SARAMAGO, J. Manual de pintura e caligrafia. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. WOLLHEIM, R. A pintura como arte. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.  

 

 

 

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ANEXO – IMAGENS 1. Paisagem II, Maisa Ferreira, 2009, 65x130 cm

   2. Parada, Maisa Ferreira, 2010, 60x80 cm

   

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3. Esquina, Maisa Ferreira, 2010, 60x50 cm

   4. Tapume, Maisa Ferreira, 2010, 40x50 cm

          

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5. Estacionamento, Maisa Ferreira, 2010, 50x80 cm

   6. Estudo para a pintura Paisagem II, Maisa Ferreira, 2009

       

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7. Estudo para a pintura Paisagem II, Maisa Ferreira, 2009

   8. Estudo para a pintura Parada, Maisa Ferreira, 2010

 

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9. Estudo para a pintura Estacionamento, Maisa Ferreira, 2010

   10. Estudo para a pintura Estacionamento, Maisa Ferreira, 2010

           

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11. Unknown Florentine (c. 1410), A Tebaida Fonte: http://www.wga.hu/art/s/starnina/thebaid.jpg

   12. Konrad Witz, A pesca milagrosa, 1444 (Museo de arte e história, Genebra) Fonte: http://teachers.sduhsd.k12.ca.us/ltrupe/art%20history%20web/final/chap17EarlyRenaissance/KonradWitz.jpg

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31

13. AntFonte:

onello da messina, Crucificação

w.backtoclassics.com/images/pics/antonellodamessina/antonellodamessina_crucifixihttp://wwon1.jpg

   14. Jacob van Ruisdel, Marina, 1666, (Museu Thyssen-Bornemisza, Madrid) Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jacob_Isaaksz._van_Ruisdael_013.jpg

 

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15. Maisa Ferreira, Paisagem I, 2009, Guará. 65x130 cm

  16. Maisa Ferreira, Paisagem III, 2009, Guará. 65x130 cm

 

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33

17. Claude Lorrain, Paisagem com sacrifício à Apolo, 1662-3, (Abadia de Anglesey, Cambridgehire) Fonte: http://oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2008/05/129_2512-apolo.jpg

   18. Rembrandt, Repouso durante a fuga para o Egito, 1647 (The National Gallery of Ireland, Dublin) Fonte: http://www.casa-in-italia.com/artpx/dut/Rembrandt/Rembrandt_Dublin_Landscape_rest_flight_Egypt.jpg

 

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34

19. Peter Paul Rubens, Paisagem com o Château de Steen, 1636, (The National Galery, Londres) Fonte: http://employees.oneonta.edu/farberas/arth/Images/110images/sl14_images/Rubens_Chateau.jpg

  20. Alexander Cozens, Paisagem, In: A new method of assisting the invention in drawing original compositions of landscape, 1784-86, Agua-tinta, (Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque) Fonte: http://www.digischool.nl/ckv2/ckv3/

 

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21. John Constable, A carroça de feno, 1821, (National Gallery, Londres) Fonte: http://www.uncp.edu/home/rwb/constable_haywain1.jpg

  22. Joseph Mallord William Turner, Vapor numa tempestade de neve, 1842, (Tate Gallery, Londres)

 

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23. Jean-Baptiste Camille Corot, Tivoli: os jardins da Villa d’Este, 1843, (Louvre, Paris) Fonte: http://blog.chosun.com/web_file/blog/9/11009/3/CorotTivoli_-Oak.jpg

  24. James McNeill Whistler, Noturno em cinza e dourado, Westminster Bridge, c. 1871-1874, Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/a6/James_Abbot_McNeill_Whistler_010.jpg

 

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25. Edward Hopper, Morning Sun, 1952, Oil on canvas, 28 1/8 x 40 1/8 inches, (Columbus Museum of Art, Ohio) Fonte: http://rejanebzmyblog.files.wordpress.com/2010/12/morning-sun-edward-hopper.jpg?w=559&h=382

  26. Caspar David Friedrich, Woman before the rising sun (Woman before the setting sun), 1818-20, (Private Collection) Fonte: http://paintingspy.com/wp-content/gallery/caspar-david-friedrich/114-1.jpg