SISTEMA AFRICANO DE DIREITOS HUMANOS -...
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UNIVERSIDADE DE BRASLIA
Faculdade de Direito
RAFAEL CHIARINI MEDEIROS
SISTEMA AFRICANO DE DIREITOS HUMANOS:
Uma anlise crtica dos rgos regionais de proteo
Braslia
2017
RAFAEL CHIARINI MEDEIROS
SISTEMA AFRICANO DE DIREITOS HUMANOS:
Uma anlise crtica dos rgos regionais de proteo
Monografia apresentada ao Curso de Direito
da Universidade de Braslia, como requisito
parcial para a obteno do ttulo de Bacharel
em Direito.
Orientador: Paulo Cesar Villela Souto Lopes
Rodrigues
Braslia
2017
Nome: Medeiros, Rafael Chiarini.
Ttulo: Sistema Africano de Direitos Humanos: uma anlise crtica dos rgos regionais de
proteo.
Monografia apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo de Bacharel em Direito
pela Universidade de Braslia UnB.
Data da defesa: 22/06/2017
Resultado:
BANCA EXAMINADORA
Orientador: Professor Doutor Paulo Cesar Villela Souto Lopes Rodrigues
Integrante: Professor Doutor Paulo Henrique Blair de Oliveira
Integrante: Professor Mestre Guilherme Del Negro Barroso Freitas
AGRADECIMENTOS
minha me, maior inspirao da minha vida acadmica e pessoal. Agradeo do fundo
do corao pelo amor incondicional, mesmo nos meus dias mais cinzas. Serei eternamente grato
pelo seu apoio em cada projeto da minha vida, inclusive neste, do qual voc foi a maior
entusiasta. Como palavras no faro jus a meu amor por voc, fica aquele elogio que s a gente
sabe...
Aos meus irmos, por todo o carinho, pelos aprendizados e pelos momentos de
descontrao to espontneos, que so a essncia da nossa convivncia. Ao meu cunhado, pelas
conversas, pelos conselhos e por me mostrar o caminho das pedras para realizar meu sonho
profissional.
Ao meu pai, pelo exemplo de competncia e de dedicao profisso, alm dos
ensinamentos transmitidos em nossas esparsas conversas. Apesar da distncia, fica a admirao
e a certeza do amor recproco.
Aos meus amigos Artur, Brian, Francisco, Gabriel, Gustavo, Joo, Lucas e Pedro, por
todos os anos de camaradagem, aprendizado e risadas, que tornaram mais divertida a rotina por
vezes estressante da Faculdade de Direito. Em especial, agradeo ao lvaro, ao Alexandre e ao
Gabriel, por me tirarem de Braslia em meio monografia e me devolverem com o dobro de
energia para terminar o trabalho.
Ao meu orientador, Paulo, pela guinada no rumo do trabalho, que me levou para um
tema apaixonante. Agradeo pelo apoio, pela disposio e pela injeo de motivao a cada
encontro, sempre me deixando mais confiante para refletir e escrever sobre o sistema africano
de direitos humanos.
Ao Joo, saudoso amigo do Direito, que deixou um legado de muita honestidade,
humildade e competncia.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar o sistema africano de direitos humanos,
com exame de suas competncias, seus desafios e suas perspectivas de evoluo. Para tanto,
discutir os tratados que o compem, com especial ateno Carta Africana de Direitos
Humanos e dos Povos, e investigar a atuao dos rgos regionais de proteo, a Comisso e
a Corte, explorando seus regimentos e seus precedentes. Com tal pesquisa, pretende responder
seguinte pergunta: esse sistema regional de direitos humanos est apto a intervir efetivamente
nos atuais conflitos africanos, para evitar a repetio das atrocidades humanitrias que
marcaram o continente nas ltimas dcadas?
PALAVRAS-CHAVE: Sistema africano de direitos humanos. Carta Africana de
Direitos Humanos e dos Povos. Comisso Africana. Corte Africana. Soluo de conflitos.
SUMRIO
INTRODUO .......................................................................................................................... 7
1. HISTRICO ..................................................................................................................... 10
1.1. A Conferncia de Berlim .......................................................................................... 11
1.2. A diviso do territrio africano ................................................................................ 11
1.3. O movimento pan-africano ....................................................................................... 12
1.4. O surgimento da OUA .............................................................................................. 14
1.5. A Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos................................................ 16
1.6. O Protocolo de Criao da Corte Africana ............................................................... 20
1.7. A Unio Africana e a Responsabilidade de Proteger ............................................... 21
1.7.1. Interveno em Burundi: dcadas de conflitos e impasses diplomticos ......... 24
1.7.2. A Corte Africana de Justia .............................................................................. 28
1.8. Tratados regionais de direitos humanos especficos................................................. 29
1.9. Consideraes finais ................................................................................................. 31
2. A COMISSO .................................................................................................................. 33
2.1. As competncias da Comisso Africana .................................................................. 33
2.2. Os relatrios dos Estados .......................................................................................... 34
2.3. As comunicaes interestatais de violaes Comisso .......................................... 35
2.4. As comunicaes individuais de violaes Comisso ........................................... 37
2.4.1. Procedimento das comunicaes ...................................................................... 38
2.4.2. As crticas ao procedimento ............................................................................. 42
2.5. Outros entraves efetividade da comisso ............................................................... 45
2.6. Consideraes finais ................................................................................................. 46
3. A CORTE ......................................................................................................................... 48
3.1. As minutas do Protocolo........................................................................................... 49
3.2. A aprovao do protocolo......................................................................................... 50
3.3. A estrutura do tribunal .............................................................................................. 50
3.3.1. Requisitos para representatividade da Corte .................................................... 52
3.4. A competncia ampla da Corte ................................................................................. 54
3.5. A legitimidade ativa perante a Corte ........................................................................ 59
3.5.1. Discusso do artigo 34, 6, na Corte Africana ................................................... 62
3.5.2. O direito de petio individual nos demais sistemas regionais ........................ 64
3.6. A interao entre a Corte e a Comisso africanas .................................................... 66
3.6.1. O receio de incorporao da Comisso pela Corte ........................................... 67
3.6.2. A complementaridade da atuao dos rgos................................................... 68
3.6.3. As hipteses de remessa de casos da Comisso Corte................................... 69
3.6.4. A remessa de casos da Corte para a Comisso ................................................. 71
3.7. A jurisdio consultiva da Corte .............................................................................. 72
3.8. O procedimento de jurisdio contenciosa ............................................................... 73
3.8.1. A execuo das decises................................................................................... 77
3.9. Consideraes finais ................................................................................................. 78
4. JURISDIO PENAL REGIONAL: O PROTOCOLO DE MALABO ......................... 80
4.1. Antecedentes ............................................................................................................. 81
4.2. Impactos financeiros e estruturais na Unio Africana .............................................. 83
4.3. bices execuo da competncia penal ................................................................. 85
4.4. Implicaes para os signatrios do Estatuto de Roma .............................................. 85
4.5. Impactos na proteo regional de direitos humanos ................................................. 86
4.6. Consideraes finais ................................................................................................. 88
CONCLUSO .......................................................................................................................... 90
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................................... 93
7
INTRODUO
Em 2008, Michelot Yogogombaye acionou a Corte Africana de Direitos Humanos,
buscando impedir que Senegal julgasse Hissene Habre, ex-ditador do Chade suspeito de
envolvimento em crimes de guerra. Yogogombaye acusou o Estado africano de ter abusado do
princpio da jurisdio universal e de ter violado a irretroatividade da lei penal, com o nico
intento de condenar Habre. O demandante temia, assim, que os interesses polticos do Senegal
comprometessem a realizao do devido processo legal, fragilizando o Estado de Direito na
regio.
Quando a Corte Africana se reuniu para o julgamento, foi obrigada a encerr-lo sem
apreciao do mrito, pois descobriu que o Senegal no havia acatado sua jurisdio facultativa
para demandas individuais. Toda a complexidade humanitria do caso, que geraria importante
precedente para o sistema, foi desconsiderada pelos juzes, por conta de uma restrio do acesso
ao tribunal.
Trata-se do primeiro caso julgado pela Corte, onze anos aps a assinatura do protocolo
que a criou. Seu desfecho bastante sintomtico do funcionamento do sistema africano:
malgrado ser incumbido de julgar massivas violaes de direitos humanos, repleto de
formalidades que o impedem de cumprir sua funo efetivamente, ou seja, punindo os Estados
e evitando novas violaes.
Apesar de combater as mais graves atrocidades humanitrias, o sistema africano o que
menos recebe ateno e pesquisa do meio acadmico, que enfoca excessivamente os
consagrados sistemas europeu e interamericano. No Brasil, tal dficit acadmico ainda mais
acentuado: em livros de proteo internacional de direitos humanos, as poucas pginas
reservadas ao sistema africano vm repletas de comparaes com os demais sistemas regionais,
tolhendo suas peculiaridades histricas, jurdicas e culturais.
O presente trabalho se prope a diminuir esse dficit, dedicando-se ao estudo dos
tratados e dos rgos que compem o sistema africano de direitos humanos, em anlise
contextualizada historicamente, que s cede espao aos mecanismos europeu e interamericano
quando essenciais compreenso daquele.
O momento no poderia ser mais propcio a este estudo: a frica encontra-se assolada
por guerras civis, regimes militares e organizaes terroristas, responsveis por novas crises de
8
fome, de refugiados e de deslocados internos, para as quais no se vislumbra um fim prximo1.
A busca por solues a esses problemas, que deve dominar fruns internacionais nos prximos
anos, perpassa a compreenso do papel e do poder dos rgos do sistema africano perante os
Estados Membros. Afinal, nesses contextos de comoo interna que o direito internacional se
faz mais imprescindvel proteo de direitos humanos.
Da surge a pergunta da pesquisa: o sistema africano de direitos humanos est apto a
intervir efetivamente nos atuais conflitos africanos, para evitar a repetio das atrocidades
humanitrias que devastaram o continente nas ltimas dcadas? A resposta a essa pergunta
demanda estudo dos principais mecanismos de proteo regional, no que tange s suas
competncias, sua eficcia e aos bices a seu funcionamento.
Para tanto, a monografia est dividida em quatro partes. O primeiro captulo explica a
evoluo do sistema africano, a partir dos processos de colonizao e descolonizao europeia
do continente, passando pela formao da OUA e pela aprovao da Carta Africana de Direitos
Humanos e dos Povos, at chegar ao Protocolo da Corte e ao tratado que constituiu a Unio
Africana. O foco do captulo abordar a origem do princpio de no-interferncia estrangeira,
no mbito regional, e sua superao com o advento da Unio Africana, que pode intervir
militarmente nos Estados Membros, em casos de graves circunstncias humanitrias.
O segundo captulo se dedica compreenso das competncias da Comisso, por meio
da interpretao da Carta Africana de Direitos Humanos e do Regimento Interno da Comisso,
alm do estudo de seus precedentes. Especial ateno conferida ao procedimento de
comunicaes individuais perante a Comisso, que traz srios entraves efetividade de sua
funo protetiva.
O terceiro captulo enfoca o funcionamento da Corte Africana, com exame da extenso
de sua competncia material, da sua interao com a Comisso e do rol de legitimados para
acion-la, luz do Protocolo da Corte, do seu Regimento Interno e da sua jurisprudncia.
Considerando-se o carter facultativo do direito de petio de indivduos e ONGs, o captulo
examina os efeitos dessa limitao sobre a eficcia do tribunal na proteo de direitos humanos.
O quarto e ltimo captulo discute a reforma da Corte Africana promovida pelo
Protocolo de Malabo, que foi aprovado pela Assembleia da UA em junho de 2014 e est em
processo de ratificao pelos Estados Membros. Esse tratado adiciona uma seo penal ao
1 A conjuntura poltica africana bem explicada pela revista The Economist, na matria Famine menaces 20m
people in Africa and Yemen: war, not drought, is the reason people are starving, disponvel em:
. Acessado em 22 de abril de 2017.
http://www.economist.com/news/middle-east-and-africa/21719827-war-not-drought-reason-people-are-starving-famine-menaces-20m-peoplehttp://www.economist.com/news/middle-east-and-africa/21719827-war-not-drought-reason-people-are-starving-famine-menaces-20m-people
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tribunal, responsvel por julgar indivduos pela prtica de um amplo rol de crimes
internacionais. Como ser explicado, o Protocolo de Malabo traz dispositivos potencialmente
nocivos tutela de direitos humanos na regio.
Mesmo que no esgote os temas essenciais, o presente trabalho pretende tecer uma
anlise abrangente do sistema africano, a fim de aferir sua capacidade de intervir de forma
efetiva nos Estados Membros, reparando e prevenindo violaes de direitos humanos. Qui,
incentivar futuros estudos na mesma temtica, para que os mecanismos africanos de proteo
passem a receber a merecida e necessria ateno da comunidade acadmica internacional.
10
1. HISTRICO
A brutal colonizao europeia sobre a frica foi responsvel pelo desenho de seu mapa
poltico contemporneo e, consequentemente, pelas sucessivas guerras civis que assolam o
continente desde o processo de descolonizao, em meados do sculo XX. A repartio do
continente africano entre as metrpoles europeias foi arbitrria, inspirada por princpios
instaurados na Conferncia de Berlim, alheios s razes tnicas, lingusticas e culturais dos
povos que l habitavam. Com isso, a diviso territorial afastou povos amigos e uniu tribos rivais
sob as mesmas fronteiras.
Os movimentos de independncia das colnias estavam fadados a disparar diversos
conflitos tnicos. Os Estados recm-formados eram soberanos, mas afastavam-se
demasiadamente do conceito de nao2: ao invs de possurem histria, costumes e tradies
em comum, os habitantes de um pas africano compartilhavam somente o histrico de
explorao pela mesma metrpole.
Aps se livrarem dos laos de colonizao, os lderes africanos buscaram forjar
identidades nacionais, que lhes dessem a estabilidade necessria para governar3. No entanto, o
esforo foi em vo. Sucederam-se diversos conflitos tnicos, golpes militares e trocas de poder,
que submetiam os povos africanos fome, escravido e a genocdios, negando-lhes os direitos
mais bsicos.
2 A respeito do conceito de nao, Eric Hobsbawn afirma: As tentativas de se estabelecerem critrios objetivos
sobre a existncia de nacionalidade, ou de explicar por que certos grupos se tornaram naes e outros no,
frequentemente foram feitas com base em critrios simples como a lngua ou a etnia ou em uma combinao de
critrios como a lngua, o territrio comum, a histria comum, os traos culturais comuns e outros mais. A
definio de Stalin provavelmente a mais conhecida entre essas tentativas, embora de modo nenhum seja a nica.
Todas as definies objetivas falharam pela bvia razo de que, dado que apenas alguns membros da ampla
categoria de entidades que se ajustam a tais definies podem, em qualquer tempo, ser definidas como naes,
sempre possvel descobrir excees. Ou os casos que correspondem definio no so (ou no so ainda)
naes nem possuem aspiraes nacionais, ou sem dvida as naes no correspondem aos critrios ou sua
combinao. Na verdade, como poderia ser diferente, j que estamos tentando ajustar entidades historicamente
novas, emergentes, mutveis e, ainda hoje, longe de serem universais, em quadro de referncia dotado de
permanncia e universalidade? IN: HOBSBAWN, Eric. Nao e Nacionalismo desde 1780. So Paulo: Ed. Paz
e Terra, 1991, pp. 15-16.
Logo, esse ideal de nao, nos moldes tradicionais de homogeneidade cultural, social e histrica, sempre
obstado pela realidade mutvel e espontnea dos agrupamentos humanos. O que se argumenta aqui, porm, que
a lgica de colonizao europeia acirrou os conflitos entre etnias rivais e lhes imps a convivncia nos mesmos
territrios, condicionando os Estados africanos a heterogeneidades tnicas e culturais quase impossveis de se
conciliar. Nesse sentido, encontraram-se em situao diametralmente oposta homogeneidade de uma nao, o
que restou evidenciado pelos conflitos posteriores descolonizao. 3 FEFERBAUM, Marina. A proteo internacional de direitos humanos: Anlise do Sistema Africano. So Paulo:
Ed. Saraiva, 2012, pp. 117-118.
11
1.1. A Conferncia de Berlim
A Conferncia de Berlim foi um encontro entre as principais potncias europeias
imperialistas, em 1885, para instituir normas que regessem a aquisio de territrios africanos,
buscando evitar conflitos entre os colonizadores. Sua Ata Geral delineou como objetivos da
colonizao o desenvolvimento do comrcio e da civilizao, a resoluo de disputas advindas
da ocupao do continente e a garantia de bem-estar s populaes nativas4.
Na prtica, contudo, a Conferncia tratou o continente africano como terra de ningum
(terra nullius), em total desconsiderao das comunidades polticas pr-existentes
colonizao5. Mesmo no tendo delineado as fronteiras das unidades coloniais, sua Ata Geral
definiu regras de dominao que consideravam apenas a ocupao efetiva, no as circunstncias
das sociedades afetadas6. A diviso territorial planejada por esse princpio seguiria um critrio
artificial, de mera explorao econmica, sem qualquer ponderao dos aspectos tnicos,
sociais e culturais das populaes nativas.
Logo, a Ata Geral da Conferncia de Berlim buscou definir o futuro do continente sem
consultar nenhum africano. Suas disposies apresentam critrios para a posse dos territrios,
mas no fundamentam a legitimidade dos Estados europeus para proceder a tal colonizao.
Todavia, a repartio territorial efetiva da frica, realizada nas dcadas subsequentes, no
seguiu risca os critrios acima mencionados.
1.2. A diviso do territrio africano
Do final do sculo XIX at o incio do sculo XX, os Estados europeus buscaram firmar
suas ocupaes no continente e delinear as fronteiras com outras unidades coloniais. Para tanto,
os colonizadores celebraram tratados com representantes dos povos nativos, em que os lderes
africanos supostamente abdicavam de suas soberanias, em troca da proteo europeia7. Os
tratados serviam ao interesse dos europeus de justificar a dominao, pois lhes reconheciam
direitos de ocupao e obrigaes de proteo dos nativos, vnculos dos quais no podiam
renunciar8.
4 Ata Geral da Conferncia de Berlim, prembulo. 26 de fevereiro de 1885. Disponvel em: <
http://www.casadehistoria.com.br/sites/default/files/conf_berlim.pdf>. Acesso em 15/05/2017. 5 CRAVEN, Matthew. Between law and history: the Berlin Conference of 1884-1885 and the logic of free trade.
London Review of International Law, Londres, volume 3, nmero 1, maro de 2015, p. 31 6 O captulo VI da Conferncia, em seus artigos 34 e 35, define as condies para que ocupaes na frica sejam
consideradas efetivas, envolvendo notificao s demais potncias signatrias e presena de autoridade nos
territrios ocupados, para garantir a liberdade de comrcio e os direitos adquiridos. No menciona, portanto, os
direitos dos povos dominados e a necessidade de seu consentimento. 7 TOUVAL, Saadia. Treaties, Borders and the Partition of Africa. The Journal of African History, volume 7,
nmero 2, 1966, pp. 280, 283-284. 8 Ibid., p. 288.
http://www.casadehistoria.com.br/sites/default/files/conf_berlim.pdf
12
No entanto, diversos bices se impem legitimidade desses tratados: (i) os
representantes africanos eram frequentemente coagidos assinatura, diante da ameaa de
invaso estrangeira; (ii) pode-se alegar que eles no compreendiam o escopo das prerrogativas
que estavam cedendo aos europeus; (iii) os signatrios africanos eram comumente despticos,
desprovidos da legitimidade para abdicar da soberania em nome de todo o povo9.
Alguns tratados previam a adaptao das fronteiras s caractersticas econmicas e
polticas dos povos nativos, mas o esforo de conformao territorial foi demasiado simplista
para compreender toda a complexidade social da regio10. Assim, a repartio territorial foi, em
regra, insensvel s etnias afetadas, separando arbitrariamente membros da mesma tribo,
enquanto reuniu tribos historicamente rivais sobre um mesmo territrio11. No toa, cerca de
30% das fronteiras africanas durante a colonizao configuravam linhas retas, que no
respeitavam fronteiras naturais, muito menos interesses e necessidades dos nativos12.
Os colonizadores europeus foram responsveis no s por acirrar os conflitos tribais, ao
colocar tribos rivais para disputar os mesmos recursos e espaos, mas tambm por intervir
diretamente, tornando-os mais sangrentos: muitos lderes africanos cederam as terras e riquezas
de suas comunidades em troca de armas e auxlio militar europeu, no combate a outras etnias13.
Dessa forma, quelas causas de ilegitimidade dos tratados somam-se os interesses escusos que
motivavam os signatrios, por priorizarem o massacre de seus rivais, em detrimento da
autodeterminao de seus prprios povos.
Apesar de no terem seguido risca a viso da frica traada na Conferncia de Berlim,
os Estados europeus adotaram expedientes to deletrios quanto trat-la como terra de ningum,
pois justificaram as ocupaes com tratados patentemente invlidos, interferiram de modo
violento nos conflitos tnicos africanos e deixaram para o continente um legado de fronteiras
arbitrrias e grande instabilidade poltica.
1.3. O movimento pan-africano
Desde seu surgimento, no sculo XVIII, o pan-africanismo luta pela emancipao
poltica e econmica do continente africano, incluindo o combate escravido e a busca pela
9 TOUVAL, Saadia. Treaties, Borders and the Partition of Africa. The Journal of African History, volume 7,
nmero 2, 1966, pp. 283-284. 10 Ibid., pp. 291-292. 11 FEFERBAUM, Marina. A proteo internacional de direitos humanos: Anlise do Sistema Africano. So Paulo:
Ed. Saraiva, 2012, pp. 114-116. 12 BOGGS, S. Whittemore. International Boundaries: a study of boundary functions and problems. New York:
Morningside Heights Columbia University Press, 1940, p. 157. 13 TOUVAL, op. cit., pp. 284, 296-297.
13
ampla cooperao entre os povos do continente14. A partir do 5 Congresso Pan-Africano15, em
Manchester, Reino Unido, o movimento pan-africano passou a enfocar a descolonizao do
continente, o que foi corroborado pela All Africa Peoples Conference, em Acra, Gana, em
1957. Nessa Conferncia, delinearam-se os objetivos do movimento dali em diante: (i) o auxlio
s lutas de libertao nacional; (ii) a conquista da independncia poltica; (iii) a unio
diplomtica entre africanos na ONU; e (iv) o no alinhamento perante as duas superpotncias
da poca, Estados Unidos e Unio Sovitica16.
Para um grupo de chefes de Estado africanos, liderados pelo gans Kwame Nkrumah e
pelo tanzaniano Julius Nyerere, a unio de todo o continente sob um nico Estado soberano
representava o apogeu do pan-africanismo: somente com tal unidade poltica os povos africanos
poderiam se resguardar da dominao europeia e se fortalecer social, diplomtica e
economicamente, de modo a conservar suas identidades culturais17.
Essa perspectiva de unio poltica foi responsvel por aproximar governos africanos e
por incentivar os povos subjugados a lutar pela independncia. Paradoxalmente, a emancipao
africana, motivada pela ideia de unio, deu-se de forma fragmentada, gerando tantos Estados
soberanos quantas eram as colnias. A unidade do continente sob uma mesma soberania no se
concretizou na poca da descolonizao; tampouco foi alcanada nas dcadas seguintes. Como
explicao para esse aparente fracasso do pan-africanismo, pode-se apontar a falta de
coordenao entre os lderes dos exrcitos de libertao, o desinteresse dos ditadores africanos
14 Hakim Adi e Marika Sherwood destacam as contribuies acadmicas dos ex-escravos Quobna Ottobah
Cugoano e Olaudah Equiano ao prenncio de uma ideologia pan-africana, desde o sculo XVIII. Tanto Cugoano
quanto Equiano foram sequestrados ainda jovens em suas vilas, em Gana e Nigria, respectivamente, e
encontraram guarida na Inglaterra aps obterem suas alforrias. De l, escreveram narrativas e manifestos sobre a
escravido, alm de fundarem movimentos que pressionaram o Parlamento Britnico abolio do trfico
negreiro, finalmente alcanada em 1807, e do prprio trabalho escravo, em 1833. Dessa forma, os dois
contriburam sobremaneira para combater a desumanizao dos africanos e as teorias de inferioridade da raa
negra, construindo as bases para a emancipao poltica e econmica do continente, defendida pelo pan-
africanismo nos sculos seguintes. IN: ADI, Hakim; SHERWOOD, Marika. Pan-African History: Political figures
from Africa and the Diaspora since 1787. Londres: Routledge, 2003, pp. 26-29, 53-55. 15 Os Congressos Pan-Africanos foram uma srie de conferncias organizadas por W.E. B. Du Bois, voltadas a
reunir ativistas de todos os continentes para a construo de uma ideologia pan-africana. Esses eventos tiveram
pequena adeso das colnias e no conseguiram estabelecer uma organizao permanente; ainda assim,
constituram uma importante via de combate poltico ao racismo e de defesa da autodeterminao dos povos, em
especial a partir de seu 5 Congresso, que motivou diversas lutas de libertao na frica. Ademais, as atas dos
congressos viriam a inspirar as concepes pan-africanas de lderes influentes como Kwame Nkrumah, Skou
Tour e Julius Nyerere. IN: ADI, Hakim; SHERWOOD, Marika. Pan-African History: Political figures from
Africa and the Diaspora since 1787. Londres: Routledge, 2003, pp. 8-10, 49-50. 16 SYLVESTER, Ogba Adejoh; ANTHONY, Okpanachi Idoko. Decolonization in Africa and Pan Africanism.
Ynetim Bilimleri Dergisi (Jornal de Cincias Administrativas), volume 12, nmero 23, 2014, p. 20. 17 ADI, Hakim; SHERWOOD, Marika. Pan-African History: Political figures from Africa and the Diaspora since
1787. Londres: Routledge, 2003, pp. 143-149.
14
pela perda do poder recm-conquistado e as dificuldades de se proceder a uma unio poltica
de tamanha magnitude18.
A principal explicao, contudo, est relacionada prpria tenso tnica criada no
continente: ao longo da colonizao, as fronteiras de cada uma das antigas colnias foram
traadas arbitrariamente, luz da convenincia econmica das metrpoles; possuam, ento,
uma grande diversidade de povos e culturas, com os prprios dialetos, costumes e credos, que
disputavam os mesmos espaos e recursos econmicos19. Com isso, ainda no havia condies
para a manifestao de um esprito de solidariedade entre os povos africanos, necessrio
convivncia harmoniosa sob um nico governo soberano.
Aps a emancipao das colnias ora pela negociao, ora pela luta armada
sucederam-se dcadas de conflitos no interior de pases africanos. Cada um dos povos ali
presentes aspirava construo de seu prprio Estado-Nao, o que enfrentou forte resistncia
dos lderes militares das independncias20.
1.4. O surgimento da OUA
Nesse contexto de descolonizao, foi criada a Organizao da Unidade Africana, em
1963, primeiro marco de cooperao africana em nvel continental. Tambm influenciado pelo
pan-africanismo, seu tratado constitutivo declarou como propsitos da organizao a promoo
da unidade e da solidariedade entre os Estados africanos e a erradicao de todas as formas de
colonizao21.
Em deferncia s jovens soberanias estatais, o tratado consagrou a no-ingerncia da
organizao em assuntos internos dos Estados22. Dado o traumtico passado de explorao
europeia, os Estados africanos no aceitavam qualquer sacrifcio da inviolabilidade de suas
fronteiras, em prol do fortalecimento da organizao internacional e de novas interferncias
18 A oposio a um continente unificado ficou evidente no processo de criao da OUA. Durante os trabalhos
preparatrios de sua Constituio, houve acalorados debates sobre a forma e funo da organizao. Lderes como
Nkrumah, de Gana, e Nyerere, da Tanznia, alinhados com o pan-africanismo, pressionaram por uma maior
unificao poltica, alegando que as fronteiras desenhadas por europeus eram arbitrrias e, portanto, no deveriam
prevalecer. A maioria, porm, preferia manter intactas suas soberanias, o que levou a um arranjo institucional
enfraquecido. IN: MURITHI, Tim. The African Unions evolving role in Peace Operations. African Security
Review, volume 17, nmero 1, pp. 71-72, 2008. 19 VILJOEN, Frans. International human rights law in Africa. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 156. 20 FEFERBAUM, Marina. A proteo internacional de direitos humanos: Anlise do Sistema Africano. So Paulo:
Ed. Saraiva, 2012, p. 118. 21 Constituio da OUA, Artigo II, 1, a e c. 25 de maio de 1963. Disponvel em: <
https://www.au.int/web/sites/default/files/treaties/7759-file-oau_charter_1963.pdf>. Acessado em 11 de maio de
2017. 22 Ibid., artigo III, 2.
https://www.au.int/web/sites/default/files/treaties/7759-file-oau_charter_1963.pdf
15
estrangeiras23. Assim, defenderam que a OUA no deveria intervir nos territrios soberanos,
para no obstar a consolidao de instituies nacionais recm-inauguradas e a estabilizao
dos nimos aps as lutas de libertao.
Por fim, o documento fez uma vaga meno proteo de direitos humanos, ao impor
OUA o respeito Declarao Universal dos Direitos Humanos24. Decisivamente, a
organizao relegou essa matria a segundo plano, pois se dedicou apenas a combater os
inimigos externos os Estados europeus e a frica do Sul, devido ao apartheid , e a afirmar a
autonomia dos povos africanos. Paulatinamente, a comunidade internacional foi revelando a
hipocrisia da atuao da OUA, a qual criticava a segregao do apartheid, enquanto se omitia
de combater as massivas violaes dos direitos humanos praticadas no interior de seus Estados
Membros25.
Entre 1963 e 1981, a omisso da organizao chancelou a estabilizao de diversos
regimes autoritrios, que subiram ao poder logo aps a independncia. Esses governos ps-
libertao foram altamente excludentes, em decorrncia das rivalidades tnicas exacerbadas
pelos europeus: a subida de uma etnia ao poder representava, em regra, a marginalizao
poltica, social e econmica das demais, pois no havia um legado colonial de pluralidade
poltica26. A dominao europeia deixou de herana poltica africana um aparato autoritrio,
voltado represso da comunidade, acompanhado de brutalidade, negao da participao
popular e aparelhamento do governo para enriquecimento prprio27. Da em diante, criou-se
um crculo vicioso, em que a violao sistemtica de direitos humanos impedia o
desenvolvimento poltico e econmico dos povos africanos, o que os mantinha vulnerveis aos
desmandos estatais; somava-se a isso a ausncia de qualquer mecanismo internacional para
defend-los.
A presso internacional e os saldos desastrosos das guerras civis no continente
gradativamente convenceram os Estados africanos pela necessidade de proteger cidados contra
seus prprios governos, ao invs de combater exclusivamente interferncias estrangeiras. Nesse
sentido, a XVI Sesso Ordinria da Conferncia de Chefes de Estado e de Governo, em 1979,
23 MURITHI, Tim. The African Unions transition from non-intervention to non-indifference: an ad hoc approach
to the responsibility to protect? Independent Publishers Group, volume 1, 2009, p. 93. 24 Constituio da OUA, Artigo II, 1, e. 25 de maio de 1963. Disponvel em: <
https://www.au.int/web/sites/default/files/treaties/7759-file-oau_charter_1963.pdf>. Acessado em 11 de maio de
2017. 25 AMBROSE, Brendalyn P. Democratization and the protection of human rights in Africa: problems and
prospects. Londres: Praeger Publishers, 1995, pp. 10-11. 26 BAYEW, Endalcachew. The Political and Economic Legacy of Colonialism in the Post-Independence African
States. International Journal in Commerce, IT & Social Sciences, volume 2, nmero 2, fevereiro de 2015, p. 90. 27 Ibid., p. 91.
https://www.au.int/web/sites/default/files/treaties/7759-file-oau_charter_1963.pdf
16
decidiu pela criao de um tratado regional que promovesse e protegesse os direitos humanos
de maneira ampla. Dois anos depois, foi assinada a Carta Africana de Direitos Humanos e dos
Povos, que conta, atualmente, com total adeso dos 55 Estados africanos. Aps atingir o nmero
mnimo de ratificaes, o tratado entrou em vigor em 1986.
1.5. A Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos
A Carta Africana foi o verdadeiro marco inicial do sistema africano de direitos humanos.
Seus dispositivos foram inspirados pela valorizao da diversidade cultural africana e pela
erradicao de todas as formas de discriminao28, com o claro intuito de mitigar as tenses
tnico-raciais e reduzir a presso internacional sobre os Estados Africanos29.
O tratado foi dividido em trs captulos. O primeiro deles estabelece o rol de direitos e
deveres a serem salvaguardados pelos Estados Partes. O segundo institui um mecanismo de
proteo de direitos humanos, na figura da Comisso Africana de Direitos Humanos. J o
terceiro captulo traz disposies diversas a respeito de sua vigncia.
Entre os artigos 3 e 14, a Carta Africana prev direitos civis e polticos, como a
igualdade perante a lei, a liberdade de ir e vir, o acesso ao judicirio, as liberdades de expresso,
associao e reunio e o direito participao poltica, tanto direta quanto indireta. J os artigos
15 a 17 trazem uma extensa lista de direitos sociais, econmicos e culturais, como os direitos
sade, educao, cultura e igualdade no trabalho. O artigo 18, por sua vez, define os
deveres estatais de proteger a famlia, eliminar toda a discriminao contra a mulher e proteger
os direitos das crianas e dos idosos.
O conjunto de direitos previstos na Carta guarda singularidades em relao aos sistemas
europeu e interamericano. Primeiramente, ela tutela direitos civis, polticos, sociais, culturais e
econmicos em um mesmo documento, sem diferenciar as dimenses de direitos humanos.
Pautou-se pela indissociabilidade dos direitos humanos, ou seja, pela ideia de que so
indivisveis e interdependentes em sua proteo30. Os demais sistemas regionais, por outro lado,
28 Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, prembulo e artigos 2 e 19. 1 de junho de 1981. Disponvel
em: . Acessado em 5 de maio de
2017. 29 MUTUA, Makau. African Human Rights System: a critical evaluation. Human Development Occasional Papers,
n. 15, 2000, pp. 4-5. 30 Essa viso de interdependncia dos direitos humanos foi consolidada pelo trabalho da Comisso Africana, a
qual vem empreendendo interpretaes extensivas para ampliar o rol de direitos protegidos pelo tratado: no caso
Serac vs. Nigeria, por exemplo, o rgo decidiu que a Carta Africana tutela o direito moradia, como corolrio
da previso do direito propriedade, pelo artigo 14, do direito sade fsica e mental, pelo artigo 16, e do dever
do Estado de proteger a famlia, pelo artigo 18, 1. A deciso da comunicao est disponvel em:
http://www.chr.up.ac.za/index.php/browse-by-subject/410-nigeria-social-and-economic-rights-action-centre-
serac-and-another-v-ni
https://www.au.int/web/sites/default/files/treaties/7770-file-banjul_charter.pdfhttp://www.chr.up.ac.za/index.php/browse-by-subject/410-nigeria-social-and-economic-rights-action-centre-serac-and-another-v-nihttp://www.chr.up.ac.za/index.php/browse-by-subject/410-nigeria-social-and-economic-rights-action-centre-serac-and-another-v-ni
17
previram unicamente direitos civis e polticos em suas convenes iniciais, complementadas,
anos depois, por protocolos que previram direitos humanos de segunda dimenso31.
A grande peculiaridade do tratado a tutela de direitos dos povos, dos artigos 19 a 24,
que no encontra qualquer paralelo nos outros sistemas de direitos humanos. Isso um reflexo
da subjugao poltica e econmica que ainda predominava no continente africano, motivando
os Estados a chancelarem os direitos dos povos autodeterminao poltica, econmica e social
e livre disposio de seus recursos naturais. Com isso, a Carta deslegitimou o esplio por
regimes autoritrios e coloniais e defendeu a restituio das riquezas africanas aos seus povos
32. Esboou, tambm, um futuro prspero ps-independncia, marcado pela paz, segurana e
estabilidade dos povos africanos33.
A Carta Africana traz uma perspectiva coletivista dos direitos humanos, em contraste
com o vis liberal-individualista das Convenes Europeia e Americana34. Isso se reflete, por
exemplo, na ausncia de previso do direito privacidade. Manifesta-se, tambm, na definio
de deveres aos indivduos: segundo seu artigo 27, 1, o indivduo tem deveres perante a famlia,
a sociedade, o Estado e a comunidade internacional, exemplificados pelo rol do artigo 28. J o
artigo 27, 2, afirma que os direitos e as liberdades de cada pessoa exercem-se no respeito dos
direitos de outrem, da segurana coletiva, da moral e do interesse comum.
Tal previso bastante criticada na doutrina, pois submete o gozo de direitos
fundamentais aos costumes e s tradies enraizadas nas comunidades africanas. Nesse sentido,
torna mais vulnervel a condio de vida de minorias, como as mulheres, os refugiados e os
membros da comunidade LGBT, que tm seu rol de direitos submetido ao crivo do interesse
coletivo e da moralidade35. Trata-se, portanto, de um perigoso obstculo emancipao social,
poltica e econmica desses grupos36.
31 A Conveno Europeia de Direitos Humanos, de 1950, foi complementada pela Carta Social Europeia, de 1961,
a qual foi ampliada quando da aprovao da Carta Social Europeia Revisada, em 1996. J a Conveno Americana
de Direitos Humanos, de 1969, foi complementada pelo Protocolo de San Salvador, em matria de direitos
econmicos, sociais e culturais, em 1988. 32 OUGUERGOUZ, Fatsah. The African Charter of Human and Peoples Rights: a Comprehensive Agenda for
Human Dignity and Democracy in Africa. Haia: Martinus Nijhoff Publishers, 2003, pp. 277-278. 33 Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, artigos 20, 1 e 2, 21, 1, e 23, 1. 1 de junho de 1981. Disponvel
em: . Acessado em 5 de maio de
2017. 34 PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e Justia Internacional. 5 ed. So Paulo: Ed. Saraiva, 2013, p. 378. 35 KEMBABAZI, Lydia Winyi. A critique of accessibility to the African Court of Human and Peoples Rights.
Budapeste: Central European University, 2013, pp. 17-18. 36 A par desse perigo, a Comisso consolidou uma interpretao restritiva do artigo 27, 2, da Carta: para aferir a
legitimidade da limitao a direitos e liberdades, a Comisso realiza um teste de proporcionalidade entre a extenso
da restrio e as vantagens coletivas obtidas, como a estabilidade democrtica, a segurana e a coeso social. Dessa
forma, apenas restries necessrias e proporcionais so legtimas, cabendo ao Estado o nus de fundament-las
juridicamente. A aplicao do artigo 27, 2, pela Comisso Africana pode ser verificada nos relatrios das
comunicaes:
https://www.au.int/web/sites/default/files/treaties/7770-file-banjul_charter.pdf
18
Outra limitao ao exerccio de direitos foi inserida na Carta, mediante uma clawback
clause, ou seja, um dispositivo que derroga previses do tratado, em face de disposies
contrrias em leis domsticas. O tratado afirma, em seu artigo 8, que a extenso do exerccio
da liberdade religiosa, de conscincia e de profisso est sob reserva de ordem pblica. Em
outras palavras, as medidas estatais de constrangimento dessas liberdades sero vlidas quando
visarem a segurana coletiva e a ordem social, devendo ter base legal37. Assim, os Estados
Membros limitaram a efetividade da Carta na tutela de direitos imprescindveis erradicao
de discriminaes, na contramo dos objetivos centrais do tratado38.
As limitaes ora analisadas revelaram a tendncia dos Estados africanos a enxergarem
a cooperao internacional somente como veculo de normas no-vinculativas, meras diretrizes
para as polticas pblicas internas. Ademais, a referida clawback clause revela-se mais
perniciosa proteo de direitos humanos do que as tradicionais clusulas de derrogao
temporria de tratados, uma vez que no traz restries temporais ou geogrficas que limitem
o arbtrio estatal39.
O arranjo institucional fundado pela Carta Africana tambm reflete essa limitao da
cooperao internacional. Ao invs de instaurar a tradicional dicotomia Corte-Comisso,
observada nos demais sistemas, a Carta previu s a criao da Comisso Africana de Direitos
Humanos e dos Povos, um rgo que no profere decises vinculativas. Desse modo seriam
preservadas as soberanias estatais, o que contribuiu para a ampla adeso ao tratado. A ausncia
de um rgo judicial foi atribuda prtica diplomtica dominante entre os pases africanos,
pautada em solues amigveis, atravs da mediao e da conciliao40.
A Comisso Africana um rgo quase-judicial, composto por onze membros, que
exercem o cargo a ttulo pessoal e so eleitos pela Assembleia, dentre candidatos com reputao
Media Rights Agenda and others v. Nigeria. Disponvel em:
. Acessado em 2 de maio de 2017.
Gareth Anver Prince v. South Africa. Disponvel em: . Acessado
em 2 de maio de 2017. 37 O efeito perverso dessa clawback clause, que veicula autorizao genrica opresso, agravado pela falta
de precedentes da Comisso e da Corte: at o momento, no foi empregada interpretao restritiva desse
dispositivo, que contivesse o arbtrio estatal no tocante s liberdades de conscincia, de profisso e de religio. 38 MUTUA, Makau. African Human Rights System: a critical evaluation. Human Development Occasional Papers,
n. 15, 2000, p. 6. 39 COWELL, Frederick. Sovereignty and the question of derogation: an analysis of article 15 of the ECHR and the
absence of a derogation clause in the ACHPR. Birkbeck Law Review, volume 1, nmero 1, abril de 2013, pp. 154-
158. 40 HEYNS, Cristof. The African charter on human and peoples rights, in SMITH, Rhona K. M.; VAN DER
ANKER, Christien (eds.). The essentials of human rights. Londres: Routledge, 2005, p. 4.
http://www.achpr.org/files/sessions/24th/comunications/105.93-128.94-130.94-152.96/achpr24_105.93_128.94_130.94_152.96_eng.pdfhttp://www.achpr.org/files/sessions/24th/comunications/105.93-128.94-130.94-152.96/achpr24_105.93_128.94_130.94_152.96_eng.pdfhttp://www.achpr.org/files/sessions/36th/comunications/255.02/achpr36_255_02_eng.pdf
19
ilibada e amplo conhecimento na matria de Direitos Humanos41. A Carta lhe reconheceu
funes de proteo e promoo dos Direitos Humanos em todo o continente africano. Para
tanto, a Comisso foi incumbida das funes de interpretar o tratado e orientar os Estados
Membros na salvaguarda de direitos, alm de elaborar pesquisas e relatorias temticas, para
estudo da situao dos direitos humanos na frica42 43.
Em especial, a Carta Africana lhe atribuiu a funo de apreciar comunicaes
interestatais ou individuais, que denunciam uma violao de direitos humanos por parte de
algum Estado Membro. Foi reconhecido um amplo rol de legitimados para acionar a Comisso:
cidados de qualquer Estado Parte, os prprios Estados, ONGs neles reconhecidas ou
Organizaes intergovernamentais44 45.
A Comisso Africana representou um grande avano na tutela de direitos humanos no
continente, ao fornecer aos indivduos um mecanismo de proteo contra o Estado violador.
Todavia, a efetividade de sua atuao foi muito prejudicada pela morosidade de seus
procedimentos, que duram, no mnimo, trs sesses ordinrias, at a soluo definitiva. Alm
disso, as recomendaes da Comisso careciam de fora imperativa e no tinham prazo para
adimplemento46, o que incentivava seu descumprimento pelos Estados47 48.
Por muito tempo, essa carncia de fora vinculativa foi compensada pelo rduo trabalho
da Comisso na promoo dos direitos humanos, com a formao de relatorias e grupos de
trabalho, integrados por ONGs africanas e estrangeiras, para a divulgao do panorama dos
41 Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, artigo 31, 1. 1 de junho de 1981. Disponvel em:
. Acessado em 5 de maio de
2017. 42 Ibid., artigo 45. 43 KEMBABAZI, Lydia Winyi. A critique of accessibility to the African Court of Human and Peoples Rights.
Budapeste: Central European University, 2013, pp. 22-24. 44 Apesar de a legitimidade ativa de indivduos e ONGs perante a Comisso no estar explcita na Carta Africana,
pode-se depreende-la da leitura dos artigos 55 e 56 do tratado, que tratam de outras comunicaes. 45 KEMBABAZI, op. cit., p. 23. 46 importante destacar que a verso permanente das Regras de Procedimento da Comisso, aps harmonizao
com o regimento da Corte, em 2010, finalmente definiu prazos para o cumprimento de suas recomendaes, em
seu artigo 112. 47 LOUW, Lirette. An analysis of state compliance with the recommendations of the African Commission on
Human and Peoples Rights. 2005. Tese (Doutor em Direito) Universidade de Pretria, frica do Sul, pp. 90-
96. 48 A respeito do grau de cumprimento das recomendaes da Comisso Africana, Lirette Louw revelou nmeros
preocupantes: em apenas 14% dos casos houve cumprimento integral pelos Estados; em 66%, houve cumprimento
parcial; por fim, em 20% dos casos o Estado membro no tomou nenhuma medida recomendada pela Comisso.
IN: LOUW, Lirette. An analysis of state compliance with the recommendations of the African Commission on
Human and Peoples Rights. 2005. Tese (Doutor em Direito) Universidade de Pretria, frica do Sul, pp. 25-
51.
https://www.au.int/web/sites/default/files/treaties/7770-file-banjul_charter.pdf
20
direitos humanos ao redor do continente49. Entretanto, uma nova onda de genocdios que
assolou a frica, marcada pelo massacre de tutsis em Ruanda, em 199450, revelou a impotncia
daquele arranjo para enfrentar as sistemticas violaes de direitos humanos na regio.
1.6. O Protocolo de Criao da Corte Africana
A ideia de uma Corte Africana de Direitos Humanos, que foi ventilada poca da
formao da OUA, retornou pauta das reunies entre cpulas estatais africanas na dcada de
1990, novamente motivada pelos horrores de guerras civis e pela crescente presso de
organismos internacionais, como a Comisso Internacional de Juristas, de Genebra51.
O Secretrio-Geral da OUA reconheceu a insuficincia da Comisso e autorizou o incio
de trabalhos preparatrios para a celebrao de um Protocolo Carta, que institusse uma Corte
Africana de Direitos Humanos. Como ser discutido mais adiante, as diversas minutas do
tratado representaram concepes distintas acerca do acesso de indivduos e ONGs Corte,
bem como acerca da relao entre ela e a Comisso.
Em 1998, foi firmado o Protocolo da Corte, que entrou em vigor em 2004 e obteve, at
hoje, a ratificao de 30 dos 53 Estados Africanos52. A fraca adeso ao protocolo, quando
comparada adeso quase total Carta Africana, revela que muitos Estados ainda resistem a
submeter-se a jurisdies internacionais, capazes de sancion-los jurdica, econmica e
politicamente por seus desmandos. A resistncia a mecanismos mais efetivos representa um
dos maiores entraves salvaguarda de direitos humanos na frica contempornea e no se
49 MOTALA, Ahmed. Non-governmental organisations in the African system. IN: EVANS, Malcolm; MURRAY,
Rachel (eds.), The African charter on human and peoples rights: the system in practice 1986-2000. Cambridge:
Cambridge University Press, 2008, pp. 246, 252-253. 50 A tenso entre as etnias hutu e tutsi data da colonizao de Ruanda pela Blgica, quando os lderes apontados
pela metrpole eram predominantemente tutsis, minoria no pas. Aps a colonizao, a maioria hutu assumiu o
poder, enquanto tutsis se exilaram nos pases vizinhos. Alguns deles formaram a Frente Patritica Ruandesa, que
retornou a Ruanda para tentar derrubar o governo hutu, em 1990. Confrontos entre as duas etnias assolaram o pas
at 1993, quando um acordo de paz foi celebrado. Entretanto, a morte de dois lderes hutus em um acidente de
avio, que foi considerada um atentado tutsi, disparou novos conflitos: em represlia, milcias de hutus espalhadas
pelo pas executaram mais de 800 mil tutsis, com o apoio material do governo. Cf. BBC Brasil. Entenda o
genocdio de Ruanda de 1994: 800 mil mortes em cem dias. Disponvel em:
. Acessado em 29 de abril de
2017. 51 ZIMMERMANN, Andreas; BAUMLER, Jelena. Current challenges facing the African Court of Human and
Peoples Rights. Kas International Reports, volume 7. 2010, pp. 39-40. 52 Os Estados que ratificaram o Protocolo so: frica do Sul, Arglia, Benin, Burkina Faso, Burundi, Camares,
Chade, Costa do Marfim, Comores, Congo, Gabo, Gmbia, Gana, Lesoto, Lbia, Mali, Malau, Moambique,
Mauritnia, Ilhas Maurcio, Nigria, Nger, Qunia, Ruanda, Saara Ocidental, Senegal, Tanznia, Togo, Tunsia e
Uganda. A tabela de ratificao do tratado est disponvel em:
. Acessado em 29 de abril de 2017.
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/04/140407_ruanda_genocidio_mshttps://www.au.int/web/sites/default/files/treaties/7778-sl-protocol_to_the_african_charter_on_human_and_peoplesrights_on_the_establishment_of_an_african_court_on_human_and_peoples_rights_17.pdfhttps://www.au.int/web/sites/default/files/treaties/7778-sl-protocol_to_the_african_charter_on_human_and_peoplesrights_on_the_establishment_of_an_african_court_on_human_and_peoples_rights_17.pdfhttps://www.au.int/web/sites/default/files/treaties/7778-sl-protocol_to_the_african_charter_on_human_and_peoplesrights_on_the_establishment_of_an_african_court_on_human_and_peoples_rights_17.pdf
21
restringe s cortes regionais: a retaliao de Omar Al-Bashir, atual presidente sudans, ao
mandado de sua priso provisria pelo TPI revela o desdenho de alguns lderes tambm pelas
cortes de jurisdio universal53.
A Corte Africana, sediada em Arusha, na Tanznia, iniciou seus trabalhos em 2006,
quando tomaram posse seus onze juzes. Os primeiros anos de funcionamento foram dedicados
formulao de suas regras procedimentais, com relao s etapas do processo, aos limites de
sua competncia e a sua interao com a Comisso, dentre outras matrias no esgotadas no
Protocolo54. Por conta dessas formalidades a serem resolvidas, somente em 2009 a Corte veio
a julgar seu primeiro caso, Yogogombaye v. Senegal, o qual revelou srio entrave efetividade
do rgo: em um caso complexo, que envolvia crimes de guerra e violao de princpios
fundamentais do direito penal, a Corte se viu obrigada a declinar da competncia para julg-lo,
devido ausncia da declarao de Senegal autorizando pessoas fsicas a acionarem o rgo55.
Na prtica, o rol de legitimados ativos do Protocolo afastou o indivduo e as ONGs do
acesso Corte Africana. Malgrado haver reconhecido a possibilidade de esses entes acionarem
o rgo, o tratado a condiciona a uma declarao especfica do Estado acusado, em que acate a
competncia do tribunal para julgar casos promovidos por indivduos e organizaes no-
governamentais. Com isso, submeteu o direito de petio individual das vtimas ao arbtrio de
cada Estado, justamente o ente responsvel pela violao denunciada e pela falta de reparao
dos danos na via interna56. No s difcil cogitar essa boa vontade estatal, como tambm tal
dificuldade manifestou-se na prtica: dos trinta Estados que ratificaram o protocolo, apenas sete
firmaram a referida declarao57.
1.7. A Unio Africana e a Responsabilidade de Proteger
53 Omar Al-Bashir foi indiciado pelo Tribunal Penal Internacional em 2009, pela prtica de crimes contra a
humanidade, genocdio e crimes de guerra em Darfur, Sudo, desde 2003. O presidente sudans se recusou a
cumprir o mandado de sua priso provisria, alegando que o pas no signatrio do Estatuto de Roma e, portanto,
no reconhece a jurisdio do TPI. A Anistia Internacional arguiu que o caso foi remetido ao TPI pelo Conselho
de Segurana do ONU, na forma da Resoluo 1593, o que confere competncia ao tribunal sobre crimes ocorridos
no Sudo. Em retaliao ao que julgou ser uma ameaa soberania sudanesa, Al-Bashir expulsou diversas agncias
internacionais de ajuda humanitria do pas. Cf. BBC News, Warrant issued for Sudans Leader. Disponvel em:
. Acessado em 30 de abril de 2017. CNN, Sudan orders aid
agency expulsions. Disponvel em < http://edition.cnn.com/2009/WORLD/africa/03/04/sudan.expel/>. Acessado
em 30 de abril de 2017. 54 WACHIRA, George Mukundi. African Court of Human and Peoples Rights: Ten years on and still no justice.
Minority Rights Group International, 2008, p. 14. 55 ZIMMERMANN, Andreas; BAUMLER, Jelena. Current challenges facing the African Court of Human and
Peoples Rights. Kas International Reports, volume 7. 2010, p. 51. 56 KEMBABAZI, Lydia Winyi. A critique of accessibility to the African Court of Human and Peoples Rights.
Budapeste: Central European University, 2013, pp. 40-42. 57 So eles: Benin, Burkina Faso, Costa do Marfim, Gana, Mali, Malau e Tanznia.
http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/7923102.stmhttp://edition.cnn.com/2009/WORLD/africa/03/04/sudan.expel/
22
No nterim entre a assinatura e a vigncia do Protocolo da Corte, foi realizada outra
relevante alterao no sistema africano de direitos humanos: a fundao da Unio Africana,
organismo internacional sucessor da OUA.
Aps dcadas de massacres promovidos por autoridades, alguns deles ainda vivos na
memria, tornou-se evidente que o modelo de no-interferncia estrangeira estava defasado,
por fundar-se em uma iluso de coexistncia harmoniosa ps-libertao. H muito os Estados
europeus haviam descolonizado a frica, ao menos em seu domnio poltico; as srias violaes
de direitos humanos, no entanto, no cessavam, pois tornaram-se prtica sistemtica de milcias,
grupos terroristas e regimes militares, que jamais gozaram de legitimidade democrtica, ou a
perderam em meio ao mandato58.
Ao vedar as interferncias em assuntos internos dos Estados, a OUA colaborou para
a estabilizao desses governos autoritrios, que no tinham qualquer interesse em promover a
liberdade e o desenvolvimento dos seus cidados. Ao priorizar a soberania estatal sobre a
dignidade da pessoa humana, a antiga organizao inviabilizou seu maior objetivo, qual seja, a
liberdade de autodeterminao poltica, econmica e social dos povos.
Mesmo diante de tamanhas omisses, no se deve menosprezar a importncia histrica
da Organizao da Unio Africana: sua presso diplomtica, suas conferncias e seus trabalhos
de mediao foram decisivos para a erradicao da colonizao e para o fim do apartheid, ao
longo da dcada de 199059. Aps atingir esses dois objetivos, os chefes de Estado africanos se
reuniram para revisar a Carta da OUA, em 1999, decididos a aprimorar a integrao poltica e
econmica regional, para fazer frente aos desafios de um mundo cada vez mais globalizado.
Ciente dos equvocos cometidos pela organizao anterior, a Unio Africana consagrou
um novo paradigma da cooperao entre estados africanos, mais interventivo e comprometido
com a dignidade da pessoa humana; substituiu, ento, o paradigma de no-interferncia
estrangeira pelo de no-indiferena60.
Assim, a comunidade africana declarou como objetivo da UA a promoo da paz, da
segurana e da estabilidade no continente61. Nesse sentido, conferiu nova organizao a
prerrogativa de intervir militarmente nos Estados Partes, sob indicao do Conselho de Paz e
58 FEFERBAUM, Marina. A proteo internacional de direitos humanos: Anlise do Sistema Africano. So Paulo:
Ed. Saraiva, 2012, p. 120. 59 MURITHI, Tim. The African Unions evolving role in Peace Operations. African Security Review, volume 17,
nmero 1. 2008, p. 74. 60 WILLIAMS, Paul D. From non-intervention to non-indifference: the origins and development of the African
Unions security culture. African Affairs, 106/423. Maro de 2007, p. 256. 61 Ato Constitutivo da Unio Africana, prembulo. 11 de junho de 2001. Disponvel em:
. Acessado em 15 de abril de 2017.
https://au.int/web/sites/default/files/pages/32020-file-constitutiveact_en.pdf
23
Segurana62 e aprovao da Assembleia da UA63, em graves circunstncias como crimes de
guerra, genocdios e crimes contra a humanidade64.
Essa autorizao interveno militar representa notvel avano na perspectiva dos
governos africanos sobre o Direito Internacional, pois reconhece, mesmo que implicitamente,
a cada Estado o dever de garantia dos direitos de seus habitantes, bem como de proteo dos
direitos de outros povos africanos, mediante ao coletiva contra graves violaes de direitos
humanos. Est em consonncia com a doutrina da Responsabilidade de Proteger (Responsibility
to Protect), fundada na percepo de que a soberania do Estado no implica apenas
prerrogativas, mas tambm deveres, especialmente o de proteo e garantia do bem-estar dos
indivduos em seu territrio65. Antes de a Organizao das Naes Unidas consagrar e
desenvolver o conceito de Responsibility to Protect, em 2005, os Estados Africanos j
afirmavam o dever de proteo das pessoas sob sua soberania66.
A Responsabilidade de Proteger abrange trs segmentos67: (i) a responsabilidade de
prevenir conflitos, resolvendo crises antes da escalada violncia; (ii) a responsabilidade de
reagir, respondendo a violaes de direitos humanos mediante sanes, intervenes militares
e persecuo penal; e (iii) a responsabilidade de reconstruir, provendo assistncia para a
recuperao e a reconciliao das partes do conflito, a fim de evitar novas disputas a longo
prazo.
62 Esse rgo foi criado por protocolo especfico, assinado em 2002 e vigente a partir de 2004. Tm competncia
para avaliar potenciais crises humanitrias no continente, enviar inspees aos locais de conflito e recomendar
intervenes da UA em Estados Membros, a serem decididas pela Assembleia. O protocolo do Conselho de Paz e
Segurana da UA est disponvel em: . Acessado em 15
de abril de 2017. 63 A Assembleia o rgo mximo da Unio Africana, composto pelos Chefes de Estado e de Governo de cada
Estado Membro, ou por seus representantes. Suas competncias esto arroladas no artigo 9 do Ato Constitutivo
da UA, envolvendo definio das polticas comuns da unio, monitoramento das decises de seus rgos e
autorizao para intervenes militares, dentre outras prerrogativas. 64 Artigo 4. Princpios
A Unio dever funcionar de acordo com os seguintes princpios:
O direito da Unio de intervir em qualquer Estado Membro de acordo com deciso da Assembleia, devido a graves
circunstncias, como crimes de guerra, genocdio e crimes contra a humanidade; (traduo livre.)
No original:
Article 4. Principles
The Union shall function in accordance with the following principles:
The right of the Union to intervene in a Member State pursuant to a decision of the Assembly in respect of grave
circumstances, namely war crimes, genocide and crimes against humanity;
Ato Constitutivo da Unio Africana, artigo 4, h. 11 de junho de 2001. Disponvel em:
. Acessado em 15 de abril de 2017. 65 KENKEL, K. M. Global Player ou espectador nas margens? A Responsabilidade de Proteger: definio e
implicaes para o Brasil. Revista da Escola de Guerra Naval. Nmero 12, dezembro de 2008, pp. 22-24. 66 MURITHI, Tim. The African Unions transition from non-intervention to non-indifference: an ad hoc approach
to the responsibility to protect? Independent Publishers Group, volume 1, 2009, p. 93. 67 MURITHI, Tim. The African Unions transition from non-intervention to non-indifference: an ad hoc approach
to the responsibility to protect? Independent Publishers Group, volume 1, 2009, p. 91.
http://www.peaceau.org/uploads/psc-protocol-en.pdfhttps://au.int/web/sites/default/files/pages/32020-file-constitutiveact_en.pdf
24
A implementao dessa doutrina segue os mecanismos delineados por Boutros Boutros-
Ghali em 1992, na Agenda for Peace. Nesse documento, o ento Secretrio-Geral da ONU
identificou quatro modalidades de interveno humanitrias dos Estados: (i) a diplomacia
preventiva (preventive diplomacy) representa a ao poltica antes de o conflito degringolar
violncia, tratando-se de uma aplicao da responsabilidade por prevenir; (ii) a operao de
restaurao de paz (peacemaking operation) busca uma suspenso do conflito e uma
negociao para encerr-lo totalmente; (iii) a operao de manuteno de paz (peacekeeping
operation) envolve envio de tropas oficiais para preservar o cessar-fogo, representando,
juntamente com a restaurao de paz, a responsabilidade por reagir; (iv) as operaes de
construo da paz (peacebuilding operation) buscam evitar novos conflitos a longo prazo, por
meio do aprimoramento das instituies nacionais, da segurana e dos meios de participao
popular, correspondendo, ento, responsabilidade por reconstruir68.
Esses conceitos foram incorporados pela Unio Africana, a qual, desde sua inaugurao,
em 2002, empreendeu operaes de paz em quatro Estados Africanos: Burundi, Sudo, Somlia
e Comores. Nos quatro casos, a Unio interveio militarmente com o consentimento estatal, o
que supostamente aumentaria a efetividade da ao coletiva. Entretanto, em cada uma dessas
operaes, a organizao deparou-se com bices financeiros, tcnicos e polticos manuteno
da paz e negociao para o fim dos conflitos69. Ainda existem alguns impasses interveno
militar da Unio Africana nos Estados Membros, remanescentes do paradigma de no-
interveno da OUA, bem demonstrados pelo caso de Burundi, que foi o primeiro e o mais
recente foco de operaes de paz da organizao.
1.7.1. Interveno em Burundi: dcadas de conflitos e impasses diplomticos
O conflito tnico em Burundi traz muitas semelhanas com aquele ocorrido em sua
vizinha, Ruanda: ali tambm se ope a maioria hutu minoria tutsi, que reinava em Burundi
desde antes da colonizao e perpetuou seu poder durante o domnio belga. Em 1993, Melchior
Ndadaye, o primeiro presidente hutu eleito democraticamente aps 25 anos de ditadura militar
da minoria, foi assassinado por extremistas tutsi, provocando conflitos que resultaram na morte
de mais de cem mil civis70.
68 BOUTROS-GHALI, Boutros. An Agenda for Peace. UN Documents. 31 de janeiro de 1992. Disponvel em:
. Acessado em 10 de maio de 2017.) 69 MURITHI, Tim. The African Unions evolving role in Peace Operations. African Security Review, volume 17,
nmero 1. 2008, pp. 81-82. 70 Um relatrio da Comisso Internacional de Inqurito em Burundi, solicitado pela ONU, apontou que atos de
genocdio foram praticados contra a etnia tutsi em Burundi, em 1993. IN: Comisso Internacional de Inqurito em
Burundi, Relatrio Final. Disponvel em: <
http://www.un-documents.net/a47-277.htm
25
Em 1994, um acidente de avio vitimou dois presidentes hutus, Cyprien Ntaryamira, de
Burundi, e Juvenal Habyarimana, de Ruanda, disparando conflitos neste pas e agravando a
violncia naquele. Sucessivas tentativas de golpe e conflitos sangrentos entre as duas etnias
marcaram o cenrio sociopoltico de Burundi at 2003, mesmo diante dos esforos
pacificadores da comunidade internacional, consubstanciados no Acordo de Arusha, de 200071.
Em 2003, aps anos de inspees e discusses diplomticas, a comunidade africana, j
sob o arranjo da UA, decidiu enviar uma operao de paz ao pas, consentida pelo governo; a
AMIB era composta por 2.870 soldados, provenientes da frica do Sul, de Moambique e da
Etipia72. Trata-se da primeira interveno planejada e executada pela Unio Africana,
tornando-se um marco da autossuficincia poltica regional.
A interveno caracterizou-se como uma operao de construo de paz (peacebuilding
operation). Tinha como objetivos principais permitir o retorno de refugiados e deslocados
internos e garantir a segurana da populao civil, assim como proteger os polticos que
comporiam o governo de transio, como o hutu Domitien Ndazizeye, que assumiu a
presidncia em julho de 2003. Alm disso, a operao visava reintegrar as milcias sociedade,
mediante desarmamento, desmobilizao e reintegrao dos combatentes, que so os trs
pilares do processo de construo da paz73.
A operao foi bem-sucedida em estabelecer a paz no pas, com exceo da regio
controlada pela FLN (Front de Libration Nationale), prxima capital, Bujumbura. A AMIB
conseguiu evitar maiores conflitos e construiu as bases para a reconciliao em Burundi, como
a celebrao de um cessar-fogo entre Ndazyizeye e o principal movimento rebelde hutu, a FDD
(Fora de Defesa da Democracia). Dentre os seus objetivos, a interveno conseguiu estruturar
um governo de transio, evitar grandes atrocidades humanitrias e desarmar e desmobilizar as
milcias, alm de integrar seus combatentes hutus ao exrcito historicamente dominado por
https://www.usip.org/sites/default/files/file/resources/collections/commissions/Burundi-Report.pdf. Acessado em
12 de maio de 2017. 71 O Acordo de Arusha foi uma tentativa de por fim aos 12 anos de guerra civil em Burundi, por meio da
reconciliao entre hutus e tutsis, mediada por Julius Nyerere, da Tanznia, e Nelson Mandela, da frica do Sul.
Ele buscou garantir uma repartio igualitria de poder poltico entre as etnias, bem como limitaes
constitucionais que evitassem a concentrao de poder por um nico partido. Contudo, a FDD, fora rebelde hutu
mais influente no conflito, rejeitou a interferncia estrangeira em Burundi, aps alguns desentendimentos nas fases
iniciais de negociao, e acabou no assinando o acordo final. Assim, ele no contou com a adeso necessria e
falhou em conter a violncia no pas. IN: Africa Center for Strategic Studies, Burundi: why the Arusha Accords
are central. Disponvel em: .
Acessado em 12 de maio de 2017. 72 MURITHI, Tim. The African Unions evolving role in Peace Operations. African Security Review, volume 17,
nmero 1. 2008, p. 75. 73 KNIGHT, W. Andy. Disarmament, Demobilization and Reintegration and post-conflict Peacebuilding in Africa:
an overview. African Security, 1:1, pp. 37-38.
https://www.usip.org/sites/default/files/file/resources/collections/commissions/Burundi-Report.pdfhttp://africacenter.org/spotlight/burundi-why-the-arusha-accords-are-central/
26
tutsis74. Com isso, foram criadas condies suficientes para a operao de manuteno de paz
(peacekeeping operation) da ONU, que hesitava em interferir na situao voltil anterior
AMIB; em junho de 2004, houve a transio oficial da AMIB para a ONUB.
Em 2005, uma nova Constituio foi aprovada pelo Legislativo e referendada pela
populao burundiana; no mesmo ano, foram realizadas eleies parlamentares, nas quais a
FDD tornou-se maioria nas duas casas legislativas, elegendo um de seus membros, Pierre
Nkurunziza, para a presidncia75. Em dezembro de 2006, a operao da ONU deixou Burundi,
sendo substituda por um escritrio da organizao, destinado a coordenar a assistncia
humanitria internacional e a desenvolver um abrangente sistema de segurana com as foras
policiais e militares do pas76. Entre sucessos e fracassos dessa primeira interveno militar,
pode-se dizer que a AMIB pacificou Burundi temporariamente, foi exitosa na cooperao com
a ONU e revelou um grande potencial da Unio Africana em intervir de forma eficaz na regio.
Contudo, novos conflitos eclodiram em 2015, provocados pelo anncio da candidatura
de Nkurunziza ao terceiro mandato consecutivo, em grave violao da Constituio Federal e
dos Acordos de Arusha77. A notcia disparou uma tentativa de golpe de Estado por um general
do Exrcito, em maio, que foi contida por foras leais ao presidente; Nkurunziza foi eleito em
junho, em votaes marcadas por denncias de fraudes e intimidaes78. Em dezembro de 2015,
diversas foras rebeldes coordenaram ataques a bases militares do governo, que retaliou
enviando tropas oficiais s ruas, onde executaram sumariamente diversos suspeitos de
participao nos atentados79. Da em diante, os conflitos entre o Exrcito e as foras rebeldes
se alastraram pelo pas.
74 MURITHI, Tim. The African Unions evolving role in Peace Operations. African Security Review, volume 17,
nmero 1. 2008, pp. 75-76. 75 O relatrio da Unio Interparlamentar sobre as eleies legislativas de 2005 em Burundi traz um balano
positivo, realado pelo recorde de participao popular e pela ausncia de qualquer denncia de intimidao ou
fraude. Entretanto, o grande domnio da FDD, antiga fora rebelde transformada em partido poltico, viria a
representar uma ameaa democracia e Constituio alguns anos depois. IN: Unio Interparlamentar, Eleies
de 2005 para o Senado em Burundi. Disponvel em: .
Acessado em 10 de maio de 2017. 76 MURITHI, op. cit., p. 76. 77 O artigo 7, 3, do Acordo de Arusha define que o presidente dever ser eleito para um mandato de cinco anos,
com direito a apenas uma reeleio, ressaltando que ningum poder ocupar o cargo por trs mandatos
consecutivos. Tal limitao ecoada pelo artigo 96 da Constituio de Burundi de 2005: 78Alm dessas irregularidades, a eleio ficou marcada pelo boicote de trs concorrentes de Nkurunziza, que
acabou ganhando com larga margem de votos, mais de 50 pontos percentuais acima da segunda colocada, Agathon
Rwasa. Cf. THE GUARDIAN, Burundis president Pierre Nkurunziza wins third term in disputed election.
Disponvel em: . Acessado em 10 de maio de 2017.) 79 WILLIAMS, Paul D. The Burundi Ultimatum. Foreign Affairs. 28 de janeiro de 2016, p. 1. Disponvel em:
. Acessado em 10 de maio de
2017.
http://www.ipu.org/parline-e/reports/arc/2368_05.htmhttps://www.theguardian.com/world/2015/jul/24/burundi-pierre-nkurunziza-wins-third-term-disputed-electionhttps://www.theguardian.com/world/2015/jul/24/burundi-pierre-nkurunziza-wins-third-term-disputed-electionhttps://www.foreignaffairs.com/articles/burundi/2016-01-28/burundi-ultimatum
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Alguns dias depois, o Conselho de Paz e Segurana da UA realizou uma reunio de
emergncia, da qual emergiu um ultimato ao presidente Pierre Nkurunziza: ou ele acatava a
entrada de uma fora de manuteno da paz, ou sofreria mais sanes e, eventualmente, uma
interveno militar forada; o Conselho lhe concedeu 96 horas para decidir80.
importante destacar que a Unio Africana j havia esgotado os outros meios de
soluo de conflitos nos meses anteriores: j tinha mediado negociaes entre o governo e as
foras rebeldes, sem sucesso, e havia enviado membros da Comisso Africana ao pas, para
uma inspeo in loco, em que concluram pelo grande risco de escalada da violao dos direitos
humanos81. Estavam configuradas, ento, as graves circunstncias autorizadoras da interveno
militar, na forma do artigo 4, h, do Ato Constitutivo da Unio Africana.
O governo do Burundi rejeitou a operao da Unio Africana em unssono: tanto o
Presidente quanto o Parlamento declararam que a entrada de foras de manuteno da paz seria
uma afronta soberania do pas, a ser combatida vigorosamente82.
A surgiram os impasses polticos da interveno militar da UA: as sanes econmicas
na forma de suspenso da assistncia internacional j estavam quase saturadas, e tipicamente
demoram para repercutir no conflito. Restava, portanto, buscar a aprovao da interveno
militar forada junto aos rgos deliberativos da organizao, para cumprir o ultimato e no
comprometer a credibilidade de seu aparato coercitivo. No entanto, o qurum de aprovao da
interveno no Burundi dificilmente seria obtido sem o consentimento estatal: a operao
precisa ser aprovada por dois teros da Assembleia dos Chefes de Estado e de Governo, que se
reuniria no ms seguinte; naturalmente, os lderes africanos hesitariam em aprovar a medida,
por temerem que o precedente de interveno forada lhes atingisse no futuro.
O resultado no foi surpreendente: a assembleia rejeitou a interferncia. Mesmo assim,
no desistiu da operao, autorizando o envio de nova delegao para negociar com o presidente
Nkurunziza e obter seu consentimento83. Em defesa da deciso da Assembleia, pode-se afirmar
que a operao de paz no seria efetiva sem o apoio do governo nacional, como indicam as
experincias da ONU no ramo. Entretanto, o fato que, por omisso da UA, o Burundi
atualmente governado por um regime inconstitucional, situao que a organizao se
comprometeu a combater em seu tratado constitutivo.
80 Ibid., p. 1. 81 O relatrio da misso da Comisso Africana a Burundi, com seus objetivos, suas descobertas e suas concluses,
est disponvel em: . Acessado em 10 de maio de 2017. 82 Williams, op. cit., p. 5. 83 A matria da BBC, Has African Union let down Burundi?, relata as motivaes e a repercusso da deciso da
Assembleia. Disponvel em: . Acessado em 10 de maio de
2017.
http://www.achpr.org/press/2015/12/d285/http://www.bbc.com/news/world-africa-35462079
28
Esse fracasso da Unio Africana revelou a fragilidade de seus mecanismos coercitivos
e demonstrou que o paradigma interventivo ainda no est consolidado. Embora j disponha da
permisso normativa para tanto, a interferncia no-consentida nos Estados permanece como
um tabu para a comunidade africana, que segue priorizando as soberanias nacionais e a
inviolabilidade das fronteiras em detrimento da paz, da segurana e da estabilidade de seus
povos.
Em ltima anlise, a causa da letargia da Organizao da Unidade Africana, qual seja,
a concepo simplista acerca da soberania, que ignora o dever de proteger todos aqueles
submetidos autoridade estatal, segue presente nos trabalhos da Unio Africana. Essa causa
tem natureza poltica, no jurdica, pois j foi superada pelo Ato Constitutivo da UA. Super-
la politicamente, contudo, demanda maior comprometimento dos chefes de Estado africanos
com os meios coercitivos de proteo dos direitos humanos, independentemente da
convenincia poltica ou econmica de proteg-los. Afinal, o crculo vicioso de mudanas
inconstitucionais de governo e omisso internacional j revelou todo o seu potencial destrutivo
no sculo passado; evitar esse crculo, na forma dos mecanismos regionais j previstos,
premente para a tutela dos direitos humanos na frica de agora em diante.
1.7.2. A Corte Africana de Justia
Outra novidade trazida pelo Ato Constitutivo da Unio Africana foi a instituio de uma
Corte Africana de Justia, destinada a dirimir conflitos interestatais quanto aplicao de
tratados, envolvendo temas de direito internacional pblico em geral. Imediatamente, a
inovao gerou estranhamento e crticas da doutrina, que apontava para o recm-aprovado
Protocolo da Corte Africana de Direitos Humanos, na iminncia de ser inaugurada84. No fazia
sentido instaurar simultaneamente duas Cortes distintas, com jurisdio sobre os mesmos
territrios, dada a carncia de recursos financeiros que j comprometia os trabalhos da
Comisso Africana. Ademais, o conflito de competncias seria inevitvel, quando da
interpretao de algum tratado afeto aos direitos humanos.
Cedendo presso da comunidade acadmica internacional, a Unio Africana anunciou
o projeto de fuso dos dois rgos, que daria origem Corte Africana de Justia e Direitos
Humanos. Depois de anos de impasses formais para a juno das duas cortes, que contriburam
inatividade da Corte Africana em seus primeiros trs anos de existncia, o Protocolo de Sharm
Al-Sheikh instituiu a Corte Africana de Justia e Direitos Humanos, composta de dezesseis
84 ZIMMERMANN, Andreas; BAUMLER, Jelena. Current challenges facing the African Court of Human and
Peoples Rights. Kas International Reports, volume 7. 2010, pp. 48-49.
29
juzes divididos em duas cmaras, uma de assuntos gerais, outra de direitos humanos85. At o
momento, o Protocolo foi firmado por trinta Estados e ratificado por apenas cinco deles, muito
distante do mnimo de quinze ratificaes para entrar em vigor86.
Em junho de 2014, a Unio Africana aprovou o Protocolo de Malabo, o qual estende a
jurisdio da futura Corte Africana de Justia e de Direitos Humanos, acrescentando-lhe uma
cmara criminal, voltada ao julgamento de indivduos pela prtica de genocdio, crime de
guerra, pirataria e terrorismo, dentre outros crimes internacionais. Como ser analisado neste
trabalho, a ampla jurisdio internacional visada por esse protocolo indita, trazendo desafios
s conquistas obtidas na proteo regional de direitos humanos87.
Durante o perodo de suspenso da transio institucional, at ser atingido o mnimo de
ratificaes, a Corte Africana de Direitos Humanos seguir em pleno funcionamento.
1.8. Tratados regionais de direitos humanos especficos
Alm do conjunto de tratados j examinados, o sistema africano abarca trs tratados
sobre temas especficos dos direitos humanos: a Conveno de Refugiados, a Conveno dos
Direitos e Bem-Estar da Criana e o Protocolo de Maputo.
A Conveno da OUA que rege os aspectos especficos dos problemas dos Refugiados
na frica foi firmada em 1969, em Addis Abeba. Em suas disposies, o tratado embasou-se
explicitamente na Conveno de Refugiados da ONU, de 1951: reproduziu seu conceito de
refugiados, consagrou os princpios do non-refoulement e da repatriao voluntria e incentivou
todos os Estados africanos a aderirem quele instrumento universal88.
Pode-se afirmar que essa conveno regional representou um preldio do sistema
africano de direitos humanos, pois, apesar da temtica especfica, consagrou um tratamento
humanitrio para os refugiados, reconheceu-lhes o gozo de liberdades e direitos fundamentais
e definiu que todos os Estados devem lhes estender os direitos e obrigaes de seus nacionais,
85 ZIMMERMANN, Andreas; BAUMLER, Jelena. Current challenges facing the African Court of Human and
Peoples Rights. Kas International Reports, volume 7. 2010, p. 49. 86 A tabela de ratificao pode ser verificado no site oficial da Unio Africana:
https://www.au.int/web/sites/default/files/treaties/7792-sl-
protocol_on_statute_of_the_african_court_of_justice_and_hr_0.pdf 87 VILJOEN, Frans. AU Assembly should consider human rights implications before adopting the Amending
Merged African Court Protocol. Disponvel em: . Acessado em 12 de
maio de 2017. 88 Conveno da UA que regula Aspectos Especficos dos Problemas dos Refugiados na frica, artigos I, 1 e 2, II,
3, V, 1 a 5. 10 de setembro de 1969. Disponvel em: < http://www.adus.org.br/convencao-da-organizacao-de-
unidade-africana>. Acessado em 20 de abril de 2017.
https://www.au.int/web/sites/default/files/treaties/7792-sl-protocol_on_statute_of_the_african_court_of_justice_and_hr_0.pdfhttps://www.au.int/web/sites/default/files/treaties/7792-sl-protocol_on_statute_of_the_african_court_of_justice_and_hr_0.pdfhttps://africlaw.com/2012/05/23/au-assembly-should-consider-human-rights-implications-before-adopting-the-amending-merged-african-court-protocol/https://africlaw.com/2012/05/23/au-assembly-should-consider-human-rights-implications-before-adopting-the-amending-merged-african-court-protocol/http://www.adus.org.br/convencao-da-organizacao-de-unidade-africanahttp://www.adus.org.br/convencao-da-organizacao-de-unidade-africana
30
sem poder discriminar os refugiados por sua raa, religio ou nacionalidade89. Doze anos
depois, os mesmos princpios viriam a fundamentar a Carta Africana de Direitos Humanos e
dos Povos.
A Carta Africana dos Direitos e Bem-Estar da Criana foi celebrada em 1990, tambm
em Addis Abeba. O tratado disciplina os diversos mbitos da vida privada e pblica de uma
criana, buscando garantir um desenvolvimento intelectual adequado e uma boa insero social:
para isso, tutela os direitos da criana educao, sade e ao lazer, alm de incentivar os
signatrios a combater o trabalho infantil e o abuso infantil em seus territrios90.
A Carta da Criana o nico dos trs instrumentos que prev a formao de rgo
especfico, o Comit de Direitos e Bem-estar da Criana, responsvel por interpretar o tratado,
monitorar seu cumprimento, colaborar com outras instituies para a promoo dos direitos da
criana e auxiliar os Estados em sua proteo. De modo semelhante Comisso Africana,
instituiu um sistema de comunicaes com os Estados, que devem elaborar relatrios abordando
a salvaguarda dos direitos da criana em seu territrio e as medidas administrativas e
legislativas aprovadas para reforar sua tutela. O Comit recebe o relatrio, torna-o pblico e o
aprecia em reunio ordinria, em que conta com os esclarecimentos de representantes enviados
pelos Estados Partes e com a participao de ONGs especializadas91.
Por fim, o Protocolo de Maputo foi assinado em 2003, em Maputo, Moambique. Tal
instrumento destina-se a aprimorar a tutela dos direitos das mulheres no continente africano,
garantindo-lhes o acesso justia, a igualdade perante a lei, o direito sade e seus direitos
reprodutivos, incluindo o direito ao aborto. Alm disso, o tratado defende a participao poltica
da mulher e sua insero efetiva no mercado de trabalho, em especial nos mbitos poltico e
judicirio, para representao mais igualitria dos gneros. O Protocolo de Maputo busca,
tambm, combater a mutilao genital feminina e outras prticas tradicionais que ferem os
direitos vida e integridade fsica das mulheres92. At o momento, 51 Estados africanos o
firmaram e 36 deles o ratificaram93.
89 Ibid., prembulo, pargrafos 2 e 6, e artigo IV. 90 Carta Africana dos Direitos e Bem-Estar da Criana, artigos 11, 12, 14, 15 e 16, 3. 11 de julho de 1990.
Disponvel em: < http://www.achpr.org/pt/instruments/child/>. Acessado em 20 de abril de 2017. 91 Carta Africana dos Direitos e Bem-Estar da Criana, artigos 42, a, b e c e 43, 1. 11 de julho de 1990.
Disponvel em: < http://www.achpr.org/pt/instruments/child/>. Acessado em 20 de abril de 2017. 92 Protocolo de Maputo, artigo 5, b, 8, 9 e 14. 11 de julho de 2003. Disponvel em:
. Acessado em 20
de abril de 2017. 93 So eles: frica do Sul, Angola, Benin, Burkina Faso, Cabo Verde, Camares, Comores, Congo, Costa do
Marfim, Djibuti, Gabo, Gana, Guin, Guin Equatorial, Guin-Bissau, Gmbia, Lesoto, Libria, Lbia, Malau,
Mali, Mauritnia, Moambique, Nambia, Nigria, Qunia, Repblica Dem