Sobre a Teoria Do Romance Lukacs
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7/22/2019 Sobre a Teoria Do Romance Lukacs
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANASDEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Antonio Vieira da Silva Filho
Dialtica e formalismo conceitual: sobre as contradiesinternas Teoria do romance
So Paulo
2011
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Antonio Vieira da Silva Filho
Dialtica e formalismo conceitual: sobre as contradies
internas Teoria do romance
Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao em Filosofia doDepartamento de Filosofia daFaculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas da Universidade deSo Paulo, para obteno do ttulo deDoutor em Filosofia sob a orientaodo Prof. Dr. Paulo Eduardo Arantes.
So Paulo
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Eu sou a f [...] queprotesta, [...] o veto pormisso. S o co tem umamo. Ugocsa non coronat.
Ady
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Agradecimentos
Ao meu orientador, Paulo Arantes, pelas reflexes verdadeiramente orientadoras,
pela confiana e por estar sempre disponvel.
Aos membros da Banca de Qualificao, professores Arlenice Almeida da Silva e
Franklin Leopoldo e Silva, pelas observaes e sugestes, bem como pelas
crticas, que ajudaram a indicar um norte para o prosseguimento do trabalho.
Ao parecerista da FAPESP, cujos pareceres ajudaram muito no desenvolvimento
da pesquisa.
Ilana, pelos dilogos que possibilitaram a efetivao do projeto de pesquisa,
assim como pela leitura da tese, que muito contribuiu, com sugestes eobservaes, para todo o processo.
Dona Oneide, minha me, pelo amor, carinho e incentivo. Lidiane, Renato,
Roberto e Adriano, meus irmos. A este ltimo, pela amizade e presena
constante e Celiane, minha cunhada.
Ao seu Leonardo, pelo afeto, pelo interesse sempre reiterado e pela leveza na
convivncia.
Aos amigos de So Paulo, pela acolhida e carinho com que sempre me receberam
e recebem, Sybil, Talita, Jlia, Llian, Pablo, Josberto, Clarissa e Wilson.
Aos amigos, Ktia, Emiliano, Estnio, Fernando, Mano que esto sempre
presentes. Ao Emiliano tambm pela disponibilidade em ler a verso final.
Ao Eduardo Rodrigues (Dudu), pelas aulas de ingls e pela ajuda com traduo.
Ao Alexandre Cmara Vale pela disponibilidade e solidariedade.
Ao talo Moura, pela ajuda. Ainda mais na ltima hora.
Maria Grande e a Elielza (Ded), por manterem a ordem na casa e ajudarem
com as (no poucas) crianas.
Otlia, pelas muitas vezes em que, de diferentes maneiras, se envolveu com a
possibilidade de continuidade desta pesquisa e do doutorado.
Ao prof. Milton Meira, pela compreenso e gentileza.
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Mari, Maria Helena e todas as meninas da Secretaria do Departamento de
Filosofia da USP.
Aos professores que aceitaram o convite em participar da banca examinadora.
FAPESP, que me concedeu a bolsa, tornando materialmente possvel a
confeco da tese.
Por fim, especialmente, minha mulher, que com seu afeto tornou o percurso, na
correria do dia-dia, mais suave, florido.e perfumado. Aos meus (nossos) filhos,
Leonardo, Helosa, Joo, Maria e Luca.
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Ao meu pai, seu Antnio (In memoriam),que ficaria feliz.
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Resumo
Este trabalho tem como ponto de orientao a relao da Teoriadoromancede
Lukcs com a filosofia da arte de Hegel. O confronto com Hegel se coloca comotentativa de aclarar conceitualmente as relaes da obra do jovem Lukcs com assuas categorias esttico-filosficas, na medida em que essas ltimas apontampara o problema da arte na experincia moderna. A relao entre as duasreflexes estticas se apresenta entrecortada pelos dilogos do autor hngarocom o crculo weberiano historicista, que evidenciam certa divergncia da Teoriado Romancecom os CursosdeEstticade Hegel. O trabalho busca mostrar umconflito interno Teoria do romance entre a perspectiva histrico-dialtica, quedemarca a retomada por Lukcs da unidade hegeliana entre forma artstica econtedo histrico, e o uso metodolgico, de inspirao antidialtica, do mtodotpico-ideal, que se constitui a partir do corte epistmico entre os planos dosconceitos e o da realidade. Esse conflito tem como ponto de partida a divergnciade Lukcs acerca da valorao positiva por Hegel da experincia moderna,valorao que se articula ao diagnstico hegeliano do fim da arte como forma deexposio da verdade moderna e sua substituio pela verdade mediada dafilosofia, capaz de apresentar a liberdade moderna como experincia de totalidadefigurada no Estado. Lukcs, com Hegel, aponta o princpio da subjetividade comofundamento constitutivo da modernidade e do romance. O romance, contudo, emoposio a Hegel, entendido como a exposio verdadeira da nova relao dohomem com a liberdade. Isto se d porque, segundo Lukcs, o princpioconstitutivo da subjetividade romanesca coincide com a experincia fragmentadado mundo moderno. A liberdade subjetiva demarca, como para Hegel, umaexperincia do homem que rompe com as experincias pr-modernas. Elapermanece todavia, para Lukcs, caracterizada pela fragmentao, peloisolamento do homem em relao s estruturas sociais. A totalidade do romance,assim, entendida, por ele como a expresso do carter formal da busca desuperao da fragmentao pelo sujeito isolado da modernidade.
Palavras-chave: Teoriadoromance, romance, jovem Lukcs, Hegel, pica.
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Abstract
This work takes as its point of orientation the relation between Lukcs The Theoryof the Noveland Hegel's philosophy of art. The confrontation with Hegel arises asan attempt to conceptually clarify the relationship of the work of the young Lukcs
with their aesthetic-philosophical categories to the extent that the latter point to theproblem of art in modern experience. The relation between the two aestheticreflections is presented with intersected dialogues by the hungarian author with theweberian historicist circle, which show some disagreement between The Theory ofthe Noveland theAesthetics Courseby Hegel. The work seeks to show an internalconflict in The Theory of the Novel between the historical-dialectic perspective,which marks the resumption from Lukcs of the hegelian unity between artisticform and historical content, and the methodological use, anti-dialectical inspired, ofthe ideal-typical method, which is constituted from the epistemic cut between theplans and concepts of reality. This conflict has as its starting point the divergenceof Lukcs on the positive evaluation by Hegel of modern experience, valuation
which is linked to the diagnosis of the hegelianend of art as a way of exposing thetruth and its replacement by truth mediated from philosophy, able to present themodern freedom as an experience of totality figured in the State. Lukcs, withHegel, points the principle of subjectivity as a basis which constitutes modernityand the novel. The novel, however, in opposition to Hegel, is understood as thetrue exhibition of the new relation between man and freedom. This is because,according to Lukcs, the constitutive principle of subjectivity romanesque coincideswith the fragmented experience of the modern world. Freedom subjective marks,as for Hegel, a man's experience that disrupts the pre-modern experience. Itremains, however, for Lukcs, characterized by the fragmentation, by the isolationof man in relation to social structures. The totality of novel is then understood by
him as the expression of the formal character in a search to overcome thefragmentation of the isolated subject of modernity.
Keywords: Theory of the novel, romance, young Lukacs, Hegel, epic.
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Sumrio
Introduo A Teoria do Romance entre Hegel e Weber 10
I. Sociedade civil burguesa, lrica e romance
1. Dialtica histrica, reconciliao e crtica da Modernidade 301.1 A Estticade Hegel e a modernidade 322. O princpio da particularidade na arte e a sociedade civil burguesa 373. Os gneros e o lirismo como princpio da modernidade 423.1 A modernidade, o princpio lrico e o romance 453.2 A crtica do lirismo e o problema da nostalgia 544. A subjetividade, a contradio e os locitranscendentais 584.1 A totalidade do romance e o domnio da forma 65
4.2 A alma separada do Estado e o problema do esprito 734.3 Esprito e histria 814.4 A recusa lukacsiana da segunda natureza: entre a dialtica e a forma doconstruto 90
II. O Problema da Forma: a modernidade e a subjetividade contraditria
1. A forma e a liberdade subjetiva: formalismo e exposio da contradio 1071.1O problema da forma e a dialtica da Teoria do romance 1141..2 A forma na Teoria estticae a Teoria do romance 1161.3 A formao, o formar e a experincia moderna 126
1.4 O cristianismo e o luciferino como determinaes da subjetividade 1411.5 Os gneros e a composio reflexiva 1482. Os antigos, os modernos: Hegel e a Teoria do romance 1583. A Ironia: da exigncia composicional ao viver a arte 1683.1 A ironia como esforo autocorretivo da subjetividade 1683.2 A ironia entre a autocorreo e a ilimitao 1723.3 A volpia da subjetividade e a normatividade pica 187Concluso 202Bibliografia 220
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IntroduoA Teoria do Romanceentre Hegel e Weber
Ao contrrio da maior parte dos comentrios Teoria do romance, esta
exposio no pretende ler essa obra a partir da pergunta pela sua relao com a
trajetria de seu autor na primeira fase de sua produo. No se trata, assim, de
buscar l-la em razo da pergunta pela sua conexo com os outros textos juvenis
de Lukcs, embora essa observao no descarte que tambm tais relaes
possam nos interessar. Ela visa, antes, demarcar o foco da nossa investigao e,
nesse sentido, apontar que as conexes da Teoria do romancecom as demais
obras de Lukcs nesse perodo, bem como sua diferena especfica com a
produo do autor em sua maturidade, sero pensadas, quando for o caso, com
base no objetivo fundamental da nossa leitura da Teoria do romance, qual seja, o
de perscrutar os seus conceitos centrais no sentido de esmiuar as relaes entre
essa obra de juventude do autor hngaro e os conceitos esttico-filosficos de
Hegel.
No livroAs formas e a vida de Carlos Eduardo Jordo Machado, Hegel
chamado para participar de uma contenda especfica com o autor da Teoria do
romance. Machado faz uma longa citao da carta de Lukcs para Paul Ernst, na
qual destaca a refutao, por parte de Lukcs, da substancializao hegeliana do
esprito objetivo. O autor de As formas e a vida dedica uma pequena, todavia
fecunda, discusso relao entre Hegel e o autor da Teoria do romance.1No se
trata, para ns, como dito, de investigar a Teoria do romance em relao
trajetria lukacsiana na juventude, tal como se apresenta, por exemplo, em certa
medida e mantendo suas especificidades, nas referncias Teoria do romancefeitas por Machado, Lwy, Arato e Breines e/ou ainda em Mary Gluck2, mas se
1Cf. Machado, Carlos Eduardo Jordo.As formas e a vida: esttica e tica no jovem Lukcs(1910-1918). So Paulo: Editora UNESP, 2004, pp. 63-66.2Cf. Lwy, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionrios. A evoluo poltica deLukcs (1909-1929). Traduo de Helosa Helena A. Melo e Agostinho Ferreira Martins. SoPaulo: Lech Livraria Editora Cincias Humanas, 1979. Arato, Andrew; Breines, Paul. El jovem
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trata de buscar examinar as conexes da Teoria do romancecom as premissas e
concluses da Estticade Hegel.
Esses comentadores de Lukcs partem em geral do problema da
reflexo tico-esttica do jovem hngaro tendo como pano de fundo as reflexes
do Lukcs maduro, para construir um problema referente obra juvenil. Assim, por
exemplo, Arato e Braines se perguntam pelo conceito de alienao na obra juvenil,
Machado pelas relaes entre alma e forma, Lwy pelo lugar da obra juvenil na
trajetria intelectual de Lukcs. Mapeiam seu problema, como ele se desenvolve e
se articula nas suas obras de juventude e apenas com base nesse problema, se
perguntam sobre A teoria do romanceque, assim, entra sempre como momento
subordinado a essas outras questes. Tomemos, por exemplo, o livro de Arato e
Breines, O jovem Lukcs e as origens do marxismo ocidental, no qual o conceitode alienao rastreado e discutido no decorrer do processo de desenvolvimento
na obra juvenil de Lukcs at chegar quela que seria considerada a obra de
transio (j inserida na fase marxista de Lukcs) entre a juventude e a
maturidade ou entre o primeiro Lukcs pr-marxista e suas demais obras
marxistas.
No se trata, claro, de impugnar as vias de acesso Teoria do
romanceapresentadas nos comentrios referidos, mas de apontar certa lacuna
mesmo porque o ponto de partida desses comentadores no o desenvolvimento
da relao Lukcs-Hegel deixada por tais comentrios, acerca da relao com a
Esttica de Hegel. Essa relao pode, segundo pensamos, apresentar interesse
na avaliao das respostas oferecidas por Lukcs, naquele texto juvenil, ao
problema da arte moderna em sua conexo com o romance, em particular a partir
da sua compreenso de que o romance aparece como momento propriamente
artstico-formal de exposio das aporias da experincia histrico-social moderna.
O carter antagnico, prprio sociedade civil burguesa e essencial
configurao do mundo pelo romance , segundo pensamos, o tema central na
Teoria do romance. Esse trao peculiar da sociedade civil burguesa, ao ser
Lukcs y los orgemes del marxismo occidental. Novo Mxico: Fndo de Cultura Econmica,1986Gluck, Mary. GeorgLukcs and his generation 1900-1918. Cambridge, Massachusetts anLondon, England: Harvard University Press, 1991.
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articulado tematizao hegeliana do fim da arte processo de esvaziamento
desta forma como verdadeira forma absoluta de apreenso e explicitao da
totalidade da experincia moderna permite fazer vir tona, atravs da discusso
da resposta de Hegel ao carter antagnico da sociedade civil, a especificidade da
resposta indicada na Teoria do romancecomo uma conexo categorial dupla com
a Estticade Hegel: de um lado, como assuno positiva do problema do romance
e das categorias essencialmente modernas que o compe, por outro lado, como
distanciamento ou recusa das concluses apresentadas pelo autor da Estticano
que concerne s relaes entre a forma do romance, o Estado e a forma do
conceito.
O confronto com Hegel, mediado pelas interrogaes acerca da relao
problemtica da Teoria do romancecom a Estticae entrecortado pelas conexesdo autor hngaro com o crculo historicista alemo, pode resultar num aclaramento
conceitual de certos ncleos problemticos da recepo, por Lukcs, da Esttica
hegeliana. A tese busca evidenciar, em particular, um conflito interno Teoria do
romanceentre, de um lado, a perspectiva histrico-dialtica, presente na obra de
Lukcs com base na referncia s Lies sobre a Estticade Hegel,e, de outro, o
uso metodolgico, tambm essencial obra de 1916, de certo corte de inspirao
antidialtica, entre o plano dos conceitos e o da realidade, corte explicitado, por
exemplo, em conceitos como locus transcendental (transzendentalOrt), cujo uso
por Lukcs foi fortemente influenciado pela epistemologia neokantiana das
cincias do esprito atravs de suas relaes com o crculo de Weber.
Lukcs elabora posteriormente, no Prefcio de 1962, essa mescla de
mtodos diametralmente opostos, que, entretanto, aparecem intimamente
relacionados na Teoria do romance.3No Prefcio nosdiz ele que [...]A teoria do
romance a primeira obra das cincias do esprito (geisteswissenschaftliche) em
que os resultados da filosofia hegeliana foram aplicados concretamente a
3 importante esclarecer que a referncia ao Prefciode 1962 no significa uma adeso destatese ao ncleo esttico-filosfico das assertivas do autor da Teoria do romanceem sua maturidadequanto sua obra de juventude. Trata-se apenas de indicar que nos apropriamos de elementospontuais dessa leitura sempre que os consideramos fundamentais perspectiva de interpretaoque aqui buscamos, assertivas com as quais tambm nos confrontaremos de modo polmico emoutros momentos.
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problemas estticos.4 O conflito entre as duas orientaes metodolgicas, que
devemos explicitar quanto s suas significaes conceituais para as
consideraes estticas desenvolvidas pelo jovem filsofo hngaro, parece
constituir aquilo que prprio esttica da Teoria do romance, em razo do que a
sua explicitao torna-se aqui um imperativo. O que pretendemos mostrar a
relevncia crucial da assuno das categorias estticas de Hegel na construo
da arquitetura conceitual da Teoria do romance, projeto que implica tambm a
necessidade de demarcao dos distanciamentos assumidos pelo jovem Lukcs
com respeito esttica e a filosofia hegelianas, distanciamentos cuja expresso
conceitual mediada por sua relao com o crculo de Weber nos primeiros anos
do sculo passado.
* * *
Hegel inicia a anlise diga-se, pouco sistemtica e pouco demorada
do romance, enquanto desenvolvimento imanente da epopia, com a clebre frase
que afirma que o romance a modernes brgerliches Epope.5Lukcs, por sua
vez, comea a sua exposio das duas formas da grande pica afirmando que
o romance a epopia de uma era para aqual a totalidade extensiva da vida no mais dada de modo evidente, para a qual a
4 Lukcs, Georg. A teoria do romance: um ensaio histrico-filosfico sobre as formas da grandepica. Traduo, Posfcio e notas de Jos Marcos Mariani de Macedo. So Paulo: DuasCidades; Ed. 34, 2000, p. 11. Doravante, A Teoria do romance ser referida apenas como TR.Todas as citaes e referncias Teoria do romance so cotejadas com o original alemo: Lukcs,Georg. Die Theorie des Romans. Ein Geschichts-philosophischer Versuch ber die Formen derGrossen Epik. Mnchen: DTV, 1994, p. 9. Doravante, o texto original ser referido apenas comoTdR.5Cf. Hegel, F. Cursos de Esttica, vol. IV. Tr. Marco Aurlio Werle e Oliver Tolle So Paulo:EDUSP, 2004, p. 137. Os volumes II e III so traduzidos tambm por Marco Aurlio Werle e OliverTolle: EDUSP, 2000 e 2002, respectivamente. O volume I traduzido por Marco Aurlio Werle 2ed.: EDUSP, 2001; Vorlesungen ber die sthetik, v. 15 (abreviatura: VuAe), p. 392. Doravante asedies brasileiras sero referidas apenas como Esttica, seguida pelo volume. As citaes ereferncias das obras de Hegel so cotejadas com o original alemo. Hegel, Georg WilhelmFriedrich. Werke [in 20 Banden], Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986. A primeira vez que forreferida vir com o nome da obra no original, volume e abreviatura, depois, apenas a abreviatura eo volume (no caso da Estticaque so em trs volumes, nas outras.obras aparecero apenas aabreviatura).
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imanncia de sentido vida tornou-seproblemtica, mas que tem por inteno atotalidade.6
Ambos afirmam, com palavras diferentes, a mesma coisa, qual seja: que o
romance uma expresso potica da atual configurao prosaica do mundo. Para
Hegel, o mundo moderno com suas relaes prosaicas no um mundo propcio
para a poesia, pois as verdadeiras paixes, situaes e a liberdade no aparecem
mais de forma imediata, mas so mediadas pelas instituies e pela vida tica no
Estado. O romance , segundo Lukcs, a pica do mundo moderno e, enquanto
pica, precisa configurar a extenso da vida da qual ela faz parte. Extenso da
vida significa a principal caracterstica da pica: a narrao objetiva do momento
histrico-filosfico. Em unidade com isto est a exigncia de uma configuraofechada em si mesma, ou seja, a narrao de uma totalidade. Ora, mas como
afirma Lukcs, seguindo as pegadas de Hegel, a totalidade do mundo burgus
no mais evidente como a do mundo da epopia homrica. O mundo moderno
infinitamente grande e multifacetado para que a forma artstica possa fornecer
uma unidade efetiva da sua exposio. A frmula lukacsiana para sustentao da
configurao romntica7 apresentada do seguinte modo: a forma romance tem
que reduzir ou estreitar aquilo que configura,8 isto , no mais a totalidade
extensiva da vida o que em termos hegelianos significa dizer a efetividade que
o romance tem que configurar, mas apenas um recorte, um mundo particular no
qualo qual o indivduo se move.
6TR, p. 55; TdR, p. 47.7Lukcs, como Hegel, no separa o conceito de romance do de romntico. Para o autor da Teoria
do romance, ambos os conceitos so sinnimos. Diz-nos Lukcs que o romantismo alemo,embora nem sempre esclarea em detalhes, estabeleceu uma estreita relao entre o conceito deromance e romntico. Com toda a razo, pois a forma romance, como nenhuma outra, umaexpresso do desabrigo transcendental. Para Hegel, o romance aparece como uma determinaoou diferenciao da forma de arte romntica. E, nesse sentido, como em Lukcs, o romanceapresenta a determinao central do conceito de romntico, qual seja: a subjetividade comoelemento constitutivo da forma e do contedo e a separao entre subjetividade e mundo exterior.Ibid, p. 37; Ibid, pp. 31-2. O romntico moderno, cujo paradigma, na Estticade Hegel, a figurados irmos Schlegel, efetiva e leva a termo o princpio subjetivo da forma de arte romntica.8Ibid, p. 36; Ibid, 30.
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Se nos debruarmos sobre a arte romntica,9 mais especificamente
sobre o tpico da autonomia do carter individual do personagem do romance na
Estticade Hegel, veremos que este a grande referncia de Lukcs para pensar
o conceito de romance. A determinao principal do contedo e da forma
romntica , nos termos hegelianos, a subjetividade infinita, que quer dizer que o
homem, a interioridade, a referncia para configurar, construir e produzir tudo
que existe. O homem moderno, do romance, pode olhar para todas as direes e,
nesse sentido, no h mais um contedo objetivo que o force a se fixar. A
totalidade orgnica da epopia rompeu-se para sempre, isto , a unidade entre a
ao autnoma do heri e o destino da comunidade, ou, se pensarmos na
estrutura estatal da plis ateniense, a unidade entre cidado e o destino da plis,
no mais possvel, porque, na sociedade moderna, tanto a ao individual, comoa engrenagem das instituies do Estado , segundo Hegel, regida por um
contedo legal objetivo que deixa pouco espao para a subjetividade, para a ao
individual do heri.
O mundo moderno , para Hegel, mais desenvolvido, sob o ponto de
vista da liberdade, que o mundo da epopia homrica, porque a arquitetnica da
estrutura do mundo moderno comporta o lugar da particularidade, isto ,
resguarda o lugar da ao individual no interior do Estado. A ao individual aqui,
todavia, no encarna ou assume nenhum contedo substancial do todo, mas sua
ao apenas uma ao individual particular entre tantas outras. O contedo
assumido pelo indivduo um contedo particular, bem como os fins nesse mundo
particular do sujeito so fins igualmente particulares. No mundo efetivo, do qual o
romance a expresso, o indivduo burgus assume um contedo particular, cujo
fim realizar a satisfao de suas carncias.10Da mesma forma o meio para a
satisfao particular das carncias uma atividade particularizada: no trabalho o
10 Cf. Hegel, G. W. F. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou direito natural e cincia doEstado em compndio. Terceira parte: eticidade. Segunda seo: asociedade civil. Tr. MarcosLutz Mller, Campinas, IFCH/UNICAMP, 2000, 185; Grundlinien der Philosophie des Rechtes(abreviatura:PhRe), vol. 7, 185. Usaremos tambm a parte da Terceira seo: o Estado. Tr.Marcos Lutz Mller Unicamp: IFCH, 1998. Para o restante das partes da Filosofia do direitousaremos a traduo portuguesa de Vitorino. Hegel, F. Princpios da filosofia do Direito. Tr.Orlando Vitorino. Lisboa: Guimares Editores, 1959. Doravante as tradues sero referidasapenas como Filosofia do Direitoseguida do respectivo tradutor.
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homem especifica e escolhe, dentre uma gama variegada que a natureza
fornece, o material sobre o qual d forma de acordo com a carncia particular. 11
Para o mundo da forma romance, o contedo particular do sujeito, o seu mundo
particular, est em unidade com o fim particular subjetivo. por isso que,falando
da forma de arte romntica, Hegel afirma que nesta, juntamente com o contedo e
os fins particulares, est a individualidade viva, para a qual o carter se limita em
si mesmo.12 Ora, mas tal mundo do carter individual aparece para Hegel como
abstrato e formal porque o mundo do sujeito particular se encerra, igualmente,
num mundo particular limitado, ou como ele o diz, contingente.13 O que o
indivduo , no sustentado e suportado pelo substancial, [...] mas pela
subjetividade do carter.14
Na Teoria do romance, Lukcs concorda com Hegel que os elementosdo romance so abstratos. Hegel diz que a configurao do romance um embate
entre o sentimento do poeta e a vida prosaica e que, de um lado, os indivduos
inicialmente vo contra a ordem do mundo da prosa e apreendem o autntico e
substancial nele ou, por outro lado, dissolvem a prosa do mundo na composio
potica e em seu lugar colocam uma realidade mais prxima da beleza.15Isso, em
outros termos, significa que eles fazem uma abstrao potica da realidade
existente.
A anlise de Lukcs sobre a abstrao dos elementos do romance se
constitui com base nessas determinaes hegelianas sobre o romance, bastando
observarmos, para nos convencermos disso, quais so os elementos abstratos,
apontados pelo autor da Teoria do romance,como constituintes dessa forma da
11Cf. Ibid, 196; PhRe, 196.12Esttica, vol. II. p. 312; VuAe, vol. 14, p. 199.13Idibid; Idibid.14Idibid; Idibid. A literatura de Shakespeare emblemtica, para o autor da Esttica, para pensar asubjetividade formal e particularidade contingente da forma de arte romntica. Sobre os caracteresde Shakespeare, Hegel afirma que para os seus personagens [...] no entram em questo areligiosidade e uma ao a partir da reconcil iao religiosa dos homens em si mesmos nem o ticoenquanto tal. Pelo contrrio, diante de ns temos indivduos colocados de modo autnomo apenassobre si mesmos, com fins particulares (besonderen Zwecken) que apenas so os seus, queprovm unicamente de sua individualidade, e os quais eles executam com a conseqnciainabalvel da paixo, sem reflexo acessria e universalidade, apenas para a prpriaautosatisfao. Ibid, p. 313; Ibid, p. 200.15Cf. Esttica, vol. IV, p. 138; VuAe, vol. 15, p. 393.
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grande pica. Primeiramente, ele aponta a constituio da totalidade no romance
como abstrata, ou seja, a totalidade fechada do romance s se deixa
sistematizar abstratamente.16 Em seguida, Lukcs comea a nomear os
elementos abstratos do romance. Deixemos o prprio autor falar dessas
abstraes: abstrata a aspirao dos homens imbuda da perfeio utpica, que
s sente a si mesma e a seus desejos como realidade verdadeira.17 Tanto no
idealismo abstrato como no romantismoda desiluso (tipos da forma romance
apresentados por Lukcs) o que permanece em primeiro plano o desejo
profundo do sujeito, traduzido como o que h de mais verdadeiro.
Em Dom Quixote, expresso do tipo romanesco caracterizado por
Lukcs como idealismo abstrato, a aspirao utpica do personagem acaba
esbarrando na efetividade prosaica, isto , a realidade imaginada est aqum darealidade do mundo, por isso o tratamento humorstico dado por Cervantes s
aspiraes de Dom Quixote. No romance da desiluso, cujo paradigma a
Educao sentimental de Flaubert, o desejo profundo de realizao utpica
encarcera a alma do personagem em si mesmo, tornando-o passivo em face da
fora da realidade existente. Os tipos so os modelos para pensar o elemento
abstrato da contraposio, de um lado, entre o querer utpico subjetivo sentido
como a nica realidade verdadeira e, de outro, o mundo efetivo, pois, afinal, a
aspirao utpica abstrata no romance porque tanto num como noutro tipo
permanece afastada da realidade, dela abstrada. Lukcs assim define o papel da
abstrao para a narrativa pica moderna:
[...] esse sistema abstrato justamente ofundamento ltimo sobre o qual tudo seconstri, mas na realidade dada econfigurada v-se apenas sua distncia emrelao vida concreta, comoconvencionalidade do mundo objetivo ecomo exagerada interioridade do mundosubjetivo.18
16TR, p. 70; TdR, p. 60.17Idibid; Idibid.18Idibid; Idibid.
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Embora Wilhelm Meister possua uma maior concretude que Dom
Quixote no tocante ao ideal perseguido por seus personagens, bem como uma
[maior] expanso da alma (traduzida na associao entre os homens, expanso
experimentada numa ao coletiva no mundo) esta tem que permanecer ainda
abstrata, porque o mundo burgus, no qual e a partir do qual a alma age, no se
verga a ideais. Para realizar essa unidade romntica Goethe teve que recorrer
segundo Lukcs, sob a influncia de Schiller19 a elementos formais da epopia
na composio do Meister, o que denuncia, ainda uma vez, a abstrao
configurada pelo e no romance. A aplicao de elementos formais da epopia teve
que fracassar e denunciar mais uma vez a aspirao utpica subjetiva. No
Meister o escritor recorre a uma forma no problemtica para tentar resolver a
dissonncia posta pela problemtica burguesa: a impossibilidade de um ideal dehumanidade no interior da realidade social prosaica moderna.
Esta uma tentativa de fornecer uma maior substancializao s
estruturas prosaicas: como nos diz Lukcs, a tentativa de apresentar uma
adequao mais autntica aos sujeitos do dever-ser do que era dado s esferas
superadas.20 Assim, o autor de Wilhelm Meister, bem como o prprio heri do
romance, terminam, no obstante sua condio peculiar de sntese e superao
das duas outras formas do romance apresentadas por Lukcs, por recarem na
abstrao da subjetividade romanesca, ao fim e ao cabo, ambos pela mesma
razo: o recurso subjetivo do escritor aos elementos da epopia pois o ideal de
comunidade que guia o todo da obra necessariamente teria que dirigir o autor para
tais elementos formais da epopia ndice do reconhecimento da
impossibilidade de unidade entre alma e mundo efetivo nas atuais relaes
burguesas. No obstante a sua diferena com o heri do romance da desiluso
(pois, afinal, Meister age no mundo), o heri de Goethe termina por reconhecer de
maneira compreensiva a discrepncia entre o homem e o mundo e, desse modo,
os anseios subjetivos do homem do romance, que aparecem na adaptao
19Na carta de Schiller a Goethe de 8 de junho de 1976, o primeiro afirma que o romance, assimcomo est, aproxima-se em muitos aspectos da epopia [...]. Correspondncias. Companheiros deviagem: Goethe e Schiller. Apresentao, seleo, traduo e notas Cludia Cavalcanti. SoPaulo: Nova Alexandria, 1993, p. 77.20TR, p. 148; TdR, p. 126.
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sociedade, na resignada aceitao de suas formas de vida e [n]o encerrar-se em
si e guardar-se para si da interioridade [...] apenas realizvel na alma. 21
* * *
Na primeira parte da Teoria do romance, na qual Lukcs expe as
condies tericas de compreenso do romance em sua relao com o gnero
pico, a influncia da Esttica hegeliana apresenta-se com muita clareza e
transparncia.22Na segunda parte, conforme o juzo de Lukcs na maturidade, se
apresentaria, na tipologia do romance, uma introduo do que ele chama de
epistemologia de direita.23 Com isso ele parece se referir ao uso do recurso
tpico-ideal cuja inspirao mais direta fornecida por Weber que se poderia
21Ibid, p. 143; Ibid, 121.22 A primeira parte declaradamente de influncia hegeliana, enquanto a segunda parte seriadeterminada pelo mtodo das cincias do esprito, isto , ao invs de um matiz fundamentalmentedialtica para a compreenso histrico-filosfica de certas obras romanescas, o autor hngaroparte, segundo a leitura de Lukcs no Prefcio de 1962, de conceitos sintticos apriori para dadeduzir nos fenmenos tais formas universais. Cf. Ibid, pp. 9-10; Ibid, p. 7.23 Trataremos da influncia em Lukcs do mtodo tipolgico em sua relao mais direta comWeber. No desconhecemos que esse mtodo se institui no processo de discusso acerca dadiferenciao entre o mtodo das cincias do esprito e o mtodo das cincias da natureza,discusso travada desde a segunda metade do sculo XIX e que se desdobra pelo incio do sculoXX, tendo como principais expoentes Rickert, Dilthey, Simmel, Weber etc. No que diz respeito aomtodo tipolgico utilizado por Lukcs na Teoria do romance, Leo Maar destaca a influncia deDilthey, que entende que o mtodo tipolgico utilizado pela arte possibilita um conhecimento maisapropriado do contedo da vida, da histria, do que a cincia. [...] a arte cont[a] com o tpico,diz-nos Leo Maar, o tpico seria a universalidade do individual, o essencial extrado da realidade,e o problema do artista consistiria precisamente na revelao deste tpico. Leo Maar, Wolfgang. Ocorao e as almas. Introduo leitura da teoria polticaem Lukcs. Dissertao de mestrado.Departamento de Filosofia da USP, 1980, p. 39. O jovem Lukcs utiliza na Teoria do romanceomtodo tipolgico da arte para desenvolver a problemtica das formas do romance em sua ntimaconexo com o desenvolvimento do contedo histrico, pois se trata da crena de Lukcs de que atipologia faz aparecer o essencial [...] da realidade. Isto denota um afastamento de Lukcs daaderncia hegeliana a Wissenschaft como forma absoluta da apreenso da verdade, pois, paraLukcs, a filosofia ndice da ciso entre o homem e o mundo, isto , a expresso separada da
experincia da fragmentao. Cf. TR, pp. 25-26; TdR, pp. 21-2. A limitao do mtodo tipolgico deextrao do essencial da realidade como forma adequada de conhecimento do gnero romance eda relao social que o funda, bem como as implicaes do uso desse mtodo em sua relaocom a dialtica hegeliana ser mais amplamente discutida adiante. Registramos aqui a nossaconscincia de que essa discusso envolve mais amplamente esse conjunto de autores vinculadoao problema das cincias do esprito. Como no se trata de perscrutar geneticamente asinfluncias desse amplo e extenso debate em torno das cincias do esprito, mas de demarcar aespecificidade do mtodo da Teoria do romance em relao a Hegel, nos concentraremos emexpor as influncias mais diretas de Weber e Simmel, que sero apresentadas em diferentes eespecficos contextos.
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caracterizar nos seguintes termos: o tipo se apresenta como conceito sinttico que
determina e enforma toda a compreenso do romance. No que se refere
tentativa juvenil de compreenso das obras literrias singulares com base na
tipologia, o Lukcs maduro afirma que esse procedimento metodolgico encarcera
as obras no interior de um conceito sinttico a priori limitado. desse modo, por
exemplo, que a Teoria doromanceparte do conceito de idealismo abstrato para
definir o primeiro tipo da sua tipologia do romance, determinado pela estreiteza da
alma do heri (Held)24 em relao ao mundo, para desenvolver os caracteres
principais de DomQuixote, de Cervantes.
Os tipos de romance caracterizariam, assim, uma formalizao, tpica da
epistemologia do crculo historicista, que retoma a separao kantiana entre forma
e contedo. Esta separao, no entendimento do socilogo alemo, o quepermite ao cientista a compreenso do carter apenas aproximativo do conceito
em relao realidade que ele deve explicar. Em razo disso, os
desenvolvimentos de contedo especficos demarcam sempre certa desproporo
24Lukcs usa indistintamente o vocbulo Heldtanto para o heri da epopia homrica como para oheri do romance e do drama. Por sua vez, na Esttica, Hegel emprega o termo Heldpara o heriromntico e Hero (que o termo propriamente grego, uma transliterao que permeneceu nalngua alem) para designar o heri grego. O motivo a unidade imediata entre interior e exteriorque o termo Hero conota, isto , a unidade assumida pelo heri da epopia entre o quererautnomo do indivduo e o destino do todo. Do mesmo modo Hegel emprega Heropara significar oheri histrico universal, pois a indiv idualidade deste, tal como a do heri da epopia, apresenta-seem unidade, mesmo sem o saber, com o fim do esprito universal. Se perscrutarmos o termo Hero,usado por Hegel na Enciclopdia das cincias filosficas e na Filosofia da Histria, constatamosque ele emprega esse vocbulo para designar o heri da histria universal, ou seja, o indivduohistrico universal que encarna a unidade entre querer subjetivo e o destino do esprito universal.Escolho, dentre tantas, uma citao de Hegel que corrobora com o que foi dito, ou seja, que a aodo indivduo histrico universal, mesmo quando visa aparentemente apenas o poder e a riqueza,encontra-se em estreita unidade com o esprito de um povo e qui como o esprito universal: [...]se para os heris (Heroen) histricos s fosse questo de interesses subjetivos e formais, noteriam realizado o que realizaram; e h que reconhecer, tendo em vista a unidade do interior e doexterior, que os grandes homens quiseram o que fizeram, e fizeram o que quiseram. Hegel, F.Enciclopdia das cincias filosficas em compndio. A cincia da lgicav. I. tr. Paulo Meneses
So Paulo: Loyola, 1995, Adendo 140; Enzyclopdie der philosophieschen Wissenschaften imGrundrisse (abeviatura: Enzy), 140. O termo Heldpor sua vez caracteriza uma interioridade esubjetividade que j se encontram apartadas do todo, ausentes no Herogrego. Hegel utiliza, dessemodo, o vocbulo Held para designar o heri ps-helnico, advindo da experincia crist, bemcomo o heri moderno, pensado como o desdobramento e realizao desta mesma experinciacrist. Embora o emprego desses dois vocbulos siga a lgica exposta acima, na Esttica,algumas poucas vezes, Hegel utiliza o vocbulo Heldpara falar do heri homrico. A causa dissoparece estar na especificidade da elaborao da Filosofia da arte de Hegel, a saber: uma obraelaborada e construda a partir de anotaes muitas vezes esparsas e fragmentrias de aulasde Hegel, bem como de seus prprios alunos, postumamente organizados e compilados.
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em relao forma, pois jamais aparecem puros na realidade que ela deve
explicar. O tipo ideal em Weber um construto que permite ao cientista investigar
os fenmenos da realidade. Quadro ideal sinttico, o tipo ideal se constri a
partir da acentuao de um aspecto ou de vrios pontos de vista, e mediante o
encadeamento de grande quantidade de fenmenos isoladamente dados, difusos
e discretos forma-se um quadro homogneo de pensamento que, desse modo,
aplicado aos fenmenos. O cientista, ao descer aos fenmenos, encontra em
determinadas realidades particulares representaes mais prximas ou afastadas
do tipo ideal construdo, mas esse quadro de pensamento nunca encontrado
empiricamente na realidade.25Outro importante elemento, que o tipo ideal tem,
para Weber, a funo de eliminar as contradies, sempre presentes, segundo
seu ponto de vista, na prpria realidade. Esta eliminao da contradio, no querdizer, para o socilogo, que o procedimento tpico-ideal elimine a contradio real,
mas apenas na esfera da sua representao, ou seja, do ponto de vista da sua
exposio formal, cientfica.
Segundo nossa leitura, se parece inegvel a inspirao weberiana na
tipologia das formas romanescas, por exemplo, na escolha por Lukcs de um
nico tipo para apresentar o correspondente momento histrico-filosfico (o
Quixote para o romance do idealismo abstrato, A Educao sentimental para o
romantismo da desiluso e o Wilhelm Meistercomo uma tentativa de sntese entre
estes dois), esse uso possui uma especificidade que consiste em mover-se entre
esta influncia e a relao com a Esttica de Hegel. De um lado, assim, os
romances so ainda engessados numa tipologia ideal, que dificulta a
apresentao das contradies internas. Isso visvel, por exemplo, na ausncia
de um desenvolvimento mais amplo dos elementos contraditrios de cada tipo,
como no Quixote, ao qual nos referiremos de modo mais especfico no contexto de
um debate com Fehr. De outro lado, contudo, a nosso ver, o procedimento tpico-
ideal em Lukcs no se limita a acentuar uma simples escolha arbitrria dos
25 Cf. Weber, Max. A objetividade do conhecimento nas Cincias Sociais. IN Sociologia (Org.Gabriel Cohn) So Paulo: Editora tica, 1997 pp. 105-6. Cf. tb., Weber, Max. Economia eSociedadI. Teoria da Organizao Social. Tr. Jos Medina Echavarra Mxico: Fondo de CulturaEconomica, p. 4.
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tipos pelo pesquisador, mas de fato desenvolve segundo a nossa hiptese em
estreita conexo com a Esttica de Hegel, conexo que buscamos indicar ao
anunciar a relao entre o conceito de romance do autor hngaro e a Esttica as
determinaes fundamentais, expostas no romance, da experincia da
subjetividade em seu desenvolvimento histrico.
Isso significa que a Teoria do romance, mesmo quando recorre na sua
exposio ao acervo conceitual tpico-ideal, expe os tipos romanescos segundo o
princpio negativo pelo qual a subjetividade apresentada por Hegel, ou seja, a
partir do princpio da contradio, ainda que capte tal princpio apenas em suas
linhas mais gerais. Se esta exposio em linhas mais gerais no capaz de
desenvolver internamente cada uma das contradies, reunindo-as numa
totalidade, isso no elimina, contudo, que tais contradies apaream por meiodos tipos, embora no seja a contradio o que neles enfatizado.
Se na primeira parte, na qual Lukcs expe as formas da grande pica
em sua relao com os gneros poticos e com o solo histrico de sua
configurao, a unidade categorial entre forma e contedo, que expressa a
dialtica histrica da Estticahegeliana, apresentada por Lukcs, isso possvel
porque tambm para ele as concluses de Hegel acerca da liberdade, exposta na
epopia, so corretas, tanto quanto ao contedo como quanto forma. Isso quer
dizer que ele acolhe a negatividade da liberdade a subjetividade, a interioridade
como princpio distintivo entre as duas formas da grande pica. No que se refere
experincia do romance, que objeto da segunda parte, ao contrrio, a
concordncia de Lukcs com Hegel apenas parcial. Se, de um lado, ele
concorda com Hegel que o romance a expresso literria de uma nova relao
do homem com a liberdade, a partir da emergncia da subjetividade, do contedo
lrico da modernidade, de outro lado, porm, ele discorda das concluses mais
gerais do autor da Estticaa respeito da experincia socialmoderna.
Essas concluses levam Hegel a localizar no na arte, mas na filosofia,
a capacidade de expor a unidade alcanada no mundo histrico presente. Se
Lukcs compartilha das concluses de Hegel dos contornos mais gerais da arte e
da literatura modernas, ainda assim, ele discorda, ao mesmo tempo, que essa
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esfera tenha sido, como opensa Hegel, ultrapassada positivamente pelo conceito
(filosofia) na realidade histrico-social presente. A nossa hiptese deque este
ltimo distanciamento fundamental na oposio de Lukcs ao mundo do
romance, oposio que parece determinar aquilo que o Lukcs maduro chamar
de epistemologia de direita porque antidialtica da Teoriadoromance, pois
ela aponta uma fissura entre forma e contedo, entre subjetividade e experincia
social moderna. Segundo pensamos, essa ruptura precisa se apresentar na forma
de exposio da Teoria do romancejustamente porque indica o distanciamento do
seu autor em relao s concluses reconciliadoras de Hegel com a
modernidade.26O afastamento do contedo histrico-social que o carter formal
da tipologia parece querer demarcar em relao realidade que o terico deve
compreender, teria o papel de apresentar o inacabamento ou a insuficincia dessamesma realidade.
Em termos gerais, o ponto de vista de Lukcs no Prefciode 1962 o
de que a epistemologia de direita demarcaria o limitado ponto de vista tico da
recusa ao mundo moderno apresentada na Teoria do romance. Essa recusa se
exporia numa epistemologia que separa forma e contedo, estando assim em
contradio com a dialtica que os pensa ( forma e ao contedo) numa relao
necessria e contraditria, dialtica, entretanto, que estaria tambm presente na
Teoria do romance. O problema dessa leitura tardiade Lukcs, leitura seguida por
uma considervel parte de comentadores da Teoria do romance e que contm
elementos importantes tambm para nossa pesquisa, que ela no parece
responder suficientemente ao modo como o jovem autor hngaro coaduna essa
sua recusa tica do presente com os instrumentos conceituais por ele utilizados,
isto , ela no responde ao problema de porque a posio tica de juventude
exige a forma tpico-ideal de exposio contra a dialtica especulativa de Hegel.
Ela no nos explica suficientemente, deste modo, o papel expositivo da tipologia
romanesca em sua relao interna com a dialtica, limitando-se a propor que
26Cf. Tertulian, Nicolas. Georg Lukcs: etapas de seu pensamento esttico. Tr. Renira Lisboa deMoura Lima; reviso tcnica Srgio Lessa. So Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 97.
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haveria uma mescla entre ambas na qual os dois mtodos o hegeliano e o das
cincias do esprito se encontrariam justapostos.
Esperamos, por essa via de investigao, demonstrar que a recusa por
Lukcs de seu presente, recusa que ele parece precisar expor sob a forma
tipolgica, no se desvincula da dialtica histrica, mas, ao contrrio, a supe,
enquanto acolhe o princpio da subjetividade como marco histrico-conceitual
distintivo entre a epopia e o romance ou entre o mundo moderno e a Grcia
arcaica. O problema conceitualmente relevante parece ser o de explicitar que o
distanciamento da exposio da Teoria do romance da dialtica especulativa de
Hegel um desdobramento da dialtica (que se assenta no reconhecimento e na
afirmao da negatividade do sujeito moderno) e no uma simples mescla
arbitrria entre dois mtodos. A nossa tarefa, ento, consiste em explicitar como oautor da Teoria do romance que reconhece j se aproximar da dialtica
hegeliana mediado pela crtica da sntese especulativa27 expe essa recusa
sntese por meio do recurso tipologia, isto , como a tipologia aparece como
ndice do distanciamento de Lukcs da noo hegeliana de sntese e no da de
dialtica histrica.
* * *
Retomemos brevemente a relao entre a primeira e a segunda partes
da obra para tentar melhor explicitar o problema. Se inferirmos da afirmao por
Lukcs na maturidade de que A teoria do romance uma mescla de tica de
esquerda e epistemologia de direita, que esta ltima se refere formalizao
tpico-ideal presente na segunda parte da obra, tal inferncia nos levaria, com
Lukcs, a apontar a influncia da Esttica de Hegel como circunscrita
substancialmente primeira parte da obra. Mas se a primeira parte a
fundamentao para a segunda, a relao categorial entre pica e processo
histrico, desenvolvida na primeira parte, aparece como determinao que
estrutura o desenvolvimento particular tambm dos tipos apresentados na
27Cf. TR, p. 15; TdR, pp. 12-13.
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segunda parte, embora nesta ltima se apresente a divergncia metodolgica
crucial de Lukcs em relao a Hegel. A compreenso de seu presente como a
era da perfeita pecaminosidade (Zeitalter der vollendeten Snndhaftigkeit)28
oposta celebrao hegeliana do presente moderno como realizao da
liberdade. Essa oposio apresenta uma ruptura entre a apreenso categorial de
Lukcs da modernidade e do romance, sendo essa ruptura possvel porque
compartilha, antes, um mesmo horizonte de compreenso da conexo entre a
experincia subjetiva apresentada no romance e a experincia social moderna.
Com efeito, os tipos expostos na segunda parte esto em estreita conexo com o
desenvolvimento histrico do princpio da subjetividade na modernidade, isto ,
essa tipologia apresenta graduaes do desenvolvimento da subjetividade que se
expe na forma do romance, mas que apenas so compreensveis quandoremetidos sua relao com o conjunto da experincia moderna e com as
transformaes da subjetividade experimentadas historicamente.
Isso no anula inteiramente, embora re-signifique, a afirmao tardo-
lukacsiana de que na tipologia da forma romanesca o mtodo utilizado o das
cincias do esprito, isto , que o mtodo de investigao e exposio dos
fenmenos do romance feito a partir daqueles conceitos gerais sintticos
referidos acima. Todavia, quando pensamos a decisiva relao entre as duas
partes, essa afirmao corrobora a hiptese de que tanto a primeira como a
segunda parte, no so, respectivamente, resultados puros da dialtica hegeliana
28 Idibid; Ibid, p. 12. No final da Teoriadoromance, Lukcs caracteriza, retomando Fichte, a suapoca, da sociedade moderna do romance, como a era da pecaminosidade. Para deixar registradoo que seria essa poca da pecaminosodade Fichteana, lano mo de Tertulian para explicar demaneira esquemtica o que o autor da Grundzge des gegenwrtigen Zeitalters queria dizer com apoca da vollendete Sndhaftigkeit. Fichte diferenciava, segundo Tertulian, cinco estados oupocas essenciais da humanidade. Reproduzo, portanto, a explanao didtica de Tertulian. Diz-nos ele que a primeira era [...] a da dominao incondicional do instinto sobre a razo: era o
estado da inocncia da espcie humana. A segunda poca via a razo prtica se transformar emfora constrangedora; os modos de viver dominantes reclamavam a f cega e a obedinciaincondicional: o estado de pecado iniciante (anhebendeSnde). O terceiro momento, a pocado prprio Fichte, seria a emancipao de toda racionalidade, da indiferena em relao verdade e da rejeio de todo princpio de conduta: o estado da perfeita culpabilidade. Openltimo estado ser o reino da razo cientfica, a verdade reconhecida e amada como o valormais alto: o estado de justia em vias de instaurao (anhebendeRechtfertigung). A quinta poca,enfim, ser a do completo triunfo da razo instituda como forma de vida e como principio deorganizao da existncia: ser o estado de justia e de santidade perfeitas. Tertulian, op. cit., pp.108-9.
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e das cincias do esprito, mas uma terceira forma ou do mtodo prprio Teoria
do romance, se assim podemos falar.
Tanto numa como noutra parte a dialtica histrica de Hegel, que se
apresenta como chave de leitura de ambas, entrecortada e permeada pelo
mtodo da forma conceitual sinttica ou por conceitos de inspirao
transcendental. A elucidao das relaes categoriais entre essas influncias da
Estticae do mtodo das cincias do esprito na primeira e na segunda parte ,
assim, necessria compreenso tanto da proximidade quanto do afastamento
experimentado pelo autor da Teoria do romance com relao Estticade Hegel.
Pensamos que apenas no quadro deste dilogo com a tematizao hegeliana
que as diferenas se estabelecem, ou seja, que apenas a partir da identidade
com Hegel que as diferenas em relao a ele podem ser pensadas.Assim, a hiptese que guia este trabalho, para a leitura da Teoria do
Romance, a de que, no obstante as vrias influncias experimentadas por seu
autor, Hegel aparece como o ponto de apoio categorial sobre o qual o jovem
Lukcs se equilibra.29 Isto parece uma obviedade quando nos reportamos
prpria declarao de Lukcs no Prefciode 1962 Teoria do romance, na qual
ele afirma que a primeira parte [da Teoria do romance], a mais genrica,
definida essencialmente por Hegel, afirmao que reforada logo em seguida
pela assertiva de que alguns estetas e filsofos alemes complementam e
concretizam os contornos hegelianos genricos (allgemeine).30 Essaobviedade
da relao crucial entre A teoria do romancee a Estticade Hegel foi, contudo,
pouco explorada e desdobrada pelos especialistas que se debruaram sobre essa
obra do jovem Lukcs. Nesses estudos, Hegel mencionado, confrontado na sua
relao com A teoria do romance, todavia essa influncia e o paralelismo dos
conceitos estticos de ambos, bem como a discusso e o desenvolvimento de
seus pontos divergentes, no foram, at onde sabemos, suficientemente
investigados. Encontramos trabalhos que mencionam a relao do jovem autor
29 Sobre o perodo da confeco da Teoria do romance, Tertulian afirma que [...] o sistemafilosfico e esttico hegeliano, exercia, naquele momento, uma influncia muito forte em Lukcs noque se referia totalidade de seu horizonte intelectual. Tertulian, op. cit., p. 111.30TR, pp. 11-2; TdR, p. 9 Grifos meus.
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hngaro com a Esttica e a filosofia hegeliana em geral. Essas, porm, so
referncias pontuais que no pretendem examinar mais a fundo e tirar concluses
acerca dessa relao.
Essa discusso sobre as contradies internas ao mtodo daTeoria do
romance em sua relao com a Esttica de Hegel , para nossa pesquisa,
manifestamente no s um problema de mtodo, mas diz respeito ao prprio
contedo da experincia moderna em suas conexes com as duas grandes
formas picas. O problema do mtodo da Teoria do romancee sua relao com a
dialtica hegeliana e as cincias do esprito se apresenta, assim, como via de
acesso ao problema de fundo que as questes metodolgicas revelam, a saber: o
mtodo da Teoria do romance apareceria, segundo nossa hiptese, como
exposio da crtica da experincia moderna, crtica que, ao se expor numadialtica no sinttica, distancia a Teoria do romance, por um lado, da dialtica
especulativa de Hegel, enquanto esta se apresenta como confirmao da
experincia moderna, e por outro, das cincias do esprito, enquanto nestas a
exigncia de no valorao se articula a um mtodo compreensivo que exime o
terico da literatura de um juzo acerca de seu objeto.
A nossa hiptese, dito de modo conciso, a de que o mtodo da Teoria
do romance apresenta-se como condio da exposio de uma dupla distncia,
que assim demarca a sua perspectiva prpria. De um lado, ele se distancia tanto
de uma celebrao apenas positiva da epopia em sua oposio experincia
moderna, como da celebrao positiva da modernidade, esta ltima apresentada
por Hegel.31 De outro lado, se distancia tambm, nesse duplo afastamento dos
mundos da epopia e moderno, da mera indicao de sua diferena especfica
como diferena no valorativa, o que o distancia de um vis tipolgico. A dialtica
no sinttica apresentada na Teoria do romance exporia, desse modo, tanto a
assuno positiva da liberdade subjetiva moderna (pela qual a espontaneidade do
sentido presente epopia criticada, subjetividade apresentada por Hegel e
31 No que diz respeito distncia do jovem Lukcs em relao positivao hegeliana dopresente, afirma Tertulian que [...] Lukcs aceitava mal a posio tomada por Hegel de admitir arealidade apoiando-se no princpio: tudo o que real tambm racional, e, sobretudo, a teseclebre da reconciliao com a realidade exposta no Prefciode filosofia do direito. Tertulian, op.cit., p. 111.
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acolhida por Lukcs), quanto a demarcao do seu limite (pela qual a prpria
posio de Hegel de assuno da identidade entre liberdade subjetiva e
modernidade que criticada), delimitando a posio de seu autor em sua
distncia, ao mesmo tempo, da Estticade Hegel e das cincias do esprito com
as quais ela dialoga.
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Primeira Parte
I. Sociedade civil burguesa, lrica e romance.
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1. Dialtica histrica, reconciliao e crtica da Modernidade
Na Teoria do romance, retomando uma determinao conceitual da
Esttica hegeliana, Lukcs entende a forma romance, sob a perspectiva da
economia dos gneros poticos, como um desenvolvimento interno da epopia.
Ele compreende tambm e igualmente com base em Hegel a unidade entre as
duas grandes formas picas, o romance e a epopia, e o solo histrico no qual tais
formas so configuradas. Diz-nos Lukcs que epopia e romance, ambas as
objetivaes da grande pica, no diferem pelas intenes configuradoras, mas
pelos dados histrico-filosficos (geschichtsphilosophichen)com que se deparam
para a configurao.32Estas duas determinaes so desdobramentos internos
de uma mesma unidade: entre forma artstica e contedo histrico-social,determinaes que assim se apropriam do ponto essencial do esforo conceitual
da Esttica hegeliana e estruturam o conjunto da exposio da Teoria do
romance, dando inteligibilidade totalidade da obra. Se, de um lado, Lukcs
concebe a forma artstico-potica a partir dos dados histrico-filosficos com que
[esta] se depara para a configurao, isto , como unidade entre forma e
contedo, concepo que o vincula diretamente Esttica hegeliana; por outro
lado, ele se distancia da identidade apresentada por Hegel entre a liberdade
plenamente desenvolvida e a poca moderna, identidade cuja totalidade e
verdade, para Hegel, apenas o discurso filosfico capaz de fornecer. Afirma
Hegel que a cincia filosfica precisamente o fundamento do racional, [...] a
apreenso (Erfassen) do presente e do efetivo (wirklich).33O corte fundamental
com o pensamento hegeliano determinado pela concepo da modernidadepelo
autor da Teoria do romance, pois, ao invs de conceb-la como cumprimento da
liberdade do esprito, tal como a pensa Hegel, a compreende como a configurao
acabada da dissonncia entre eu e mundo, interioridade e exterioridade, vida e
sentido.
32TR, p. 55; TdR, p. 47.33Filosofia do direito. Tr. Vitorino, p. 13; PhRe, p. 24. Traduo levemente modificada.
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Hegel pensa a experincia moderna como aquela na qual a figura tica
do Estado se apresenta como a realidade efetiva da ideia tica,34 onde a
liberdade do homem cumpriu o desenvolvimento de todos os seus lados, isto ,
como uma figurao histrica na qual a liberdade se realiza pela primeira vez
como particularidade (Besonderheit), na esfera da economia, ao mesmo tempo em
que se realiza objetivamente, em seu acordo como cidado, no fim universal do
Estado.35 Essa esfera da sociedade civil burguesa, a mediao pela
particularidade, segundo pensa Hegel, apresenta uma liberdade ainda formal, pois
nela o indivduo visa somente os fins particulares. Esta particularidade da
liberdade, o egosmo do homem na sociedade civil burguesa ultrapassado na
esfera da liberdade universal do Estado ou, como nos diz Hegel no final da
Filosofia da Histria, quando o homem alcana a liberdade objetiva, as leis daliberdade real [do Estado, que] exigem a submisso da vontade contingente; pois
esta sempre formal (formell).36
Tal imagem da vida moderna, como efetivao de um certo
acabamento da liberdade do homem, supe que a esfera mais ampla do Estado
capaz de corrigir o particularismo ou o privatismo da sociedade civil burguesa. Ao
mesmo tempo, ela afirma a capacidade desse Estado de comportar ou acatar este
desenvolvimento da particularidade. essa imagem que se encontra no centro datese hegeliana de uma superao da arte pela filosofia, bem como da especfica
diferena entre a epopia e a pica moderna, todas temticas ponderadas com
fundamento nessa compreenso do desenvolvimento do esprito que culmina na
modernidade.
34 Cf. Filosofia do direito. Tr. Mller, 257; PhRe, 257.35Cf. Ibid, 258; Ibid, 258.36Cf. Hegel, G.W.F. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Tr. Jos Gaos Madrid:Alianza Editorial, 1989, p. 701; A traduo espanhola, doravante ser referida apenas comoFilosofia da histria. Utilizo a traduo espanhola das Lies sobre filosofia da histria que soacrescidas de notas de alunos feitas a partir da edio de G. Lasson. H certas passagens destaedio, por se tratar de uma traduo baseada numa edio ampliada com anotaes de alunos,que no se encontram na edio das obras completas, baseada na edio de Karl Hegel. Dessemodo, optei por fazer a referncia apenas da traduo espanhola, referncia cotejada, quandopossvel, com o original alemo.
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Na dcada de 1960 Lukcs elabora da seguinte maneira a sua
oposio juvenil compreenso hegeliana do presente, essa que se expe na
assuno hegeliana do Estado moderno como realizao da liberdade. Diz-nos
Lukcs que por si s evidente que [a] oposio entre A Teoria do romancee
Hegel, seu guia metodolgico universal, primordialmente de natureza social, no
esttico-filosfica.37Para entendermos quais so essas divergncias de natureza
social e o seu rebatimento no nvel da exposio categorial de cada um dos
autores, preciso, primeiramente, pensarmos o problema da arte na concepo
hegeliana no sentido de explicitar porque a arte no pode, para Hegel, expor
verdadeiramente o mundo moderno. Essa proposio sintetiza a divergncia entre
o jovem Lukcs e Hegel quanto s formas de exposio da modernidade,
divergncia que demarca tanto a convergncia categorial quanto a ruptura dojovem Lukcs com os problemas herdados da Estticade Hegel.
1.1 A Estticade Hegel e a modernidade
A estrutura tridica da sociedade moderna, conforme Hegel, torna-se
demasiadamente intrincada e mediada para a apreenso e exposio artstica. A
assertiva hegeliana, na Filosofia do direito, de que a modernidade a poca que
faz jus ao conceito, explicita a identidade que h entre a mediada sociedade
moderna e a sua forma verdadeira de exposio, a filosofia. Diz ele que a criao
da sociedade civil pertence, de resto, ao mundo moderno, que, pela primeira vez,
faz justia a todas as determinaes da Ideia.38 A arte, que outrora, na
experincia grega, ainda era capaz de apresentar a verdade, se torna na
modernidade um problema, pois no est apta a apreender e apresentar a
totalidade da experincia mais desenvolvida e determinada da liberdade, aquela
que se apresenta agora atravs do desenvolvimento da particularidade na esfera
da sociedade civil burguesa. Para Hegel, a impossibilidade da arte de expor a
37TR, p. 14; TdR, p. 12.38Filosofia do direito. Tr. Mller,Adendo 182; PhRe, Zusatz 182.
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liberdade moderna determinada pelo carter imediato da arte, isto , pelo fato da
atividade artstica apresentar a verdade numa unidade sensvel entre o universal e
o particular. Esse carter imediato da exposio artstica a impossibilita de
desenvolver adequadamente as diversas contradies que aparecem quando a
particularidade entra em cena, pois a arte no comporta a exposio das muitas
mediaes agora necessrias exposio da totalidade. As contradies
apresentadas pelo desenvolvimento da particularidade, embora desenvolvidas no
interior de uma totalidade objetiva, a do mundo moderno, apenas se apresentam
artisticamente sob o ponto de vista do sujeito, do indivduo portador de tais
contradies, ponto de vista fragmentrio e contraposto totalidade objetiva. Em
razo disso, a arte se converte, na modernidade, numa forma expositiva que se
restringe ao mbito da prpria particularidade, isto , ela no pode mais expor atotalidade social, mas apenas o fragmentado mundo das particularidades
subjetivas.39
A arte moderna configura uma totalidade, um mundo fechado em si
mesmo, todavia esse mundo no o mundo efetivo, que agora apenas pode
aparecer segundo as mediaes que o conceito apresenta. Ela configura, assim,
apenas uma totalidade artificial, distinta da prpria efetividade. Diz Hegel que
j que a obra de arte expe na forma daapario [Erscheinung] real, a unidadedeve, para no ameaar o reflexo vivo doefetivo, ser ela mesma apenas o vnculointerior que, aparentemente, sem inteno,mantm unidas as partes e as encerra emuma totalidade orgnica. Esta unidadeplena de alma do orgnico aquela quesozinha capaz de produzir o poticopropriamente dito [a artificialidade] emoposio conformidade a fins prosaica.40
39 Cf. Enciclopdia das Cincias Filosficas III. Filosofia do Esprito. Tr. Paulo Meneses. SoPaulo: Loyola, 1995, 556 ss; Enzy, vol. 10, 556 ss. Cf. tb., Esttica, vol. II, pp. 309 ss;VuAe, vol. 14, pp. 198 ss.40Ibid, vol. IV, p. 34; Ibid, vol. 15, p. 254.
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Para entendermos como esse diagnstico da arte na modernidade se
desdobra numa afirmao da perda do valor expositivo da arte e seu
deslocamento para a filosofia, preciso entender que a verdade ou o valor de
exposio da arte, para Hegel, tem a ver com o vnculo que a forma de exposio
capaz de apresentar com a realidade efetiva.A forma de arte potica em geral
possui o carter de no rivalidade com o efetivo. Isso se d porque o que
interior, a ao formativa do poeta, qual Hegel se refere na citao acima, a
instncia que deve fornecer a unidade imediata entre o particular das aes
individuais e o contedo universal da liberdade do esprito que a poesia deve
expor. O vnculo interior, na forma de arte potica, , desse modo, quem fornece
a unidade entre as partes e o todo da obra. Caso pensemos a partir da dialtica
das formas artsticas, ou seja, da configurao da arte efetivada no seu respectivosolo histrico, pode-se afirmar que a interioridade que fornece a forma da
totalidade da obra aparece de maneira distinta nas diversas experincias
histricas.
Para Hegel, assim, na experincia artstica trgica, cujo solo histrico
a polisateniense, a interioridade potica, que mantm em unidade as partes e o
todo da obra, mais acentuada do que na epopia homrica. Isto se d porque na
experincia da polis, aquilo que Lukcs ir denominar de sentido imanente vida, j acenava para uma evaso transcendental do sentido que se realiza
efetivamente no perodo ps-helnico. Dito de outro modo, a unidade entre a
individualidade e o todo na efetividade histrica, para de novo falar em termos
hegelianos, plenamente presente na experincia homrica, j estava em vias de
dissoluo pela introduo da liberdade individual, justamente aquela trazida
cena, de maneira ainda germinal, na experincia democrtica da polis. O carter
de no rivalidade da arte potica com a existncia efetiva j aparecia, de certa
forma, mitigado pela subjetividade formadora do poeta, pois na Grcia ateniense
j havia uma vida prosaica no interior de um Estado constitudo. Homero pde
configurar poeticamente a realidade grega, porque a sua subjetividade formadora
que aparecia a ainda de forma embrionria no rivalizava, mas, antes,
expunha a totalidade orgnica no interior da qual esta mesma subjetividade estava
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imersa e da qual ela inseparvel. O mesmo j no pode ser dito da
individualidade dos trgicos da polis, nos quais a possibilidade de criao deriva
no da imerso no todo, da imanncia imediata do sentido, mas j supe e requer
o esforo propriamente autnomo, subjetivo, do prprio poeta. Nesse sentido, a
subjetividade formadora do artista da polisse diferencia da de Homero, posto que
o artista no pertence mais a uma forma social manifestamente potica, como o
poeta da epopia, mas a mentalidade do artista, por pertencer a uma ordem
estatal, deve se afastar minimamente da vida da prosa presente para apresentar,
assim, uma unidade artstica imediata entre a totalidade e a ao do heri. Um
exemplo desse afastamento, como ndice da subjetividade formadora, aparece no
resgate pelos artistas da polisdo contedo herico configurado por Homero.
Se,em geral, o carter verdadeiro da arte como um todo e tambm da
poesia, para Hegel, a exposio da unidade imediata entre particular e universal,
a exposio do contedo espiritual numa forma imagtica, na modernidade esta
relao se torna problemtica, pois a subjetividade formadora no se encontra
mais em unidade imediata com a totalidade. Isto significa que o prprio artista,
como subjetividade formadora, desenvolve contedos cada vez mais particulares,
que assim j no carregam em si, imediatamente, o substancial ou o universal no
sentido da objetividade, da vida tica. Estes contedos particulares, todavia, onimo, o sentimento, tudo aquilo que diz da vida interior subjetiva do poeta,
somente pode se apresentar universalmente atravs da reflexo, pela qual os
contedos em si particulares podem aparecer universalmente. A universalidade
que resulta dessa reflexo do artista, entretanto, para Hegel, nada diz do que
verdadeiro no sentido da objetividade, da vida tica, mas apenas universaliza os
contedos da prpria subjetividade que todo sujeito moderno pode, em alguma
medida, compartilhar.
por isso que, para Hegel, em tal contexto a arte aparece apenas como
momento subordinado, como exposio da particularidade, dada a incapacidade
da subjetividade formadora em apresentar a totalidade tambm do ponto de vista
da sua objetividade. que quando a subjetividade se torna autnoma em relao
ao todo, sob essa determinao da autonomia subjetiva, a arte deve se apresentar
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na forma da unilateralidade, da sua separao em relao totalidade enquanto
esta efetivamente existente. Se Homero estava de imediato imerso na
totalidade, o artista moderno, ao contrrio, apenas artificialmente pode criar uma
totalidade aqui tornada formal, posto que irremediavelmente referida a esse
seu lado subjetivo j que o ponto de vista do qual ele parte o da sua
particularidade.
A consolidao do cristianismo nesse caso, a igreja catlica, porque
ela aparece como a expresso do cristianismo em que arte ainda tem um lugar
entendida por Hegel como o decreto da sepultura da arte como exposio
verdadeira do absoluto. Isso porque a experincia crist j comporta em sua
constituio o momento da mediao ou a emergncia da subjetividade, esse que
caracteriza a experincia moderna. No cristianismo a divindade de Deus no mais
se mostra de modo imediato. A a arte surge como um apndice e no como
justificada e validada em si mesma. A arte apenas o meio e no a exposio da
prpria verdade, que agora diretamente referida ao esprito, uma verdade
religiosa. A religio, diz-nos Hegel falando da religio crist, freqentemente se
serve da arte para aproximar a verdade religiosa da sensao.41
Na experincia da polisateniense, ao contrrio, a arte ocupava lugar de
destaque, ou melhor, era a prpria forma de exposio da verdade. A religio
grega considerada, por Hegel, como a religio da beleza, porque foi a poesia
que criou os deuses e os preceitos religiosos para os atenienses. A poesia
tambm serviu de base para a constituio poltica ateniense, pois a polismais
desenvolvida recebe da hierarquia olmpica e da incipiente deliberao dos heris
argivos na assemblia, descritas por Homero, a base precpua da (e para o
estabelecimento) constituio democrtica.42 Se a religio crist o princpio a
partir do qual a arte romntica se constitui, na experincia grega, ao contrrio, abeleza potica que fornece o princpio religioso. A transmutao da vida poltica
41Ibid, vol. I, p. 116; Ibid, vol. 13, p. 140.42Sobre o aspecto primordial que fundamenta a constituio democrtica ateniense, diz-nos Hegelque a constituio mesma, como algo essencial, no pode ser um objeto para a democraciagrega; no pode haver deliberaes nem resolues sobre a constituio, seno que a constituioconsiste precisamente nisto, em que os cidados deliberem e resolvam; isto o nico fixo.Filosofia da histria, p. 457.
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configurada na epopia homrica, na qual o Estado estava ausente, para uma
constituio estatal formada, possvel porque a unidade imediata entre indivduo
e comunidade, exposta por Homero, transforma-se numa outra unidade, tambm
imediata, na polis, entre cidado e Estado, constituio e cidado, indivduo e
todo. A experincia da unidade imediata apresentada na totalidade da experincia
grega, seja na vida religiosa, na poltica ou na vida cotidiana do cidado na gora,
est em consonncia com o conceito artstico estabelecido por Hegel, da a
necessria unidade entre experincia histrica grega e conceito de arte.43 nesse
sentido que Hegel diz: [...] entre os gregos [...] a arte era a forma suprema pela
qual o povo se representava os deuses e fornecia a si uma conscincia da
verdade.44
2. O princpio da particularidade na arte e a sociedade civil
burguesa
O carter artstico do mundo grego, a unidade imediata entre cidado e
Estado ateniense denuncia, para Hegel, o carter pouco desenvolvido dessa
experincia social. nesse sentido que tambm o modo de exposio associado
a tal experincia aparece como pouco desenvolvido, pouco determinado. Isto
ocorre porque o princpio da particularidade (Besonderheit), quer dizer, o princpio
da liberdade subjetiva em sua diferena com o todo, que se consolidar como a
determinao da sociedade civil burguesa, estava ausente da experincia grega,
ou melhor, aparece a, mesmo na sua incipincia, apenas como princpio
dissolutor da unidade imediata entre as finalidades individuais e a finalidade do
Estado. Diz Hegel que:
no interior dessa liberdade mesma [grega]desperta a necessidade de uma liberdade
43 Cf. Filho, Antonio Vieira. Poesia e Prosa. Arte e filosofia na Esttica de Hegel. Campinas:Pontes Editores, 2008, pp. 68 ss.44Esttica, vol. I, p. 116; VuAe, vol. 13, p. 141.
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superior do sujeito em si mesmo, quereivindica ser livre no apenas no Estado,enquanto todo substancial, [...] mas em seuprprio interior, na medida em que quergerar para si a partir de si mesmo o bem e ocorreto em seu saber subjetivo e o levar ao
reconhecimento.45
Na Filosofia do direito Hegel apresenta o aparecimento histrico da
sociedade civil burguesa a esfera da mediao na prpria efetividade como
aquele que coincide com a autonomia formal da subjetividade e demarca o seu
pertencimento e a sua consolidao como prprios da experincia moderna.
Trata-se de mostrar que o princpio da particularidade, da mediao significada
por ela entre o indivduo particular e o cidado do Estado, surge como o momento
em que irrompe a corrupo dos costumes nos Estados pr-modernos.46 A
liberdade dos indivduos na esfera da sociedade civil burguesa apresentada por
Hegel como ainda formal porque o que eles perseguem na satisfao das
carncias apenas um fim particular. Diz-nos Hegel que esta libertao formal
(formell), visto que a particularidade (Besonderheit) de fins continua sendo o
contedo que lhe serve de fundamento.47
Hegel, na Esttica, explica o que a liberdade formal, configurada pela
arte romntica, significa, quando acentua, neste momento, que o esprito se retira
da exterioridade e se centra em si mesmo. A matria romntica do crculo
religioso, como a primeira forma de exposio da arte romntica, os aspectos
exteriores da apario de Cristo: vida, morte, os discpulos, ressurreio, etc., so
ultrapassados e superados pelo retorno do esprito para o interior do homem.
Afirma Hegel que nesse momento da forma de arte romntica
[...] o mundo do particular (Welt desBensonderen), do existente em geral, quese torna livre para si e, na medida em queno aparece penetrado pela religio e pelareunio na unidade absoluta, se coloca
45Ibid, vol. II, p. 242; Ibid, vol. 14, p. 118.46Cf. Filosofia do direito. Tr.Mller, 185; PhRe, 185.47Ibid, 195; Ibid, 195.
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sobre seus prprios ps e se moveautonomamente em seu prprio mbito.48
O homem aqui se refere a si e se prende apenas a fins particulares, o
que significa que, para a arte, que tem a pretenso de apresentar a unidadeimediata entre interior e exterior, esses lados tornam-se formais, na medida que
o que substancialmente exterior se mostra separado da subjetividade. O que
tico e substancial preterido pelo fim particular subjetivo, que quando quer
realizar tal fim entra em coliso com os outros fins particulares. Na Filosofia do
direitoHegel identifica a luta pela realizao dos fins subjetivos como o sistema da
eticidade perdida nos seus extremos.49A forma da arte romntica apresenta essa
luta atravs do que Hegel nomeia como a autonomia formal dos particulares
individuais, na qual o que conta o mundo particular, o querer e os fins
individuais. Desta espcie, afirma Hegel, so principalmente os caracteres de
Shakespeare, nos quais a firmeza frrea e unilateralidade constituem o aspecto
particularmente admirvel.50
A imediatidade que Hegel apresenta como prpria exposio artstica,
est assim, agora, em dissonncia com este aparecimento da particularidade na
efetividade histrica. A experincia intuitiva e representativa da arte apenas se
mostra como exposio verdadeiramente absoluta quando seu conceito encontra
na experincia histrica a unidade das premissas categoriais do prprio conceito
de arte. A experincia mediada e particularizada moderna no pode mais ser
verdadeiramente exposta pela poesia, pois esta deve apresentar o particular das
aes dos personagens naquela unidade imediata com a totalidade. A poesia
deve, assim, mostrar o universal em imediata ligao com a individualidade do
heri. Na experincia mediada da sociedade moderna esta relao imediata entre
a vontade particular e o fim universal, como dito, no mais ocorre e por isso apoesia no pode explicar e expor a verdade, ao menos enquanto esta concebida
como a verdade do todo efetivamente existente. O que lhe resta somente
48Esttica, vol. II, p. 309; VuAe, vol. 14, 195.49Cf. Filosofia do direito. Tr. Mller, 184; PhRe, 184.50Esttica, vol. II, p. 313; VuAe, vol. 14, p. 200.
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mostrar, a partir de um mundo criado, o indivduo da sociedade civil burguesa em
unidade com um mundo contingente e abstrato, igualmente particularizado, aquele
formado com base no seu querer subjetivo.
O modo como Hegel pensa essa caracterstica da poesia moderna fica
claro quando tomamos um exemplo como Os Bandidos, de Schiller. A imediatez
da ao individual de um personagem como Karl Moon mostra-se na assuno,
por este, de direitos, que no coincidem com a norma jurdica do Estado, que
legitimam a sua ao de bandoleiro para vingar a morte do pai e reconquistar o
reino surrupiado. No se trata aqui de valorar, como Hegel o faz negativamente, a
obra de Schiller, mas somente de ilustrar o que dizemos a partir do autor da
Esttica:a ao individual do heri que no mais heri em razo de portar em
si mesmo a verdade do todo tico, mas, no caso da poesia moderna, apenas
enquanto se exila deste mesmo todo est apenas em consonncia com o seu
prprio mundo contingente e abstrato, fechado e criado pela obra. Essa no expe
uma unidade imediata entre a ao individual do heri e a norma tica do Estado
efetivo. No Estado moderno a ao imediata do heri apenas pode se apresentar
em dissonncia ou no mnimo em exlio em relao constituio legal estatal,
pois nela no h mais, conforme Hegel, espao para uma vida de bandidos, pois
a justia do fazer com as prprias mos, a vingana, j no tem mais lugar.51
por isso que para Hegel, no mundo moderno apenas a filosofia
capaz de apresentar a verdade, pois ela no expe um mundo autonomamente
formado, segundo a sua concepo, mas apreende conceitualmente a efetividade,
isto , a subjetividade, enquanto esta participa verdadeiramente do e em
consonncia com o todo tico objetivo. Nessa apreenso conceitual a filosofia
pode se haver com a universalidade e a singularidade por meio da particularidade
efetiva, reconstituindo as conexes imanentes e necessrias entre estasdeterminaes.52No se trata, assim, como pensa Hegel, tal como acontece na
51Cf. Ibid, vol. I, pp. 203-4; Ibid, vol. 13, p. 255.52 Na deduo filosfica, a saber, [se] manifesta certamente a necessidade e a realidade doparticular, contudo, demonstra expressamente por meio do superar dialtico do mesmo,novamente em cada particular, que ele encontra apenas em sua unidade concreta primeiro a suaverdade e a sua consistncia. Ibid, vol. IV, p. 35; Ibid, vol. 15, p. 255.
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poesia, de apresentar imediatamente a legitimidade da ao individual em unidade
com o universal criado a partir da obra, mas de pensar como cada ao individual
somente tem legitimidade se mediada por outras aes igualmente individuais,
bem como mediada pela universalidade, mais desenvolvida e concreta que todas
essas aes individuais, apresentada no Estado.
A sociedade civil burguesa hegeliana, que essa exposio conceitual
da particularidade, de um lado o lugar das necessidades naturais e do arbtrio
e, assim, da particularidade e da contingncia. Por outro lado, todavia, porque
essas mesmas carncias devem supor uma relao entre as demais carncias e o
seu suprimento, ela j porta na prpria esfera da particularidade, segundo Hegel,
certa universalidade, constituda por meio dessa relao negativa entre os
particulares. Neste momento da sociedade civil burguesa j se apresenta assim,
uma centelha de universalidade, ainda que em cores foscas, na necessria
relao entre os indivduos na produo e satisfao das carncias. A satisfao
das carncias subjetivas e a realizao dos arbtrios particulares se realiza na
necessria conexo com os demais arbtrios e com as outras formas particulares
de satisfao das carncias. Hegel afirma que pela sua relao aos outros, o fim
particular se d a forma da universalidade e se satisfaz enquanto, ao mesmo
tempo, satisfaz conjuntamente o bem-prprio de outrem.53
Essa mediao entre o particular e o universal ainda insuficiente e
denunciada em sua indeterminao por Hegel, pois uma particularidade
mediada apenas na esfera das carncias, portanto, do particular. H uma
mediao superior e mais determinada, na qual a ao individual pode ser
justificada. A unidade entre o indivduo das paixes da sociedade civil burguesa e
o cidado do Estado realizada, em sua efetividade, atravs da mediao deste
ltimo, na qual a ao individual se apresenta legitimamente justificada apenas ena medida em que uma ao que tem esta instituio como fim ltimo. 54Essa
intrincada mediao, prpria ao mundo moderno, , ainda segundo Hegel, o que,
53Filosofia do direito. Tr. Mller, 182; PhRe, 182.54Ibid, 258; Ibid, 258.
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finalmente, no pode ser exposto em sua necessidade racional, pela limitada
forma de exposio artstica.
A divergncia crucial entre Lukcs e Hegel, conforme mencionado
acima, que, para este, a poca moderna alcana sua verdade e totalidade no
Estado, que suspende o momento de antagonismo da sociedade civil burguesa,
enquanto para o autor hngaro, ao contrrio, a poca moderna se determina pela
separao do indivduo em relao s estruturas sociais que, na sociedade
moderna, se unificam no Estado. A dissonncia entre eu e mundo que demarca
a solido do homem da lrica ou o sujeito fragmentado alguns dos termos
utilizados por Lukcs para significar essa determinao do homem moderno
corresponde ao momento da sociedade civil burguesa hegeliana e , para Lukcs,
o que determina a verdade da experincia moderna, sendo tal separao o
fundamento do mundo no qual se produz o romance como forma. Com base
nessa divergncia acerca do sentido da experincia moderna, se desdobram
algumas das relaes mais importantes para o nosso problema, pois o modo
como Hegel e Lukcs articulam, respectivamente, as suas reflexes acerca da
epopia, da lrica e do romance aponta para a importncia crucial do problema da
valorao da modernidade.
3. Os gneros e o lirismo como princpio da modernidade
Hegel pensa a lrica como a mais determinada e desenvolvida das
formas de arte potica, porque ela a expresso artstica da consolidao
moderna do princpio da subjetividade. A lrica, mais do que o drama, segundo a
concepo de Hegel, necessita, para o seu desenvolvimento, de uma poca na
qual as relaes sociais sejam mediadas pelo Estado. Para a consolidao da
lrica necessria uma organizao social que tenha um desenvolvimento
material e espiritual capaz de permitir ao homem voltar-se primordialmente para o
seu interior e sentimento, nos quais a forma da particularidade o principio vetor.
Nesse sentido, nos diz Hegel que
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se, a saber, exigimos para a poca doflorescimento da epopia propriamente ditaum estado nacional ainda no desenvolvidono todo, ainda no amadurecido para a
prosa da efetividade, para a lrica, aocontrrio, tais pocas so particularmentepropcias, as quais j produziram umaordem tornada acabada em maior ou menorgrau das relaes da vida, pois s nessesdias o homem singular se reflete em simesmo perante este mundo exterior e seisola para seu interior para uma totalidadeautnoma do sentir e do representar.55
Segundo Hegel, na poca moderna j no se exige uma arte alicerada
na objetividade da coisa, ela no tem que fazer a coisa aparecer em seu pleno
desenvolvimento, como ocorre na epopia, que narra a ao individual do heri
inserido na totalidade orgnica de um mundo fechado em si mesmo, ou como no
dram