Sociologia como ciência e desafios brasileiros
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8/7/2019 Sociologia como cincia e desafios brasileiros
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SOCIOLOGIA COMO CINCIA E DESAFIOS BRASILEIROS
Fbio Wanderley Reis
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A expresso desafios brasileiros constante do ttulo que propus para esta
apresentao contm uma ambigidade proposital. Ela se refere tanto aos desafios relativos
apropriada consolidao da sociologia no Brasil quanto aos desafios analticos postos
pelos problemas prticos de importncia que se apresentam ao pas e com que ela deve
lidar. Pareceu boa idia retomar o foco central de outra palestra que fiz na prpriaSociedade Brasileira de Sociologia (SBS) 17 anos atrs, em 1989, por ocasio do IV
Congresso, numa mesa-redonda intitulada Teoria social: novos desafios. Eu tratava a do
tema das relaes entre intencionalidade e causalidade a propsito da abordagem da
escolha racional e destacava, a respeito, as vicissitudes do funcionalismo. Pretendo
agora reformular e ampliar a elaborao de vrios aspectos, mas defenderia a retomada de
alguns pontos bsicos da palestra anterior pelo menos por duas razes.
Em primeiro lugar, creio que as posies sustentadas, e suas ramificaes terico-
metodolgicas, continuam sendo crucialmente relevantes nos planos analtico e prtico. Emsegundo lugar, h algo que diz respeito a minha prpria histria profissional e que, como
no espero ter a chance de novo convite da SBS daqui a mais 17 anos, talvez me seja
permitido invocar. Refiro-me ao fato de que as idias sustentadas naquela palestra
correspondem a coisas que defendo em textos e publicaes h dcadas, mas sem muito
xito quanto a conseguir dialogar a respeito delas. Se posso levar um pouco adiante este
pequeno exerccio de cabotinismo, tomo como exemplo um livro de minha autoria,
Poltica e racionalidade, que, escrito em 1981 e publicado em 1984 (com segunda edio
em 2000), foi o primeiro livro a receber o prmio de melhor obra cientfica da
Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais (Anpocs), o que
levaria a supor que devesse merecer alguma ateno de nossa comunidade de cincias
Conferncia pronunciada no XII Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, Belo Horizonte, 1o. dejunho de 2005. O autor registra seus agradecimentos direo da SBS, especialmente a Maria Stela GrossiPorto.
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sociais. Pois bem. Apesar de ter conhecimento de certa utilizao do livro em cursos de
cincia poltica e sociologia, as nicas linhas de comentrio publicadas de que tenho notcia
no vo alm de trs menes passageiras, duas das quais, em textos de colegas mineiros,
deixam claro que o livro no foi lido, embora talvez tenha sido folheado.
Ora, essa experincia ilustrativa de algo que vai bem alm do plano pessoal.
possvel lig-la, por exemplo, com um aspecto importante do problema da implantao das
cincias sociais no pas que surgiu com fora na crise atual nas relaes da rea da cincia
poltica com a Comisso de Aperfeioamento do Pessoal de Ensino Superior (Capes),
deflagrada pelas avaliaes negativas recebidas por importantes programas da rea (eu
mesmo cheguei a participar, em razo da crise, de uma dramtica reunio entre cientistas
polticos e dirigentes da Capes, em fevereiro de 2005). Trata-se da questo do padro
internacional ou no da cincia social produzida por ns, e o que me importa aqui acontraposio entre, por um lado, certa idia algo burocrtica de insero internacional
que orienta as avaliaes da Capes a respeito e, por outro, o que me parece ser o desejvel
ou aquilo que deveramos buscar. A perspectiva da Capes quanto insero internacional
envolve coisas como medir a participao dos programas em reunies ou simpsios
internacionais, onde todos sabemos o que pode ocorrer de esprio, ou o volume de
publicaes em veculos brasileiros supostamente de padro internacional, o que objeto
de disputas. J o que caberia buscar, a meu ver, ilustra-se com o modelo da sociologia
polonesa do ps-guerra, em que o rico debate interno ao pas (aberto, por certo, produointernacional relevante) acaba resultando no transbordamento internacional, em que o
pblico internacional naturalmente levado a tratar de se inteirar do que l acontece, numa
dinmica que enseja o aparecimento de tradues e a divulgao mundial dos trabalhos dos
socilogos poloneses.
Isso contrasta fortemente com a pobreza do nosso debate interno que minha
experincia ilustra. No conseguimos criar uma cultura de debate autntico: ou nos
limitamos aos elogios mais ou menos ocos ao trabalho dos amigos ou o que temos so as
brigas pessoais e o confronto de vaidades, e no creio que as conseqncias negativas disso
possam ser superadas no rumo para o qual apontam os critrios da Capes. Tenho destacado,
em especial, o fato de que a pobreza do debate se relaciona com a indigncia da reflexo
terico-metodolgica mais ambiciosa: nesse plano, o que temos a reverncia paralisante
diante dos Estados Unidos e da Europa e a adoo por nossos cientistas sociais da postura
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de meros consumidores diante do que se faz nos pases centrais.
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Se nos voltamos, depois desse intrito, para os aspectos mais substantivos do tema
proposto, um ponto de partida poderia ser a oscilao perversa entre dois modelos
contrastantes de explicao dos fenmenos sociais, a qual assinalada por Robert Nozick
em livro de anos atrs (Anarchy, state, and utopia). De um lado, sempre que o nvel
aparente dos fenmenos sugere a ocorrncia de mecanismos do tipo mo invisvel (ou
seja, de mecanismos causais, na medida em que no envolvem ou no resultam na
realizao dos desgnios explcitos de quem quer que seja), a explicao aparece como
consistindo em apontar a atuao, na verdade, dos interesses ou objetivos de algum atorou conjunto de atores portanto, em substituir os mecanismos de mo invisvel por algum
mecanismo do tipo mo oculta, o desgnio de algum ou de algum grupo, tipicamente
um desgnio sinistro ou conspiratrio, que maneja as coisas e as faz daquela forma. De
outro lado, sempre que o nvel aparente sugere a operao bem-sucedida de agentes que
buscam desgnios explcitos e os processos se ajustam por esse aspecto de intencionalidade
a um modelo do tipo mo oculta, a explicao aparece, ao contrrio, como consistindo
em mostrar que na verdade o ator irrelevante (Napoleo irrelevante, se no houvesse
Napoleo surgiria algum mais...) e que os mecanismos causais, objetivos, os mecanismosde causalidade social objetiva, fornecem a verdadeira explicao.
A dificuldade a envolvida se mostra vivamente com a discusso sobre o enfoque da
escolha racional formalizada na teoria dos jogos, designada s vezes como a public
choice no campo da cincia poltica e aplicada ao marxismo com a designao de
marxismo analtico. Esse enfoque tornou-se uma indstria prspera nos ltimos decnios,
dando origem a crescente literatura, e as indagaes suscitadas no debate em torno dele tm
ramificaes de grande interesse prtico. Afinal de contas, uma questo crucial a de saber
se possvel ou no agir intencionalmente no plano da sociedade e efetivamente controlar
os processos sociais, realizando com eficcia desgnios ou objetivos de algum modo
compartilhados ou que correspondam de alguma forma a interesses propriamente coletivos
ou pblicos. Um dos desdobramentos importantes de tal questo o da maneira em que tais
objetivos compartilhados ou coletivos se articulam com interesses particulares ou, no
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limite, estritamente individuais.
Na palestra de 1989, a conjuntura era definida pela constituio promulgada no ano
anterior, um marco institucional importante no esforo de reimplantar a democracia no
pas. evidente o sentido em que a elaborao de uma nova constituio envolve
intencionalidade e a busca de um objetivo supostamente coletivo. Mas surge, naturalmente,
a questo de como essa busca pode sereficaz, e h muito (na verdade, praticamente desde o
momento de sua promulgao) a Constituio de 1988 objeto de crticas e emendas que
indicam a percepo difundida de que o resultado do trabalho dos constituintes no
corresponde ao que seria necessrio nas circunstncias da vida do pas, quer do ponto de
vista institucional atento real consolidao da democracia, quer de um ponto de vista
atento antes s novas condies mundiais, especialmente econmicas, e ao imperativo de
insero eficiente nelas. Ora, a questo geral da eficcia na busca de objetivos coletivoscomo componente do trabalho de elaborao constitucional supe claramente a
manipulao de fatores causais, o que redunda em dizer que supe o diagnstico acurado
das condies objetivas em que ocorre a busca e que deveriam condicion-la para
possibilitar o xito. O problema a contido se ilustra com idias que Roberto Mangabeira
Unger andou propondo durante os trabalhos da Assemblia Constituinte. Em conferncia
pronunciada na Universidade Federal de Minas Gerais em 1985, por exemplo, sustentava
ele que a constituio ento sendo elaborada deveria consagrar a subverso permanente.
Isso pode provavelmente ser visto como boa doutrina, no sentido de que o teste ltimo dasinstituies polticas (e de uma constituio como exemplo especialmente importante) o
de at que ponto elas se mostram capazes de processar por seus prprios meios, isto , em
termos estritamente legais e institucionais, os conflitos de toda natureza e eventualmente a
prpria transformao revolucionria (ou a subverso) em qualquer momento dado. Mas
patente a precariedade da tese da subverso permanente se apreciada em termos de uma
sociologia realista das circunstncias do Brasil de 1988 ou mesmo de hoje (e, quem sabe,
de qualquer pas em qualquer momento): ela ignora por completo a questo do poder real
dos diferentes focos de interesses, que a Constituio tem de contemplar e acomodar se no
quiser se transformar em mera projeo voluntarista fadada ao desastre (mesmo na
hiptese, j de si pouco realista, de que essa projeo pudesse prevalecer no momento
formal da elaborao constitucional).
Nossa conjuntura atual difere da de 1989 por se tratar de um momento em que a
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democracia j estaria supostamente consolidada. Afinal, no s passamos de maneira
institucionalmente normal por vrias eleies presidenciais, como tambm vivemos
agora o experimento indito da chegada de Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT)
Presidncia da Repblica, algo que pareceria inadmissvel no quadro de turbulncias e
enfrentamentos da Guerra Fria de que a longa ditadura de 1964 foi um produto direto.
Contudo, estamos postos diante dos embates relacionados com a administrao petista, as
expectativas especiais que criou e os diversos aspectos pelos quais ela resulta em
frustrao.
Em termos gerais, de qualquer modo, o problema prtico de intencionalidade versus
causalidade tem assumido, no plano analtico, a forma do confronto entre a abordagem da
escolha racional e a abordagem sociolgica convencional. Mas h uma questo especial,
a questo do funcionalismoe seu papel nas cincias sociais, em que a tenso entre as duasdimenses se mostra particularmente relevante, dando origem s tais vicissitudes do
funcionalismo" de que falei em 1989. Pois a abordagem funcional abarca os dois lados da
questo metodolgica de intencionalidade versus causalidade. H no funcionalismo um
patente elemento de teleologia, portanto de intencionalidade, mas h tambm um elemento
relacionado com a idia de sistema que aponta na direo de uma causalidade objetiva
em operao. Temos, portanto, uma espcie de teleologia objetiva, uma fuso entre os
dois aspectos, que provavelmente fornece parte importante da explicao para o reiterado
interesse pelo funcionalismo. Vemos repetidamente algum decretar que o funcionalismomorreu, est enterrado mas l vem ele sempre de novo. E nesse morrer e ressuscitar h
mesmo matizes irnicos.
Assim, se ponderamos a crtica ao funcionalismo formulada por expoentes da
escolha racional (como Jon Elster) na perspectiva dos enfrentamentos que ocorriam at a
dcada de 1970, deparamos com coisas surpreendentes, que redundam na total inverso das
posies de alguns dos principais contendores. Anteriormente, a sociologia ou a cincia
social mais acadmica era funcionalista. J a sociologia marxista atacava
sistematicamente o funcionalismo e denunciava com insistncia o carter funcionalista da
cincia social dominante ou estabelecida. Ora, o que temos depois que a cincia social
que mereceria ser chamada acadmica (estabelecida em torno da abordagem da escolha
racional, com suas vrias ramificaes e sua crescente penetrao) ataca de maneira
inclemente o funcionalismo enquanto os marxistas, ou pelo menos certos setores que
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caberia provavelmente ver como mais convencionalmente marxistas, valem-se
defensivamente do funcionalismo contra o assalto da escolha racional e o reivindicam de
maneira afirmativa e estridente, como exemplificado por Gerald Cohen na Gr-Bretanha.
Mas h outras coisas equvocas nos debates relacionados com o funcionalismo que
ajudam a situar o interesse dos problemas envolvidos. Se se toma o trabalho de Jrgen
Habermas e se considera, por exemplo, o volume Teoria da ao comunicativa, l se
encontra a contraposio entre o mundo da vida e o sistema. O mundo da vida diria
respeito s orientaes da ao, vale dizer, a uma dimenso que intencional. Mas h aqui
uma clara peculiaridade se a perspectiva de Habermas confrontada maneira usual de
entender a intencionalidade na abordagem da escolha racional, pois em Habermas o
intencional do mundo da vida inclui de forma destacada a observncia de normas, no se
reduzindo ao que se poderia descrever como a mera busca instrumental de fins que aescolha racional salienta. J na dimenso correspondente ao sistema se trataria das
consequncias da ao, ou seja, daquele aspecto em que vem a operar uma causalidade
objetiva supostamente mais adequada a um tratamento metodolgico de tipo emprico-
analtico e, segundo Habermas, de tipo funcional. Com efeito, Habermas se prope,
explcita e reiteradamente, recuperar uma anlise em termos funcionais de acordo com essa
lgica objetiva prpria do sistema, ainda que afirmando os seus limites e o espao
irredutvel dos aspectos comunicativos da ao, a exigirem abordagem distinta. Mas que
fazer, ento, quando nos damos conta (como se pode ver, por exemplo, no artigo de AdamPrzeworski sobre Marxismo e escolha racional, publicado pela Revista Brasileira de
Cincias Sociais em 1988) de que a crtica dirigida pelos adeptos da escolha racional aos
funcionalistas, includos os funcionalistas marxistas, pretende que o funcionalismo se
caracterize, em contraste com a nfase no clculo guiado por interesses, justamente pelo
postulado de que o comportamento orientado por valores e normas internalizadas, tal
como se d no mundo da vida de Habermas? As coisas parecem de fato confusas.
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Bem. O ponto central de minha palestra de 1989 consistia num exerccio lgico que
permitia evidenciar alguns dos equvocos mais srios contidos nas discusses sobre o
funcionalismo e procurar desfaz-los, salientando a juno realizada pela idia de sistema
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entre a intencionalidade (estratgica) e a causalidade, ou, para usar as expresses inglesas
em que o contraste s vezes formulado, entre agency e structure. Retomo o exerccio.
Ele parte de outro texto de Adam Przeworski (Micro-foundations of Pacts in Latin
America, que tinha tido ento apenas circulao restrita, mas cujas idias foram depois
incorporadas ao primeiro captulo de Democracia e mercados). Przeworski trata a das
mesmas questes terico-metodolgicas bsicas em conexo com o tema do
estabelecimento de pactos constitucionais nos pases da Amrica Latina. Esta ,
naturalmente, uma forma de colocar o problema, que vivamos ento, da transio para a
democracia: como estabelecer pactos que venham a ter vigncia efetiva e a representar a
viabilizao de formas democrticas estveis. Como sugeri antes, um pacto constitucional
representa, em princpio, o exemplo por excelncia de procedimentos que envolveriam a
operao de intencionalidade no plano coletivo. As deliberaes relacionadas com aimplantao de uma nova constituio ou de um novo pacto constitucional representam
claramente um caso ou circunstncia em que, em tese, a sociedade como tal reflete sobre si
mesma, decide como vai se organizar, como vo ser regulados os diversos aspectos da
interao entre os seus membros no futuro, etc. Trata-se supostamente, assim, de um
momento de reflexo ou, numa frmula meio redundante, de auto-reflexo. Mas o interesse
principal que o texto de Przeworski me parece ter do ponto de vista desta discusso
consiste no fato de que, em razo do apego a certa maneira caracterstica de considerar o
problema da intencionalidade na forma mais convencional da abordagem da escolharacional, Przeworski levado at mesmo a definiro pacto constitucional em termos da
operao de mecanismos que no so outros seno os mecanismos do mercado. Tais
mecanismos, designados por ele como self-enforcing(auto-impositivos), correspondem
idia de um ajustamento recproco entre atores dispersos, ajustamento este que se faria de
maneira espontnea ou automtica, sem a interferncia de um agente de coordenao tal
como o estado e sem que fosse necessrio o estabelecimento de uma barganha explcita. Na
verdade, a proposta de busca de um consenso democrtico explcito mesmo vista como
expresso de um legado intelectual no-democrtico que seria, em alguma medida,
prprio da Amrica Latina, contrapondo-se a isso a idia de que a quintessncia da
democracia que no h ningum para imp-la (to enforce it). Assim, combinam-se de
maneira curiosa uma concepo radical de democracia com a pretenso de fundar a
eventual implantao constitucional da democracia num elemento de realismo, o qual diz
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respeito ao ajustamento entre os interesses mais ou menos mopes ou imediatistas e busca
instrumental deles, que a perspectiva ortodoxa da abordagem da escolha racional tende a
destacar.
Assinalemos alguns pontos quanto a essa perspectiva.
1. Em primeiro lugar, quanto questo de radicalismo-realismo, destaque-se
que o elemento realista da anlise de Przeworski corresponde ao fato de ele pretender
trazer uma perspectiva econmica, que salienta, como acabo de dizer, a idia de
interesses. Mas, com base em discusses recentes no campo da prpria economia,
claramente possvel caracterizar a concepo de interesses de Przeworski como
correspondendo perspectiva neoclssica, que j envolve, por si mesma, certa
idealizao da prpria idia de interesses: sem essa idealizao no haveria por que
presumir que o mero jogo espontneo dos interesses resultasse na acomodao propciaou no crculo virtuoso em que brotaria a democracia (quanto mais pretender at
mesmo definira democracia por referncia a esse jogo). Chamo ateno especialmente
para os esforos de Samuel Bowles e Herbert Gintis, em diversos artigos e livros, para
mapear revises recentes no campo da economia. A perspectiva neoclssica ou
walrasiana surge a como presumindo a existncia de um cavalheirismo vitoriano em
que a busca do interesse prprio se faz de maneira comedida e um aperto de mos
um aperto de mos e que supe justamente que a presena do estado j esteja
assegurada para garantir os contratos e permitir o cavalheirismo; dito de outra forma,supe resolvido o problema da poltica e da democracia. Bowles e Gintis lembram, a
propsito, o que sugeria o economista Abba Lerner num artigo de 1972: uma
transao econmica um problema poltico resolvido. Em contraposio, dizem
Bowles e Gintis, na ausncia do estado (ou, digo eu, na situao em que prevalecesse o
self-enforcementde que fala Przeworski, que Bowles e Gintis chamam de
enforcementendgeno, exercido pelos prprios agentes, em contraste com o
enforcementexgeno, exercido pelo estado), em vez de presumir que teramos a
evoluo benigna na direo da democracia, o que caberia presumir antes que
teramos o conflito a busca do interesse prprio com perfdia de que fala Oliver
Williamson num artigo de 1984 intitulado The economics of governance. De
passagem, cabe salientar as implicaes disso no sentido de limitar a relevncia de
certas concepes que se tm difundido e que valorizam, com base sobretudo em
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Habermas, a idia de democracia deliberativa: se uma transao econmica um
problema poltico resolvido, que dizer de um parlamento, a instituio deliberativa
por excelncia? A democracia deliberativa certamente uma aspirao vlida e mesmo
crucial, e os espaos de deliberao correspondem a um elemento indispensvel na
construo institucional da democracia; mas, como fundao analtica de uma cincia
da poltica, o modelo deliberativo claramente pouco realista e, em consequncia,
precrio.
2. Em segundo lugar, alm da combinao curiosa entre o radicalismo e um
peculiar realismo, note-se que a proposta de Przeworski redunda numa ainda mais
curiosa pirueta, na qual se tem ilustrao dramtica e mesmo caricatural da oscilao
entre mo oculta e mo invisvel: partindo-se da colocao de um problema que
envolve inevitvel e centralmente a idia de intencionalidade (da mo intencional, sejaoculta ou ostensiva), chega-se a tal formulao do problema que a operao dessa
intencionalidade e a manipulao deliberada em que ela necessariamente se traduziria
surgem como s tendo condies de xito caso se reduzam operao de mecanismos
de mo invisvel e de causalidade objetiva e isso, ademais, em nome de uma
abordagem (a da escolha racional) que pretende justamente privilegiar o agente
intencional e racional por contraposio aos mecanismos causais na sociologia e nas
cincias sociais em geral!
3. Finalmente, algo de grande interesse para o que pretendo propor adiante. Nacaracterizao que faz Przeworski de diversas situaes por referncia idia da
operao de mecanismos auto-impositivos, observamos que tais mecanismos podem ser
de natureza tanto boa quanto m. Assim, o conflito aberto visto como
correspondendo ao jogo de mecanismos auto-impositivos, pois os ajustamentos
recprocos levariam a que o conflito prosperasse ou tendesse a se manter e a durar; mas
tambm uma dinmica que leve ao compromisso institucional pode apresentar essa
mesma caracterstica auto-impositiva, e acabamos de ver que isso corresponde mesmo,
para Przeworski, ao caso do pacto constitucional autntico, ou autenticamente
democrtico. Um terceiro caso ou possibilidade a apresentar a mesma caracterstica a
do jogo de cabo-de-guerra ou das oscilaes pretorianas entre populismo e
militarismo, que tm marcado o quadro geral de instabilidade poltica de muitos pases
latino-americanos. Embora Przeworski no utilize os termos, o que temos aqui ,
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naturalmente, a idia subjacente distino entre o crculo virtuoso (caso da
dinmica que leva ao compromisso institucional) e o crculo vicioso (caso da
instabilidade pretoriana e do conflito que se auto-alimenta), os quais so ambos
caracterizados pela ocorrncia de um mecanismo de feedbackde natureza positiva, no
qual determinada tendncia se refora a si mesma.
Tendo isso em mente, tomemos a feroz crtica ao funcionalismo formulada em
tempos recentes por Jon Elster, um dos mais importantes paladinos da abordagem da
escolha racional (apesar de oscilaes que o levam a sustentar a certa altura, e de maneira
que se revela na verdade inconsistente, que, ao lado de fenmenos que se explicam pela
racionalidade, teramos fenmenos cuja explicao exigiria a referncia a normas: fica de
lado a questo de como racionalidade e normas se relacionam...). Em diversos textos (por
exemplo, em Ulysses and the Sirens), Elster caracteriza o modelo da explicao funcionalem termos que envolvem a ocorrncia de dois elementos. Em primeiro lugar, o modelo
teria um trao essencial no fato de apontar a produo de efeitos que so a um tempo no-
intencionais e benficos. A caracterstica no-intencional dos efeitos produzidos redunda
em que a verdadeira explicao funcional recorreria idia de Robert Merton da funo
latente (se no, isto , se se tratasse de funo manifesta, estaramos no plano da
intencionalidade e da prpria escolha racional, no no do funcionalismo), funo latente
esta que vista, ademais, como produzindo efeitos benficos. Em segundo lugar, supe-se
a operao de uma reviravolta (ou um feedback loop) pela qual a funo mantm ainstituio (ou a estrutura, o padro de comportamento, etc.) que a produz em determinada
coletividade. Se o carter latente e no manifesto da funo permitiria diferenciar a
explicao funcional da explicao intencional como tal, a existncia ou operao de um
mecanismo de feedback, em que uma instituio ou um item qualquer produzido por seu
efeito benfico, que introduz o elemento de teleologia pelo qual a explicao funcional se
diferenciaria da mera explicao causal. Um ponto importante das crticas dirigidas por
Elster ao funcionalismo reside no fato de a operao desse mecanismo de feedback,
essencial para a explicao funcional, ser o mais das vezes meramente suposta, com o
padro tpico de recurso ao modelo funcional de explicao dispensando-se de fornecer as
provas correspondentes.
Surge aqui uma indagao: como se ligaria a concepo da explicao funcional
proposta por Elster com a idia de Przeworski da situao caracterizada por mecanismos
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auto-impositivos? Lembre-se que, no caso de Przeworski, tanto as condies
correspondentes ao crculo virtuoso quanto as correspondentes ao crculo vicioso envolvem
igualmente a ocorrncia de um mecanismo de feedbackpositivo, ou seja, de um mecanismo
tal que a informao sobre a produo de determinado efeito reverte sobre os agentes de
maneira a intensificarsua propenso a agir na direo em que o efeito produzido (o que
se liga com a idia de path-dependence que se difundiu de uns tempos para c, aludindo a
mecanismos que se auto-reforam). Ora, do maior interesse, no contexto de nossa
discusso, contrapor o caso do feedbackpositivo ao do feedbacknegativo, o qual envolve a
idia de algo que age na direo contrria de um movimento inicial e neutraliza ou
compensa esse movimento. Em outras palavras, a idia do feedbacknegativo sobretudo a
de que, uma vez introduzida certa perturbao no estado de equilbrio de um sistema dado,
entram em ao mecanismos corretivos que neutralizam aquela perturbao e mantm oureconstituem o equilbrio do sistema.
preciso atentar para um fator de confuso no fato de estarmos lidando com dois
planos em que se acha em jogo certa idia de positivo versus negativo, o plano do
feedbackpositivo ou negativo e o plano dos efeitos positivos (benficos) ou
negativos (malficos) prprios da contraposio entre o crculo virtuoso e o crculo
vicioso: naturalmente, tais efeitos benficos ou malficos so, em ambos os casos,
exemplos de feedbackpositivo. Evitada a confuso, uma observao importante a de que
a literatura funcionalista clssica tende em geral, sem a menor dvida, a destacar a idiado feedbacknegativo, quer dizer, a operao de mecanismos que concorrem para manter
um sistema dado. Um exemplo especial, de interesse para certas coisas que pretendo
ressaltar adiante, tem-se com um suposto crucial do funcionalismo marxista: a relao entre
estado e capitalismo, ou a concepo do estado como funcional para a dominao
capitalista. A idia a de que o estado operaria de forma a manter o sistema capitalista, o
que significa que qualquer perturbao ou ameaa que o sistema sofra e que tenda
eventualmente a transform-lo num sistema de outra natureza ser neutralizada ou corrigida
pelo estado: haveria mecanismos de feedbacknegativo cuja atuao corresponderia
essncia mesma da natureza do estado na sociedade capitalista. De toda maneira, a tica
mais difundida no que se refere ao recurso ao modelo de explicao funcional nas cincias
sociais certamente a de que o carter positivo ou benfico da funo de alguma forma
produz ou acarreta o feedbackapropriado manuteno da instituio responsvel por
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ela e tende-se a presumir que este ser um feedbackde tipo negativo, que anula as
perturbaes.
Quando se examina um pouco melhor o problema, porm, verifica-se que a lgica
bsica envolvida na explicao funcional perfeitamente compatvel com a idia do
mecanismo de feedbackpositivo ou de reforo, quer se considere essa lgica nos termos da
clssica discusso que dela fez Carl Hempel, quer ela seja tomada nos termos da
caracterizao de Elster anteriormente mencionada. No caso da discusso feita por Hempel
da lgica da anlise funcional, a indagao o que que faz com que a explicao
funcional seja explicao, ou possa pretender o status de explicao autntica; no caso de
Elster, a indagao antes o que que faz com que a explicao funcional seja funcional, o
que que lhe d sua particularidade como tipo supostamente especial de explicao. Seja
como for, inegvel que o modelo de explicao funcional se ajusta tambm idia domecanismo de feedbackpositivo do tipo crculo virtuoso: se legtimo admitir que o
efeito benfico de uma instituio concorre para mant-la, ou eventualmente para fazer
com que ela venha a existir, patentemente legtimo admitir que esse efeito benfico
concorrer para manter um conjunto qualquer de elementos inter-relacionados que se
articulem favoravelmente com a existncia daquela instituio, de acordo com o padro do
crculo virtuoso. Se se admite que a suposta funcionalidade do estado no sistema capitalista
pode ser tomada como explicao da existncia ou do funcionamento do estado nesse
sistema, obviamente tambm possvel pretender explicar em termos funcionais tudoaquilo que concorra para que o estado exista com as caractersticas que o distinguem, e
eventualmente para que se reforcem de maneira automtica tais caractersticas. Alis, h
mesmo um claro elemento de redundncia ou tautologia nisso.
Mas, uma vez tendo chegado a este ponto, imperioso dar um passo adiante e
perguntar: que dizer do crculo vicioso? Se cabe admitir que a lgica da anlise funcional
compatvel no s com a idia do feedbacknegativo, mas tambm com a do feedback
positivo de tipo virtuoso, ou com o crculo virtuoso, por que no seria ela compatvel
tambm com o crculo vicioso? A lgica envolvida na dinmica dos processos
caracterizados pelos dois tipos de feedbackpositivo evidentemente a mesma. Uma
ponderao decisiva aqui a de que, naturalmente, o carter virtuoso ou vicioso deste
ou daquele item, padro de comportamento, instituio, ou o que quer que seja, sem dvida
depende do ponto de vista que se adote. Tome-se, por exemplo, a caracterstica de jogo de
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cabo-de-guerra ou de oscilao perversa entre militarismo e populismo instvel que
marcaria o pretorianismo brasileiro e latino-americano, a qual o prprio Adam Przeworski,
como vimos, aponta como exemplo de condio auto-impositiva. bastante claro que, se
essa caracterstica pode ser vista como disfuncional por referncia a um objetivo
democrtico que certos atores possam ter (ou que certas partes do sistema na sua
complexidade possam ter), ela certamente pode ser vista como funcional do ponto de vista
de outros atores, outros interesses, outros objetivos.
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Qual a consequncia geral a extrair da? Ela me parece consistir na necessidade de
reconhecer os matizes requeridos pela apreenso adequada do problema da explicao nombito das cincias sociais. Tais matizes certamente envolvem a contraposio e a eventual
articulao entre o componente intencional e o componente causal. Se cabe destacar a
intuio de que, em sentido sociologicamente relevante, o prprio causal (o sistmico)
a consequncia, em grande medida, de um processo complexo de interao estratgica (e,
portanto, intencional) entre atores diversos, de escalas variadas (individual ou coletiva de
maior ou menor alcance), no processo mesmo de se constituirem como atores e buscarem
afirmar seus interesses, objetivos, etc., tambm importante assinalar que os atores so
condicionados nessa interao por aspectos de um ambiente que inclui normas e ao qual sereferem percepes, crenas e expectativas, ou seja, fatores de natureza cognitiva. Como a
relevncia das normas comumente salientada ao menos por um dos lados nos embates
suscitados pela abordagem da escolha racional, destaquemos a importncia dos fatores
cognitivos: se, por um lado, compem eles prprios o ambiente ou concorrem para defini-
lo, podem, por outro lado, tornar menos ou mais reflexiva e sofisticada a relao dos
agentes com o ambiente (imerso menos ou mais ingnua nas identidades adscritcias,
apego a normas sociais dadas ou seu questionamento crtico, com a correspondente
descentrao perante a coletividade, definio dos interesses prprios feita de maneira
irrefletida e mope ou, ao contrrio, refletida e informada, at mesmo quanto aos valores e
s normas relevantes...). Teramos, assim, uma concepo geral em que a sociedade em sua
feio durkheimiana, objetiva, coisificada e opaca se veria ligada de forma terica e
metodologicamente mais aguda e proveitosa com o plano das aes intencionais. Nos
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termos de algumas categorias utilizadas por autores como Elster, Boudon e outros, seria
possvel falar do plano de uma causalidade supra-intencional no qual se dariam
regularidades ou leis sociolgicas em correspondncia com a composio ou agregao
de decises e aes intencionais ocorridas no nvel micro (no limite, o nvel
propriamente individual), plano supra-intencional este ao qual se contraporia o da
causalidade subintencional, que seria pr-sociolgico ou associolgico. Os aspectos
especficos discutidos em conexo com o modelo funcional de explicao podem ser postos
em correspondncia com isso: o fato de o carter benfico ou malfico de certo padro
de comportamento ou instituio terminar por ser indiferente do ponto de vista da lgica
geral em jogo teria a ver com esse carter de agregao ou composio que se acha referido
a aes intencionais mltiplas e descoordenadas. As percepes positivas ou negativas
(de benefcios ou de malefcios, vale dizer, a definio dos interesses) por parte dos atoresdispersos levariam a aes ajustadas a essas percepes, aes que, no nvel agregado,
produziriam crculos viciosos (processos desfavorveis), crculos virtuosos (processos
favorveis) ou, eventualmente, situaes de equilbrio passveis de serem tratadas por
referncia idia da operao de meros feedbacks negativos.
Especificamente quanto ao funcionalismo e atrao aparentemente irresistvel
exercida por alguns de seus supostos fundamentais (especialmente a idia de uma
teleologia objetiva), preciso reconhecer a legitimidade do empenho de apreender a
lgica que preside de forma mais global dinmica de determinada coletividade, ou seja,de falar em termos de sistema social. Em outras palavras, a denncia das mistificaes que
freqentemente ocorrem em conexo com a questo de sujeitos coletivos (ou da perspectiva
correspondente ao coletivismo metodolgico) no pode redundar em proibir, pura e
simplesmente, o recurso a suposies orientadoras relacionadas com a idia da tendncia
auto-regulao no plano do social. A idia de auto-regulao permite que se conceba a
combinao do elemento deliberado e intencional no nvel coletivo de maior ou menor
abrangncia (o nvel correspondente aos esforos deliberados de organizao e produo
artificial de normas, a que tenho me referido com a expresso o institucional como
objeto) com o aspecto correspondente ao jogo automtico de foras no processo de
interao estratgica e com o elemento em que o institucional ganha objetividade e
exterioridade e passa a atuar como o contexto para as aes do dia-a-dia (o institucional
como contexto). O emprego da ptica do sistema e das suposies correlatas pode
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certamente se fazer de maneira adequada se uma perspectiva atenta para o carter
intencional das aes no nvel micro e para a interao estratgica se combina com a
ateno para o nvel sociolgico como um nvel que est sempre dado, ou com uma
ontologia que sociolgica desde o comeo. Tratar-se-ia aqui do estudo das maneiras pelas
quais a complexa interao de sujeitos de escala variada no processo de se constituirem
como tal e de se confrontarem uns com os outros leva a que certas intencionalidades
(envolvendo identidades, projetos, objetivos, interesses) prevaleam na conformao (mais
ou menos precria ou bem-sucedida, mais ou menos beligerante ou, ao contrrio,
normativamente convergente) de sujeitos coletivos abrangentes e da lgica sistmica
que os regular. Reitere-se que, assim entendido, o sistmico inclui tambm as normas,
contrapondo-se concepo de Habermas que as restringe, como orientaes da ao, ao
mundo da vida.
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Esse conjunto de idias sobre as relaes entre intencionalidade e causalidade
permite importantes desdobramentos, por assim dizer, para trs, isto , para um plano
mais estritamente epistemolgico. Vou passar rapidamente sobre isto; o tema encerra
complicaes que tornam difcil explor-lo adequadamente aqui, mas seu interesse justifica
que seja pelo menos mencionado. O foco pode ser tomado de certas sugestes de JeanPiaget sobre supostas peculiaridades da sociologia como disciplina cientfica, sugestes
estas que me parecem envolver equvocos nefastos a partir de idias que representam
contribuies da maior relevncia.
Lembre-se a importncia atribuda por Piaget distino de Ferdinand de Saussure
entre dois planos, o diacrnico e o sincrnico. O plano diacrnico aquele em que a
explicao seria propriamente causal: trata-se da dimenso gentica ou histrica, do fluxo
temporal e do fato de os objetos e os fenmenos se acharem necessariamente imersos no
tempo, onde ocorreria a causao efetiva. Nos estudos lingusticos de Saussure, interessam,
quanto a este plano, os aspectos relacionados com o desenvolvimento histrico de qualquer
lngua. J o plano sincrnico seria aquele das relaes estruturais ou de implicao
lgica (a estrutura gramatical da lngua, em Saussure), onde a explicao passaria a ser
implicativa. Piaget pretende que a sociologia apresenta um carter especial do ponto de
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vista dessa distino. Enquanto a fsica e a matemtica, por exemplo, seriam inteiramente
implicativas, a explicao sociolgica oscilaria entre os dois planos: h fenmenos
(normas, valores e signos, na especificao que faz Piaget, que talvez possam ser postos em
correspondncia com o que certa literatura costuma designar como a superestrutura) em
que a explicao seria mais implicativa, mas outros fenmenos (as aes concretas,
talvez assimilveis infra-estrutura, apesar de que esta assimilao seja mais
problemtica) exigiriam explicao mais causal, gentica, histrica. Cabe fazer algumas
observaes a respeito.
Em primeiro lugar, no plano do social o carter dinmico, emergente e fluido que
distingue a dimenso do fluxo diacrnico se acha fortemente ligado com as aes
(autnomas) de sujeitos que buscam seus objetivos portanto, com a intencionalidade.
Embora se possa pretender apreender regularidades relevantes quanto a esse fluxo porreferncia a determinismos subintencionaise o condicionamento por eles exercido sobre
o comportamento humano e social (quer se trate dos determinismos relativos a fatores
estudados por disciplinas como fsica, qumica ou biologia, quer, por exemplo, das
pulses de que fala a psicanlise, que tambm escapam ao plano do comportamento
intencional), sem dvida h boas razes para a presuno que permeia as cincias sociais
(apesar de extremada na perspectiva dos economistas ou da escolha racional): a de que a
melhor apreenso mesmo do fluxo gentico ou diacrnico depende de a ao poder ser
concebida no como mera irrupo e emergncia, mas, precisamente, como aointencional e racional em busca de fins (e cabe observar que a idia de intencionalidade
relevante neste contexto implica a de racionalidade, ou seja, a de alguma forma de
avaliao autnoma pelo agente da conexo entre fins e meios disponveis, sob pena de se
transformar na ao determinada ou condicionada em que a intencionalidade
desapareceria). Alis, note-se que, de maneira aparentemente paradoxal, justamente essa
presuno sobre a racionalidade estruturadora da ao, ou sobre a ao concebida como
estruturada pela racionalidade, que permite apontar os equvocos da perspectiva mais
ortodoxa e polmica da prpria abordagem da escolha racional em seu confronto com a
abordagem convencional nas cincias sociais. Nessa perspectiva ortodoxa, a escolha
racional se prope substituir as cincias sociais convencionais e eventualmente deduzir,
pura e simplesmente, a sociedade em sua complexidade. Ocorre, porm, que a abordagem
da escolha racional no tem como realizar, com os seus prprios recursos, a apreenso do
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ambiente ou contexto social da ao racional. Essa apreenso, que indispensvel para
permitir, justamente, a adequada avaliao do carter menos ou mais racional da ao,
depende, queiramos ou no, do instrumental convencional das cincias sociais, a
sociologia entre elas. Assim como o sujeito que age ser tanto mais racional quanto mais
esteja informado a respeito do contexto de sua ao (alm do fato de o contexto
condicionar de muitas formas sua capacidade de obter as informaes e de lidar com elas),
assim tambm o analista estar tanto melhor equipado para avaliar a racionalidade da ao
quanto mais informado esteja ele prprio sobre aquele contexto e a multiplicidade de
aspectos relevantes dele.
Mas observe-se que o papel estruturador da ao concebida como racional envolve,
em termos da distino entre o diacrnico e o sincrnico, ou o causal e o implicativo,
justamente o reconhecimento do carter de clculo implicativo presente na ao. Piaget no seno inconsistente ao pretender sustentar a peculiaridade da sociologia quanto quela
distino. Como mostra o trabalho desenvolvido por ele mesmo ao longo de toda a sua
vida, toda explicao implicativa, e a explicao socilogica no oscila mais do que
qualquer outra (de fato, nenhuma explicao oscila): o desafio da explicao cientfica,
em qualquer campo, exatamente o de transitar do plano gentico e do fluxo heraclitiano
para o plano lgico e implicativo, e a lgica e a matermtica no so elas prprias, ensina
Piaget, seno o resultado da transposio para um plano virtual e simblico de operaes
que so originalmente operaes concretas. A natureza dos objetos (o fato de serem, emsua concreo, mais ou menos fluidos ou imersos na temporalidade, ou o fato de se
tratar, por exemplo, quer de objetos materiais, quer de eventos humanos e sociais)
simplesmente irrelevante. Afinal, foi o prprio Piaget, de novo, quem mostrou a ligao da
constituio da lgica, e da capacidade de operar logicamente, com a aquisio da idia do
objeto permanente, que o requisito indispensvel das operaes lgicas. Naturalmente,
temos a importante intuio ontolgica de Herclito sobre o movimento e o fluxo, a idia
de que no se entra duas vezes no mesmo rio, intuio esta em que se pretendeu fundar
uma dialtica supostamente antagnica aos princpios da lgica formal. Mas, por
importante que possa ser a contribuio substantiva e heurstica dessa intuio quanto aos
postulados a serem adotados sobre a natureza ltima da realidade, em particular a social,
e quanto fecundidade das indagaes que possam nascer da em diferentes reas de
problemas, no h como deixar de reconhecer a precedncia da intuio lgica sobre a
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intuio dialtica precedncia que se deve precisamente ao fato de ela fixar os objetos e
permitir sua manipulao real ou virtual, e assim eventualmente a sua explicao. Sem o
princpio da identidade, sem a idia do rio que um rio, o mesmo, e no ao mesmo tempo
outro rio ou outra coisa, no haveria sequer a possibilidade de se expressar a prpria
intuio dialtica que dizer da possibilidade de explicarqualquer evento ou conjunto de
eventos, nos quais no se poderia ver seno fluidez.
Mas isso leva a uma proposio especial, que eu diria estar implcita em Piaget,
embora no seja formulada explicitamente por ele, e que, na verdade, torna sem sentido a
contraposio entre o diacrnico tomado como causal e o sincrnico (na verdade, a
expresso acrnico seria mais adequada) tomado como implicativo ou lgico: a
atribuio de causalidade ela prpria uma operao lgica! Essa proposio
claramente afim, pode-se perceber, posio de Carl Hempel, que assimila simplesmenteexplicao causal a explicao nomolgica e dedutiva. Mas tambm afim ao que Piaget
mesmo chama de abstrao reflexiva para se referir ao tipo de abstrao que seria
caracterstico da lgica e da matemtica moderna, ou seja, a abstrao dirigida aos
procedimentos do prprio sujeito do conhecimento, e no a quaisquer propriedades dos
objetos ou coisas sobre as quais as aes daquele sujeito sejam executadas. Sendo crucial
para a lgica, a abstrao reflexiva tambm crucial para a metodologia cientfica, com um
importante desdobramento do ponto de vista da questo de intencionalidade e racionalidade
como postulados, em contraste com outros postulados possveis (apesar de que no seperceba como estes ltimos poderiam eles prprios prescindir da idia de atores
intencionais e racionais, que mesmo a historiografia mais convencional postula
necessariamente, se no quiser tornar-se absurda). Quer se trate de explicar por referncia a
processos objetivos, quer, no caso da intencionalidade, a explicao se refira aos nexos
que os prprios agentes atribuem a suas aes e que o analista procura apreender, s vamos
poder falar de causas quando houver regularidades e nomologia nas observaes, vale
dizer, quando houver a possibilidade de manipulao (ao menos virtual e contrafatual) dos
objetos e, por meio dessa manipulao, a repetio das observaes por seja quem for que
se disponha a isso. Em outras palavras, a nomologia e a lgica acabam por ligar-se com a
intersubjetividade e com a possibilidade de objetividade, ou seja, com a manipulao
intersubjetiva de objetos e, deste ponto de vista, a explicao baseada na atribuio de
nexos intencionais subjetivos ser to objetiva quanto a que mais o seja.
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Naturalmente, tudo isso tem importantes ramificaes para a questo das relaes
entre histria e sociologia, que podem ser sintetizadas na frmula de que a explicao
histrica s ser explicao se for, na verdade, sociolgica, vale dizer, implicativa ou
nomolgica. provavelmente suprfluo salientar a relevncia dessas ramificaes para a
discusso da sociologia no Brasil, onde o que vemos com freqncia , ao contrrio, de
parte dos socilogos, a renncia explicao sociolgica em favor de relatos
historiogrficos ou jornalsticos analiticamente pobres ou mesmo indigentes.
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Mas a perspectiva geral exposta sobre as relaes entre intencionalidade ecausalidade permite tambm certos desdobramentos para a frente, oupara o nvel de uma
teoria da poltica, do desenvolvimento poltico e da democracia e sua consolidao (o que
nos trs, finalmente, temtica dos desafios brasileiros tomados no plano prtico,
ademais do plano da prpria sociologia e sua consolidao cientfica de que tratei at aqui) .
Um ponto crucial o de que, se o sistema de que falei antes deve ser entendido
como abarcando o jogo estratgico de atores diversos e o desafio de sua acomodao
institucional, necessrio repudiar certo institucionalismo estreito que se tem afirmado
entre ns. A mais importante influncia negativa quanto a este ponto provavelmente vemdo mesmo Adam Przeworski, cuja concepo minimalista de democracia (que, de
maneira claramente inconsistente, tende a reduzir a democracia vigncia dos direitos
civis, omitindo o condicionamento do desfrute efetivo dos direitos civis pelo exerccio dos
direitos polticos e do exerccio dos direitos polticos pela existncia de um mnimo de
igualdade e, portanto, de direitos sociais) acaba sendo lida como justificando conceber a
prpria poltica de forma que a reduz ao que se passa no mbito do estado. Em contraste,
preciso reconhecer: (1) o carter necessariamente sociolgico de uma concepo
adequada da poltica, destacando a interao estratgica e conflitual entre diferentes
categorias de atores sociais qualquer que seja a forma por ela assumida (vale dizer, sem
importar que se trate quer de conflito convencionalmente econmico, religioso, de
classes, de grupos tnicos, etc., quer de conflito poltico em sentido estreito); (2) o fato
de essa perspectiva remeter a uma concepo ambiciosa (social) de democracia, ligando-
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a com um processo de institucionalizao em que substrato social e formalismos
institucionais venham a se articular de maneira adequada e permitam a acomodao dos
conflitos por meio de seu processamento institucional, em vez de violento ou beligerante.
Se tomamos o estado, ainda que se imponha evitar os exageros de uma concepo
estritamente marxista-funcionalista quanto natureza dele, a perspectiva que cabe defender
a respeito, a meu ver, aponta para o que h de correto no carter sociolgico de certos
supostos marxistas bsicos, a saber: as feies do estado dependem do que se passa na
sociedade (depende da luta de classes, diriam os marxistas), e mesmo a autonomia
relativa que o estado possa vir a apresentar depende, naturalmente, de condies que se
do na sociedade, em particular do fato de o eventual equilbrio de foras na disputa pelo
controle do estado lhe permitir maior rea de manobra autnoma. Trata-se aqui de afirmar
de maneira matizada a velha tese da dependnciaestrutural do estado no capitalismo. Atese que classicamente postula, sem mais, a dependncia do estado especificamente
perante os interesses dos donos do capital pode ser traduzida em termos dos maiores ou
menores espaos de autonomia estatal (e de busca estatal do interesse pblico ou geral) que
brotam da prpria disputa poltica. E o estado democrtico ser, em medida importante,
aquele ao qual os mecanismos institucionais que resultam da luta poltica e a enquadram no
dia-a-dia permitam escapar da necessidade de simplesmente responder capacidade
diferencial de presso de que gozem a cada momento as diversas categorias de interesses e
as identidades correspondentes.Do ponto de vista analtico, o grande desafio envolvido o de recuperar a lgica do
processo para dar conta dos problemas de transformao poltica ou de desenvolvimento
poltico. O empenho de apreender essa lgica contrasta, por exemplo, com a miopia terica
e a perseguio resfolegante aos eventos que caracterizou a literatura recente sobre as
transies do autoritarismo democracia nos pases perifricos, em que a abundante
literatura anterior sobre desenvolvimento poltico (teoricamente ambiciosa, embora
marcada por vrios problemas, includo o forte etnocentrismo) foi simplesmente
denunciada como arcaica e ignorada. Felizmente, temos aqui boas notcias recentes a
comemorar. Pode-se destacar, como exemplo de trabalho numa faixa de grande ambio
terica, o livro Democracy and redistribution, de Carles Boix, lanado em 2003. Tendo
recebido o reconhecimento de dois prmios internacionalmente importantes, o livro
envolve clara retomada da perspectiva de desenvolvimento poltico, ligando, com recurso
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a rico material emprico relativo a grande variedade de pases, as discusses sobre
democracia feitas na ptica da escolha racional, bem como o que se pode resgatar da
literatura sobre transies, com os temas e esforos anteriores de autores como
Barrington Moore e Samuel Huntington. Os resultados permitem salientar a importncia do
empenho de apreenso tanto da lgica de processos de longo prazo quanto (como sugere o
prprio ttulo, com o destaque dado articulao entre democracia e redistribuio) do
carter sociolgico/social daqueles processos, que eventualmente permitem o enraizamento
da democracia.
Mas h outra importante produo recente de sociologia e cincia poltica
(envolvendo, neste caso, abundante literatura) que se mostra tambm crucialmente
relevante e esclarecedora do ponto de vista da idia do sistmico como articulao do
estratgico com o estrutural e o institucional. Refiro-me literatura sobre o welfarestate e suas vicissitudes recentes, na esteira da nova dinmica econmica mundial e da
globalizao. Nessa literatura (que se pode exemplificar adequadamente com o volume
coletivo The new politics of the welfare state, editado por Paul Pierson e publicado em
2001), a abordagem atenta para o aspecto sistmico permite apontar, em nvel mais
especfico do que o de uma mera lgica capitalista, as variedades docapitalismo (Esping-
Andersen) e como elas resultam em lgicas especficas (numa distino usual, os sistemas
anglo-saxnio, continental e escandinavo) em que a tenso imposta pelas mudanas na
economia mundial e pela globalizao produz equilbrios diversos entre, por um lado, oempenho de mudana liberalizante e orientado pela busca de competitividade e, por outro
lado, a resistncia, mesmo nas novas circunstncias, do welfare state e das experincias
mais propriamente socialdemocrticas. A Alemanha fornece talvez uma ilustrao especial,
em que o notvel e prolongado consenso em torno da economia social de mercado
posto em risco como conseqncia das novas dificuldades econmicas e se v substitudo
pela turbulncia poltica que agora presenciamos.
Se nos voltamos para os desafios correlatos no mbito latino-americano e,
especificamente, no brasileiro, o confronto entre o institucionalismo estreito e uma
perspectiva sociolgica e de maiores ambies tericas sem dvida uma questo
proeminente. Com referncia Amrica Latina em geral, temos em execuo, no
momento, o projeto do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) sobre
a democracia no continente, cuja liderana intelectual decisiva Guillermo ODonnell. O
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projeto apresenta, a meu ver, algumas deficincias bem claras: por um lado, h a disposio
algo desfrutvel (e metodologicamente problemtica) de reinventar a roda e buscar uma
teoria da democracia aplicvel de modo especial ao mbito latino-americano; por outro
lado, tambm do ponto de vista substantivo h certo empenho torto de originalidade, que,
entre outras coisas, resulta em que se ignorem as experincias com a socialdemocracia,
especialmente na Europa, as dificuldades que enfrentam na atualidade e as lies a serem
extradas da. De todo modo, o rtulo novidadeiro de democracia cidad dirige a ateno
para a velha questo social e no pode deixar de acarretar o reconhecimento da
necessidade de uma perspectiva teoricamente atrevida e de cunho sociolgico.
No que se refere especificamente ao Brasil, o importante experimento representado
pelo governo Lula, com as vicissitudes pelas quais vem passando, permite ilustrar dois
aspectos relevantes das conexes e das tenses entre o intencional e sua cristalizaoestrutural ou sistmica, que propiciam talvez um fecho apropriado para esta discusso.
Cabe apontar, quanto ao primeiro aspecto, alguns temas suscitados pelas
expectativas em torno do acesso do PT Presidncia da Repblica e com respeito aos quais
se pode pretender ver certa gradao na articulao entre o intencional e tanto seu
condicionamento pelo sistema quanto sua possibilidade de eficcia na atuao sobre o
sistema.
Um primeiro ponto dessa escala corresponde a uma opo radical ou de ruptura,
com o voluntarismo que a distingue. Pondo de lado a frustrao e a ira manifestadasprecocemente por vrios setores de esquerda, includa a esquerda do PT, com os rumos do
governo Lula, lembro apenas a fantasia que aparece num volume de John Roemer dedicado
idia do socialismo de mercado (A future for socialism, publicado em 1985). Apesar do
interesse do volume como explorao terica de possibilidades, seu irrealismo quanto ao
caminho a ser seguido em direo meta socialista transparece com nitidez na aposta, l
pelas tantas, de que a chegada de Lula Presidncia do Brasil viesse resultar na
implantao do socialismo de mercado no pas.
O segundo ponto da escala se tem no tema das relaes entre poltica econmica e
poltica social. O que encontramos aqui o desafio complicado de conciliar uma poltica
econmica realista, indispensvel para permitir a apropriada insero do pas na dinmica
econmico-financeira internacional, que tende a condicionar tudo o mais, com a fidelidade
a objetivos ambiciosos no plano social. Como fazer boa poltica econmica sem perder de
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vista o que h de urgente no plano social? Como equilibrar as exigncias de modo a ser
efetivo na promoo das mudanas necessrias?
Se h grandes constries ou limitaes na rea de manobra quanto poltica
econmica e social, na escala que sugiro h um terceiro ponto, o correspondente atuao
poltica cotidiana dirigida a objetivos especficos variados, no qual, ao contrrio, existe, em
princpio, amplo espao de escolha e a possibilidade de agir com eficincia. No h
qualquer necessidade imperiosa envolvida na sequncia de aes polticas desastradas do
governo Lula desde o episdio Waldomiro Diniz, de comeos de 2004. Trata-se de pura
inpcia, certamente produzida pelo fato de a tergiversao naquele episdio ter levado o
governo defensiva e a passar a agir de modo espasmdico. No admira, assim, que acabe
por se ver comprometido seu capital simblico no campo tico, com forte desgaste, depois
de o necessrio realismo econmico ter inevitavelmente arranhado o simbolismo ligado aseu compromisso social.
Concluo com o segundo dos dois aspectos anunciados, o qual envolve o tema da
liderana e seu papel. Cabe destacar aqui, em contraste com certos abusos oportunistas que
se valem das confuses envolvidas na distino de Max Weber entre a tica das convices
e a tica da responsabilidade, a importncia que uma postura de exemplaridade e grandeza
moral do lder pode ter do ponto de vista da prpria eficincia. Isso vale, para comear,
mesmo em termos imediatistas que se refiram, por exemplo, s relaes do presidente da
Repblica com o Congresso e possibilidade de o governo vir a obter sustentaoparlamentar adequada, onde a eficincia pode depender crucialmente de que o presidente
saiba aproveitar as oportunidades que se apresentem para, com respaldo na opinio pblica,
estabelecer os limites do jogo de barganhas midas. Mas algo anlogo se pode dizer
tambm quanto ao papel da liderana do ponto de vista do objetivo mais ambicioso referido
prpria construo institucional. parte a idia de que a liderana inspire por si mesma o
comportamento virtuoso, preciso atentar para a possibilidade de que a liderana
exemplar produza, mais realisticamente, mudanas no plano cognitivo, com a eventual
coordenao de expectativas institucionalmente propcias. No caso brasileiro, poderamos
ter a, quem sabe, algo favorvel superao da condio em que cada qual se percebe
como bancando o otrio caso no jogue, como todo mundo, o jogo das espertezas.
Vimos antes, com Fernando Henrique Cardoso, o empenho hiper-realista de se mostrar do
ramo na atuao poltica, a renncia ao soco na mesa e refundao poltica do pas
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prometida durante a campanha eleitoral. Vemos agora os fortes indcios de que Lula, por
sua vez, tende a reduzir-se a mais um lder esperto.