SONHOS DE LIBERDADE, VIDAS...

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SONHOS DE LIBERDADE, VIDAS TRAFICADAS O fluxo de atenção/atendimento às vítimas brasileiras de tráfico de pessoas encontradas/libertadas na Espanha * * Este caso foi produzido no ano de 2007 por Gilberto Marcos Antonio Rodrigues, doutor em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e Verônica Maria Teresi, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, com a colaboração de Maíra Rocha Machado, professora da FGV/EDESP. O caso integra a segunda rodada de casos da “Casoteca Latino-americana de Direito e Política Pública” (www.direitogv.com.br/casoteca ). O financiamento deste caso foi propiciado por acordo de cooperação técnica celebrado entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID e a Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – FGV/EDESP. O projeto da Casoteca tem três objetivos: (i) fornecer um acervo de casos didáticos sobre direito e política pública na América Latina; (ii) estimular a produção contínua de novos casos por meio do financiamento de pesquisa empírica; (iii) provocar o debate sobre a aplicação do “método do caso” como uma proposta inovadora de ensino. Os casos consistem em relatos de situações-problema reais, produzidas a partir de investigação empírica e voltadas para o ensino. Evidentemente, não comportam uma única solução correta. A Casoteca permite uso aberto e gratuito de seu conteúdo, que é protegido por uma licença Creative Commons (Atribuição-Uso Não-Comercial-Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil). A licença pode ser acessada através do link: http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/br/ .

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SONHOS DE LIBERDADE, VIDAS TRAFICADAS

O fluxo de atenção/atendimento às vítimas brasileiras de tráfico de

pessoas encontradas/libertadas na Espanha*

* Este caso foi produzido no ano de 2007 por Gilberto Marcos Antonio Rodrigues, doutor em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e Verônica Maria Teresi, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, com a colaboração de Maíra Rocha Machado, professora da FGV/EDESP. O caso integra a segunda rodada de casos da “Casoteca Latino-americana de Direito e Política Pública” (www.direitogv.com.br/casoteca). O financiamento deste caso foi propiciado por acordo de cooperação técnica celebrado entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID e a Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – FGV/EDESP. O projeto da Casoteca tem três objetivos: (i) fornecer um acervo de casos didáticos sobre direito e política pública na América Latina; (ii) estimular a produção contínua de novos casos por meio do financiamento de pesquisa empírica; (iii) provocar o debate sobre a aplicação do “método do caso” como uma proposta inovadora de ensino. Os casos consistem em relatos de situações-problema reais, produzidas a partir de investigação empírica e voltadas para o ensino. Evidentemente, não comportam uma única solução correta. A Casoteca permite uso aberto e gratuito de seu conteúdo, que é protegido por uma licença Creative

Commons (Atribuição-Uso Não-Comercial-Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil). A licença pode ser acessada através do link: http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/br/.

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RESUMO – Sonhos de liberdade, vidas traficadas – A partir de quatro histórias reais,

os pesquisadores apresentam a narrativa de diversas situações e problemas que

envolvem o enfrentamento ao tráfico internacional de mulheres no eixo Brasil-Espanha,

em especial o atendimento às vítimas, desenvolvendo a temática em sua abrangência e

interdisciplinariedade, segundo a concepção de política pública amparada no tripé

prevenção-repressão-atenção às vítimas, com ênfase na cooperação internacional.

Palavras-chave: Enfrentamento ao tráfico de pessoas; tráfico internacional de

mulheres; relações Brasil-Espanha; cooperação Internacional; Direito Internacional.

ABSTRACT – Freedom’s dreams, trafficked lives – From the perspective of four true

stories, the researches introduce the various situations and problems related to the

policies against International Women Traffic in the Brazil-Spain axe, in particular the

attention given to victims; the issue is developed in its comprehensive and

interdisciplinary manner, according to the conception of a public policy which lays on a

triple structure composed by prevention-repression-attention to victims, focusing on

international cooperation.

Key-words: Policy against human traffic; International Women Traffic; Brazil-Spain

relations; International cooperation; International Law.

RESUMEN – Sueños de libertad, vidas traficadas – A partir de cuatro historias reales,

los investigadores presentan la narrativa de distintas situaciones y los problemas que

involucran el enfrentamiento a la trata internacional de mujeres en el eje Brasil–España,

bajo la perspectiva del atendimiento a las victimas, desarrollando la temática con

amplitud interdiscipinaria y conforme la concepción de política publica amparada en la

trípede prevención-represión-atención a las victimas, dando énfasis en la cooperación

internacional.

Palabras-llaves: Enfrentamiento a la trata de personas; trata internacional de mujeres;

relaciones Brasil-España; cooperación internacional; Derecho Internacional

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SONHOS DE LIBERDADE, VIDAS TRAFICADAS1

Maria Bonita tinha um sonho: deixar sua cidade em Minas Gerais para

conquistar um mundo melhor para si e seus três filhos. Zefa sonhava sair de sua vila em

Goiás para juntar dinheiro e comprar uma casa para ela, seu filho e sua mãe. Ana Luiza,

de São Paulo, alimentava um desejo: arrumar um emprego e pagar sua dívida da

Universidade. Kelly tinha um sonho diferente: deixar de ser cabeleireira no interior de

Pernambuco para se transformar na mulher que sua natureza masculina não permitiu.

Neste caso, serão relatadas as histórias de quatro brasileiras que tiveram o mesmo

destino: foram vítimas do tráfico internacional de mulheres e travestis na Espanha2.

Com nomes fictícios, cada caso relata uma situação real.3

Maria Bonita

Solteira, 23 anos, ensino médio incompleto, mãe de João, Vando e Gina, Maria

Bonita trabalhava como balconista de uma vendinha num bairro de uma cidade mineira.

Certo dia, sua prima Janaína, que há quatro anos havia deixado a cidade para morar na

Espanha – onde veio a casar-se com um espanhol – reapareceu para visitar a família na

cidade e foi procurá-la. “Maria Bonita – disse a prima – por que você não vem para a

Espanha?” Emprego fixo de atendente numa boate, pagamento em euros, uma vida

1 Caso produzido pelos pesquisadores Gilberto Marcos Antonio Rodrigues (coordenador), doutor em Relações Internacionais pela PUC-SP, professor do Programa de Mestrado em Direito da UNISANTOS, do Curso de Relações Internacionais da FASM, membro do GAPCon/UCAM e da International Law Association (ILA/Brasil); e Verônica Maria Teresi, mestre em Direito Internacional pela UNISANTOS (Bolsista CAPES), ex-bolsista da Fundación Carolina no Instituto Universitário de Desarrollo y

Cooperación de la Universidad Complutense de Madrid (IUDC-UCM) e Professora do Curso de Relações Internacionais da Fundação Lusíada (UNILUS). O financiamento do caso foi propiciado por um acordo de cooperação técnica celebrado entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID e a Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas - FGV/EDESP. O projeto da Casoteca tem três objetivos: (i) fornecer um acervo de casos didáticos sobre direito e política pública na América Latina; (ii) estimular a produção permanente de novos casos por meio do financiamento à investigação empírica; (iii) provocar o debate sobre a aplicação do “método do caso” como uma proposta inovadora de ensino. Os casos consistem em relatos de situações problemáticas reais, produzidas a partir da pesquisa empírica e destinada ao ensino. Evidentemente, não admitem uma única solução correta. 2 Nota de estudo: Tráfico Internacional de Pessoas/Mulheres. 3 Importante esclarecer que cada um dos casos aborda uma história real, porém com nomes fictícios e com alguns elementos modificados para garantir o anonimato das pessoas envolvidas.

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melhor... foi o que a prima ofereceu... Maria Bonita conta que balançou, não dormiu a

noite seguinte, chorou, rezou... ela admirava e confiava na prima. Afinal decidiu aceitar.

“Pior do que está não poderia ficar” – sentenciou para si mesma4.

A prima, então, deu as coordenadas como quem dá ordens: tem que tirar

passaporte, arrumar o cabelo, comprar roupa e uma mala. O dinheiro para pagar essas

“necessidades” é oferecido pelo dono da boate5, que emprestará o dinheiro, a ser

descontado dos salários, em parcelas.

Na polícia, Maria Bonita foi tirar o primeiro passaporte de sua vida. O agente

federal, desconfiado, indaga mineiramente se a moça vai visitar algum parente, e obtém

a resposta: “Vou sim senhor, minha prima”. Maria Bonita reúne elementos presentes no

perfil geral de vítimas de um dos crimes que mais cresce entre mulheres brasileiras,

segundo mostram as pesquisas feitas no Brasil6. Baixa escolaridade, faixa etária... a

polícia federal, mesmo suspeitando que Maria Bonita poderia estar sendo vítima de um

crime, nada pôde fazer naquele momento. Todos os brasileiros têm o direito

constitucional de solicitar e receber um passaporte.7

O desembarque em Paris surpreende Maria Bonita. Tinham combinado que

iriam para a Espanha. Mas a prima esclarece que tinha um assunto a resolver na França

e que, em seguida, iriam direto para a Galícia8. No setor de imigração, estrangeiros

fazem longas filas aguardando sua vez de explicar a razão de seu ingresso no território

europeu. Janaína fala em francês com a policial de fronteira, mostra seu passaporte de

residente na Espanha e explica que a prima veio passear e visitar sua família. A policial

determina que as duas deverão se dirigir a uma ala reservada para revista de bagagem.

Malas minuciosamente revistadas, cães farejadores, corpos apalpados e perguntas sobre

ingestão de remédios. Vinte minutos depois, ambas estão liberadas para ingresso na

União Européia9.

4 Glossário: Aliciamento e Recrutamento. 5 Glossário: Boates / Clubs (Espanha). 6 Nota de estudo: Pesquisa Brasileira sobre Tráfico de Pessoas/Pestraf. 7 Glossário: Passaporte: Direitos e Obrigações. 8 Glossário: Rotas de Tráfico. 9 Nota de estudo: Ingresso e Permanência em Território Estrangeiro.

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Na chegada a Santiago de Compostela, não há tempo de ver a cidade. Vão direto

para a boate, chamada de club na Espanha. Janaína se despede da prima e teria

prometido que voltariam a se encontrar em breve. Dentro do club, Maria Bonita entrega

seu passaporte e seus pertences para Soledad, a gerente da boate. Mais um crime se

anuncia.

Trancada num quarto com janela coberta, sem comunicação, sem notícias, Maria

Bonita lembra que não via a hora de conhecer o club, saber o que iria fazer, ansiosa por

aprender seu novo trabalho. Quer telefonar para seus filhos, sente imensa saudade deles

e dizia para si mesma “é por eles que eu estou aqui”.

Ao anoitecer, Maria Bonita recebe ordens de tomar banho e vestir uma roupa

que lhe dão. Mini-saia branca, blusa vermelha transparente...é levada para uma sala com

outras moças, que a olham com misto de curiosidade e desdém... Maria Bonita não

entende... o que terá que fazer? Uma das moças fala em castelhano com ela e teria lhe

dito em tom irônico e provocador que ela era “guapa” e que teria “mucho trabajo”.

Inicia-se uma das noites mais longas da vida de Maria Bonita.

Os dias e noites que se seguiram foram de confusão, desespero e dor. Maria

Bonita descobriu que estava presa numa casa de prostituição10, sem documento, sem

opção, sem vontade própria...11. De início, chorou desesperadamente, gritou, chamou

pela prima... A gerente do club, Soledad, arrastou-a para um quarto e lhe fez ver que se

não trabalhasse para pagar a dívida da passagem e os gastos do clube, nada iria melhorar

para ela. Além disso, o destino dos filhos passa a ser usado como forma de

intimidação”12.

O relato é difícil: o mundo se desfez na frente de Maria Bonita. Uma das

companheiras lhe emprestou uns comprimidos para ela tomar e assim poder relaxar

durante o trabalho. Maria Bonita tomou um, tomou outro e, quando se deu conta, já

estava viciada naquelas bolinhas que a desconectavam da obrigação de se entregar a

10 Glossário: Prostituição no Brasil e na Espanha. 11 Glossário: Cárcere Privado. 12 Glossário: Ameaça.

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vários homens por dia, por noite. Ela já não se sentia uma mulher, mas uma coisa, um

objeto que dava prazer para os clientes que a consumiam.

Semanas depois, Soledad diz a ela que trabalhará no balcão da boate, para atrair

mais clientes e ajudar a vender bebidas a eles. A ameaça aos filhos é sempre recordada.

O universo de Maria Bonita se restringe ao espaço da boate e aos quartos onde atende os

clientes. Aos poucos se “acostuma” e se “adapta” à situação adversa.

Certa noite, Soledad permite a entrada de representantes de uma ONG na boate,

para orientar as moças a não contrair doenças sexualmente transmissíveis (DST)13.

Maria Bonita é abordada e recebe camisinhas e um folheto explicando como se

prevenir. Explicam-lhe, também, que pode fazer um registro no Ayuntamiento

(Prefeitura) para ter direito à saúde gratuita, e acesso à atenção ginecológica14. De

maneira furtiva, uma das moças da ONG a convida para visitar um pessoal que pode

ajudá-la.

Passado ano e meio de sua internação no club, Maria Bonita obteve liberdade

para ir à cidade, mas seu passaporte continuava retido e seu visto15 já expirara há muito

tempo, o que a torna uma indocumentada16.

Numas de suas idas à cidade, é levada por uma colega do club a uma casa de

atendimento a mulheres. Maria Bonita descobre que foi vítima de uma série de crimes;

que tem a direito a retornar a seu país e a recuperar sua dignidade, sua liberdade e sua

vida.

Porém, depois de tudo, como retornar ao Brasil? Viciada em drogas, humilhada

e envergonhada pelo que fez, sem perspectiva de emprego, se voltar, Maria Bonita está

decidida a trazer seus filhos para a Espanha e seguir sua vida em Compostela.

Porém, uma situação inesperada muda o curso da vida de Maria Bonita. A

polícia espanhola realiza uma redada (batida)17 no clube e registra flagrante de um tipo

13 Glossário: DST/AIDS. 14 Nota de estudo: Registro municipal/empadronamento na Espanha. 15 Glossário: Visto. 16 Nota de estudo: Ingresso e permanência em território estrangeiro.

7

de exploração de mulheres. Maria Bonita e outras estrangeiras em situação irregular18

são levadas para a delegacia de polícia, onde é iniciado o procedimento de expulsão19. A

polícia informa ao consulado brasileiro que uma brasileira será deportada20. Maria

Bonita continua recebendo apoio da ONG, com orientação psicológica e jurídica, além

de ser acolhida numa casa de apoio. Como vítima de vários crimes, sua situação é de

vulnerabilidade, não pode ser tratada como imigrante irregular, demanda cuidados

especiais, para que seu quadro psicossocial não se agrave.

Àquela altura, o que restará do sonho de Maria Bonita em conseguir sua

realização na Espanha? Pouco, mas a esperança de reconstruir sua vida ressurge, ela

voltará a ver os filhos em breve. No dia da repatriação de Maria Bonita, os jornais de

Compostela estampam matéria de capa sobre a descoberta de uma rede internacional de

tráfico. Uma brasileira de nome Janaína foi presa junto com outros comparsas...21

17 Glossário: Operações policiais – Batidas, Redadas. 18 Ver nota 16: Ingresso e permanência em território estrangeiro 19 Ver nota 16: Ingresso e permanência em território estrangeiro. 20Glossário: Assistência consular a nacionais no exterior. Papel dos consulados 21 Nota de estudo: Quando a vítima se torna traficante.

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Josefa (Zefa)

Josefa, conhecida como Zefa, solteira, 25 anos, ensino fundamental completo,

filha de Joana, mãe de Mateus, trabalhava numa loja de conveniência em Uruaçú, no

interior de Goiás, e sonhava em comprar uma casa para ela, seu filho e sua mãe. Além

disso, começara a cursar o ensino médio noturno, pois achava que o estudo lhe

possibilitaria assumir outras funções no trabalho.

Amiga de infância, Cidinha apareceu num certo domingo em que Zefa estava

escalada para trabalhar. A moça havia retornado da Espanha, depois de três anos

vivendo lá, e iria dar uma festa para a família e os amigos – Zefa foi convidada,

também.

No dia da festa, Cidinha e Zefa recordaram os bons momentos vividos na época

da adolescência. Cidinha falou de seu trabalho na Espanha, lembrou dos tempos difíceis

passados no início, comentou que o trabalho era bastante difícil, além do medo de ser

encontrada pela polícia espanhola, uma vez que inicialmente estava sem documentos de

residência (mas não revelou que havia tido um relacionamento na Espanha, do qual

resultou um filho, que lhe possibilitou a permanência na Espanha). Disse, com grande

convicção que, com todas as dificuldades, valia a pena voltar e continuar trabalhando,

pois estava conseguindo viver com dignidade, mandar dinheiro para sua mãe e pagar os

estudos do filho.

Zefa ouviu atentamente e desabafou como estava sendo difícil sua vida, o

trabalho precário, o estudo sacrificado, as despesas que não paravam de crescer com o

filho e os remédios da mãe. Cidinha disparou: “Por que não vem trabalhar na Espanha?

As brasileiras sempre conseguem trabalho!”

No dia seguinte, as duas saíram para conversar e Cidinha abriu o jogo sobre o

trabalho fácil na Espanha. Zefa rapidamente respondeu que não poderia trabalhar como

prostituta. Nunca tinha feito nada assim e morreria de vergonha de sua mãe e de seu

filho. Cidinha diz que se ela mudasse de idéia que a avisasse, pois ficaria na cidade mais

uns 15 dias e depois retornaria à Espanha.

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A proposta de ir à Espanha, ao mesmo tempo absurda, era bastante tentadora.

Não seria uma forma rápida e segura de conseguir comprar uma casa, de garantir a

educação do filho e o tratamento de saúde da mãe?

Zefa procurou Cidinha. Esta lhe disse que poderia conseguir um trabalho na

Espanha, sua passagem seria paga pelo dono do local onde ela trabalharia. Disse que no

início era difícil, mas que ela não se arrependeria. Zefa acaba decidindo largar tudo e

tentar a vida na Europa22. Para a mãe e o filho, Zefa conta que irá trabalhar como

garçonete, num bar.

Com o passaporte de Zefa expedido, Cidinha prepara a viagem das duas à

Espanha. Seguirão diretamente via Madri, é período de temporada alta na Europa e o

fluxo de pessoas está intenso.23 Na chegada, com reserva feita em hotel de Madri e a

indicação de residência de Cidinha na cidade de Gijón, as duas entram sem problemas.

Chegando a Gijon, Cidinha apresenta Zefa a Juan, dono de um piso24. Cidinha

é levada ao clube onde trabalhava e Zefa é encaminhada a um piso, que mais parece um

apartamento comum. Juan recolhe o passaporte de Zefa. Cidinha nunca mais será vista.

No piso, havia mais ou menos dez mulheres, de distintas nacionalidades, tais

como paraguaias, colombianas e outras brasileiras25. Juan apresenta a encarregada do

local, chamada Pilar, explica à Zefa as regras do lugar – bastante rígidas, incluindo a

proibição de sair sem autorização26 – e informa que sua dívida, contraída com a bolsa de

viaje27 era de três mil euros. Todas as despesas com alimentação, estadia seriam

debitadas dos ganhos de Zefa. Cada programa com cliente custaria em média 50 euros,

dos quais metade ficaria com o dono do piso28.

Zefa fez as contas e conclui que sua dívida era muito alta e que teria que

trabalhar muito para pagá-la. Porém, o pior ainda estava por vir.

22 Nota de estudo: Diferença entre tráfico e migração. A questão do consentimento 23 Nota de estudo. Controle de Imigração da FRONTEX. 24 Glossário: Pisos 25 Nota de estudo. Dados sobre número de latinas na Espanha exercendo prostituição. 26 Glossário: Cárcere Privado. 27 Glossário: Bolsa de viaje (bolsa de viagem). 28 Glossário: Rufianismo (Exploração da prostituição).

10

Menos de cinco horas da chegada de Zefa ao apartamento em Gijón, toca o

interfone. Um homem entra e vai diretamente para uma sala, que ficava ao final do

apartamento. Todas as mulheres começaram a se arrumar e, uma a uma, entram na sala

onde está o indivíduo. Cada qual entra e se apresenta e, em seguida, sai. A escolhida

foi...Zefa! Era mercadoria nova e pelo programa obteve sessenta euros, metade dos

quais ficou com Pilar.

Assim se passaram meses e meses. O cliente chegava, ficava numa sala. As

mulheres desfilavam e ao final uma ou duas delas eram as escolhidas para aquele

programa. Os clientes chegavam ao piso por meio dos inúmeros anúncios feitos nos

classificados de jornais espanhóis de circulação. Os anúncios eram pagos pelas próprias

mulheres, assim como sua alimentação, limpeza do apartamento e o aluguel.

Como todas elas eram obrigadas a residir no local, ficavam disponíveis 24

horas por dia e não tinham qualquer margem de escolha dos clientes29. Outras regras

que deveriam cumprir à risca incluíam não permanecer mais de 30 minutos com cada

homem.

O apartamento recebia em média trinta homens por dia, o que não era muito

comparado com outros pisos, conforme contou certa vez Marina, uma colombiana que

trabalhava com Zefa. Marina já havia sido transferida para outros dois pisos mantidos

por Juan. Dizia que Juan sempre as alternava de local, para dar a sensação aos clientes

de que sempre tinha mulheres novas nos locais. Mais cedo ou mais tarde, Zefa também

seria transferida.

Certo dia, Carmen, uma paraguaia que ali também trabalhava, pediu

autorização para Pilar para fazer um exame médico, pois imaginava haver contraído

uma doença sexualmente transmissível (DST). Amiúde, Carmem topava manter

relações sem preservativo, para ganhar mais nos programas. Juan não autorizava a

entrada de ONG´s que distribuíam camisinhas e davam orientação sexual às mulheres,

29 Glossário: Regime análogo à escravidão.

11

pois não queria que ninguém de fora tivesse contato com as condições de trabalho e de

vida precárias de suas mulheres.

Pilar autoriza Carmen a ir ao médico, entretanto esta procura ajuda de uma

mulher de uma ONG que ela havia conhecido meses antes, quando ainda trabalhava em

um clube. Relata as condições de exploração vividas por ela e pelas suas companheiras

e acaba sendo convencida a fazer uma denuncia à polícia.

Feita a denuncia a polícia, Carmen fica protegida numa casa de acolhida da

mesma ONG30. Lá passa a ter assistência psicológica, jurídica e social. A polícia lhe

concede e garante a condição de testemunha protegida31.

A polícia espanhola inicia uma investigação a partir da denúncia de Carmen. O

adido policial espanhol em Brasília foi acionado; este, por sua vez, contata o

Departamento da Polícia Federal em Brasília para identificar uma possível rede de

tráfico de mulheres32.

Com indícios apurados da saída constante de mulheres da mesma região de

Zefa, em direção à Espanha, a polícia reúne elementos para realizar uma batida policial

no apartamento onde Zefa está. Até aquele momento, Juan, Pilar e nem mesmo as

mulheres que ali estavam imaginam que algo sucederia. Mas, reunindo provas

suficientes de que Juan explora mulheres sexualmente, resultado de uma rede de tráfico

de pessoas, a polícia espanhola obtém autorização judicial para entrar no apartamento.

A redada policial prende Pilar e declara Juan foragido. Todas as mulheres

encontradas no apartamento estão sem documentos e, pelo tempo que estão na Espanha,

seus vistos já estão vencidos, por isso a polícia abre um procedimento de expulsão para

cada uma delas33. A perícia feita nas mulheres constata que muitas foram sujeitas a

agressão e maus tratos.

30 Glossário: Casa de Acolhida. 31 Glossário: Testemunha Protegida. 32 Glossário: Adido Policial. 33 Glossário: Expulsão na Espanha (Deportação no Brasil).

12

Ao informar os respectivos consulados, obrigação internacional prevista no

Direito Consular, a polícia espanhola não especifica que as mulheres a serem expulsas

são vítimas de tráfico de mulheres. Os Consulados desconhecem sua condição de vítima

e as trata como imigrantes ilegais34.

Repatriada, Zefa passa por sérios problemas psicológicos decorrentes da

exploração sofrida. Desembarca no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São

Paulo, e é recepcionada pelas profissionais que atendem no Posto de Atendimento

Humanizado aos Migrantes35, que lhe oferecem auxílio. Zefa escuta, mas resiste a

assumir sua condição de vítima. Esta muito confusa e não sabe se quer ser ajudada. Sua

vergonha é imensa. Quer esquecer aqueles momentos vividos na Espanha. Seu sonho

havia fracassado.

Inicialmente o pessoal do Posto conversa com Zefa para saber o que ela queria

fazer: se voltar a Goiás ou permanecer um período em São Paulo. Zefa esclarece que

desejava voltar, mas que não queria que ninguém de sua família e de sua cidade

soubesse o que tinha acontecido com ela. Para lograr a volta de Zefa a Goiás, o Posto

inicia contato com as organizações da sociedade civil que fazem atendimento às vitimas

de tráfico no Estado. Além disso, procura auxílio de alguma empresa aérea para que

cedesse uma passagem para Goiânia.

A rede de atendimento às vitimas de tráfico que regressam ao Brasil ainda não

está devidamente articulada. Alem disso, não existe verba definida para financiar o

retorno das vítimas a seus lugares de origem. Depois de muitas tentativas, obtém-se a

passagem e o auxílio de uma organização que receberia Zefa em Goiás. É o início da

difícil etapa de reconstrução de laços e de esperança.

34 Glossário: Vítimas de tráfico (tratamento diferenciado, segundo o Protocolo de Palermo). 35Glossário: Posto de Atendimento e Política de Atendimento às Vítimas de Tráfico.

13

Ana Luiza

Separada, 26 anos, sem filhos, recém-formada em educação física e

desempregada. Ana Luiza não era muito diferente de outras mulheres paulistanas

preocupadas com o futuro e com as dívidas acumuladas pela falta de trabalho. No seu

caso, havia um empréstimo feito num banco privado para pagar o curso na Faculdade,

também privada.

Um dia, assistindo a um programa de televisão, Ana Luiza vê uma reportagem

sobre mulheres que vão à Espanha trabalhar como prostitutas. Percebe que elas ganham

muito dinheiro comparado com o que ela estava ganhando em seu trabalho informal,

apesar de imaginar a realidade dura e a situação de exploração daquelas mulheres.

Ana Luiza teve um insight e pensou consigo: “Eu sou esperta... essas coisas

não aconteceriam comigo se eu fosse trabalhar lá.”... Juntaria dinheiro, pagaria a dívida

e ainda conseguiria poupar para comprar um carro quando retornasse. Pensou em pedir

dinheiro emprestado às amigas e devolver na volta.

Ficou com essa idéia martelando na cabeça por um bom tempo, imaginando

como seria essa possibilidade. Até que um dia decidiu ir embora para a Espanha36. Mas

como iria conseguir trabalho? Lendo classificados na Internet, viu um anúncio para

mulheres interessadas em trabalhar num bar na Espanha. Entrou em contato. Disse que

tinha dinheiro para a passagem e que somente necessitaria do lugar para trabalhar.

Malandra, como se achava, fez questão de dizer que teria dinheiro para a passagem,

para demonstrar que não cairia nas garras de uma possível máfia de traficantes.

Contudo, as amigas também estavam sem dinheiro.

A suposta agência diz que o trabalho é para um bar na Espanha,

especificamente em Salamanca. Ana Luiza não tinha nem idéia de onde ficava esse

lugar, mas a proposta é tentadora. Pergunta se terá contrato de trabalho. A pessoa lhe diz

que, inicialmente, não: teria que trabalhar num período de experiência e, se preenchesse

os requisitos, ganharia um contrato definitivo.

36 Ver nota 2: Tráfico Internacional de Pessoas/Mulheres

14

A Agência adverte Ana Luiza da dificuldade de entrar na Espanha, pelos

controles da polícia de imigração e assim lhe passa uns contatos de hotéis para que ela

dissesse que tinha reserva e a instrui a dizer que estava indo a passeio na Espanha, por

aproximadamente 20 dias. Quando chegasse a Madri, estaria sendo esperada por uma

pessoa que a levaria até o bar. Sua moradia seria no próprio bar, por isso não deveria se

preocupar com nada.

Chegando a Madri, Javier esperava Ana Luiza. Pediu-lhe seus documentos,

para confirmar que era ela, e disse que necessitaria deles para regularizar sua situação

na Espanha. Ela não sabia exatamente onde era Salamanca e a viagem parecia não ter

fim.

Chegando ao bar, por volta das 10h30, Ana notou um silêncio abrumador. Na

entrada, um balcão (barra) de bebidas, paredes escuras, cheiro de cigarro impregnado.

Elena, a encarregada do local, a esperava. Imediatamente subiu umas escadas indicando

que Ana deveria segui-la.

Ao fim do corredor, uma porta, paredes com pintura antiga, um quarto frio,

cama, armário de duas portas, sem janelas. Ana entra. Elena lhe diz que deveria estar

pronta às 22h00. Fecha-se a porta e Ana se encontra sozinha. Está animada e ao mesmo

tempo preocupada. Aquele local parece-lhe diferente do que havia imaginado. Fica o dia

todo na espera e sente muita fome.

Às 22h00, Ana desce a escada e vê umas vinte mulheres no local. Será que

todas trabalham lá?

Sim, todas trabalham, mas por tempos determinados. Ana Luiza foi levada

para um clube de prostituição que funciona em sistema de plazas. 37

O dinheiro para a viagem fora emprestado pelo dono do club em sistema de

plazas. Ana Luiza achava correto ter que pagar e submeter-se às exigências feitas pelo

37 Glossário: Clubs em sistema de plazas.

15

dono do clube. Afinal de contas, ele é que possibilitara que ela viajasse para ganhar

dinheiro. Assim, ela tinha que respeitar as regras internas do clube: não demorar mais

do que meia hora com cada cliente, fazer com que eles lhe pagassem ao menos duas

bebidas, nunca fazer programas fora do clube sem consentimento do dono. Mesmo que

não existisse uma regra impondo que elas deveriam estar lá todo o tempo, se estivessem

certamente teriam trabalho e mais dinheiro... Além disso, o clube estava numa estrada

que ligava Madri a Salamanca, o que dificultava o acesso à cidade. Assim, sua interação

com o “mundo espanhol” se restringia ao contato que tinha com seus clientes. Ela não

saía do clube, comprava até mesmo roupas lá dentro, vendidas mais caro, além de pagar

uma diária pelo quarto onde dormia e trabalhava.

Após alguns meses, Ana Luiza conheceu um rapaz de 37 anos, Manolo, que se

tornou um cliente fixo. Arrumava um jeito de visitá-la, mesmo quando ela era

transferida de clube, a cada 21 dias. Ele acabava sabendo onde ela estava e ia ao seu

encontro, além do que passou a emprestar o valor que Ana devia por semana ao dono do

clube, para deixar de ter relações com outros homens.

Assim, os dois iniciam um relacionamento, sem o conhecimento do dono do

club. Manolo propõe a Ana Luiza sair do clube e morar com ele. Assume o resto do

valor da dívida que ela havia contraído com o dono do club, principalmente o valor da

passagem, paga-a e ela vai morar com ele. Manolo passa a ajudar Ana Luiza com o

pagamento das dívidas que ela tinha no Brasil também.

Ana Luiza e Manolo se casam na Espanha e ela obtém os direitos de cidadania

espanhola. Manolo está feliz com Ana Luiza; esta não está tão segura do que sente por

Manolo, mas está satisfeita em haver saído do club, ter quitado as dívidas e obtido os

papéis de residência. Agora pode ter acesso a trabalho formal na Espanha e, quem sabe,

até convalidar seu diploma de educação física.

16

Kelly

Marcio, nome de registro civil de Kelly, não era conhecido por ninguém. Kelly,

por sua vez, era uma figura bastante conhecida naquela cidadezinha do interior de

Pernambuco. Solteira, 20 anos, alimentava o sonho de poder se transformar na mulher

que sua natureza masculina não permitiu.

Sua crença no destino e sua amiga Karen, uma travesti brasileira mais madura

e experiente que vivia há muitos anos em Madri, abriram caminho para tentar a vida na

Espanha.

Kelly era consciente de que somente teria trabalho como profissional do

sexo.38 Trabalhava numa sauna de Madrid, nas proximidades da Calle Montera (um dos

principais pontos de prostituição de rua em Madri).

Kelly havia assumido uma dívida de cinco mil euros com Karen para poder

viajar: a famosa bolsa de viaje. Somente poderia deixar de trabalhar após o pagamento

desta dívida. Assim foi que Kelly permaneceu nessa sauna durante um ano. Seus

clientes eram homens de 30 a 60 anos. Kelly morava com Karen e com duas travestis

brasileiras em Madri, num apartamento na periferia daquela cidade.

Trabalhava durante o dia todo e muitas vezes até as altas horas da noite. O

trabalho nas saunas funciona durante todo o dia. Além disso, Kelly sabia que quanto

mais trabalhasse, mais rapidamente poderia pagar todo o valor devido a Karen e, assim,

poder controlar sua própria vida e guardar dinheiro para realizar seu sonho. Pelo menos

esse era seu pensamento inicial. Não sabia, ao certo, as complicações do trabalho sexual

nas ruas.

Passado um ano, Kelly conseguiu pagar sua dívida a Karen e decidiu trabalhar

nas ruas de Madri.39 A prostituição masculina, transexual, aparece em locais específicos

dentro dessa cidade européia.

38 Ver nota 22. Diferença entre tráfico e migração. A questão do consentimento 39 Glossário: Prostituição de Rua

17

Inicialmente, pensa em trabalhar na Casa de Campo, parque de Madri que

apresenta alto índice de prostituição de rua. Porém, havia meses que a Prefeitura

(Municipalidad) de Madri determinara o fechamento das ruas da Casa de Campo para a

passagem de carros, o que praticamente eliminou a prostituição dessa região40. Assim,

Kelly decide trabalhar na M40, uma das vias de acesso de Madri. Com o crescimento de

Madri, foram sendo criadas vias de acesso à cidade, entre elas a M30, M40 e M50.

A M40, particularmente, foi se transformando numa região de prostituição de

rua para homens.

Kelly imaginava que ali não teria que pagar nada a ninguém. Afinal trabalhava

na rua e era dona de seu próprio corpo. Porém, logo percebeu que a realidade da rua não

era bem essa. Mesmo no espaço público existiam regras básicas para poder exercer

prostituição. Havia pessoas que cobravam pelo espaço de calçada onde Kelly queria

trabalhar.

O trabalho na rua também tinha outras complicações. Um deles era o risco da

violência constante por parte dos clientes. Volta e meia aparecia alguém que havia sido

espancada por um cliente que não queria pagar pelo programa. Em outros casos,

apareciam transexuais e mulheres, principalmente nigerianas, que eram encontradas

mortas pela polícia, como era o caso de Celina, uma africana que foi encontrada

assassinada e esquartejada por um cliente que não havia gostado dos serviços dela.

Outro risco era o de contaminação por doenças sexualmente transmissíveis. O valor

pago pelo cliente por um programa sem uso de preservativo era astronomicamente

superior e, por isso, tentador. Kelly procurava não ter relações sem preservativos, mas

quando o serviço era fraco entrava no jogo da roleta russa e aceitava.

Como se preocupava muito com sua condição de saúde, ia periodicamente ao

médico fazer controles. Para isso sabia da importância de estar empadronada na

Municipalidad de Madri41. Havia também uma ONG que prestava orientação às

mulheres e transexuais que trabalhavam na M40.

40 Nota de estudo: Fechamento da Casa de Campo 41 Ver nota 14: Registro municipal/empadronamento na Espanha.

18

Num dia em que fez esses controles, Kelly descobriu que havia contraído

SIDA (AIDS). Seu mundo desmoronou. Não sabia exatamente o que fazer. Sabia

somente que não queria ficar ali. O tratamento médico era muito caro e já não poderia

se manter sem trabalhar. Resolveu procurar a ajuda daquela ONG.

Uma das garotas que trabalhava na ONG e fazia o trabalho de orientação na

M40, Lourdes, conversa com Kelly e diz que ela poderia voltar ao Brasil pelo Programa

de Retorno Voluntário de Migrantes42, que era patrocinado por outras organizações, e

inicia os contatos.

Lourdes consegue organizar a volta de Kelly, junto com as organizações que

realizam o retorno voluntário de migrantes. Antes de viajar, faz todos os exames

médicos para adiantar o tratamento no Brasil.

Em busca de alguma ONG em Pernambuco que pudesse realizar o apoio e

acompanhamento que Kelly necessitaria ao retornar, Lourdes se vale do Posto de

Atendimento Humanizado de Migrantes43, no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, e

este contata o Escritório de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas de Pernambuco que,

por sua vez, passa a articular a rede de atenção.

Kelly é esperada no aeroporto de Recife. Mas a viagem partindo de Madri é

longa e cheia de memórias das experiências vividas. Seu sonho de liberdade ficou para

trás. Chegando ao Aeroporto de Cumbica, a polícia federal checa seu passaporte; o

documento carrega outro nome: Marcio....

42 Nota de estudo: Programa de Retorno Voluntário de Migrantes 43 Nota de estudo: A importância da criação de redes de atendimento às vítimas de tráfico articuladas internacionalmente e internamente.

19

GLOSSÁRIO

Adidos policiais – São servidores públicos da polícia nomeados por um Estado para

exercer funções de assistência e inteligência policial dentro de uma Embaixada, no

âmbito da cooperação internacional entre dois Estados, sobretudo no combate ao crime

organizado transnacional.

Aliciamento – Forma criminosa de obter o consentimento da vítima, via de regra

mediante engano ou fraude (artigos 206 e 207 do Código Penal Brasileiro). O Protocolo

de Palermo regula a conduta em seu artigo 3º, caput, estabelecendo que o aliciamento

pode se dar “recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao

rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade”.

Ameaça – Modalidade de crime prevista no Código Penal Brasileiro (artigo 147) e na

Legislação Espanhola (art. 169 do Código Penal). Umas das formas de materialização

do crime de tráfico de pessoas, segundo o Protocolo de Palermo (Artigo 3º).

Boates/ Clubs na Espanha – No Brasil, casas de entretenimento adulto que funcionam

como bares e/ou casas de espetáculo, onde podem funcionar atividades de prostituição e

rufianismo. Equivalente aos clubs de alterne na Espanha, localizados nas cidades ou à

beira das estradas. São locais com música onde as mulheres ficam à disposição dos

clientes. Esses chegam, pagam bebidas (“sacan copas”), conversam e acerta-se o valor

da relação sexual.

Bolsa de viaje (Bolsa de viagem) – Trata-se do valor que os traficantes cobram da

própria vítima para levá-la até o lugar do trabalho. Constitui-se em dívida a ser paga

com o exercício da prostituição realizado no local. Essa bolsa dá margem a toda sorte de

ilícitos impingidos pelo dono do local onde se exerce prostituição (cárcere privado,

maus-tratos, tortura, formas análogas à escravidão, ameaças).

Cárcere Privado – Modalidade ilegal de privação da liberdade. Crime previsto no

Código Penal Brasileiro (artigo 148) e no Código Penal Espanhol (artigo 163). Previsto

no Protocolo de Palermo como crime conexo ao tráfico de pessoas.

20

Casa de Acolhida – Local mantido pelo Estado ou por ONGs onde as vítimas de tráfico

de mulheres permanecem, com seu consentimento, para receber assistência múltipla

(psicológica, jurídica e social) e proteção contra os traficantes.

Assistência consular a nacionais no exterior (Papel dos Consulados) – Os

consulados são locais que abrigam a missão consular de um determinado país, cuja

atribuição é oferecer assistência às pessoas físicas e jurídicas de sua nacionalidade, no

exterior, incluindo a assistência às vítimas e às testemunhas de tráfico de pessoas. São

regulados pela Convenção de Viena sobre Relações Consulares (1963), especificamente

em seu artigo 5º, inciso “e”. No caso da Espanha, muitas vezes ocorre que a polícia, ao

comunicar ao consulado a repatriação de um nacional brasileiro, não identifica o

estrangeiro como vítima de tráfico, pois o considera como imigrante em situação

irregular, o que prejudica o atendimento especializado e específico do consulado

brasileiro no exterior. Tal situação impossibilita a comunicação e a articulação com as

autoridades brasileiras responsáveis pela atenção interna (MRE, polícias de imigração

brasileiras, ONGs), a fim de prestar atenção especializada no retorno da vítima ao

Brasil.

Clubs en sistemas de Plazas – São boates (cf.verbete Boates), mas com algumas

particularidades: as mulheres vivem nesses locais e pagam uma diária ao dono do club

(em média 30 a 50 euros/dia) e, aparentemente, estes locais funcionam como um hotel.

O acordo para receber parte do valor pago pelas bebidas funciona como nos clubs. As

mulheres não costumam ficar mais do que 21 dias (período menstrual). Os donos dos

clubs aproveitam esse período para mudá-las para outro club e até mesmo de cidade.

Isso ocorre para diversificar o “objeto” de mercado (mulheres) e para evitar que os

clientes estabeleçam uma relação afetiva com elas, o que muitas vezes favorece

aproximação e pode resultar em auxílio e denúncia nas redes de atendimento.

DST/AIDS – As Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) constituem vários tipos

de enfermidades, cuja forma de contágio se dá principalmente por meio da relação

sexual e contatos íntimos. Incluem a Síndrome de Imunoinsuficiência Adquirida (No

Brasil, AIDS, na Espanha, SIDA).

21

Expulsão – Uma das formas de exclusão do estrangeiro de um país. Na Espanha, o

procedimento de expulsão é equivalente ao de deportação no Brasil. Está regulado pela

Ley de Extranjeria. No Brasil, a expulsão é um procedimento muito mais complexo (Cf.

Estatuto do Estrangeiro). Trata-se de procedimento administrativo em ambos os países.

Operações Policiais (Batidas, Redadas) – Operações Policiais são ações organizadas

pela polícia visando fiscalizar, coibir e/ou flagar atividades irregulares e criminosas. Se

forem realizadas em lugares privados dependem de mandado judicial. Normalmente são

apelidadas com nomes fictícios visando preservar o sigilo durante o processo de

investigação. Alguns exemplos de batidas policias realizadas aqui no Brasil envolvendo

situações de tráfico foram: “Operação Babilônia”, “Operação Castanhola”, “Operação

Madri”. No Brasil são conhecidas como batidas, na Espanha redadas.

Passaporte (Direitos e Obrigações) – Documento de viagem expedido pela autoridade

nacional do país do cidadão requerente. No Brasil, é expedido pela Polícia Federal; na

Espanha é expedido pelas Jefaturas Superiores y Comisarías de Policía, cuja validade é

reconhecida internacionalmente, por prazo determinado. O passaporte é uma espécie de

carteira de identidade internacional que indica a nacionalidade de seu portador e

possibilita que se possa requerer assistência consular do País no exterior. Alguns países

exigem o visto prévio no passaporte para permitir a entrada em seu território, fato que

gera a reciprocidade de exigência (e.g., EUA-Brasil). Outros, como os integrantes da

União Européia (UE), não o exigem para quem viaja como turista. Com ou sem visto

prévio, a permissão de entrada é prerrogativa do Estado receptor, podendo este negar o

ingresso de qualquer pessoa, mesmo que presentes todos os requisitos exigidos. (Trata-

se de tema polêmico, à luz do Direito de ir e vir, no âmbito do Direito Internacional dos

Direitos Humanos e do Direito da Migração). Considera-se que a propriedade do

passaporte é do Estado, conferindo-se ao cidadão o direito de posse e uso. O cidadão de

cada Estado que estiver portando passaporte não poderia entregá-lo a ninguém, uma vez

que ele não é de sua propriedade.

Pisos – São apartamentos onde as mulheres exercem prostituição. Esses espaços

constituem a modalidade de maior expansão na Espanha, assim como os clubs de

alterne. Muitos são gerenciados por agências ou por donos particulares. São

apartamentos discretos onde o cliente tem a possibilidade de escolher as mulheres de

22

forma individualizada. Geralmente têm de 5 a 15 mulheres trabalhando e, por serem

apartamentos particulares, são mais difíceis de ser identificados e de revelar qual é a

condição de vida e de “trabalho” a que estão submetidas as mulheres. Ademais, os

controles feitos pela polícia são menores, uma vez que essa somente pode entrar, sem o

consentimento do dono, se tiver uma autorização judicial, o que apenas ocorre quando

há provas de que ali as mulheres são vítimas de tráfico, que estão sendo submetidas a

situação de exploração. Por esse motivo sabe-se que esses são os espaços onde as

condições de exploração sofridas pelas mulheres podem ser maiores. O contato feito

pelos clientes se dá pelas centenas anúncios em jornais de grande circulação da

Espanha. (Vide: Periodismo digital. Borja Ventura:

http://blogs.periodismodigital.com/periodismo.php/2006/04/04ª_2)

Posto de Atendimento Humanizado aos Migrantes e a importância da Política de

Atendimento às Vítimas de Tráfico – O posto é uma iniciativa conjunta da sociedade

civil, do Ministério da Justiça (Secretaria Nacional de Justiça) e da Associação

Brasileira de Defesa da Mulher (ASBRAD), com o financiamento da organização não

governamental CORDAID (apoiado pelo governo holandês). Tem como objetivo dar

atenção especial aos(às) brasileiros(as) que retornam ao País, pelo aeroporto de

Cumbica, Guarulhos –SP, resultado de processos de deportação ou de recusa de entrada

no exterior. O Posto vem desenvolvendo uma metodologia de atendimento específico

para as vítimas de tráfico, que inclui a articulação com os órgãos federais e a

capacitação dos profissionais que atuam na área restrita do aeroporto. A pretensão dessa

iniciativa é estendê-la a outros aeroportos do País, facilitando o encaminhando das

vítimas.

Prostituição no Brasil e na Espanha – Atividade que consiste em manter contatos

íntimos e relações sexuais mediante pagamento. A atividade em si não é considerada

crime nem no Brasil nem na Espanha. Os dois países, por outro lado, condenam a

exploração e a facilitação da prostituição. Importante mencionar que existe um grande

debate, por parte dos movimentos sociais de política de gênero e, principalmente,

daqueles ligados a movimentos feministas, sobre os aspectos jurídicos da prostituição

que podem ser descritos em quatro modelos. 1. Penalização da prostituição e ou de

atividades relacionadas com ela: entende que a prostituição constitui delito,

penalizando os proxenetas e os clientes. 2. Regulamentação da prostituição: nesse

23

modelo aceita-se a prostituição, mas sem conceder direitos legais às prostitutas como

trabalhadoras. 3. Despenalização da prostituição e das atividades relacionadas a ela:

essa modalidade diferencia a prostituição forçada da voluntária e despenaliza tudo o que

esteja relacionado com a última. 4. Legalização da prostituição: considera a prostituição

voluntária e não forçada como uma forma legal de trabalho, concedendo-se inclusive

direitos e obrigações civis e trabalhistas. (GUTIÉRREZ, 2006, pg.63 a 65).

Prostituição de rua – Na Espanha, essa modalidade de prostituição é desenvolvida em

parques, centros urbanos e pólos industriais. A rua é o espaço onde se faz a “negociação

econômica”. As relações sexuais ocorrem em hotéis ou pensões (e até mesmo nos carros

ou espaços abertos e afastados). É exercida sobretudo, por mulheres africanas e do Leste

Europeu e também pelas travestis. Antes do fechamento da passagem dos carros pela

“Casa de Campo”, parque localizado na parte oeste de Madri, elas podiam ser

encontradas facilmente. (Ver: El País, 16/07/2007 - Pedro Calvo: "No es mi problema saber

dónde van las prostitutas"

http://www.elpais.com/articulo/espana/Pedro/Calvo/problema/saber/van/prostitutas/elpe

puesp/20070716elpepunac_12/Tes). As mulheres que trabalham nas ruas, salvo as que

são agenciadas pelos traficantes (“chulos”), não dividem com ninguém, os valores

auferidos. Por outro lado, elas estão mais vulneráveis a violência, agressões. Além

disso, a prostituição de rua é menos remunerada do que a de clubs e de pisos.

Regime análogo à escravidão – Consiste na condição de submissão de uma pessoa a

outra que se caracteriza pela obrigação de trabalhar sem a observância de quaisquer

direitos, mediante o cerceamento do direito de ir, vir e ficar. É um dos tipos listados

como Crime contra a Humanidade do Estatuto do TPI. O Código Penal Brasileiro a

define em seu artigo 149: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer

submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a

condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua

locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:”

Rotas de Tráfico – São os caminhos nacionais e transnacionais estáveis (rodovias,

ferrovias, hidrovias, aerovias) previamente traçados por pessoas ou por grupos de

pessoas que têm como objetivo deslocar as vítimas de tráfico até o destino planejado,

e.g. Rota de tráfico Brasil-Espanha. A PESTRAF conceitua “rota” como sendo “o

24

caminho previamente traçado por pessoas ou por grupos que têm como objetivo chegar

a um destino planejado.”

Rufianismo – Aquele que tira proveito da prostituição alheia, participando diretamente

de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça, ou seja,

caracteriza-se pela exploração da prostituição de outrem que, no Brasil (Código Penal,

artigo 230) e na Espanha ( Código Penal, artigo 187), constitui crime.

Testemunha protegida – Condição jurídica que assegura à testemunha de um crime

proteção de vida, com anonimato, extensiva a familiares (Programa Federal de

Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, coordenado pelo Ministério da

Justiça e instituído pela Lei Ordinária nº 9.807/99).

Visto – Autorização prévia de ingresso de um estrangeiro no território de um país, por

este expressamente exigida. Exemplo: os EUA exigem visto do Brasil, e vice-versa

(Princípio da Reciprocidade). A União Européia não exige visto para o Brasil e vice-

versa. Os vistos são emitidos pelos consulados dos respectivos Estados.

Vítimas de tráfico – O Protocolo de Palermo conceitua a vítima de tráfico dentro do

conceito de tráfico, em seu artigo 3º. Assim, considera-se tráfico: “o recrutamento, o

transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à

ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao

engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou

aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que

tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo

menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual,

o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a

servidão ou a extração de órgãos;” Importante ressaltar que na alínea “b” do mesmo

artigo fica estabelecido que se algum dos meios de condicionamento previstos na alínea

“a” ficarem configurados, o consentimento da vítima é irrelevante, ou seja, mesmo que

a pessoa consinta em viajar por algumas das formas previstas no artigo 3º, ela será

considerada vítima de tráfico. O Protocolo determina que as vítimas de tráfico recebam

tratamento diferenciado em relação aos imigrantes irregulares, independentemente de

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sua colaboração com as autoridades policiais e de imigração. A caracterização das

pessoas traficadas como vítimas as insere dentro do âmbito da proteção dos Direitos

Humanos.