Sociabilidade Agonística - Comerford
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XXVI Encontro Anual da ANPOCSGT 20 – Rituais, representações e narrativas políticas
Sociabilidade agonística, instituições formais, e narrativas: igreja, estado e
sindicato em meio aos vizinhos e parentes
John Cunha Comerford IFCS/UFRJ (Bolsista Faperj)
Narrativas familiares
Nas pequenas cidades e localidades rurais da Zona da Mata de Minas Gerais
onde realizei pesquisa de campo1
, o cotidiano é pontilhado de narrativas quecontinuamente estabelecem um mapeamento social em termos de parentesco, localidade
e reputação, que são parâmetros básicos de orientação social nesses universos. Nas
prosas nos terreiros da roça, nas calçadas nos bairros, nos bares e vendas, antes e depois
das missas de domingo, das reuniões do sindicato, das atividades das Igrejas, nos
encontros casuais na rua, nas cozinhas das casas, os moradores dessas localidades vão
contando e recontando os acontecimentos em suas várias versões, e comentando e
avaliando os comportamentos das pessoas e, por extensão inevitável, das famílias
(parentelas) às quais elas pertencem.Cada novo personagem que “entra” nessas narrativas é situado em termos de
parentesco, localidade e reputação, apenas na medida do necessário já que geralmente
aqueles que proseiam sabem de quem estão falando. Os moradores dessas localidades
detém um admirável conhecimento das genealogias e relações de afinidade, das
reputações das parentelas e de seus segmentos, das localidades onde elas residem ou
residiram (e da coextensiva reputação dessas localidades) e das histórias das famílias e
de suas relações mútuas – um conhecimento elaborado e transmitido através mesmo
dessas inúmeras conversas. Essa elaboração e retransmissão tem suas regularidades,
suas regras, suas formas específicas. Os que conversam têm um senso de limites, há
modalidades próprias de promover o envolvimento dos ouvintes, há hierarquias de saber
1 Este trabalho baseia-se nos capítulos 4 e 5 de minha tese de doutorado (Comerford, 2001), defendida noPPGAS/Museu Nacional/UFRJ. O trabalho de campo foi realizado em pequenos municípios da Zona daMata mineira nos anos de 1999 e 2000.
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conversar e contar casos, há um senso prático que ajusta as circunstâncias à forma dos
“eventos de fala” (no sentido dos sociolinguistas: ver Bauman e Sherzer, 1974) e dos
eventos narrativos, com maior ou menor felicidade (no sentido de Austin, 1962).
Essas narrativas muitas vezes acabam se referindo a, ou se centrando em, casos
de confrontos mais ou menos agudos ou de inimizades e disputas, envolvendo direta ouindiretamente famílias incluídas nos extensos “mapas sociais” que se reproduzem e
atualizam por via dessas narrativas2. Com isso, as narrativas se constituem como parte
ativa desses confrontos, disputas e inimizades, estabelecendo uma disputa de versões
que é uma versão das disputas de ou entre famílias (ou seja, dos conflitos concebidos
tendo o parentesco como referência básica). Casos envolvendo brigas entre diferentes
famílias ou segmentos de famílias, ou pessoas de algum modo ligadas por amizade ou
“quase-filiação” a famílias ou segmentos de famílias, são contados e recontados, e as
pessoas crescem ouvindo falar desses casos, tornando-se propensas a reproduzir assituações de disputa, inimizade ou confronto sempre que surgir a oportunidade. E
oportunidades surgem recorrentemente nas múltiplas formas de encontro cotidiano ou
extra-cotidiano entre diferentes famílias nessas redes de pequenas localidades. Essas
formas, perpassadas por tensões que ao mesmo tempo as tornam envolventes, incluem
desde os encontros casuais entre vizinhos nas proximidades de suas casas (ou os seus
encontros “indiretos” nas divisas de terras e na circulação de animais domésticos ou da
água dos córregos), as visitas entre parentes, até os encontros ritualizados dos jogos de
futebol, bailes e eventos religiosos, passando pelos encontros entre pessoas mais
distantes (em termos de parentesco e vizinhança) nas vendas, na “rua”, e nas estradas.
Diferentes narrativas sindicais
Em diversos momentos do trabalho de campo, em entrevistas e conversas com
agentes de instituições formais como o sindicato de trabalhadores rurais, o judiciário ou
a Igreja, as referências eram outras. As famílias (parentelas e segmentos delas) com seus
nomes extra-oficiais, aquelas localidades da roça ou do subúrbio das cidades cujos
nomes não constam nos mapas oficiais, as reputações dessas famílias e localidades, as
histórias dos casos de briga e das inimizades e suas avaliações pormenorizadas, tudo
2 O capítulo 2 da referida tese (Comerford, 2001) trata especificamente dos conflitos entre e dentro dasfamílias e de suas narrativas.
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isso ficava distante. As conversas enveredavam pelo funcionamento de organizações
sindicais, estatais ou eclesiais, seus projetos e programas, as dificuldades financeiras, os
enfrentamentos de classe ou entre partidos políticos, lançando mão de uma terminologia
propriamente sindical, jurídica, da grande política, ou do planejamento estatal, ao invés
de moral, sugerindo um quadro de referências muito diverso daquele anteriormentedescrito e um outro entendimento a respeito da natureza e importância relativa dos
conflitos.
No entanto, isso não ocorria em todas as circunstâncias. As conversas com os
dirigentes sindicais, por exemplo, eram inicialmente muito centradas nas atividades
formais dos sindicatos, seu funcionamento, seus parâmetros, os projetos e seus
financiamentos ou nas narrativas das disputas de algo como a “grande política sindical”,
as disputas entre “combativos” e “pelegos”, “direita” e “esquerda”, os conflitos entre
assessores (pensados em termos de diferentes “projetos políticos”) etc. Mas conforme aconversa enveredava pelos meandros da história do sindicato em cada município, e iam
surgindo as narrativas sobre a fundação do sindicato e seus momentos críticos, uma
certa terminologia intermediária ia preparando terreno para a reentrada das famílias,
localidades e reputações na narrativa. Termos como “credibilidade” e “infiltração”,
referindo-se aos dirigentes sindicais e às suas atividades de “trabalho de base”, vão
trazendo à tona a mobilização de parentelas e segmentos de parentelas pela qual a
construção efetiva das organizações sindicais necessariamente passa, bem como as
interpretações a respeito das atividades sindicais no quadro dos antagonismos e disputas
entre parentelas e segmentos de parentela, situados em suas respectivas localidades.
Algo semelhante ocorre no caso das narrativas relacionadas com a construção e os
meandros da história das Comunidades Eclesiais de Base e do Movimento da Boa Nova,
que são uma das bases sobre as quais os sindicatos foram construídos3.
Essa linguagem intermediária, formada por um vocabulário que não é nem
jurídico, nem sindical, nem da grande política, nem do planejamento (ou seja, não é um
vocabulário propriamente “institucional”), mas também não é imediatamente “moral”,
ou seja, referido diretamente aos parâmetros de reputação que costumam ser acionados
para definir as relações entre famílias situadas nas localidades, remete para um campo
de práticas e concepções que redundam na mobilização de unidades sociais definidas
3 Isso é abordado no capítulo 3 de Comerford, 2001.
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em termos de parentelas, localidades e reputações para finalidades e formas
institucionais.
A epopéia da construção da credibilidade dos sindicatos é o mote mais freqüente
das narrativas a respeito das fundações dessas entidades. Essas narrativas são
protagonizadas basicamente por um conjunto de jovens relativamente escolarizados porém pobres, filhos de famílias de sitiantes respeitáveis, porém geralmente “por baixo”
em termos de força política, econômica e das hierarquias micro-locais de prestígio,
envolvidas ao mesmo tempo na política de reputações das localidades da roça e nos
movimentos católicos das CEBs. Elas contam como através da fundação dos sindicatos
esses jovens conseguiram obter algum reconhecimento social como pessoas com
conhecimentos e conexões “para cima”.
A infiltração, parte essencial desse processo, é um modo de obter acesso a outras
famílias e localidades que não as de origem dos dirigentes, processo necessário paraconstruir a credibilidade e ampliar as redes de contatos que darão sustentação ao
sindicato. Infiltrar implica lançar mão de contatos e relações construídas em termos de
parentesco e amizade (que pressupõe o reconhecimento mútuo de boa reputação), tanto
as previamente existentes como aquelas constituídas durante o processo de construção
do sindicato. As narrativas deixam claro que mesmo nesse último caso, as relações
foram construídas lançando mão de formas tradicionais de familiarização como
hospitalidade (inclusive na sua forma automobilística da carona), comensalidade,
generosidade, prosa, brincadeiras.
Essas narrativas vão mostrando como determinadas famílias ou segmentos de
famílias, reconhecidas nos mapeamentos sociais espontâneos das localidades, vão se
comprometendo, ou seja, comprometendo sua reputação, com o “projeto” do sindicato e
nisso vão reelaborando seus limites, suas relações de amizade e inimizade, e vão
alterando suas reputações e também, até certo ponto, a matéria de que são feitas as
reputações nas suas localidades. As famílias dos dirigentes, em um primeiro momento,
sustentam física e moralmente os seus membros diretamente envolvidos na direção dos
sindicatos recém fundados, e através deles atualizam suas relações com parentes
distantes, adquirem novas amizades e abrem novos campos de familiarização (inclusive
“para cima”). Para que o sindicato adquira credibilidade, coisas como a existência e
manutenção de uma sede e seus equipamentos, a alimentação e as roupas adequadas
para os dirigentes, a sua capacitação em termos de conhecimentos especializados, a sua
eficácia na esfera jurídica, o modo de envolvimento na política eleitoral, são cruciais.
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Esses aspectos serão objeto de observação, inquirição e narrativa: passam fazer parte
das narrativas cotidianas e vão repercutir sobre as reputações das famílias publicamente
empenhadas na construção do sindicato - que será identificado até certo ponto como o
sindicato das pessoas e famílias diretamente envolvidas. As famílias, durante o difícil
processo de fundação e consolidação dos sindicatos, é que vão garantir em grandemedida o sucesso dos dirigentes nesse aspecto. O sindicato manter-se aberto e
consolidar-se é algo narrado como uma espécie de épico pessoal e familiar dos
dirigentes. Será a história de seus sacrifícios e dificuldades, de seus conhecimentos e
capacidades, de seus enfrentamentos e qualidades agonísticas, de seu destemor e
coragem, que como qualquer história assim elaborada, é uma versão que sustentará a
reputação dessas pessoas e suas famílias diante de outras pessoas e famílias e segmentos
de famílias, com todas as conseqüências para a história dos arranjos sociais entre as
unidades socialmente significativas nesse plano que, por falta de melhores termos, podeser qualificado como “local” e “cotidiano”.
Essas narrativas das fundações dos sindicatos, ouvidas em circunstâncias
caracterizadas por certa informalidade e familiaridade obtida entre o pesquisador e os
dirigentes que narram, descrevem esse processo pelo qual algumas parentelas se
mobilizaram e com isso acabaram por atuar fortemente no sentido de garantir inovações
institucionais previstas na lei. Mas esse modalidade narrativa que enfatiza as relações
pessoais e familiares e as peripécias locais das caronas, do ser bem ou mal recebido nas
localidades, das dificuldades e sacrifícios, será abandonada sempre que estiver em jogo
o envolvimento dos dirigentes na grande política sindical ou na apresentação pública
mais formal do sindicato. Por exemplo, nos textos escritos pelos dirigentes e assessores
sobre a história e atuação dos sindicatos ou do “movimento dos trabalhadores” na região
ou em tal ou qual município, a linguagem dos épicos de coragem, esperteza, e sacrifício
será abandonada em favor de narrativas centradas na organização de classe, nos
conflitos dos grandes contra os pequenos, na linguagem da cidadania e dos direitos, e na
linguagem da esquerda contra direita, dos combativos contra os pelegos. A lembrança
das caronas, da hospitalidade obtida ou recusada, do apoio ou falta de apoio das famílias
em cada lugar, será deixada de lado, substituída pela memória dos embates nos grandes
congressos sindicais, das rupturas e alianças com tal ou qual grupo na federação
estadual ou da CUT, das campanhas eleitorais e da disputa com “a direita” no
município, e ainda das principais atividades do sindicato em termos de suas atribuições
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legais e em termos das “frentes de luta” definidas de acordo com as diferenças dos
“projetos políticos”. Será essa também a linguagem adotada nas entrevistas em
circunstâncias mais formais, bem como nos momentos centrais dos eventos oficiais
promovidos pelos sindicatos. Assim, se a progressiva informalidade da situação de
entrevista traz à tona a “pequena” (porém volumosa e crucial) história sindical domunicípio ou da região, a progressiva formalidade trazida pela escrita e/ou pela
apresentação pública oficial da entidade e de seus dirigentes traz à tona a “grande”
história sindical, a que faz sentido no campo das disputas sindicais propriamente ditas,
para as quais a pequena história é apenas anedota.
A “autoridade” e sua entrada nas narrativas
Por outro lado, há também circunstâncias em que, ao invés dessa progressiva
invasão da linguagem dos “casos” conforme aumenta a informalidade da situação, há
uma entrada mais ou menos brusca de uma figura impessoal em meio aos casos
centrados nas disputas entre famílias e segmentos de famílias. Em muitas narrativas de
“casos”, há um momento em que entra “a autoridade”, assim denominada – ou seja,
despersonalizada, não-nominada e não situada em termos de parentesco, localidade, e
reputação.
A autoridade entra em momentos muito específicos de narrativas que tratam de
conflitos entre vizinhos, entre familiares, entre patrões e empregados (que são, talvez,
também compadres). “Chamar a autoridade” é algo que, de modo geral, não é bem
visto. Ou seja, em termos de reputação, é algo perigoso, a menos que seja
cuidadosamente justificado. A princípio, tensões entre vizinhos, parentes, compadres,
devem se resolver de acordo com a ética centrada no entendimento, o “saber viver com
os outros”, algo muito valorizado e gerador de prestígio. Ou, se saem do controle,
devem ser resolvidas pelo enfrentamento direto para garantir o respeito, chefe de
família diante de chefe de família, pessoa diante de pessoa. A autoridade é um corpo
estranho nesse complexo de relações, e é assim que ela entra inicialmente na narrativa.
A princípio o responsável pela entrada da autoridade é o “ele” ou “eles” da narrativa,
nunca o narrador (“eu” ou “nós”), seja por ter chamado diretamente a presença da
autoridade, seja por ter forçado o narrador a chamá-la por se portar de maneira
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descontrolada e incontrolável pelo entendimento mútuo. Na narrativa, a presença da
autoridade desqualifica o outro, comprova sua incapacidade moral.
Assim, as narrativas cotidianas dos casos, que são sempre ao mesmo tempo
argumentações no sentido de comprovar a excelência moral e a capacidade do narrador
enquanto chefe de família, quando fazem referência à autoridade, sempre dizem,mesmo que implicitamente, que o narrador dela sempre mantém distância. É como se a
autoridade não fizesse parte de seu universo e nele apenas surgisse por fatalidade e em
função dos “outros”. Mas curiosamente, uma vez descrita a entrada da autoridade na
narrativa, o narrador passa a descrever e avaliar o funcionamento do aparato judiciário
ou policial, mostrando às vezes um considerável conhecimento dos seus meandros
internos e de sua lógica própria, ou ao menos um acúmulo de reflexão a esse respeito -
conhecimento e reflexão que mostram que a autoridade sem dúvida faz parte de sue
universo de relações. Não que a narrativa passe a se orientar pela lógica das instituições:antes, na trama narrativa, o conhecimento demonstrado pelo narrador a respeito do
judiciário torna os agentes judiciais ou policiais algo como peças habilmente
movimentadas pelo herói da narrativa, um herói de muito caráter, que se impõe por seu
conhecimento aliado à sua retidão moral. Esses agentes se tornam como um “terceiro”
na relação com o “outro” da narrativa (que é um membro de algum parentela, de
alguma localidade, com alguma reputação). Sua presença apenas ajuda a reforçar a
superioridade que o narrador afirma e procura demonstrar sobre o “outro”. A
triangulação com os agentes estatais surge complexificando a relação entre as partes (o
narrador e o “outro”) que, na narrativa, permanecem no centro da cena – membros de
famílias que se medem agonisticamente diante de um público atento formado por gente
situada em termos de parentesco, localidade, reputação. Por essa via, as disputas que
acabam por envolver o aparato judiciário tornam-se desse ponto de vista algo como um
sobre-elaborado espetáculo de disputa agonística concebida, em larga medida, como
uma mútua medição de reputações pessoais-familiares e locais. No dizer de Paulo
Mercadante, ao descrever os julgamentos de crimes em Carangola nas primeiras
décadas do século XX, alguns (ou seja, algumas famílias ou segmentos delas) vão
vangloriar-se e outros (outras famílias e segmentos) vão constranger-se publicamente
com os resultados dos julgamentos, e esse espetáculo vai envolver toda a comunidade,
desde a gente da roça até a elite política e os agentes da autoridade. Evidentemente,
porém, esse envolvimento vai se dar a partir de diferentes pontos de vista.
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Atendimento sindical: conversas de dirigentes e sócios
Por outro lado, as conversas através das quais procede o atendimento que os
dirigentes sindicais prestam aos trabalhadores rurais, na sede do sindicato, tambémconstituem um jogo entre o registro “familiar”, referenciado nos mapeamentos em
termos de parentesco-localidade-reputação, e um registro mais formal e categorial.
Porém, ao contrário do que talvez se pudesse esperar, a tendência parece ser a de que ao
menos em um primeiro momento seja o dirigente sindical aquele a procurar trazer o
evento de fala para o registro “familiar” e que o trabalhador, gente da roça, procure
trazer o evento para o registro formal e categorial (se o atendimento é realizado por um
funcionário, essa lógica pode inverter-se). Assim, se não conhece bem aquele a que está
atendendo, o dirigente pergunta pela sua localidade de origem, e vai tentando precisá-laem termos das localidades que não aparecem nos mapas oficiais, mas estão nas
conversas cotidianas. Pergunta pela sua família, e procura situar a pessoa em termos de
parentesco, localizar seus parentes, talvez encontrar algum laço de parentesco ainda que
tênue e distante. O sócio, por sua vez, nos primeiros momentos procura expor seu caso
enfatizando seu caráter de “trabalhador rural”, expondo seus problemas com a
burocracia previdenciária ou com o patrão, perguntando por seus direitos legais e como
fazer para obtê-los. Essa curiosa inversão em um momento seguinte poderá se inverter
novamente, mas essa primeira rotina aponta para a necessidade que naquele momento e
naquelas circunstâncias tem o dirigente, representante de uma instituição formal, de
situar os sócios em termos do ponto de vista das famílias, necessidade que é tão grande
quanto aquela que naquele momento e circunstâncias o sócio, “gente da roça”, membro
de uma família e morador de uma localidade, tem de situar o seu problema fora desse
ponto de vista. O dirigente, para reconstruir cotidianamente o sindicato, precisa
envolver-se com os mapeamentos locais, enquanto o trabalhador precisa mapear seus
direitos legais para desconstruir suas relações personalizadas e envolver-se com um
mundo baseador em outros parâmetros.
A redobrada complexidade dos duplos jogos
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Essas considerações sobre eventos e formas narrativas e sobre o jogo existente
entre os diferentes registros ( framings, no sentido de Goffman e Bateson) –
grosseiramente falando, o registro orientado pelo ponto de vista das famílias e aquele
orientado pelo ponto de vista das instituições - apontam para o modo como cada um
desses pontos de vista é constitutivo do outro, no que diz respeito ao seu enraizamentoefetivo na vida social dessas localidades. Isso não quer dizer que esses pontos de vista
sejam homogêneos: ao contrário, é sua heterogeneidade que permite o tensionamento
entre eles e estabelece a possibilidade de jogar com eles de modo envolvente. Esse jogo
com os diferentes registros, e não apenas dentro de cada um deles, tem suas regras, seu
senso de limites, seu vocabulário, suas áreas cinzentas, seus bastidores, e suas
possibilidades próprias de criatividade, possibilidades tanto maiores por se tratar, em
certo sentido, de um duplo jogo, ao mesmo tempo dentro e entre diferentes registros.
Bibliografia
Austin, (1962) How to Do Things with Words. Oxford: Oxford University Press
Bateson, Gregory (1972) A Theory of Play and Fantasy. In: Steps to an Ecology of Mind. New York: Ballantine Books
Bauman, Richard, e Sherzer, Joel (1974) Explorations in the Ethnography of Speaking.London: Cambridge University Press.
Comerford, John (2001) “Como uma família”: Sociabilidade, reputações e territóriosde parentesco na construção do sindicalismo rural na Zona da Mata de Minas Gerais.Rio de Janeiro, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ (tese de doutorado)
Goffman, Erving (1975) Frame Analysis: an Essay on the Organization of Experience.Cambridge: Harvard University Press.
Mercadante, Paulo (1973) Crônica de uma comunidade cafeeira. Carangola: o Vale e o Rio. Belo Horizonte: Itatiaia