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SERVIÇO SOCIAL
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ALÍCIA BEATRIZ MALLMANN PICCININ
O MATERIALISMO HISTÓRICO DIALÉTICO NO SERVIÇO SOCIAL:
A RELAÇÃO COM O MATERIALISMO DE FEUERBACH E A SUA CRÍTICA À
RELIGIÃO
________________________________________________________
TOLEDO
2017
ALÍCIA BEATRIZ MALLMANN PICCININ
O MATERIALISMO HISTÓRICO DIALÉTICO NO SERVIÇO SOCIAL:
A RELAÇÃO COM O MATERIALISMO DE FEUERBACH E A SUA CRÍTICA À
RELIGIÃO
Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado ao Curso de Serviço Social, Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Serviço Social.
Orientadora: Prof. Dra. Cristiane Sander
TOLEDO
2017
ALÍCIA BEATRIZ MALLMANN PICCININ
O MATERIALISMO HISTÓRICO DIALÉTICO NO SERVIÇO SOCIAL:
A RELAÇÃO COM O MATERIALISMO DE FEUERBACH E A SUA CRÍTICA À
RELIGIÃO
Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado ao Curso de Serviço Social, Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Serviço Social.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Profa. Dra. Cristiane Sander
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
_____________________________________________ Profa. Dra. Cleonilda Sabaini Thomazini Dallago
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
_____________________________________________ Prof. Dr. Rosalvo Schütz
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Toledo, 21 de fevereiro de 2017.
Dedico este trabalho à minha Mãe,
por todo esforço e determinação
para que eu chegasse até aqui.
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Loia, que sempre me incentivou muito, sempre esteve ao meu lado,
compartilhando angústias, dificuldades, alegrias, desabafos e também por ter me
proporcionado todas as condições materiais para a realização do curso. Sem ela não teria sido
possível chegar até aqui.
Ao Luiz que, além de namorado, é um grande amigo, o qual sempre foi compreensivo
comigo nos períodos de crise e angústia, por me auxiliar sempre que possível, por me ouvir,
por me apoiar acima de tudo, por ter sempre me incentivado a não desistir dos meus sonhos,
por ter me impulsionado naquela tarde de domingo a fazer o vestibular quando nossos planos
eram outros, muito obrigada, meu amor! Sem você nada disso faria sentido!
À UNIOESTE, por ter me possibilitado cursar uma universidade pública gratuita.
Aos docentes do curso de Serviço Social, por me proporcionarem tantos momentos de
reflexão e inquietação, por me fazerem entender a importância do Serviço Social e a adorar
esse curso a cada nova descoberta, muito obrigada!
Ao professor Alfredo Batista, por me apresentar ao livro A essência do cristianismo,
ao qual deu início e desencadeou todo o processo de construção do TCC. Obrigada.
À minha querida orientadora Cristiane Sander, que aceitou o desafio de me orientar e
que me mostrou o caminho das pedras. Por cada orientação e momento de reflexão que
passamos na construção deste TCC, muito obrigada! Você foi excelente e fiquei muito feliz
com o resultado desse processo!
Aos meus colegas do quarto ano, por todos os momentos compartilhados.
Em especial:
À Mirele, por ser tão parceira, amiga e querida... Por me ajudar em inúmeros
momentos, por me ouvir, por tantas tardes divertidas fazendo aqueles imensos trabalhos, pelas
risadas, pelas bobeiras e piadas internas que somente nós duas entendemos... Por me ajudar a
pensar no título do TCC e na divisão dos capítulos e tudo o mais, pelas discussões sobre o
Serviço Social, Gramsci, Feuerbach, sobre o problema de pesquisa e pelas inúmeras sugestões
recíprocas que tivemos ao longo desse período de graduação, obrigada por tudo! Você é muito
especial para mim Japinha!
À Leila, por estar sempre por perto, pela grande admiração que tenho pela mulher que
você é, pela amizade, pela paciência, pelas conversas, pelos desabafos, pela receita daquele
bolo maravilhoso! Obrigada pela mulher guerreira que você é e pelo exemplo que você nos
dá!
À Vanessa, pela parceria no campo de estágio, pelos momentos de aprendizado, pelos
desafios, pelas angústias, pelas alegrias e pelas conquistas que compartilhamos. Obrigada!
À minha amiga Simone, por estar presente na minha vida, por me ouvir e me
aconselhar tantas vezes, você é muito especial para mim!
Aos professores examinadores, Cleonilda e Rosalvo, por terem aceito o convite de
fazer parte da minha banca, é uma grande honra tê-los neste momento tão especial.
E obrigada a todas as pessoas não nominadas, que de alguma forma estiveram
presentes na minha vida durante esta etapa, cada uma da sua forma tem sua contribuição
especial. Enfim, muito obrigada a todos, foi com muito esforço e com apoio de todos vocês
que eu cheguei até aqui e consegui!
Quatro pontos têm a minha religião e
Faço deles a minha filosofia e
Faço deles a minha ação.
Viva, creia, ame e faço dessa também é a minha oração.
Viva a sua filosofia,
Ame a sua arte,
Creia na sua religião e
Faça a sua parte,
Mas não use a sua religião para tentar reprimir o outro.
Somos sete bilhões de mentes no mundo e
Querer que todo mundo creia na mesma coisa,
É no mínimo papo de louco.
Eu respeito todos os que têm fé,
Eu respeito todos que não a têm,
Eu respeito quem crê em um Deus,
Eu respeito quem não crê em ninguém.
Eu gosto de quem tem fé no verso,
Eu gosto de quem tem fé em si mesmo,
Eu gosto de quem tem fé no universo,
Eu gosto dos que andam a esmo.
Um abraço pra quem é da ciência,
Um abraço pra quem é de Deus,
Um abraço pra quem é da arte e
Um abraço pra quem é ateu.
Axé pra quem é de axé
Amém pra quem é de amém
Blessed pra quem é de magia e
Amor pra quem é do bem.
Intolerância religiosa é a própria contradição.
Religião vem do latim religare que significa união,
Então pare de dividir o mundo entre os que vão e os que não vão para o paraíso.
O nosso mundo esta doente em tudo,
Enquanto nós perdemos tempo brigando por isso.
Ao invés de dividir as religiões entre as que são do mal e as que são do bem
Que tal botar sua ideologia no bolso e
Ajudar aquele moço que de frio morre na rua desamparado e sem ninguém.
Os grandes mestres já disseram
Que precisamos de união,
Então por que não fazer do respeito também uma religião?
Mariana Souza (AnaMari Souza)
7
PICCININ, Alícia Beatriz Mallmann. O materialismo histórico dialético no Serviço Social: a relação com o materialismo de Feuerbach e a sua crítica à religião. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Serviço Social). Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Campus Toledo-PR, 2017.
RESUMO
Este estudo é resultado da pesquisa realizada como parte da disciplina de Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC) do Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste/Campus de Toledo. A delimitação do tema desta
pesquisa é a construção da crítica de Feuerbach à religião, sua aproximação com o
materialismo e a possível relação com o Serviço Social. Desta forma, tem-se como objetivo
geral: estabelecer em que medida é possível uma relação entre a crítica à religião de
Feuerbach e sua aproximação com o materialismo e o processo de ruptura do aspecto
religioso e a Reconceituação do Serviço Social no Brasil. Como objetivos específicos:
verificar a construção do pensamento de Feuerbach acerca da religião e sua aproximação com
o materialismo; e, em seguida, apreender os elementos de ruptura do Serviço Social com a
perspectiva religiosa e sua aproximação com o materialismo. Buscou-se através desse
processo responder ao problema: é possível estabelecer uma relação entre a crítica de
Feuerbach à religião, especialmente na sua aproximação com o materialismo a partir da
ruptura do aspecto religioso do Serviço Social brasileiro e de seu Movimento Reconceituação
e aproximação com o materialismo? O método utilizado na pesquisa procurou analisar o
objeto no âmbito de sua totalidade e dinamicidade, dentro da perspectiva de suas múltiplas
determinações e contradições, na medida em que buscou compreendê-lo inserido dentro de
um processo histórico. A metodologia constitui-se em uma pesquisa explicativa e
bibliográfica que buscou um diálogo com diferentes autores que refletem sobre o tema.
Concluindo, procuramos estabelecer, por meio da reflexão teórica, a relação existente entre o
materialismo antropológico de Feuerbach com o materialismo histórico dialético presente no
Serviço Social.
Palavras-chave: Serviço Social; materialismo antropológico; materialismo histórico
dialético.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9
1 A CRÍTICA DE FEUERBACH À RELIGIÃO E SUA APROXIMAÇÃO COM O
MATERIALISMO .......................................................................................................................................... 13
1.1 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO AUTOR ........................................ 13 1.2 O PENSAMENTO DE FEUERBACH ACERCA DA RELIGIÃO E SUA CRÍTICA ..... 16
1.2.1 Alienação Religiosa........................................................................................................20
1.3 A APROXIMAÇÃO DO PENSAMENTO DE FEUERBACH COM O
MATERIALISMO. .................................................................................................................. 23
1.4 A GÊNESE DO SERVIÇO SOCIAL NO MUNDO VINCULADO À RELIGIÃO ......... 27
2 OS ELEMENTOS DE RUPTURA DO SERVIÇO SOCIAL COM A PERSPECTIVA
RELIGIOSA E SUA APROXIMAÇÃO COM O MATERIALISMO ............................................. 33 2.1 O SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO: DA GÊNESE AO CONGRESSO DA VIRADA.33
2.1.1 O Assistencialismo e a Igreja Católica.........................................................................33
2.1.2 A Institucionalização do Serviço Social Brasileiro......................................................40
2.2 A APROXIMAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO COM O
MATERIALISMO. .................................................................................................................. 50
2.3 A RELAÇÃO ENTRE O MATERIALISMO DE FEUERBACH COM O
MATERIALISMO DO SERVIÇO SOCIAL ........................................................................... 57
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 61
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................... 65
9
INTRODUÇÃO
O interesse pelo tema religião vem há muito tempo acompanhando a pesquisadora. Já
no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Graduação em Filosofia, em 2012, o assunto
discutido também se dirigiu à mesma temática: a Religião; porém, o autor estudado foi
Rousseau1. A partir do ingresso no Curso de Graduação em Serviço Social, em 2013, o
interesse pelo tema se ampliou, uma vez que há uma relação entre a origem da profissão no
Brasil e a sua ligação aos princípios da Igreja Católica. No entanto, o interesse na temática
passou a ser principalmente a partir do modo como ocorreu o distanciamento dessa origem e a
aproximação com outras formas de atuação e intervenção advindas a partir do processo de
amadurecimento teórico da profissão.
Diante de diversas discussões durante as disciplinas do Curso de Graduação em
Serviço Social e após ler o livro A essência do cristianismo, do filósofo alemão Ludwig
Andreas Feuerbach, apresentado pelo professor Dr. Alfredo Batista a partir da proposta de um
Projeto de Iniciação Científica Voluntário2 (PICV/2015-16), ampliou-se o interesse de
aprofundar essa temática, o que contribuiu para o surgimento do problema da presente
pesquisa: é possível estabelecer uma relação entre a crítica de Feuerbach à religião,
especialmente na sua aproximação com o materialismo a partir da ruptura do aspecto religioso
do Serviço Social brasileiro e de seu Movimento de Reconceituação e aproximação com o
materialismo?
Deste modo, este TCC, que é requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em
Serviço Social, tem por objetivo geral analisar em que medida é possível estabelecer uma
relação entre a crítica à religião de Feuerbach e sua aproximação com o materialismo e o
processo de ruptura do aspecto religioso e do Movimento de Reconceituação do Serviço
Social no Brasil. Os objetivos específicos do TCC são: a) verificar o processo de construção
do pensamento de Feuerbach acerca de sua crítica à religião e sua aproximação com o
materialismo; e b) apreender os elementos de ruptura do Serviço Social com a perspectiva
religiosa e o modo como ocorreu sua aproximação com o materialismo.
Feuerbach foi um filósofo alemão, conhecido pelo seu materialismo antropológico e
pela influência que o seu pensamento exerceu sobre outro filósofo importante da humanidade
1 PICCININ, Alícia Beatriz Mallmann. Da possibilidade de uma educação religiosa em Rousseau. Trabalho
de Conclusão de Curso (Licenciatura em Filosofia). Centro de Ciências Humanas e Sociais. Universidade
Estadual do Oeste do Paraná – Campus Toledo-PR, 2012. 2 O PICV proposto pelo professor Dr. Alfredo Batista tinha como proposta “O estudo aproximativo da obra de
Feuerbach, A essência do cristianismo: A questão do ateísmo e a tomada de consciência de Classe”.
10
e também para o Serviço Social, Karl Marx. Muitos conceitos desenvolvidos por Feuerbach
foram apropriados e aprofundados por Marx. Um exemplo é o conceito de alienação: Marx,
ao apropriar-se de e deslocar a alienação para outras dimensões da vida em sociedade,
contribuiu para o desenvolvimento de sua teoria crítica. É de suma importância compreender
a relação e a influência do pensamento de Feuerbach sobre Marx para que seja possível
apreender a relação existente entre o materialismo de Feuerbach no processo histórico de
aproximação do Serviço Social com o materialismo histórico dialético de Marx.
A gênese do Serviço Social esteve vinculada a práticas ligadas à ação da Igreja
Católica, característica presente não só no Brasil, mas em grande parte do mundo. Desta
forma, o Serviço Social brasileiro em seu processo histórico perpassou diferentes formas de
atuação profissional. Isso se verifica através das primeiras ações que eram vinculadas às
instituições filantrópicas da Igreja Católica, na medida em que havia grupos sociais
organizados, em sua maioria, por moças católicas que realizavam ações de caráter
assistencialista, baseando-se nos princípios da moralidade e da solidariedade cristã. As ações
eram movidas pelo intuito de fazer o bem, na medida em que não havia nesse momento a
apreensão de que a Igreja havia perdido influência e que buscava em conjunto com o Estado
um espaço na sociedade brasileira. Assim como não havia nesse momento o entendimento da
questão social como uma consequência da contradição entre capital e trabalho, intrínseca ao
modo de produção capitalista.
Foi somente mais tarde, após a institucionalização do Serviço Social, que ocorreu a
aproximação teórica e científica, o que proporcionou a discussão e a superação dessa
perspectiva, na medida em que esta não era mais compatível com a atuação dos profissionais,
fazendo emergir outras formas de intervenção. Dentro dessas outras formas de intervenção
têm-se a perspectiva positivista e fenomenológica até a aproximação com o materialismo
histórico dialético de Marx que permanece hoje como a vertente hegemônica dentro da
categoria profissional. Esse processo proporcionou aos assistentes sociais – de forma lenta – a
compreensão da relação entre capital e trabalho, assim como houve nesse processo a
apreensão das expressões da questão social como sendo uma consequência inerente ao modo
de produção capitalista.
Portanto, o presente TCC apresenta uma primeira aproximação com o tema, o que
poderá contribuir para uma reflexão crítica acerca da gênese do Serviço Social e dos
caminhos teóricos percorridos pela profissão. É importante salientar ainda que, atualmente, a
temática da religião é pouco discutida pelos profissionais assistentes sociais, sendo, em partes,
11
considerada superada pela categoria profissional. Porém, este trabalho visa proporcionar
algumas reflexões e indagações acerca da religião e sua relação com a fundamentação teórica
da profissão/categoria.
Para Minayo (2013), o conhecimento baseia-se numa construção que se faz a partir de
outros conhecimentos sobre os quais se exercita a apreensão, a crítica e a dúvida. Deste modo,
a metodologia do presente trabalho consiste no caminho do pensamento e a prática exercida
na abordagem da realidade. Diante disso, o mesmo tem por base realizar uma pesquisa que
tem o método dialético de compreensão da realidade como pressuposto norteador de todo o
processo de investigação e de análise realizado. Esse método é o que melhor se identifica com
a investigação proposta, pois ele, “[...] implica sempre em uma revisão e em uma reflexão
crítica e totalizante porque submete à análise toda interpretação pré-existente sobre o objeto
de estudo” (MIOTO, 2007, p. 40). Assim, esse método procura analisar o objeto no âmbito de
sua totalidade e dinamicidade, dentro da perspectiva de suas múltiplas determinações e
contradições, na medida em que busca compreendê-lo inserido dentro de um processo
histórico.
A abordagem desta pesquisa é qualitativa, pois, de acordo com Minayo (1993), existe
um movimento acerca do “vivido”, ou seja, da “experiência”, “[...] que é captada não como
predicado de um objeto, mas como fluxo de cuja essência temos consciência em forma de
relembranças: atividades, motivações, valores e significados subjetivos” (MINAYO, 1993, p.
32). Assim, esta pesquisa busca salientar o movimento “vivido” da construção e do modo
como a religião se desenvolveu dentro da perspectiva de Feuerbach e do Serviço Social, bem
como de demonstrar em ambos o modo como se deu a aproximação com o materialismo e se é
possível a partir disso conceber a existência de uma relação.
A pesquisa se classifica como explicativa, porque visa a explicar a razão e o porquê
das coisas, aprofundando o conhecimento da realidade (GIL, 2008). Esse aprofundamento
ocorre na medida em que, ao fazer o resgate histórico da religião e trazer o significado
primário do seu uso, é possível identificar as mudanças ocorridas ao longo do
desenvolvimento da sociedade capitalista, constatando as metamorfoses no seu uso e em sua
interpretação. A partir disso também se busca apreender a relação que o Serviço Social tem
com a perspectiva religiosa e o modo como se deu seu distanciamento.
A pesquisa é bibliográfica, pois possui como fonte principal a utilização de
conhecimentos já produzidos e busca proporcionar o diálogo e a argumentação sobre o tema
com diferentes autores que discutem essa mesma temática.
12
Na busca de dar respostas à problemática e aos objetivos propostos, este TCC está
organizado em dois capítulos: o primeiro tratará sobre a compreensão da religião e a
fundamentação da crítica de Feuerbach à religião. Será desenvolvido a partir de autores como
Campos (1988, 2016), Feuerbach (1989, 2013), Schütz (2011), Engels (S/d), Frederico
(2009), Vázquez (2000), Tonet (2016), Lowy, Duménil e Renault (2015), Stepanha (2011),
Machado (2014), Huberman (1986), Carvalho (1980), Heller (1982) e Fassó (1998). Ainda
neste mesmo capítulo, buscar-se-á discutir a gênese do Serviço Social no mundo vinculado à
religião, de modo mais específico à religião Católica, tendo por referências os autores Castro
(2011), Huberman (1986), Netto (2001) e Simões (2005).
Para dar continuidade a essa reflexão, no segundo capítulo buscar-se-á a apreensão dos
elementos de ruptura do Serviço Social no Brasil com a perspectiva religiosa e o modo como
se desenvolveu a sua institucionalização, tendo por referências autores como Yazbek,
Martinelli e Raichelis (2008), Iamamoto (2012, 2013), Carvalho (1980, 2012), Brandão
(2006), Simionato (2011), Castro (2011), Bravo (2009), Behring e Boschetti (2011), Netto
(1996, 2011) e Yazbek (2009). Neste capítulo ainda, será tratada a aproximação do Serviço
Social brasileiro com o materialismo através dos autores Chauí (1999), Netto (2009, 2011),
Brandão (2006) e Mota (2014). No que se refere ao último ponto deste trabalho, estabelece-se
a relação existente entre o materialismo de Feuerbach com o materialismo presente no Serviço
Social, utilizando-nos dos autores Schütz (2011) e Lowy, Duménil e Renault (2015).
Desta forma, este trabalho é o início de uma investigação que a pesquisadora objetiva
continuar a aprofundar em especializações futuras. O assunto não se esgota ao fim deste
trabalho, assim, a pesquisadora tem ciência de que há muito mais o que aprofundar e que,
infelizmente o tempo e as páginas limitadas não permitem ir além do que se apresenta.
13
1 A CRÍTICA DE FEUERBACH À RELIGIÃO E SUA APROXIMAÇÃO COM O
MATERIALISMO
A religião é o suspiro da criatura aflita, o estado de ânimo de um mundo
sem coração porque é o espírito da situação sem espírito [...] (MARX, 1977, p. 2).
O mundo tem passado por profundas mudanças, as quais rebatem diretamente na vida
das pessoas, das profissões e em suas relações sociais. Deste modo, este capítulo tem por
objetivo realizar a contextualização histórica do filósofo alemão Ludwig Andreas Feuerbach,
para que seja possível compreender qual foi o contexto histórico em que viveu e quais as
influências que esse contexto proporcionou no desenvolvimento de suas ideias a respeito de
sua crítica acerca da religião. Após essa contextualização histórica, buscar-se-á desenvolver
qual é a sua crítica à religião e o que é a alienação religiosa.
Em seguida, será tratado sobre a aproximação do pensamento de Feuerbach com o
materialismo, ou seja, o modo como a partir de sua crítica à religião, suas ideias o guiaram
para o desenvolvimento do materialismo antropológico. E como último componente deste
capítulo, será desenvolvida, de forma breve, a trajetória do Serviço Social no mundo, a partir
da sua vinculação à religião.
1.1 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO AUTOR
A Europa no século XVII e XVIII foi marcada por profundas mudanças na esfera da
organização da sociedade. Mudanças que, segundo Campos (1988), alteraram a estrutura
global da civilização, não somente da Europa, como também do mundo. Foi um período
definido historicamente como o “século das Luzes”, quando a razão passa a se caracterizar
como a única forma de se aniquilar o obscurecimento e de atingir a vontade absoluta, o bem e
a liberdade. É a partir desse período, denominado historicamente como Renascimento3, que o
homem abandona as visões teocêntricas4 e passa a desenvolver o racionalismo, de modo a
substituir a religião pela ciência e os acontecimentos milagrosos por observações dos
fenômenos naturais. Diante das Revoluções ocorridas – Industrial (1640-1688) e Francesa
3 “O conceito de «Renascimento» significa um processo social total, estendendo-se da esfera social e econômica
a estrutura básica da sociedade foi afectada até ao domínio da cultura, envolvendo a vida de todos os dias e as
maneiras de pensar, as práticas morais e os ideais éticos quotidianos, as formas de consciência religiosa, a arte e
a ciência. [...] O Renascimento constituiu a primeira onda do adiado processo de transição do feudalismo para o
capitalismo” (HELLER, 1982, p. 9, 10). 4 Corresponde a uma doutrina ou crença em que se considera Deus como o centro de tudo.
14
(1789-1799) –, ocorre a adesão cada vez maior às ideias do Iluminismo5. Os filósofos
iluministas tiveram um papel importante nesse período, na medida em que suas ideias
ajudaram a impulsionar a Revolução Francesa, pois o seu pensamento os libertou de antigas
ideologias. Os filósofos iluministas acreditavam na libertação das mentes dominadas pelas
“trevas” da ignorância, defendiam que os governos eram uma criação dos homens e não de
Deus e davam importância às ações individuais, ao jusnaturalismo6 e aos indivíduos dotados
de liberdade7. Todas essas ideias serviram para que a burguesia
8 fosse contra o regime da
época – dominação do clero9 – e buscasse o progresso da humanidade ao elaborarem, a nível
teórico, um novo projeto social. Desse modo, compreender os processos de mudanças que se
iniciaram na Europa e que se espalharam pelo mundo moderno torna-se imprescindível para
que se possa entender qual é o espaço remanescente que a religião10
irá ocupar a partir dessas
transformações, uma vez que perde seu espaço central na sociedade.
5 Trata-se de um “Movimento filosófico, também conhecido como Esclarecimento, Ilustração ou Século das
Luzes, que se desenvolve particularmente na França, Alemanha e Inglaterra no século XVIII, caracterizando-se
pela defesa da ciência e da racionalidade crítica, contra a fé, a superstição e o dogma religioso. Na verdade, o
Iluminismo é muito mais do que um movimento filosófico, tendo uma dimensão literária, artística e política. No
plano político, o Iluminismo defende as liberdades individuais e os direitos do cidadão contra o autoritarismo e o
abuso do poder. Os iluministas consideravam que o homem poderia se emancipar através da razão e do saber, ao
qual todos deveriam ter livre acesso” (DICIONÁRIO BÁSICO DE FILOSOFIA, 2001, p. 100). 6 De acordo com Fassó (1998, p. 655-656, grifos do autor), “O Jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual
existe e pode ser conhecido um ‘direito natural’ (ius naturale), ou seja, um sistema de normas de conduta
intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito
natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve
prevalecer”. 7 “A liberdade (livre arbítrio) é inerente a todos os seres humanos. Do ponto de vista da liberdade como
possibilidade, portanto, nenhum homem pode ser comparado com outros – pois existe a mesma potencialidade
em ambos; só pode ser comparado com criaturas a quem falta essa potencialidade. O «homem» acaba por ser
contrastado com «os animais» - e por vezes, no outro extremo, com Deus, os deuses, os anjos, etc. O exame da
liberdade transforma-se, portanto, numa maneira de colocar questões que são prioritariamente antropológicas,
em vez de primariamente éticas, como sido para o cristianismo. [que] sublinhara em particular a capacidade de
os homens escolherem entre o bem e o mal. Durante o Renascimento, no entanto, esse par de alternativas, «bem»
e «mal», perdeu importância, transformando-se numa convicção de que os homens (ao contrário dos animais)
tinham todas as capacidades para escolher entre diferentes rumos de acção. Esta escolha podia, evidentemente,
ser uma escolha entre o bem e o mal, mas não estava necessariamente limitada a esta” (HELLER, 1982, p. 342,
grifos do autor). 8 “A filosofia burguesa dos séculos XVII e XVIII se caracteriza pelo seu caráter materialista, progressista e
revolucionário. A desagregação das relações feudais transforma essencialmente o fato religioso dentro da
sociedade. A ditadura espiritual da Igreja entra em derrocada. Os filósofos burgueses, tendo em vista o progresso
científico e técnico, passam a defender teses materialistas” (CAMPOS, 1988, p. 30). 9 “O clero e a nobreza constituíam as classes governantes. Controlavam a terra e o poder que delas provinha. A
Igreja prestava ajuda espiritual, enquanto a nobreza, proteção militar. Em troca exigiam pagamento das classes
trabalhadoras, sob a forma de cultivo das terras” (HUBERMAN, 1986, p. 15). 10
“A Igreja constituía uma organização que se estendeu por todo o mundo cristão, mais poderosa, maior, mais
antiga e duradoura que qualquer coroa. Tratava-se de uma era religiosa e a Igreja, sem dúvida, tinha um poder e
prestígio espiritual tremendos. Mas, além disso, tinha riqueza, no único sentido que prevalecia na época – em
terras. A Igreja foi a maior proprietária de terras no período feudal. Homens preocupados com a espécie de vida
que tinham levado, e desejosos de passar para o lado direito de Deus antes de morrer, doavam terras à Igreja;
outras pessoas, achavam que a Igreja realizava uma grande obra de assistência aos doentes e aos pobres,
15
É a partir desse contexto que o filósofo alemão Ludwig Andreas Feuerbach irá
desenvolver a sua crítica à religião, na medida em que, após essas transformações –
relacionadas à nova forma de entender e conceber o mundo, a natureza, o ser humano e
também o não centralismo da Igreja/Religião – a religião adquire uma nova forma de
existência e dominação11
na sociedade. Feuerbach nasceu em 1804 e faleceu em 1872, foi
aluno de Hegel12
e professor na Universidade de Erlangen-Nuremberg, Alemanha, tendo sua
carreira universitária interrompida devido à hostilidade provocada por suas ideias a respeito
da religião exposta em seus primeiros trabalhos. Tornou-se conhecido pelo seu estudo da
teologia humana e buscou o fundamento antropológico da religião (Feuerbach, 1989).
“Feuerbach soube trazer para o mundo sensível do dia-a-dia o fundamento humano de fatos e
idéias que, antes, eram explicados pela religião ou pelo idealismo abstrato. Propôs-se a
mostrar que a história é o processo de humanização do homem e não teodicéia” (SCHÜTZ,
2001, p. 19). Desse modo, inicialmente Feuerbach fora um hegeliano convicto, tornando-se
com o passar do tempo um combatente enérgico dessa corrente filosófica.
Assim, a partir dessa nova estrutura de organização da sociedade, resultado das
profundas mudanças, principalmente, com o espraiamento das ideias iluministas, o homem
começou a desmistificar a ideia da existência de Deus como sendo o centro do mundo e
passou a ocupar essa centralidade. É através desse contexto e desse movimento de
transformações que vai emergir a crítica de Feuerbach à religião, na medida em que, de
acordo com Schütz (2001, p. 13), “O conhecimento de Deus passa [...] a ser o conhecimento
do próprio homem”.
desejando ajudá-la nessa tarefa, davam-lhe terras; alguns nobres e reis criaram o hábito de, sempre que venciam
uma guerra e se apoderavam das terras do inimigo, doar parte dela à Igreja; por esse e por outros meios a Igreja
aumentava suas terras, até que se tornou proprietária de entre um terço a metade de todas as terras da Europa
ocidental” (HUBERMAN, 1986, p. 13). 11
Antes dessas transformações, a posição da Igreja era: “Se alguém obtivesse numa transação mais do que o
devido estaria prejudicando a outrem, e isso estava errado. Embora se admitisse, com relutância, que o comércio
era útil, os comerciantes não tinham o direito de obter numa transação mais do que o justo pelo seu trabalho. [...]
emprestar dinheiro e receber de volta não apenas o total emprestado, mas também um juro fixo, significava a
possibilidade de viver sem trabalhar – o que estava errado” (HUBERMAN, 1986, p. 38-39). Deste modo, na
medida em que a sociedade foi se transformando e adquirindo nova fase de desenvolvimento, a Igreja aos poucos
deixou que a prática comercial predominasse para atender as novas condições. Alterando sua forma de
dominação. 12
Segundo o dicionário básico de filosofia (2001), Georg Wilhelm Friedrich Hegel foi um filósofo alemão que
nasceu em 1770 em Berlim e faleceu em 1831. É considerado um dos mais importantes e influentes filósofos da
história. Pode ser incluído naquilo que se chamou de Idealismo Alemão, uma espécie de movimento filosófico
marcado por intensas discussões filosóficas entre pensadores do final do século XVIII e início do XIX. Ele
acreditava na matéria, mas é a matéria na qual o pensamento a muda, ou seja, é de dentro para fora. Trata-se do
pensamento que tem a força sobre a matéria e não a matéria que vai possibilitar a construção do pensamento.
Nesse sentido, ele é considerado um idealista. Será neste viés que Feuerbach vai inicialmente concordar com
suas ideias, para depois começar a combatê-las, visto que após aprofundar seus estudos passará a não concordar
mais com esse raciocínio.
16
1.2 O PENSAMENTO DE FEUERBACH ACERCA DA RELIGIÃO E SUA CRÍTICA
Em 1841, Feuerbach publicou o livro A Essência do Cristianismo13
que, segundo
Schütz (2001), contém uma crítica radical à teologia e também à busca pelos fundamentos
antropológicos da religião. Apesar de sua crítica, a intenção de Feuerbach não foi a de destruir
o princípio da religião, mas sim redescobri-la em sua essência. Buscou compreender quais são
as contradições das premissas religiosas, demostrando a sua importância histórica e que ela
tem muito a ensinar, até porque a maior parte dos livros religiosos existentes são históricos e
carregam consigo grandes significados no percurso da humanidade. Após a publicação de seu
livro, Feuerbach recebeu algumas críticas – que não cabem serem mencionadas aqui –, que
rebateram no desenvolvimento intelectual de outros filósofos importantes da história da
humanidade. Um exemplo de sua influência é que foi através da leitura desse livro que o
filósofo alemão Karl Marx iria mais tarde desenvolver o seu método dialético14
. De acordo
com Schütz (2001, p. 31), “[...] a crítica da religião de Feuerbach é análoga àquela utilizada
por Marx, para criticar a sociedade capitalista”.
No tocante à gênese da palavra religião15
, o filósofo Engels16
, a partir da leitura do
livro de Feuerbach, irá caracterizar o significado originário da palavra religião como:
[...] vem de ‘religare’ e, por sua origem, significa união. Toda união de dois
seres humanos é, pois, uma religião. [...]. Pretende-se que tenha valor, não o
que as palavras significam segundo o desenvolvimento histórico do seu
emprego real, mas o significado que deveria ter por sua origem (ENGELS,
s/d, p. 187).
13
Neste trabalho todas as vezes em que for mencionado o livro de Feuerbach será referente à sua obra A
Essência do Cristianismo. FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Tradução e notas de José da
Silva Brandão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. 14
“Diferente das demais formas de materialismo, o materialismo dialético emprega o método dialético para
estudar a natureza em geral. [...] admite que os fenômenos são processos e não coisas perfeitas e acabadas. [...] O
método dialético e o materialismo filosófico se encontram intimamente ligados e constituem uma concepção
filosófica coerente. [...] foi elaborado por Marx e Engels na década de [18]40 do século passado e se
desenvolveu em estreita relação com o movimento proletário revolucionário. [...] O traço mais característico [...]
é seu espírito crítico revolucionário. [...] a teoria e a prática estão intimamente ligadas, é sua expressão mais
elevada. Por meio da atividade prática se demonstra a exatidão dos princípios teóricos” (CAMPOS, 1988, p. 53,
grifos do autor). 15
“De acordo com os pensamentos de Feuerbach, entendemos aqui por religião, toda e qualquer manifestação de
culto a seres que escapam do natural, seja a própria natureza deificada como no caso do panteísmo e das
religiões naturais; ou seres antropomórficos universalizados como no caso, por exemplo do cristianismo. A
religião entendida aqui é como um primeiro estágio do que vem a ser a religião organizada com doutrinas
elaboradas” (MACHADO, 2014, p. 16). 16
Segundo o dicionário básico de filosofia (2001), Friedrich Engels foi um filósofo alemão que nasceu em 1820
e faleceu em 1895. Frequentou a Universidade de Berlin, onde se ligou aos “jovens hegelianos”. Dedicou-se a
inúmeras atividades e foi colaborador teórico de Marx, além de amigo íntimo. É difícil separar suas obras, uma
vez que ele e Marx escreviam quase tudo juntos.
17
Desta forma, fica evidenciado, a partir de uma contribuição de Engels, o ponto de
partida de Feuerbach ao que significa a palavra religião dentro de seus parâmetros. Assim,
apesar de seu uso ter perdido o seu significado originário, já que o sentido de uma palavra está
em seu uso na linguagem, tem-se neste momento a primeira crítica de Feuerbach à religião.
Para Feuerbach, na perspectiva teológica17
, a religião perde o movimento originário, não no
sentido de ligar algo a algo, mas no sentido de esta ligação não ser mais algo material a algo
material, mas sim algo na materialidade a algo na metafísica18
, ou seja, ao sobrenatural. Nesse
sentido, a teologia apresenta a existência de um Deus como um ser exterior e diverso do
homem. Logo, dá-se início a uma religião fundada nos pressupostos do entendimento do
próprio homem, na medida em que transporta para fora de si, a um ser extraterreno, suas
crenças, medos e inseguranças. Com isso, passa a conceber a existência de um Ser que reside
fora de si, condição esta que acaba transformando no seu uso cotidiano a originalidade da
gênese da palavra religião que Feuerbach pretende caracterizar e criticar em seu livro. É nesse
sentido que
O homem retira de si a sua essência mais elevada e mais nobre para adorá-la
fora de si como Deus. Tudo que existe no homem de bom, de construtivo,
mas de modo imperfeito (porque o homem é imperfeito), existe em Deus de
maneira absoluta, perfeita, eterna. Por isso, é Deus a suma perfeição, o
exemplo dos exemplos, pois Ele é tudo que o homem deseja ser e não é
(FEUERBACH, 2013, p. 7).
O autor busca o significado originário da palavra religião, para desvelar a forma
equivocada como essa concepção ganhou espaço e se transformou no contexto das relações
sociais. Tal concepção, ao distanciar-se de sua gênese, acaba por estimular muitas pessoas a
crerem em um sujeito sobrenatural que foi determinado e construído historicamente pelos
próprios homens. Essa construção adquire sentido e ganha espaço somente pela força social
de grande parte das pessoas que acreditavam na existência de um Ser a partir de fundamentos
estabelecidos culturalmente, sendo essa crença retransmitida ao longo da história da
humanidade. Diante disso, as pessoas não se questionam mais sobre a própria essência da
palavra e seu significado, nem mesmo refletem acerca da origem ou sobre a existência ou não
17
De acordo com o dicionário básico de filosofia (2001), teologia significa o estudo ou a ciência de Deus, que
investiga tudo o que diz respeito a Deus e à fé. Interessa-se também pelo papel dos homens na história e pela
moral. Apoia-se no que considera ser a palavra de Deus efetivamente, ou seja, nos textos da Bíblia. 18
De acordo com Campos (1988), o método metafísico explica-se por si mesmo, isto é, significa que os
fenômenos são considerados coisas perfeitas e acabadas. Também pode ser definido literalmente como "após a
física", e passando a significar depois “aquilo que está além da física, que a transcende”.
18
de um ser extraterreno. Elas simplesmente acreditam porque é cultural e está naturalizada no
contexto das relações sociais. As pessoas entendem que tem sido dessa forma há muito tempo,
logo acabam reforçando essa concepção sem refletir e pensar criticamente a respeito disso.
Nesse sentido, depositam nessa construção social todas as suas fraquezas, medos, esperanças
e alegrias. Fazendo isso, muitas pessoas, dentro dessa forma de pensar, eximem-se da
responsabilidade de suas próprias ações, como se não estivessem no controle de suas próprias
vidas, já que tudo estaria sob o controle desse Ser metafisico extraterreno. Feuerbach crítica o
desenvolvimento desse pensamento dos homens, uma vez que afirma: “[...] o Deus do homem
é a sua própria essência [...]” (FEUERBACH, 2013, p. 38). Logo, a existência de um Ser para
além do plano material do próprio homem é uma ilusão.
De acordo com Feuerbach (2013), o que diferencia os homens dos animais é a
consciência, que supõe um ser capaz de ter a si mesmo como objeto enquanto espécie ou
gênero. Nesse sentido, é somente através da consciência que se tem a faculdade para atingir o
conhecimento. Desse modo, Feuerbach (2013) afirma que todo o conhecimento que o homem
tem de Deus é o conhecimento que ele tem de si mesmo, ou seja, que a religião é o reflexo do
próprio ser humano, logo, algo material. O homem, por ter consciência, pode se reconhecer e
se afirmar no outro, percebendo-se a si mesmo enquanto espécie. Por outro lado, a teologia
apresenta Deus como um ser exterior e diverso do homem. “Se o homem passasse a acreditar
um pouco mais em si mesmo ao invés de acreditar em deuses – diz ele – teríamos certamente
um mundo muito melhor” (FEUERBACH, 2013, p. 10). Desse modo, pode-se notar que o
problema não reside apenas em acreditar em um Ser extraterreno exterior ao homem, mas
também no distanciamento que esse Ser externo – que supostamente existe – criado pelo
homem como sendo outro sujeito fora e separado dele, causa nas relações sociais, assim como
da idealização de um Ser superior que dita regras a serem seguidas acima dos desejos
essenciais do próprio homem, pois:
Se o mais importante é então ser bom, podemos abraçar a bondade
independente de Deus, mas se o mais importante é seguirmos a Deus,
poderemos adorá-lo e cultuá-lo independentemente da bondade, o que a
história mostra em todas as suas páginas através das crueldades praticadas
pelo fanatismo religioso (FEUERBACH, 2013, p. 9).
Assim, de acordo com Feuerbach (2013), a partir do momento em que os homens
inventam/criam um Ser sobrenatural – dentre as inúmeras religiões existentes – sendo este
responsável pela criação de tudo, de todos e do mundo, e que as pessoas lhe devem
19
obediência em função disso, muitos valores se perdem nas relações entre os homens. Isso
ocorre porque esse Deus torna-se, acima de tudo, mais importante que qualquer relação
existente entre esses homens. Nesse sentido, não importa mais fazer o bem pelo próprio bem
porque isso é a coisa certa a se fazer, mas sim fazer o bem porque dentro desse modo de
pensar – historicamente construído –, existe um sujeito sobrenatural que tudo vê e que um dia
irá julgar a todos. Por esta razão, dentro dessa lógica, é preciso bem agir em virtude desse
anseio e não pela própria ação de fazer o bem ao próximo porque isso é o certo. Não ocorre o
questionamento a respeito de como esse Ser sobrenatural ditou essas regras, ou por qual
motivo as fez como fez, ou sob que padrões isso é caracterizado como certo ou errado.
É diante desse contexto, que, dentro da concepção teológica, o homem deposita todas
as suas impossibilidades e incapacidades de perfeição nessa concepção de um Deus ou um Ser
perfeito que existe em algum lugar, que é externo e diferente dele. Desse modo, os homens
não conseguem perceber e/ou conceber que a essência da religião não é algo separado da
essência humana. “Deus é, pois, como um postulado gratuito e incondicionado no qual a razão
descansa da sua angústia perante o infinito” (FEUERBACH, 2013, p. 9). Ou seja, tudo aquilo
que o homem não consegue dar conta de explicar por si mesmo, racionalmente, é depositado
nessa construção de um Deus, que tudo sabe e que tudo vê. Assim, se ao homem é possível
conceber a ideia de perfeição, e ele não consegue atingi-la, há de haver alguém que a alcance,
pressupondo ser este, Deus.
Segundo Feuerbach (2013), a religião historicamente construída e transformada pelos
sujeitos sociais – a qual delega tudo a Deus, porque não questiona, pois foi estabelecido,
culturalmente, e naturalizado que é assim, que não há o que questionar e nem há como sair
dessa ideologia – traz consigo a lógica de alienação19
, uma vez que o que ocorreu foi o
distanciamento da gênese e não há a busca pela sua origem e nem o questionamento e a
reflexão a respeito disso.
Assim, pode-se caracterizar outra crítica à religião na concepção de Feuerbach, para
além da alteração de seu significado enquanto palavra. A crítica de Feuerbach alcança
também a transformação da definição de religião e sua mudança estrutural nas relações
sociais, a partir do momento em que o homem passa a fantasiar a existência de um ser
metafísico (ideal) fora de si para confortar suas angústias e sofrimentos.
19
“Feuerbach, ao criticar a alienação religiosa, delineou uma estrutura crítica muito convincente. Segundo ele,
somente o ser humano, por suas características peculiares, enquanto ser genérico, pode ter religião. Sendo que a
religião é possibilitada pelo não reconhecimento dessa essência genérica como sendo sua. Por isto, quando o ser
humano reconhece os atributos religiosos como sendo seus estará se libertando de um estranhamento produzido
por ele mesmo” (SCHÜTZ, 2001, p. 9).
20
A partir desse entendimento, de acordo com Campos (1988), é importante ressaltar
que o espaço que constitui o idealismo divide-se em duas correntes que são definidas por
Hegel: o idealismo subjetivo e o idealismo objetivo. O primeiro reconhece como sustentação
de tudo o que existe, a sensação, a representação e a consciência individual; trata-se da
doutrina que nega o mundo material e alega que nada existe no mundo além do homem e de
sua consciência. Nesse sentido, o conhecimento humano termina na esfera da consciência
individual. O segundo, idealismo objetivo, sustenta que tudo o que existe no mundo é
produto de uma consciência absoluta e de um espírito superior, que se encontram fora do
mundo material, atribuindo-lhe qualidades divinas. Nesse sentido, Feuerbach (2013),
desenvolve suas ideias em oposição à essa perspectiva de Hegel, uma vez que nada existe
para além da materialidade do homem, ou seja, busca desvelar o misticismo da religião, em
especial a cristã, que é justificada para ele enquanto o resultado da essência do próprio
homem e que não possui nada para além da matéria.
Um dia o homem descobrirá que ele adorou a sua própria essência, que criou em
sua fantasia um ser semelhante a si, mas infinitamente mais perfeito, que está
sempre pronto para lhe oferecer consolo no sofrimento e proteção nos
momentos mais difíceis e angustiantes da existência. A religião será então
substituída pela cultura, pela ética, pelo humanismo, porque só a cultura pode
unir os homens, não a religião. A fé, a religião, separa, cria cisões entre os
homens devido à rivalidade entre as diversas seitas (FEUERBACH, 2013, p. 9).
Deste modo, segundo Feuerbach (2013), a crítica à religião, a forma como se expressa
e se apresenta no contexto social – perdendo seu sentido originário – transformou-a em algo
difuso e deturpado, na medida em que até mesmo os teólogos não sabem mais o seu sentido
originário, o que vai se caracterizando e se apresentando como alienação religiosa.
1.2.1 Alienação Religiosa
Conforme Lowy, Duménil e Renault (2015), a alienação constitui-se num conceito
utilizado primordialmente por Hegel e Feuerbach. Deste modo, cabe salientar que é possível
estabelecer algumas características de toda forma de alienação:
[...] a) O sujeito é ativo e com sua atividade cria o objeto; b) O objeto é um
produto seu, mas, no entanto, o sujeito não se reconhece nele; lhe é estranho,
alheio; e c) O objeto obtém um poder que por si não tem e se volta contra o
sujeito, domina-o, convertendo-o em predicado (VÁZQUEZ, 2007, p. 90).
21
Ainda no que se refere à alienação, segundo Tonet (2016, p. 82), desenvolve-se
também por meio de “[...] um processo social, certamente não intencional, através do qual,
determinados poderes, próprios de seres humanos, são atribuídos a coisas ou entidades não
humanas”. Assim, pode-se destacar a forte presença da alienação no contexto das religiões,
uma vez que as pessoas passam a acreditar na existência de um ser divino, sem compreender
que isso é o reflexo delas mesmas, ou ainda, por não se questionam sobre a real existência
desse ser divino.
Assim, de acordo com Vázquez (2000, p. 89), por religião pode-se compreender a fé
ou a crença “[...] na existência de forças sobrenaturais ou num ser transcendente e sobre-
humano, todo-poderoso (ou Deus), com o qual o homem está em relação ou está religado”.
Deste modo, a religião se caracteriza: “[...] a) pelo sentimento de dependência do homem com
respeito a Deus; b) pela garantia de salvação dos males terrenos que a religião oferece ao
homem no outro mundo” (VÁZQUEZ, 2000, p. 89). Assim, de modo geral a religião funda-se
em princípios que imprimem uma relação histórica com o processo de construção da
humanidade, na medida em que tem como um de seus objetivos confortar as angústias e
inquietações humanas. Essa construção histórica tende a afastar o homem do significado
desenvolvido por Feuerbach acerca da religião, desencadeando a alienação religiosa, na
medida em que os homens não conseguem refletir acerca do real significado da existência de
um ser sobrenatural, ou ainda, se é possível tal existência ou não. Nesse sentido, a religião
transformou-se:
[...] num instrumento de conformismo, resignação ou conservadorismo: isto
é, de renúncia à luta por transformar realmente este mundo terreno. E tal é a
função que a religião desempenhou historicamente durante séculos,
colocando-se, como ideologia, a serviço da classe dominante (VÁZQUEZ,
2000, p. 90).
Assim, segundo Stepanha (2011), a religião possui uma dupla essência: sendo
caracterizada uma como verdadeira e outra como falsa:
A verdadeira essência é a essência antropológica. Basta olhar para a religião
para conhecermos a humanidade. Para promover estudos antropológicos não
é necessário outra coisa a não ser a arqueologia religiosa. Assim sendo, não
podemos negar que, neste aspecto, a religião é profundamente verdadeira. A
falsa essência [...] é a alienação. A religião aliena o homem de si mesmo. O
homem cria um ente imaginário que congrega a essência do gênero humano,
os seus anseios, perfeições e desejos. Em seguida, não percebe que este ser
22
que congrega a essência do gênero humano não existe independentemente da
humanidade, ou seja, passa a acreditar em Deus como ser real e não como
ficção da própria imaginação. E ainda tem mais, o homem submete-se à sua
criatura (STEPANHA, 2011, p. 57).
Cabe relembrar que foi a partir da ascensão das ideias Iluministas que a religião, aos
poucos, foi perdendo ainda mais espaço na sociedade. A alienação religiosa ainda é algo vivo,
mas pode-se constatar que, com o desenvolvimento do homem, ela se reduziu, perdeu
centralidade. Enquanto isso, é possível identificar que a categoria alienação, em si, descolou-
se também para outras dimensões da vida em sociedade. De acordo com Stepanha (2011), a
superação da alienação religiosa, dentro da perspectiva de Feuerbach, dar-se-ia pelo viés
teórico, na medida em que:
A verdadeira teoria é o próprio da consciência que se opõe à alienação.
Teoria e alienação são inconciliáveis, não é possível a convivência entre
Deus e a teoria: um dos dois tem que ser expulso. Deus habita, com total
desenvoltura, na consciência desértica, sem teoria. [...] O religioso é
profundamente egoísta, está apenas preocupado consigo mesmo e com a
própria salvação; o teórico esquece de si e se preocupa com a natureza, com
as coisas fora de si. Essa atitude egoísta do religioso não lhe permite
vislumbrar a verdadeira realidade e nem a sua própria essência
(STEPANHA, 2011, p. 63-64).
Desta forma, pode-se concluir que a religião é criada pelos homens, que é um produto
histórico e que, a partir do momento em que ocorreu a aproximação com as teorias –
impulsionadas com as Revoluções Industrial e Francesa –, começou-se a pensar
racionalmente sobre a concepção religiosa. De acordo com Stepanha (2011), parte-se do
entendimento de que a realidade e a verdade estão no mundo e não no pensamento, ou seja,
deve-se partir da concepção de materialidade do mundo para compreender o modo como as
coisas acontecem nas relações sociais e na sociedade. Diante disso, cabe salientar que a crítica
construída por Feuerbach à religião relaciona-se também a esse entendimento, pois o autor ao
desenvolver sua antropologia religiosa constatou que nada existe para além da materialidade
do homem, ou seja, a religião pode ser compreendida “[...] como uma produção da
consciência humana, um fenômeno ideológico amplo, com causas materiais por ele [homem]
desconhecidas, mas que envolvem profundamente a consciência dos indivíduos”
(FREDERICO, 2009, p. 188).
23
1.3 A APROXIMAÇÃO DO PENSAMENTO DE FEUERBACH COM O MATERIALISMO
De acordo com Campos (1988), com a publicação do livro de Feuerbach, ele é
considerado como o único filósofo com uma atividade crítica frente à dialética hegeliana.
Deste modo, irá opor-se a Hegel, tornando-se um materialista, uma vez que em seu livro
fundamenta que nada existe para além da materialidade do próprio homem, sendo a criação de
um Ser sobrenatural resultado da imaginação humana frente às suas limitações. Nesse sentido,
o materialismo de Feuerbach, em um primeiro momento, aproxima-se do materialismo
mecanicista do século XVIII, que se sustenta a partir de dados da psicologia e da fisiologia.
Esse materialismo “[...] considerava a consciência e o pensamento como matéria. E, sendo
assim, afirmavam que o cérebro segregava o pensamento como o fígado segregava a bílis”
(CAMPOS, 2016, Módulo 13, p. 2). Portanto, a consciência e o pensamento estavam
intrinsecamente ligados, como um movimento natural. O homem assemelhava-se a uma
máquina que é criada, utilizada e por fim estraga e perde sua serventia como um processo
natural mecânico. Dessa maneira, não há como escapar dessa lógica porque se concebe que é
naturalmente assim. A limitação específica do materialismo – de ter um começo, meio e fim –
constituiu-se, nesse momento, como a sua incapacidade de apreender o mundo como um
processo em constante desenvolvimento e construção e não sendo algo dado e acabado.
Com o surgimento do livro de Feuerbach, como já mencionado anteriormente, surgem
alguns filósofos importantes da história que trazem algumas críticas e contribuições ao
pensamento de Feuerbach, na medida em que para Engels, Feuerbach vai dar início a uma
nova concepção de mundo ao aprofundar seus estudos e conceber que:
A natureza existe independente de toda filosofia, ela constitui a base sobre a
qual os homens crescem e se desenvolvem, como produto da natureza que
são; nada existe fora da natureza e dos homens; e os entes superiores, criados
por nossa imaginação religiosa, nada mais são que outros tantos reflexos
fantásticos de nossa própria essência. Quebra-se o encantamento: o ‘sistema’
salva em pedaços e era posto de lado – e a construção ficava resolvida, pois
existia apenas na imaginação (ENGELS, s/d p. 177).
Assim, conforme Engels (s/d), compreende-se que a natureza estava envolvida em um
movimento eterno independente, que precede a existência do ser humano. Considera-se
Feuerbach o responsável por essa nova compreensão, porque anteriormente à publicação de
seu livro não havia esse entendimento por parte de outros filósofos, pois, a natureza era
considerada como algo separado e diverso do homem. Isso ocorria porque não havia o
24
entendimento dela enquanto um processo inacabado, sempre em construção, em movimento e
em relação direta com o próprio homem, uma vez que essa relação ocorre porque se retiram
da natureza todos os elementos necessários para a sobrevivência humana. Deste modo,
A natureza para Feuerbach não pode ser explicada a partir da criação divina,
pois não há lógica em se gerar algo material a partir da arbitrariedade ou
abstração. Portanto, a natureza como tal não é explicada por pensamentos, ela
é em si mesma, e ainda, é a base da existência de tudo que é racional. Para
Feuerbach, a natureza é causa, incriada, base de toda a vida, não precisa de um
deus ou mesmo do homem para existir, pois age por suas próprias leis,
independente da vontade humana e/ou divina (MACHADO, 2014, p. 23).
Deste modo, surge a questão: por que o homem cria as religiões? Segundo Machado
(2014, p. 16), “[...] a religião é a primeira forma de entendimento que o homem tem de si e do
mundo [...], o sentimento particular e subjetivo da religião é uma forma de entendermos o
mundo em que vivemos e aplacar o medo do que não conhecemos ainda”. Deste modo, a
necessidade do homem de justificar e entender sua existência no mundo e de criar algo
metafísico exterior ao próprio homem surge devido ao sentimento religioso20
que traz consigo
um elemento essencial: a dependência21
.
Sentimento de dependência ou finitude são então o mesmo sentimento. Mas
o sentimento de finitude mais delicado, mais doloroso para o homem, é o
sentimento ou a consciência de que ele um dia acaba, de que ele morre. Se o
homem não morresse, se vivesse eternamente, não existiria religião. [...]
somente o túmulo do homem é o berço dos deuses (FEUERBACH, 1989, p.
46-47).
Deste modo, o homem passa a depositar seus anseios em algo metafísico, sem que haja
como comprovar sua existência ou não. Entretanto, mesmo podendo ser comprovada a sua
inexistência fisicamente, as pessoas não deixam de acreditar em um Deus, pois afirmam senti-lo.
E, diante disso, como é possível verificá-lo? Feuerbach não pretende suprimir a religião, o que
deseja é completá-la, é desvelar sua origem, é justificar da onde vem essa necessidade de
20
De acordo com Machado (2014, p. 17), “Feuerbach também aborda outro sentimento que funciona para
explicar a necessidade do homem religioso diante do que não consegue explicar, em um primeiro momento, por
vias naturais. Em verdade, esse sentimento é, de certa forma, uma consequência do medo que é a ‘gratidão’.
Toda vez que um religioso (tanto nas religiões primitivas quanto nas mais atuais) alcança seu objetivo, fica grato
e faz oferenda aos deuses que cultua, desta forma atribuem o sucesso de uma colheita bem-sucedida ou a
passagem tranquila por um rio caudaloso à sua ‘boa relação’ com os deuses”. 21
“Dependemos da natureza para existir, ela é o único ser capaz de dar, manter e nos tirar a vida. Somos
dependentes pelo fato de sermos finitos, seres de carências e necessidades. A dependência e, por conseguinte, a
finitude são as maiores causas para que o homem crie religiões” (MACHADO, 2014, p. 17).
25
existência de um ser metafísico e demonstrar que isso é gerado pelo próprio homem, de modo a
desconstruir a forma equivocada como a religião tem-se manifestado em meio às relações sociais.
[...] a religião é a relação sentimental, a relação do coração de homem para
homem, que até agora procurava sua verdade numa imagem fantástica da
religião da realidade – por intermédio de um ou muitos deuses, imagens
fantásticas das qualidades humanas – e agora a encontra, diretamente, sem
intermédio, no amor entre Eu e Tu (ENGELS, s/d, p. 186).
Assim, pode-se notar, conforme Machado (2014), que, em meio à sociabilidade dos
homens, a religião se torna algo diverso e mais complexo na medida em que ultrapassa o seu
sentido original de religar o homem a si mesmo e acaba por se transformar em doutrina –
teologia – de onde começam a se manifestar os problemas das religiões.
Do ponto de vista da filosofia de Feuerbach, o que temos aqui é uma
inversão da criação: se antes o homem criava seus deuses e empregava
características suas ou sentimentos humanos neles (mesmo que
inconscientemente), já a teologia cristã promove um deus que transfere suas
características ao homem. Melhor dizendo: se antes o homem criava deus à
sua imagem e semelhança, agora [com a teologia cristã] é o contrário
(MACHADO, 2014, p. 21).
Assim, a religião passa a ser expressa não conforme o sentimento individual de cada
sujeito, mas sim imposta por construções históricas determinadas. As religiões existem na
proporção em que são úteis ao homem e ao seu contexto. “Os sentimentos de dependência,
medo, gratidão demonstram que o homem cria e cultua deuses ou elementos da natureza a
partir do momento em que esses possam lhe oferecer algum tipo de vantagem” (MACHADO,
2014, p. 17). Todos os homens possuem limites inerentes à espécie humana e o surgimento de
um ser superior ocorre porque é transferido a ele tudo aquilo que ao homem é impossível
alcançar. Assim, pode-se afirmar que “[...] o segredo da teologia é a antropologia”
(FEUERBACH, 2013, p. 14).
[...] a única coisa que podes objetivar, declarar como infinita, definir como
sua essência, é apenas a natureza do sentimento. Não tens aqui outra
definição de Deus a não ser esta: Deus é o sentimento puro, iluminado, livre.
Qualquer outro Deus que estabeleceres aqui é um Deus que chega
empurrando, vindo de fora do teu sentimento. O sentimento é ateu no
sentido da crença ortodoxa que como tal associa a religião a um objeto
exterior; o sentimento nega um Deus objetivo – ele é um Deus por si mesmo
(FEUERBACH, 2013, p. 43, grifos do autor).
26
Todas as pessoas são capazes de sentir felicidade, amor, tristeza, angústia, desespero,
dor, medo e insegurança. Todos esses sentimentos são inerentes ao próprio homem, mas não
são facilmente justificáveis ou explicáveis. Sentir-se feliz é algo maravilhoso e sentir-se triste
é algo perturbador. Contudo, ao não entender e conseguir explicar a origem desses
sentimentos, o homem acaba por vinculá-los a algo exterior a ele, sobrenatural.
Se é o sentimento o órgão essencial da religião, então nada mais expressa a
essência de Deus a não ser a essência do sentimento. O sentido verdadeiro,
mas oculto, da afirmação “o sentimento é o órgão da divindade” é: o
sentimento é o que há de mais nobre, de mais excelente, i.e., do divino do
homem. Como poderia perceber a divindade através do sentimento se o
sentimento não fosse por si mesmo de natureza divina? O divino só pode ser
conhecido pelo divino, “Deus só pode ser conhecido por si mesmo”. A
essência divina que o sentimento percebe é em verdade apenas a essência do
sentimento arrebatada e encantada consigo mesmo – o sentimento
empregado de amor e felicidade (FEUERBACH, 2013, p. 41-43).
O que Feuerbach faz em seu livro é mostrar os fundamentos e a origem do que foi
difundido de modo equivocado na sociedade a respeito da religião e que no seu
desenvolvimento vai se estruturando, modificando-se através do seu uso até perder a sua
originalidade. Isso ocorre em dois sentidos: 1) a palavra religião, que originalmente
significava ligar algo material a algo material, passa a ligar algo material a algo na metafísica;
e 2) que ocorreu a transformação, no seu uso da sua definição e mudança estrutural nas
relações sociais, a partir do momento em que o homem passa a fantasiar a existência de um
ser metafísico (ideal) fora de si para confortar suas angústias e sofrimentos. De acordo com
Campos (2016), Feuerbach resgata a gênese da religião e através disso vai desenvolver a ideia
do materialismo antropológico, refutando o sobrenatural, ou seja, “[...] o indivíduo anseia por
ser feliz e constrói uma felicidade eterna e espiritual, fora desse mundo; deseja ser imortal, daí
constrói uma vida imortal; deseja a perfeição, daí cria um Ser perfeito” (CAMPOS, 2016,
Módulo 11, p. 1). Deste modo, não existe algo fora do ser humano como é descrito e
identificado pela Teologia22
, mas sim que esse Ser que é materializado como real e concreto
pelos homens com uma existência fora deles é na verdade o reflexo ilusório do próprio
homem. Desta forma, “O ser absoluto, o Deus do homem é a sua própria essência. O poder do
objeto sobre ele é, portanto, o poder da sua própria essência” (FEUERBACH, 2013, p. 38).
Nada existe fora da materialidade do homem, o autor fundamenta a materialidade da
22
Verificar nota de rodapé número 17.
27
existência do homem e caracteriza a existência de um ser metafisico como consequência da
imaginação do ser humano e não como algo que realmente existe.
Segundo Feuerbach (2013), o homem cria um ser idealmente para justificar suas
fraquezas e inquietações. Esse Deus criado pelos homens ganha muita força e um grande
significado no contexto social, tornando-se um instrumento de controle e dominação, uma vez
que grande parte das pessoas apenas repassa tal construção sem pensar ou refletir a respeito da
sua origem e de sua real existência. Assim, esse Deus torna-se histórico, real e se mantém
porque de alguma forma as pessoas dizem sentir a sua presença, sem entender que isso não
significa a existência de um Ser sobrenatural, mas sim que é a capacidade inata do homem
perceber, refletir e projetar para fora de si a si mesmo, gerando um distanciamento. Porém,
esse sentimento conforta as pessoas e, apesar de terem perdido a sua originalidade, tanto Deus
como a religião se mantêm de modo muito forte e evidente ainda hoje. Diante disso, essas
fraquezas humanas são utilizadas por outros homens que percebem a inexistência real desse
ser sobrenatural e que, através disso, começam a utilizar esse fato como um instrumento para
manipulá-los e dominá-los. É nesse sentido que, a partir disso, esse mecanismo pode ser e é
utilizado como um instrumento para manter sob controle uma determinada parcela da
população em uma determinada estrutura social dentro do modelo capitalista até então vigente
e também servir para tirar vantagens de seus semelhantes.
Diante desse contexto, pode-se dizer que a Igreja/religião ao perder significativo
espaço na sociedade – em virtude do próprio movimento de transformação da sociedade,
proporcionado pelas Ideias Iluministas, pelos avanços científicos dentre outros elementos que
contribuíram, nesse momento, para o afastamento da perspectiva da existência de um Deus –
buscava reacender suas bases de dominação. Assim, a Igreja fez isso mediante ações de cunho
moralizadoras com o intuito da caridade, fazendo emergir práticas que darão as bases de
sustentação para o surgimento do Serviço Social.
1.4 A GÊNESE DO SERVIÇO SOCIAL NO MUNDO VINCULADO À RELIGIÃO
Para que se possa compreender a influência da religião na gênese23
e no
desenvolvimento do Serviço Social brasileiro, como profissão, é necessário entender o que
perpassou o seu movimento histórico. Assim, serão desenvolvidas a seguir algumas das
23
Nesse sentido, mais especificamente caracterizada pela Igreja Católica.
28
mudanças na esfera social e também o modo como a Igreja se posicionou e contribuiu de
forma bastante significativa na emersão da profissão.
Conforme já mencionado, segundo Campos (1988), após as Revoluções Industrial
(1640-1688) e Francesa (1789-1799), período marcado por profundas mudanças na esfera da
organização da sociedade, tem-se um novo processo de desenvolvimento, onde a
Igreja/religião perdeu expressivo espaço. Isso significa dizer que, apesar de ela ter perdido
ainda mais centralidade24
nesse momento – uma vez que Deus deixa de ser o centro do mundo
e passa o homem a ocupar esse espaço, de forma mais efetiva –, ela passa a ocupar um papel
secundário na sociedade sendo aos poucos substituída pela racionalidade científica25
, pelos
avanços da ciência e pelas tecnologias desenvolvidas pelo homem.
O progresso técnico e científico produz transformações profundas em toda
Europa dos séculos XVII e XVIII. O aparecimento das grandes indústrias, a
concentração cada vez maior, nas mãos de uma minoria, da propriedade
privada dos meios de produção, o aparecimento das empresas financeiras
etc. constituem as principais características do modo capitalista de produção.
Os grandes capitalistas entram em luta com os pequenos industriais e
comerciantes, levando-os à miséria e transformando-os em trabalhadores
assalariados. [...] Transformando os campos em pastagens para animais que
fornecem lã, os capitalistas expulsaram os camponeses pobres ou arruinados,
obrigando-os a se transferirem para as grandes cidades industriais
(CAMPOS, 1988, p. 34).
É diante dessa nova configuração que a Igreja Católica irá buscar estratégias26
para sua
permanência nessa nova forma de sociabilidade que começa a se estruturar a partir desse
momento.
Deste modo, de acordo com Castro (2011, p. 51):
24
A Igreja Católica já vinha perdendo terreno muito antes dos séculos XVIII e XIX mediante a influência das
ideias dos filósofos Iluministas. Segundo Huberman (1986), a Reforma Protestante de Lutero, que perdurou entre
1517-1648, deu os primeiros passos para fazer ruir suas bases, pois: “Esse novo grupo, a nascente classe média,
sentia que havia um obstáculo no caminho do seu desenvolvimento: o ultrapassado sistema feudal. A classe
média compreendia que seu progresso estava bloqueado pela Igreja Católica, que era a fortaleza de tal sistema. A
Igreja defendia a ordem feudal, e foi em si mesma uma parte poderosa da estrutura do feudalismo. [...] Antes que
a classe média pudesse apagar o feudalismo em cada país, tinha de atacar a organização central – a Igreja. E foi o
que fez. A luta tomou um disfarce religioso. Foi denominada Reforma protestante. Em essência, constitui a
primeira batalha decisiva da nova classe média contra o feudalismo” (HEBERMAN, 1986, p. 82-83). 25
“A filosofia burguesa dos séculos XVII e XVIII se caracteriza pelo seu caráter materialista, progressista e
revolucionário. A desagregação das relações feudais transforma essencialmente o fator religioso dentro da
sociedade. A ditadura espiritual da Igreja entra em derrocada. Os filósofos burgueses, tendo em vista o progresso
científico e técnico, passam a defender teses materialistas” (CAMPOS, 1988, p. 30). 26
“[...] a Igreja Católica deverá reagir, reagrupando suas forças, visando à reconquista de suas antigas
prerrogativas e privilégios, tanto práticos como ideológicos. [...] A partir da aglutinação de suas forças, da
concentração de suas fileiras, pretende a hierarquia resistir ao assalto da reforma protestante e laica e, através do
cerco do Estado Liberal restabelecer, através da estratégia do domínio indireto, sua antiga hegemonia”
(CARVALHO, 1980, p. 50).
29
A Igreja conta com um discurso doutrinário centralizado (romano ou
vaticano) que elabora as diretrizes gerais de compreensão dos problemas,
estabelecendo normas genéricas para o exercício da fé católica. Entre seus
instrumentos mais importantes destacam-se as encíclicas papais[27
], que, em
mais de uma ocasião, representaram modificações substantivas na orientação
doutrinária e na ação política da Igreja católica. Todavia, é significativo
assinalar que as encíclicas encontram condições diferenciadas conforme o
meio em que se implementam.
No que se refere às encíclicas papais, Castro (2011) destaca duas que tiveram papel
fundamental para o avanço da profissionalização do Serviço Social, na medida em que este
passa a adentrar os espaços de ensino superior e a incorporar as exigências do Estado. Trata-
se da encíclica Rerum Novarum, que fora divulgada por Leão XIII em 15 de maio de 1891 e
se caracteriza por ser:
[...] uma clara resposta à situação da classe operária e à agudização da luta
de classes. Eis como a Igreja se encontrava na urgente necessidade de fixar
uma posição que reforçasse a coesão ideológica da sua hierarquia e dos seus
membros. Daí que a encíclica assumisse a forma de um documento de
caráter eminentemente político, tentando se constituir numa proposta
articuladora da conciliação entre as classes, reafirmando a condição de
exploração da classe operária e apelando à reflexão dos capitalistas e do
Estado sobre os riscos morais e políticos da sua conduta voraz. A encíclica é
também uma resposta ao pensamento e às propostas de ação socialista,
mediante a qual se busca colocar o discurso religioso acima das classes
sociais, recorrendo à autoridade suprema da religião e fazendo um apelo para
que as coisas terrenas dos homens se submetam ao poder divino. [...] [e]
finalmente, traça formas de ação para as classes e o Estado e, em particular,
para a própria estrutura organizativa geral da Igreja, sustentando a colocação
da reforma social como instrumento político para enfrentar os problemas da
época. A partir dela, por consequência, pode-se distinguir não só uma matriz
ideológica, mas ainda o perfil de práticas concretas de intervenção social
que, como o Serviço Social, a educação etc., iriam encontrando em suas
premissas a forma e o sentido da sua orientação” (CASTRO, 2011, p. 59,
grifos do autor).
A outra encíclica é a Quadragesimo Anno, que fora divulgada por Pio XI em 15 de
maio de 1931, esta em comemoração aos quarenta anos da primeira, tinha como horizonte a
reafirmação das ações dirigidas para responder ao paganismo e à secularização. A parir dessa
encíclica, ocorreu de forma mais efetiva o incentivo à criação de centros de formação
27
Corresponde a uma comunicação escrita papal, ou seja, trata-se de um documento pontifício, dirigido aos
bispos de todo o mundo e, por meio deles a todos os fiéis da Igreja Católica. Seu conteúdo abrange variados
campos, como por exemplo: a doutrina social, costumes, fé entre outros.
30
superior, com o intuito da ação do Serviço Social direcionada a um assistente social católico,
que, entre outros profissionais leigos, passava a:
[...] assumir na prática o “cuidado com a questão social28
”, acrescentando-lhe
ao espírito caridoso a perícia técnica [o que veio a partir das escolas] [...] Eis
como a caridade, o messianismo, o espírito de sacrifício, a disciplina e a
renúncia total passam a ser parte constitutiva dos aspectos doutrinários e dos
hábitos que acompanharam o surgimento da profissão sob a perspectiva
católica [...] (CASTRO, 2011, p. 64).
Deste modo, “O assistencialismo, exercido a partir da iniciativa da Igreja e do
estímulo decisivo das grandes senhoras da época, adquiriu uma nova dimensão, ao se
converter em profissão” (CASTRO, 2011, p. 65). Assim, para o sua execução, fazia-se
necessário um ciclo de treinamento, que proporcionava uma formação sistemática, exigindo o
conhecimento de certos instrumentos técnicos para exercer a atividade, o que tinha por
objetivo, neste momento, reforçar ao mesmo tempo a fé católica. Portanto, pode-se concluir
que as duas encíclicas tiveram um papel fundamental no incentivo a profissionalização do
Serviço Social no mundo, na medida em que se expressavam como uma estratégia da Igreja
Católica – que havia perdido espaço em âmbito mundial – como uma forma de recolocar-se
na esfera social, para assegurar sua permanência e tentar manter e/ou reconquistar seu poder.
Cabe mencionar ainda, segundo o mesmo autor, que em 1925, como reflexo da
primeira encíclica – e que se fortaleceu mais tarde com a segunda – fundou-se em Milão, na
Itália – como consequência da I Conferência Internacional – a União Católica Internacional de
Serviço Social (UCISS), a qual:
28
De acordo com Netto (2001, p. 42-43, grifos do autor), “[...] a expressão ‘questão social’ tem história recente
[...] começou a ser utilizada na terceira década do século XIX e foi divulgada até a metade daquela centúria por
críticos da sociedade e filantropos situados nos mais variados espaços do espectro político. A expressão surge
para dar conta do fenômeno mais evidente da história da Europa Ocidental que experimentava os impactos da
primeira onda industrializante, iniciada na Inglaterra no último quartel do século XVIII: trata-se do fenômeno do
pauperismo. [...] a pauperização [...] constituiu o aspecto mais imediato da instauração do capitalismo em seu
estágio industrial-concorrencial. [...] Pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na razão direta
em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas”. Ainda conforme o mesmo autor “A partir da
segunda metade do século XIX, a expressão ‘questão social’ deixou de ser usada indistintamente por críticos
sociais de diferentes lugares e espectro ídeo-político – ela desliza, lenta mas nitidamente, para o vocabulário
próprio do pensamento conservador. [...] [assim], no âmbito do pensamento conservador, a ‘questão social’,
numa operação simultânea à sua naturalização, é convertida em objeto de ação moralizadora. [...] Mais
precisamente: o cuidado com as manifestações da ‘questão social’ é expressamente desvinculado de qualquer
medida tendente a problematizar a ordem econômica-social estabelecida; trata-se de combater as manifestações
da ‘questão social’ sem tocar nos fundamentos da sociedade burguesa. Tem-se aqui, obviamente, um
reformismo para conservar” (NETTO, 2001, p. 43, grifos do autor).
31
[...] compreendia duas seções: o Grupo de Escolas de Serviço Social e as
Associações de Auxiliares Sociais, sendo o propósito de ambas enfatizar a
necessidade e a eficiência do Serviço Social no mundo [...] [o que] significou
o estímulo à criação de escolas de Serviço Social em todo âmbito de
influência do catolicismo (CASTRO, 2011, p. 61).
Assim, mediante esse contexto, a UCISS apoiou, em 1929, a fundação da primeira
escola católica de Serviço Social na América Latina, a Elvira Matte de Cruchaga, em
Santiago no Chile. Alguns anos mais tarde da criação dessa escola, tem-se, em 1936, a
primeira escola de Serviço Social no Brasil em São Paulo. Já em 1937, ainda no Brasil, na
cidade do Rio de Janeiro surgiu o Instituto de Educação Familiar e Social, “[...] formado por
duas escolas: uma de Serviço Social e uma de Educação Familiar” (CASTRO, 2011, p. 107),
dando origem à segunda escola brasileira. Ainda em 1937, foram criadas as escolas peruana e
uruguaiana.
Deste modo, de acordo com Simões (2005), cabe ressaltar a forte presença da
religião29
no Serviço Social, pois se trata de um componente que esteve presente e que
impulsionou a gênese e o desenvolvimento da profissão não somente no Brasil, mas em quase
todos os países em que a profissão instaurou-se: “As experiências norte-americanas, européia,
latino-americana, asiática e africana registram a religião como um elemento que marca a
história da profissão nestes locais” (SIMÕES, 2005, p. 27). Desta forma, além dessa presença
significativa na profissão, o autor ainda destaca outros dois elementos fundamentais que
perpassaram o prelúdio do desenvolvimento do Serviço Social no mundo, a saber: 1) a
dificuldade evidente em se estabelecer uma expertise30
profissional e; 2) apreender a difícil
separação entre o trabalho assistencial voluntário e o profissional. Tais elementos estiveram
intrinsecamente presentes na ascensão do Serviço Social, pois:
Tanto nas experiências europeias, como nas asiáticas e latino-americanas, houve
dificuldades, e mesmo divergências, em se estabelecer qual o estatuto
profissional do Serviço Social, além de dúvidas sobre a extensão dos cursos, seu
caráter técnico ou acadêmico, mais pragmático ou mais erudito, mais
intelectualizado ou mais voltado para habilidades vocacionais. Esta indefinição
terminou por reforçar, também indiretamente, que os traços e habilidades
29
Na grande maioria dos casos em que o Serviço Social esteve relacionado à religião, esta se refere
principalmente à religião Católica, mais diretamente à ação da Igreja Católica, mas não exclusivamente, pois em
alguns países se destaca também a presença de outras religiões. 30
Trata-se de uma palavra de origem francesa que significa experiência, especialização, perícia. Consiste no
conjunto de habilidades e conhecimento de uma pessoa, de um sistema ou tecnologia. Refere-se ao
conhecimento adquirido com base no estudo de um assunto e a capacidade de aplicar tal conhecimento,
resultando em experiência, prática e distinção naquele campo de atuação. Relaciona-se com as habilidades e
competências para executar algo.
32
tradicionais, no trato dos pobres, sejam identificados com as ações profissionais
ou que sejam refuncionalizados, para atender aos novos requisitos postos pela
profissionalização da assistência (SIMÕES, 2005, p, 29).
Segundo Simões (2005), em cada país em que a profissão instaurou-se englobou um
âmbito próprio de atividades, na medida em que cada país possui características próprias,
desencadeadas devido ao seu desenvolvimento histórico e cultural, gerando diferentes
apreensões e desdobramentos do Serviço Social. Assim, pode-se afirmar que, apesar da
latente presença religiosa na emersão do Serviço Social em diferentes países, o seu
desenvolvimento, após essa vinculação inicial com a religião, se deu de forma bastante
diferenciada31
. Mesmo que este trabalho não vise a elucidar os diferentes desdobramentos do
Serviço Social para além do âmbito brasileiro, alguns desses desdobramentos no campo da
profissão serão mais bem esclarecidos a seguir.
31
SIMÕES, Pedro. Assistentes sociais e religião: um estudo Brasil/Inglaterra. São Paulo: Editora Cortez, 2005.
33
2 OS ELEMENTOS DE RUPTURA DO SERVIÇO SOCIAL COM A PERSPECTIVA
RELIGIOSA E SUA APROXIMAÇÃO COM O MATERIALISMO
A religião é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem
enquanto ele não gira em torno de si mesmo (MARX, 2010, p. 146).
A origem do Serviço Social no Brasil – na década de 1930 – esteve intimamente
vinculada à doutrina da Igreja Católica. Porém, ao longo de sua trajetória é possível constatar
diversas mudanças perpassadas pelo processo de desenvolvimento teórico e prático da
profissão. Assim, a profissão que essencialmente esteve vinculada aos princípios religiosos
especialmente da Igreja Católica e que por muito tempo realizou ações que se baseavam nas
encíclicas papais e no pensamento neotomista32
, ao longo de seu processo de desenvolvimento
adquiriu e assumiu outras formas de abordagem e atuação. Essas formas de atuação
proporcionaram uma intervenção que aos poucos se distanciou – não totalmente, mas de
forma expressiva – das práticas e concepções vinculadas à Igreja Católica.
Deste modo, no presente capítulo pretende-se apreender quais foram os elementos que
deram as bases para o surgimento do Serviço Social brasileiro, assim como demonstrar o seu
processo de desenvolvimento e o modo como ocorreu o seu amadurecimento teórico que lhe
proporcionou a aproximação com o materialismo.
2.1 O SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO: DA GÊNESE AO CONGRESSO DA VIRADA
2.1.1 O Assistencialismo e a Igreja Católica
De acordo com Iamamoto e Carvalho (2012), compreender a gênese do Serviço Social
brasileiro é entender as protoformas33
que lançaram as bases para a profissão, bem como sua
32
“O neotimismo é a retomada, nos séculos XIX e XX, da filosofia de Tomás de Aquino, teólogo do século XII,
que construiu sua filosofia baseada nos princípios da teologia e nos fundamentos da filosofia de Aristóteles. [...]
os fundamentos e valores afirmados pelo neotomismo só têm sentido no interior de uma lógica que supõe a
aceitação de determinados princípios absolutos: a existência de Deus, de uma essência humana predeterminada à
história de uma ordem universal eterna e imutável, cuja ordenação e hierarquia se reproduzem socialmente nas
diferentes funções exercidas por cada ser, em relação à sua natureza e às suas potencialidades” (BARROCO;
TERRA, 2012, p. 43). 33
“O que se poderia considerar como protoformas do Serviço Social, tal como hoje é entendido, tem sua base
em obras e entidades de cunho confessional que começam a ‘brotar’ no início dos anos 20. Estas se diferenciam
criticamente de caridade tradicional e têm em vista não apenas o socorro aos indigentes mas, já dentro de um
perspectiva embrionária de assistência preventiva, atender e atenuar determinadas sequelas derivadas do
aprofundamento da industrialização, principalmente no que se refere a menores e mulheres” (CARVALHO,
1980, p. 48, grifos do autor).
34
relação com a religião e a presença da Igreja Católica. É importante assinalar ainda que as
marcas das obras de caridade realizadas pelo clero e pelos leigos, no Brasil, são demarcadas
desde o período colonial. A sua presença em organizações e no controle dos trabalhadores
também não se caracteriza como algo recente. Entende-se que o seu aparecimento no Brasil
surgiu, a exemplo das Congregações Religiosas Carlistas ou Scalabrinianos, logo após as
primeiras ondas migratórias, com o intuito de atuar junto aos seus compatriotas: “Estes se
constituíram no principal contingente da Força de Trabalho que veio a substituir o escravo
nas grandes plantações e, posteriormente, constituir o mercado de trabalho urbano”
(IAMAMOTO; CARVALHO, 2012, p. 175, grifos do autor).
Deste modo, para que se possa apreender o sentido histórico da instauração do Serviço
Social brasileiro, conforme Carvalho (1980), é de fundamental importância refletir acerca das
expressões da questão social34
e de sua intensificação. É preciso entender quais foram os
posicionamentos e as ações desenvolvidas e adotadas pelos diferentes grupos dominantes e
pelas instituições que coordenaram seus interesses frente ao restante da sociedade. Trata-se de
ações determinadas em um âmbito mais abrangente das contradições ocasionadas pelo
aprofundamento interno do capitalismo e também de sua relação econômica ao mercado
mundial. Assim, o Brasil – bem como toda a América Latina – por se caracterizar pela entrada
tardia no modo de produção capitalista, sofreu intensa pressão internacional para que
adentrasse a lógica do mercado mundial.
Segundo Castro (2011), no contexto brasileiro, somente com as lutas operárias35
entre
1917 e 1920 é que se evidenciaram de maneira mais visível as expressões da questão social36
.
Diante disso, as respostas apresentadas pelo Estado a essas manifestações operárias, ainda na
34
Ao longo do decorrer deste trabalho, a expressão questão social pode aparecer de dois modos: com e sem a
utilização de aspas. Quando houver uso das aspas será devido ao fato da expressão ter sido criada pelo
pensamento conservador, o qual naturaliza as manifestações da “questão social”, uma vez que nega que as
manifestações sejam resultantes da exploração presente no modelo de sociedade burguesa (NETTO, 2011). Já o
uso da expressão sem aspas refere-se essencialmente à contradição entre capital e trabalho na sociedade de
classes. 35
Essas lutas operárias “[...] expressavam o protesto proletário numa situação de queda da expansão industrial
[...] Em 1917, uma grande greve geral sacudiu a cidade de São Paulo e outras áreas interioranas. A própria
capital do país foi abalada pelo movimento, que reivindicava a jornada de oito horas e aumentos salariais. [...]
No ano seguinte, movimentos grevistas voltaram a se manifestar em várias cidades brasileiras – Porto Alegre,
Recife, Salvador, Curitiba, Rio de Janeiro etc. –, todos abafados por uma cruel repressão. Em 1922, foi fundado
o Partido Comunista Brasileiro e, no bojo de toda esta movimentação promulgaram-se as primeiras leis
trabalhistas: uma legislação sobre habitação popular (1921), a criação da Caixa de Aposentadoria e Pensão dos
Ferroviários (1923) e a regulamentação dos feriados (1925)” (CASTRO, 2011, p. 101). 36
Nesse momento, as manifestações da questão social já eram oriundas da contradição entre capital e trabalho;
contudo, não havia ainda o entendimento dessa relação. Assim, as expressões da questão social eram
solucionadas, nesse período, como sendo “caso de polícia”.
35
Primeira República37
, foi a repressão policial. Naquele momento, o uso da repressão foi
preferido considerando-se a evidente falta de capacidade de propor e desenvolver políticas
sociais eficientes no sentido de conduzir os operários, ou seja: “A violência do Estado se fará
constantemente presente na trajetória das lutas do movimento operário, como o mais eficiente
instrumento de manutenção da paz social” (CARVALHO, 1980, p. 45). É importante destacar
ainda que havia, por parte da elite, nesse momento predominantemente agrária, o
desconhecimento da existência da questão operária, na medida em que para ela, “[...] as
relações de produção são um problema afeto à empresa, devendo a questão operária confinar-
se em seu interior” (CARVALHO, 1980, p. 45). Com isso, o posicionamento dessa elite irá
variar. Por um lado, irá apoiar de forma explícita a repressão policial realizada pelo Estado.
Por outro lado, após o estrangulamento dos movimentos reivindicatórios e frente ao
acirramento das crises econômicas que resultam em grandes quantidades de trabalhadores em
situação de extremo pauperismo, parte dessa elite passará a desenvolver ações com
características caridosas e assistencialistas. “[...] durante as campanhas eleitorais, essas boas
intenções não deixam de se fazer presentes, ao nível da retórica e de algumas medidas
assistenciais que objetivam ampliar a margem de legitimidade das diferentes facções, e
granjear algum apoio político” (CARVALHO, 1980, p. 46).
Pode-se afirmar ainda que foi através dos movimentos dos trabalhadores no período de
1917 a 1920, de acordo com Carvalho (1980), que os setores dominantes delineiam a
necessidade de intervir de forma mais efetiva e organizada, na medida em que será a partir
desse momento que a ação assistencialista desenvolvida pela elite obtém um ligeiro
alargamento. Nesse período, a burguesia industrializada e o empresariado, que expandiu sua
organização assistencialista, encontravam-se calcados nos fundamentos do liberalismo no
âmbito do mercado de trabalho. Assim, a partir desse contexto, altera-se a preocupação do
empresariado no âmbito do social e nasce um novo espírito social, na medida em que ocorre
uma adaptação por parte do empresariado “[...] à nova fase de aprofundamento do capitalismo
sob uma conjuntura política diferenciada, como sua adesão às novas formas de dominação e
controle do movimento operário, onde a preocupação do consenso se sobrepõe à simples
coerção” (CARVALHO, 1980, p. 46).
Deste modo, conforme Carvalho (1980), mediante a ocorrência de momento de tensão
e pressão por parte dos trabalhadores pela regulamentação social da exploração da força de
37
Trata-se de um período brasileiro que pode ser chamado tanto de Primeira República como também de
República Velha, refere-se aos anos de 1889 a 1930.
36
trabalho, a ação política desenvolvida pelo empresariado será a de impedir que as discussões
dos conflitos saiam da esfera policial. O empresariado tenderá de todas as formas possíveis
suprimir e impossibilitar a interferência externa de controle e dominação de seus empregados.
Assim, entrará em ininterrupta luta em oposição a qualquer sinal de ameaça ao seu “[...]
sagrado direito de arrancar o máximo possível de trabalho excedente” (CARVALHO, 1980, p.
46). Com isso, podem-se verificar dois momentos na conduta desenvolvida pelo
empresariado: por um lado, a utilização da repressão aberta como medida mais eficiente de
obter o apoio aos mecanismos econômicos de dominação; e, por outro, inicia-se o surgimento
de práticas assistenciais, com características extremamente generalizadas, alicerçadas em
procedimentos internos às empresas, algo impulsionado nos anos de 1920. Diante dessa
conjuntura – e mediante a ineficiência do Estado em desenvolver uma política social sólida
que pudesse adentrar o universo dos direitos dos trabalhadores de forma mais efetiva –, tem-
se o aumento significativo das práticas assistenciais executadas por alguns membros da
burguesia, tendo nesse momento a presença da Igreja Católica na aproximação e incorporação
natural no desenvolvimento dessas práticas.
Para que se possa compreender melhor, é importante salientar que a atuação do clero
dentro das unidades industriais era algo latente. Segundo Carvalho (1980), no interior das
indústrias existiam capelas nas quais frequentemente eram realizadas missas/celebrações para
todos os trabalhadores com a presença dos religiosos. Sua presença representou o controle
direto do operariado e também se registrou nas vilas operárias, tanto quanto no plano sindical,
que já vinha desenvolvendo iniciativas assistenciais.
Como já mencionado em páginas anteriores, a Igreja Católica vinha perdendo terreno
frente à sociedade não só brasileira, mas em todo o mundo – fato que se verifica mediante a
Reforma Protestante e com a laicização do Estado instaurada pela Revolução Francesa –, o
que a fez buscar estratégias para recuperar sua hegemonia38
, na medida em que passou a se
posicionar frente às expressões da “questão social”. Cabe ressaltar que até esse momento não
havia a clareza da questão social como sendo a contradição existente entre capital e trabalho,
mas sim era entendida como a pobreza e a miséria causada pela ação individual do sujeito, na
38
A Igreja “[...] procura organizar e qualificar seus quadros intelectuais laicos para uma ação missionária e
evangelizadora na sociedade. Contrapõe-se aos princípios do liberalismo e ao comunismo, que aparecem como
um perigo ameaçador à sua posição na sociedade. O movimento de ‘reação católica’ é respaldado em uma vasta
rede de organizações difusoras de um projeto de recristianização da ordem burguesa, sob o imperativo ético do
comunitarismo cristão, exorcizando essa ordem de seu conteúdo liberal. [...] lutou, ainda, pela legitimação
jurídica de suas áreas de influência dentro do aparato de Estado” (IAMAMOTO, 2013, p. 20).
37
medida em que, se o sujeito estava em uma situação de pobreza, a culpa era dele, sendo a
atuação direcionada e desenvolvida pelo instinto da caridade e da solidariedade ao próximo.
No Brasil, as manifestações políticas religiosas iniciaram-se efetivamente nos
primeiros anos da década de 1920, tendo “[...] por bandeira, [...], recuperar os privilégios e
prerrogativas perdidos com o fim do Império” (CARVALHO, 1980, p. 50). Ainda conforme o
autor, foi através do padre Júlio Maria, norteado pelas bases diretrizes de Leão XIII, que
solicitou, mediante as liberdades constitucionais asseguradas pela República, a recatolização
da nação, e que a Igreja, a partir desse momento assumiria a “questão social”. Contudo, o seu
discurso se caracterizava mais pela situação ascendente na Europa e, como consequência –
diante do contexto diferenciado apresentado pela conjuntura brasileira –, não chegou a
mobilizar a própria hierarquia. Obteve maior sucesso, em seguida, a Pastoral de Dom
Sebastião Leme ao assumir a Diocese de Olinda.
Dessa vez, a reação católica era pregada por um dos príncipes da Igreja
intensamente ligada à Santa Fé. Nesse documento são lançadas as bases do
que seria o problema de reivindicações a serem atingidas através da opinião
católica. Restabelecendo as bases da noção de Nação Católica, exige que
através da Igreja seja respeitada a vontade dessa maioria: a legislação
jurídica do acesso da Igreja ao ensino público, as obras e entidades de caráter
de interesse público [...] a superioridade da Igreja sobre o Estado. Expõe
também mecanismos a serem ativados para obrigar o Estado Republicano a
ceder à Igreja parte de sua soberania: Universidade Católica, jornais
católicos, eleitorado católico organizado, ação social católica, etc.
(CARVALHO, 1980, p. 50 grifos do autor).
Segundo Carvalho (1980), foi a partir de 1920 que a ação da Igreja se intensificou e
também que se verificou a crescente participação de leigos. Neste sentido, foi mediante a
criação de diversas entidades que desenvolviam ações no campo da assistência e do
enquadramento político e ideológico da população pobre – contudo, sempre sem perder de
vista o seu controle e dominação –, que a Igreja aos poucos adquire e adentra novamente a
esfera da sociedade brasileira, conquistando e adquirindo um novo espaço. O aprofundamento
das expressões da questão social ocasionaram um diversificado rol de respostas por parte das
organizações dominantes. Respostas que “[...] variam do acirramento da repressão ao esboço
de uma política social integrativa” (CARVALHO, 1980, p. 47). Diante disso, para que se
possa compreender a ascensão do Serviço Social calcado na iniciativa do bloco dominante,
com a incipiente pretensão de se transformar em alternativa àqueles estreitos limites, faz-se
38
necessária a reflexão acerca de dois componentes que exerceram influência e que criaram as
condições para a implantação do Serviço Social:
[...] o colapso da República Velha, com o aparecimento de uma nova
correlação de forças dentro de Estado; e o que a historiografia denomina de
‘reação católica’. O Estado que sucede à República Velha progressivamente
se orientará para uma organização corporativa da sociedade civil, e no
sentido de canalizar para sua órbita os interesses divergentes que emergem
das contradições entre as diferentes frações dominantes, assim como as
reinvindicações dos setores subalternos. Em nome da harmonia social, do
desenvolvimento e da colaboração entre as classes, procurará repolitizá-las e
discipliná-las no sentido de as transformar em poderoso instrumento de
expansão e acumulação. [...] Ao desenvolver mecanismos destinados a
integrar interesses e reinvindicações do proletariado através de canais
dependentes e controlados, aumenta extraordinariamente o quadro
institucional a partir do qual o Serviço Social poderá vir a se afirmar e
legitimar (CARVALHO, 1980, p. 47-48).
Desse modo, pode-se dizer que a sua implantação – dentro desse contexto histórico –
não se fundamentou em ações coercitivas provenientes do Estado, mas sim que se
desenvolveu a partir de iniciativas de grupos particulares e fragmentos de classes através de
atividades empregadas pela Igreja Católica, a qual imprimia seu apoio.
Dentro do surgimento dessas entidades – que se desenvolveram na fase inicial do
movimento de “reação católica”, frente à intensificação do pensamento social da Igreja e de
suas bases doutrinárias – verifica-se amplamente a presença de inúmeras famílias que
constituíam a grande burguesia paulista e também carioca. É interessante notar que essas
famílias possuíam um grande “[...] aporte de recursos e potencial de contratos em nível de
Estado, o que lhes possibilita o planejamento de programas assistenciais de maior
envergadura e eficiência técnica” (CARVALHO, 1980, p. 48).
É nesse contexto, conforme Iamamoto e Carvalho (2012), que a Igreja passa a instituir
obras de caridade para atender às necessidades dos trabalhadores. No Rio de Janeiro, em
1920, é criada a Associação das Senhoras Brasileiras e em São Paulo, em 1923, a Liga das
Senhoras Católicas realizava atividades que se diferenciam da caridade tradicional na medida
em que visava não apenas o atendimento imediato aos indigentes, mas atendia uma
perspectiva incipiente de assistência preventiva.
39
De acordo com Carvalho (1980), em 1921 foi criada a Revista A Ordem39
, sendo a
partir dela criado em 1922 o Centro Dom Vital que se transformou:
[...] no principal aparato de mobilização do laicato, procurando recrutar uma
‘aristocracia intelectual’ capaz de combater, no plano político e ideológico,
as manifestações que naquele momento a Igreja considerava como mais
perigosa para seu domínio: o anticlericalismo, o positivismo e o laicismo das
instituições republicanas (CARVALHO, 1980, p. 51).
Ainda em 1922, de acordo com Carvalho (1980), funda-se também a Confederação
Católica40
, considerada como a precursora da Ação Católica, com o objetivo de fomentar e
dinamizar o apostolado laico na perspectiva embrionária de inseri-los no desenvolvimento das
ações das obras de caridade da Igreja, tendo suas ações um caráter assistencial e paternalista.
Deste modo, a emersão do Serviço Social brasileiro foi possível a partir desse
desenvolvimento lento e gradual. Considere-se que foi a partir dessas entidades que “[...] se
criaram as bases materiais e organizacionais, e principalmente humanas, que na década
seguinte, servirão de apoio a expansão da Ação Social, e para o surgimento na década
seguinte das primeiras Escolas de Serviço Social” (CARVALHO, 1980, p. 48). Assim,
ocorreu a fusão entre as antigas obras sociais – que se caracterizam de forma crítica e
diferenciada da caridade tradicional – e os novos movimentos do apostolado social – a partir
do momento em que se destinam a intervir junto aos trabalhadores –, na medida em que
ambos constituem o Movimento Laico41
.
De acordo com Iamamoto (2013), é a partir de 1932 que se verifica um aumento
eminente do movimento católico laico. Tendo por alicerce o Centro Dom Vital – fase esta, em
que possui maior influência e que desenvolve maior número de atividades – e a Confederação
Católica, fazem emergir a Ação Universitária Católica, o Instituto de Estudos Superior, a
Associação de Bibliotecas Católicas, a Liga Eleitoral Católica e os Círculos Operários. Já em
1935, é fundada a Ação Católica Brasileira, que se caracteriza segundo os moldes europeus e
39
“Figura importante durante essa fase será Jackson de Figueiredo, fundador da revista A Ordem e presidente
eterno do Centro Dom Vital. Através de um profícuo trabalho de agitação doutrinária e política, reunirá em torno
de si e da hierarquia um numeroso grupo de intelectuais que passa a interpretar a realidade brasileira, definindo
posições. A tônica será essencialmente política. [...] Seu nacionalismo assumirá o caráter de lusofobia e de
condenação do capitalismo internacional, identificado aos judeus e maçons” (CARVALHO, 1980, p. 52, grifos
do autor). 40
Segundo Castro (2011), trata-se de um mecanismo prático para o revigoramento eclesiástico. 41
“A mobilização do movimento laico obedecerá aos objetivos de afirmar o papel central da Igreja como agência
de controle social e ideológico, e definir as relações entre Igreja e Estado a partir de um modelo que seja
favorável à primeira. Isto é, que garanta e amplie os antigos privilégios e prerrogativas da Igreja e lhe assegure,
dentro do aparelho do Estado, as posições indispensáveis para a consolidação de sua influencia social”
(CARVALHO, 1980, p. 56).
40
que possui ligação com os meios estudantis e também operários. Nesse momento, a
intelectualidade católica buscará conciliar e adaptar a realidade nacional frente ao espírito das
encíclicas sociais – Rerum Novarum (1891) e Quadragésimo Anno (1931) –, fortalecendo
“[...] a hierarquia e o movimento laico de um arsenal de posições e programas ao formar uma
via cristã corporativa para a harmonia e progresso” (CARVALHO, 1980, p. 45). Sendo a
sociedade perpassada por um conjunto unificado de fatores, Carvalho (1980) caracteriza suas
conexões, na medida em que ao governo lhe cabe um universo de ação delimitada, “[...] pois,
ao lado de sua soberania, os costumes, leis, tradições, a normatividade transcendente da Igreja
lhe serve de freio e orientam sua ação” (CARVALHO, 1980, p. 54).
2.1.2 A Institucionalização do Serviço Social Brasileiro
A primeira manifestação original no campo do Serviço Social brasileiro, de acordo
com Iamamoto e Carvalho (2012), tem início em 1932, com a criação do Centro de Estudos e
Ação Social de São Paulo (CEAS). Sua criação surge após a participação de moças no “Curso
Intensivo de Formação Social” que fora organizado pelas Cônegas de Santo Agostinho em
São Paulo e ministrado por Adèle Loneaux da Escola Católica de Serviço Social de Bruxelas.
Deste modo, a criação do CEAS implicou no desenvolvimento do Serviço Social dentro do
ideal de fazer o bem e de alterar valores e comportamentos dos indivíduos na perspectiva de
“[...] atender e atenuar determinadas sequelas do desenvolvimento capitalista [...]”
(IAMAMOTO; CARVALHO, 2012, p. 177, grifos do autor).
Conforme Yazbek, Martinelli e Raichelis (2008), o CEAS, além de realizar o debate
teórico dos problemas sociais, proporcionava às suas sócias também inúmeras visitas a
instituições e obras sociais. Mediante palestras e diversas atividades, buscavam atrair as
mulheres operárias com o intuito de aproximarem-se da classe trabalhadora, na medida em
que procuravam conhecer as dificuldades e necessidades que perpassavam o ambiente em que
viviam. O CEAS também foi o responsável pela criação, ainda em 1932, de quatro centros
operários em São Paulo em bairros de concentração operária como: Brás, Ipiranga, Barra
Funda e Belém. Esses centros eram entendidos como organizações transitórias, na medida em
que “[...] preparariam a elite operária católica para atuar à massa operária” (YAZBEK;
MARTINELLI; RAICHELIS, 2008, p. 10). Contudo, há também outro evidente sentido
dentro dessa ação social desenvolvida pelo CEAS, ao qual “[...] se tratará de intervir
diretamente junto ao proletariado para afastá-lo de influências subversivas” (IAMAMOTO;
41
CARVALHO, 2012, p. 180, grifos do autor). Deste modo, segundo Iamamoto e Carvalho
(2012), as atividades do CEAS eram desenvolvidas com o intuito de ocasionar uma formação
técnica especializada, na medida em que tinha por objetivo, para além das práticas da ação
social, o espraiamento da doutrina social da Igreja. Ao apropriar-se dessa orientação, o CEAS
adquire um caráter catalizador do apostolado laico “[...] através da organização de associações
para moças católicas e para a intervenção direta junto ao proletariado” (IAMAMOTO;
CARVALHO, 2012, p. 184).
Em 1936, mediante os inúmeros esforços desse grupo e também com o apoio da
hierarquia, inaugurou-se a primeira Escola de Serviço Social no Brasil em São Paulo. De
acordo com Yazbek, Martinelli e Raichelis, (2008), a escola mesclou as visões francesa e
belga, dentro de uma perspectiva social, ética e técnica da formação profissional. Pode-se
destacar ainda que foi por meio da inauguração da primeira escola, conforme Iamamoto e
Carvalho (2012), que começam a emanar outros tipos de demandas42
, provenientes de
determinadas instâncias estatais. Tais demandas serão tomadas como conquistas expressivas
por seus membros. Em 1937, na cidade do Rio de Janeiro, surgiu o Instituto de Educação
Familiar e Social, “[...] formado por duas escolas: uma de Serviço Social e uma de Educação
Familiar” (CASTRO, 2011, p. 107), dando origem à segunda escola de Serviço Social
brasileira.
Segundo Iamamoto e Carvalho (2012), ainda antes da inauguração das duas primeiras
Escolas de Serviço Social, em 1935, mediante a criação da Lei nº 2.497, de 24 de dezembro
de 1935, foi instituído o Departamento de Assistência Social do Estado43
. Já no ano de 1938,
foi organizada a Seção de Assistência Social que tinha por objetivo desenvolver ações com
indivíduos ou grupos que se caracterizavam como desajustados, para que estes pudessem
retornar às condições de vida normais. Desta forma, a partir desse momento, “O Estado [...]
ultrapassa o marco de sua primeira área de intervenção – a regulamentação do mercado de
trabalho e da exploração da Força de Trabalho – para superintender a gestão da assistência
42
“[...] ‘com a apresentação de um memorial ao Governo do Estado, obteve (o CEAS) a criação de cargos de
fiscais femininos para o trabalho de mulheres e menores, no Departamento Estadual do Trabalho’. Em 1937, o
CEAS atua no Serviço de Proteção aos Migrantes, ‘funcionando dois anos junto à Diretoria de Terras,
Colonização e Imigração’; em 1939, assina contrato com o Departamento de Serviço Social do Estado (SP) para
a organização de três Centros Familiares em bairros populares” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1982, p. 184). 43
“A ele competia: a) superintender todo o serviço de assistência e proteção social; b) celebrar, para realizar seu
programa, acordos com as instituições particulares de caridade, assistência e ensino profissional; c) harmonizar a
ação social do Estado, articulando-a com a dos particulares; d) distribuir subvenções e matricular as instituições
particulares realizando seu cadastramento. [...] caberia, [ainda] a estruturação dos Serviços Sociais de Menores,
Desvalidos, Trabalhadores e Egressos de reformatórios, penitenciárias e hospitais e da Consultoria Jurídica do
Serviço Social” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2012, p. 185). Em 1938, este Departamento sofre uma mudança
de siglas, passando a denominando-se de Departamento de Serviço Social.
42
social” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2012, p. 186, grifos do autor). Assim, buscará
racionalizar a assistência, evidenciando sua centralidade e controlando suas particulares
iniciativas. Tais iniciativas tornar-se-ão cada vez mais dependentes, mediante burocracia, e
aos poucos se tornarão direcionadas às solicitações demandatárias do próprio Estado que
passará a desenvolver formas de convênio. Outro fato que também se evidencia nesse
momento é que algumas figuras de destaque da época, que antes pertenciam a instituições
particulares, serão cooptadas e integradas às instituições estatais.
O governo procurará, portanto, subordinar a seu programa de ação as
iniciativas particulares – dividindo áreas de atuação e subvencionando as
instituições coordenadas pela Igreja – ao mesmo tempo em que adota as
técnicas e a formação especializada desenvolvidas a partir daquelas
instituições particulares. Assim, a demanda por essa formação técnica
especializada crescentemente terá no Estado seu setor mais dinâmico, ao
mesmo tempo em que passará a regulamentá-la e incentivá-la
institucionalmente sua progressiva transformação em profissão legitimada
dentro da divisão social-técnica do trabalho (IAMAMOTO, CARVALHO,
2012, p. 186 grifos do autor).
Deste modo, cabe aqui ressaltar que, conforme Iamamoto e Carvalho (2012), quando
ocorreu a criação da Primeira Escola de Serviço Social pelo CEAS, em 1936, na cidade de
São Paulo, já havia a incipiente presença de certa demanda por parte do Estado. Assim, a
criação da referida Escola não pode ser considerada apenas como resultado de uma iniciativa
do Movimento Católico Laico. Deve-se lembrar que ocorreu também, em seguida, a
adaptação da formação técnica especializada, na medida em que a Escola de Serviço Social
passou por um processo de adequação44
ao surgimento das demandas advindas do Estado. Em
virtude dessa recorrente demanda do Estado, ocorre também a distribuição de bolsas de
estudos45
para alunas, na medida em que “[...] a partir de 1941 e durante um largo período, o
percentual de bolsistas raramente é inferior a 30%, chegando, momentaneamente, a se
constituir em maioria. Os principais patrocinadores dessas bolsas serão o Estado e as grandes
44
“O primeiro se dá a partir do convênio firmado entre CEAS e o Departamento de Serviço Social do Estado, em
1939, para a organização de Centros Familiares. Essa demanda terá por reflexo a introdução no currículo da
Escola de um Curso Intensivo de formação Familiar: pedagogia do ensino popular e trabalhos domésticos. O
segundo se dará, logo em seguida, para atender à demanda das prefeituras do interior do Estado” (IAMAMOTO;
CARVALHO, 2012, p. 188). 45
“No decorrer da década de 1940, surgem diversas escolas de serviço social nas capitais dos Estados, sendo que
quatorze enviam representação ao I Congresso Brasileiro de Serviço Social, realizado em 1947. A maioria se
formará sob a influência das duas primeiras, de origem católica, tendo em sua direção ex-alunas dessas escolas
formadas sob o regime de bolsas de estudo. A implantação das mesmas obedecerá a processo semelhante ao de
suas antecessoras de São Paulo e do Rio de Janeiro, contando – como componente novo – com o apoio
financeiro da Legião Brasileira de Assistência” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2012, p. 197).
43
instituições estatais” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2012, p. 189, grifos do autor). Esse
processo de distribuição de bolsas de estudos fez acelerar a formação de assistentes sociais46
e
também ocasionou a mudança de perfil das alunas, na medida em “[...] que deixa de ser um
privilégio das classes dominantes e ‘classe média alta’, para abarcar crescentemente parcelas
da pequena burguesia urbana” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2012, p. 198).
Assim, pode-se concluir, de acordo com Yazbek, Martinelli e Raichelis (2008), que o
surgimento do Serviço Social no Brasil, a partir da década de 1930, esteve intrinsecamente
vinculado às instituições filantrópicas da Igreja Católica. Isso porque havia em sua
organização grupos sociais formados, em sua maioria, por moças católicas que realizavam
ações de caráter assistencialista, baseando-se nos princípios da moralidade e da solidariedade
cristã. Desta forma, atuavam na perspectiva de restaurar e enquadrar o indivíduo ao meio
social. Tais ações baseavam-se nas encíclicas papais e no pensamento neotomista, numa clara
intenção de adequar valores e comportamentos do indivíduo às relações sociais vigentes sob o
enfoque da psicologização e moralização do indivíduo e da família. Tratava-se, portanto, de
uma ação pautada num referencial teórico-metodológico responsável por culpabilizar o
indivíduo e corrigir seus desvios pela via da moralidade confessional47
. “Os relatos existentes
sobre as tarefas desenvolvidas pelos primeiros Assistentes Sociais demonstram uma atuação
doutrinária e eminentemente assistencial” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2012, p. 200). A
partir da articulação entre as demandas do Estado com as primeiras Escolas de Serviço Social,
vinculadas à Ação da Igreja Católica parte-se do pressuposto que: “Em suma, é preciso
reeducar a família – e a religião será o esteiro moral de sua estabilidade – e leis que garantam
o direito da família e dos filhos na sociedade [...] (IAMAMOTO; CARVALHO, 2012, p.
219).
46
Como resultado desse processo de aceleração da formação de assistentes sociais, surgiram novas escolas:
“Pernambuco – fundada em 1940 pelo Juizado de Menores, com o apoio da Ação Social e do Instituto Social do
Rio de Janeiro. Paraná – fundada em 1944 pela ação da Juventude Universitária Católica e apoio do Instituto
Social do Rio de Janeiro. Para mantê-la é organizada a Ação Social do Paraná. Rio Grande do Sul – fundada em
1945 a partir da V Semana de Ação Social, sob os auspícios dos Irmãos Maristas. Rio Grande do Norte –
fundada em 1945 pela Juventude Feminina Católica e Legião Brasileira de Assistência. Neste período serão
ainda fundadas as Escolas da Bahia, Estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Amazonas. As Escolas de Serviço
Social do Rio Grande do Norte, que se constituirá na primeira escola de nível superior nesse Estado. [...] em
1959 o número de escolas será de 28, quatro localizadas no Distrito Federal, duas em São Paulo, uma na capital
de cada Estado (salvo Mato Grosso e Piauí) e ainda uma nas cidades de Campinas (SP), Lins (SP), Campina
Grande (PB) e Juiz de Fora (MG)” (IAMAMOTO; CARVALHO 2012, p. 197, nota de rodapé 42). 47
De acordo com Netto (2001 p. 45, grifos do autor), “No caso do pensamento conservador confessional, se se
reconhece a gravitação da ‘questão social’ e se se apela para medidas sócio-políticas para diminuir os seus
gravames, insiste-se em que somente sua exacerbação contraria a vontade divina.[...] Mais precisamente: o
cuidado com as manifestações da ‘questão social’ é expressamente desvinculado de qualquer medida tendente a
problematizar a ordem econômico-social estabelecida: trata-se de combater as manifestações da ‘questão social’
sem tocar nos fundamento da sociedade burguesa. Tem-se aqui, obviamente, um reformismo para conservar”.
44
Essa forma de atuação do Serviço Social manteve-se até o momento em que, no ano de
1941, conforme Iamamoto e Carvalho (2012), aconteceu na cidade de Atlantic City, nos
Estados Unidos da América (EUA), o Congresso Interamericano de Serviço Social. Esse
congresso demarcou a influência norte-americana48
no ensino especializado no Brasil, na
medida em que destinou algumas bolsas de estudos para toda a América Latina, cabendo
quatro ao Brasil. Foi a partir desse momento de aproximação com os EUA que se institui a
prática de intercâmbio e que mediante o retorno desses estudantes se verificou a forte
influência do positivismo49
norte-americano nas escolas de Serviço Social no Brasil.
Conforme Iamamoto (2011), combinou-se o discurso humanista cristão com o positivismo
científico. Assim, o Serviço Social brasileiro configurou – em particular, nesse momento de
sua história – um arranjo teórico-doutrinário afinado com as premissas do conservadorismo: a
base conservadora confessional, característica dos embasamentos teórico-metodológicos das
ações das moças caritativas ligadas à Ação Social da Igreja Católica da década de 1930, foi
substituída por um conservadorismo de base laica que, não se despindo por completo do
discurso humanista cristão, combinava-o com o aparato técnico da teoria positivista. Essa
nova direção da profissão e da atuação profissional “[...] exige a qualificação e sistematização
de seu espaço sócio-ocupacional [tendo] como objetivo atender às novas configurações do
desenvolvimento capitalista e, [...] às requisições de um Estado que começa a implementar
políticas sociais” (BRANDÃO, 2006, p. 60). Assim, a matriz positivista caracterizou-se como
o primeiro suporte teórico-metodológico utilizado pelo Serviço Social, dado que foi através
dessa matriz que se desenvolveu, nesse momento, sua modernização.
Apesar de o positivismo adentrar o ensino de Serviço Social, sua disseminação e seus
reflexos ocorrem de forma lenta e gradual. Esse dado se verifica através da aprovação do
primeiro Código de Ética dos profissionais Assistentes Sociais, aprovado em 1947 pela
Assembleia Geral da Associação Brasileira de Assistentes Socais (ABAS). Esse código
48
“Esta teoria social assentada no positivismo aborda as relações sociais dos indivíduos no plano de suas
vivências imediatas, como fatos que se apresentam em sua objetividade e imediaticidade. Tal perspectiva
restringe a visão de teoria ao âmbito do verificável, da experimentação e da fragmentação. As mudanças
apontam para a conservação e preservação da ordem estabelecida, isto é, do ajuste” (BRANDÃO, 2006, p. 60). 49
De acordo com Brandão (2009), o positivismo corresponde a uma corrente filosófica que surgiu na primeira
metade do século XIX. Foi fundado por Augusto Comte e “[...] parte do pressuposto de que a sociedade humana
é regulada por leis naturais, invariáveis, que independem da vontade e da ação humana, tal como a lei da
gravidade. [Para Comte] as leis que regulam o funcionamento da vida social, econômica e política são do mesmo
tipo que as leis naturais e, portanto, o que reina na sociedade é uma organização semelhante à da natureza, uma
espécie de harmonia natural. [...] O positivismo, enquanto método de análise é uma concepção de mundo, é uma
postura diante da realidade social. Esta postura consiste em tomar a objetividade como sendo a realidade social.
É, na verdade, a expressão privilegiada do modo de pensar próprio da sociedade burguesa. A característica do
pensamento positivista é a aceitação da objetividade imediata que a sociedade oferece” (BRANDÃO, 2009, p.
58-59).
45
expressava ainda velhas tendências, na medida em que havia “[...] a estreita vinculação do
Serviço Social com a doutrina social da Igreja Católica – era extremamente doutrinário e
subordinado aos dogmas religiosos” (BARROCO; TERRA, 2012, p. 45). Portanto, pode-se
dizer que, apesar dos primeiros embasamentos de cunho teórico-científico apontarem para a
vertente positivista, isso foi aos poucos refletindo no exercício profissional mesmo que o
Código de Ética trouxesse ainda a perspectiva tradicional confessional dentro da atuação.
Assim, o que impossibilitava uma visão crítica aos profissionais no que se refere à
questão social, segundo Brandão (2006), trata-se da utilização de seus aportes teóricos para
explicar a realidade social, ou seja:
[...] os fundamentos filosóficos da Doutrina Social da Igreja (Neotomismo),
os conteúdos ideológicos (pensamento conservador) e a perspectiva analítica
entre hegemônicos nas Ciências Sociais (Positivismo). A profissão aceitava
sem nenhum questionamento a base de legitimidade e o significado de sua
função social atribuída pelo Estado e pelo empresariado (BRANDÃO, 2006,
p. 60).
Assim, a partir dessa perspectiva, de acordo com Brandão (2006), alguns elementos
passaram a ser eliminados no campo da formação e do exercício profissional dos Assistentes
Sociais, a saber:
[...] a desigualdade imposta pela sociedade capitalista, associada às
condições de exploração do homem pelo homem e as relações sociais que
sustentam o trabalho alienado, o caráter contraditório da prática profissional
e sua participação no processo de reprodução social e a dimensão ético-
política da prática profissional, em nome de uma neutralidade que de fato é
afinada com a necessidade de legitimar a suposta face humanitária do Estado
e do empresariado (BRANDÃO, 2006, p. 60-61).
Essa perspectiva manteve-se presente no âmbito da formação e da atuação dos
assistentes sociais por um longo período. Conforme Simionatto (2011), em meados da década
de 1960, o Serviço Social já possuía um reconhecimento legal50
, assim como se afirmava
como uma profissão de caráter liberal, ou seja, “[...] de ‘natureza técnico-científica’, inscrito
na divisão social e técnica do trabalho” (SIMONATTO, 2011, p. 164). Desta forma, somente
50
O Serviço Social foi uma das primeiras profissões da área social a ter aprovada sua Lei de Regulamentação
profissional, a Lei nº 3252 de 27 de agosto de 1957, posteriormente regulamentada pelo Decreto 994 de maio de
1962. Atualmente, essa lei foi substituída pela nova Lei de Regulamentação da profissão Lei nº 8662 de 1993.
46
a partir do Movimento de Reconceituação51
– que emergiu no Brasil na cidade de Porto
Alegre, em 1965 – que ocorreram, aos poucos, o aparecimento de outras vertentes. Ainda no
ano de 1965, houve a aprovação do segundo Código de Ética profissional dos Assistentes
Sociais que revelavam alguns “[...] traços de renovação profissional no contexto da
modernização conservadora posta pela autocracia burguesa – [ou seja,] introduziu alguns
valores liberais, sem romper com a base filosófica neotomista e funcionalista[52
]”
(BARROCO; TERRA, 2012, p. 45). Dez anos depois, no ano de 1975 foi aprovado o terceiro
Código de Ética dos Assistentes Sociais, este “[...] suprimiu as referências democrático-
liberais do Código anterior, configurando-se como uma das expressões de reatualização do
conservadorismo profissional no contexto de oposição e luta entre projetos profissionais que
antecederam o III CBAS de 1979” (BARROCO; TERRA, 2012, p. 45, grifos do autor).
Deste modo, foi a partir do período denominado de Movimento de Reconceituação
que se notam os primeiros questionamentos acerca das matrizes norte-americanas que
sustentavam o discurso e a prática dos profissionais. Assim, o “[...] referencial desloca-se da
visão funcionalista para a perspectiva dialética” (SIMIONATTO, 2011, p. 164-165). Contudo,
essa proposta não obteve grandes avanços nesse período, pois, mediante o golpe militar
ocorrido em 1964,
[...] a perspectiva modernizadora terminou por ser efetivamente assumida
pelo Serviço Social. [Ou seja,] o projeto de cunho “nacional-
desenvolvimentista” cedeu lugar a uma proposta “pragmática-tecnocrática”,
destinada a responder às necessidades do crescente processo de acumulação
capitalista (SIMIONATTO, 2011, p. 165).
51
“O seu surgimento ocorreu inicialmente nos países do Cone Sul (Brasil, Argentina, Chile, Uruguai) e
expressou um amplo questionamento da profissão: suas finalidades, fundamentos, compromissos éticos e
políticos, formação profissional. Apesar de ter influência de várias vertentes, o Movimento de Reconceitução foi
inicialmente polarizado pelas teorias desenvolvimentistas e, a partir de 1971, houve a aproximação com a
tradição marxista, sem entretanto uma apropriação rigorosa aos textos de Marx. A unidade do movimento
consistiu na busca de construção de um Serviço Social latino-americano com a recusa de importação de teorias e
métodos alheio à nossa história e na afirmação do compromisso com as luta dos oprimidos” (BRAVO, 2009, p.
681-682). 52
A perspectiva funcionalista, ou ainda, estrutural-funcionalista tem a visão de que a sociedade é constituída por
partes e que cada uma dessas partes possui suas próprias funções e devem trabalhar em conjunto com as demais,
tendo por objetivo promover a estabilidade social. De acordo com Behring e Boschetti (2011, p. 27-28), “Sua
proposta metodológica é a de tratar os processos sociais como fatos sociais, ou seja, como coisas que não se
equiparam à natureza, mas que devem ser analisadas a partir de procedimentos semelhantes. [...] Para
desencadear esse processo de conhecimento, o autor propõe um conjunto de regras intelectivas e que constituem
o seu método [...]. O sujeito que pesquisa deve se colocar diante de seu objeto numa perspectiva de
exterioridade, tal como os físicos, químicos e biólogos quando se aventuram diante de seus domínios científicos,
ou seja, deixando em suspensão todas as pré-noções. [e ainda, aponta] que o pesquisador observa os fatos, não os
julga”.
47
A perspectiva modernizadora, segundo Simionatto (2011), que se manifestou a partir
de 1965 – no encontro realizado em Porto Alegre –, foi “[...] sistematizada nos Seminários de
Teorização do Serviço Social promovidos pelo Centro Brasileiro de Cooperação e
Intercâmbio de Serviço Social (CBCISS) através dos documentos de Araxá (1967) e
Teresópolis (1970)” (SIMIONATTO, 2011, p. 166). Assim, esses dois documentos
expressam, mediante o contexto instaurado pela ditadura militar brasileira, a tentativa de
adequar os profissionais do Serviço Social colocando para eles um novo mercado, “[...] um
novo padrão de exigências para o seu desempenho profissional [...] exige-se um assistente
social ele mesmo ‘moderno’ – com um desempenho onde traços ‘tradicionais’ são deslocados
e substituídos por procedimentos ‘racionais’ [e burocráticos]” (NETTO, 2011, p. 123, grifo do
autor). Deste modo, de acordo com Simionatto (2011), os documentos gerados pelos
encontros de Araxá e Teresópolis não ultrapassaram as concepções conservadoras que
perpassaram historicamente a profissão, na medida em que apenas reforçaram “[...] o projeto
profissional comprometido com a política de dominação e controle das classes subalternas,
ditadas pelo Estado autoritário” (SIMIONATTO, 2011, p. 166).
O período marcado pela ditadura militar brasileira (1964-1985), de acordo com
Simionatto (2011), ao mesmo tempo em que dificultou reflexões de caráter ideopolítica – não
apenas no âmbito do Serviço Social, mas em todas as profissões – por outro lado, também fez
com que emergissem, de forma embrionária, algumas críticas acerca do poder instaurado,
assim como aos aportes teóricos que perpassavam, nesse momento, o Serviço Social. Netto
(2011) caracteriza duas contribuições acerca da intenção de ruptura53
que se desenvolveu
nesse período, a saber: o “Método Belo Horizonte54
” e a reflexão produzida por Marilda
Villela Iamamoto e Raul de Carvalho55
. “A base teórica do primeiro é constituída
53
“A década de oitenta consolidou, no plano ídeo-político, a ruptura com o histórico conservadorismo do
Serviço Social. Entendamo-nos: essa ruptura não significa que o conservadorismo (e, com ele, o reacionismo) foi
superado no interior da categoria profissional; significa, apenas, que [...] posicionamentos ideológicos e políticos
de natureza crítica e/ou contestadora em face da ordem burguesa conquistaram legitimidade para se expressarem
abertamente” (NETTO, 1996, p. 111). 54
De acordo com Simionatto (2011), o chamado “Método BH” foi desenvolvido entre 1972 e 1975 pela Escola
de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Buscava pautar-se nos
pressupostos da teoria marxista. Para Netto, (2011, p. 275) “[...] configurou a primeira elaboração cuidadosa [...]
de uma proposta profissional alternativa ao tradicionalismo preocupada em atender a critérios teóricos,
metodológicos e interventivos capazes de aportar ao Serviço Social uma fundamentação orgânica e sistemática,
articulada a partir de uma angulação que pretendia expressar os interesses históricos das classes e camadas
exploradas e subalternas”. 55
Segundo Netto (2011), o trabalho desenvolvido pelos dois autores é caracterizado como “[...] a maioridade
intelectual da perspectiva da intenção de ruptura [...] Trata-se de uma elaboração que, exerceu ponderável
influência no meio profissional, configurou a primeira incorporação bem-sucedida, no debate brasileiro, da fonte
‘clássica’ da tradição marxiana para a compreensão profissional do Serviço Social” (NETTO, 2011, p. 275-276).
48
essencialmente pelas teses maoístas e althusserianas, enquanto o segundo centra-se nas fontes
originais do pensamento de Marx [...]” (SIMIONATTO, 2011, p. 171).
Conforme Simionatto (2011), os dois primeiros documentos gerados pelos encontros
de profissionais Assistentes Sociais – Araxá (1967) e Teresópolis (1970), que deram início ao
Movimento de Reconceituação do Serviço Social – não evidenciaram nenhuma menção ao
pensamento marxista. As referências ao pensamento marxista no ambiente do Serviço Social
só veio a acontecer em 1978, quando ocorreu o terceiro encontro promovido pelo CBCISS, no
Centro de Estudos de Sumaré e posteriormente o encontro realizado em Alto da Boa Vista,
em 1984. Foi a partir destes dois últimos encontros que, nos espaços de discussão entre os
profissionais, a perspectiva modernizadora passou a dividir espaço com outras vertentes. De
acordo com Netto (2011), as duas novas vertentes que emergem no âmbito teórico da
profissão são: a “reatualização do conservadorismo”: “[...] que busca pensar o Serviço Social
no quadro da inspiração fenomenológica[56
]” (SIMONATTO, 2011, p. 169); e a “intenção de
ruptura com o Serviço Social tradicional” “[...] que propõe um corte com a herança teórico-
metodológica e com os paradigmas do reformismo conservador, recorrendo à tradição
marxista para encaminhar um novo debate no interior da profissão” (SIMONATTO, 2011, p.
169).
Deste modo, constata-se que a primeira aproximação com a teoria social crítica57
de
Marx, de acordo com Yazbek (2009), se desenvolveu de modo bastante problemático, pois
não havia o contato com as fontes originais de Marx, na medida em que o que ocorreu – nesse
momento – foi “[...] uma aproximação ao marxismo sem o recurso ao pensamento de Marx”
(YAZBEK, 2009, p. 149). É importante ressaltar ainda que até o final da década de 1970 e na
primeira metade da década de 1980, ainda se viveu sob a imposição do regime militar no
Brasil, o que contribuiu para:
56
“A fenomenologia introduz a visão existencial do trabalho social proporcionando a aplicação da teoria
psicossocial. Na fenomenologia o Serviço Social se realiza através da intervenção social ou tratamento social.
Trata-se de um procedimento sistemático onde se desenvolve um processo de ajuda psicossocial, o qual é
realizado através de um diálogo que deve levar às mudanças, partindo das experiências a pessoa, grupo e
comunidade [...] A relação Assistente Social e sujeito deve ser autêntica, numa comunhão para que oportunize
uma reflexão conjunta para uma ação transformadora. Dessa forma, na perspectiva fenomenológica a relação de
ajuda se dá na confluência da proximidade dos parceiros onde há um perguntar e um responder, numa situação
de reciprocidade e horizontalidade da atmosfera afetiva, humana, que leva à compreensão de si, do outro, do nós,
para a possibilidade de uma transformação para a liberdade” (BRANDÃO, 2006, p. 63). 57
De acordo com Netto (2009, p. 672, grifos do autor), “Em Marx, a crítica do conhecimento acumulado
consiste em trazer ao exame racional, tornando-os conscientes, os fundamentos, os seus condicionamentos e os
seus limites – ao mesmo tempo em que se faz a verificação dos conteúdos desse conhecimento a partir dos
processos históricos reais”.
49
[...] abordagens reducionistas dos marxismos de manual quer pela influência
do cientificismo e do formalismo metodológico (estruturalista) presente no
‘marxismo’ althusseriano. [...] [Trata-se de] Um marxismo equivocado que
recusou a via institucional e as determinações sócio-históricas da profissão”
(YAZBEK, 2009, p. 150).
De acordo com Yazbek (2009), as interpretações equivocadas das obras de Marx
acabaram por desenvolver uma leitura deficitária de suas próprias formulações. Assim, foi
somente na década de 1980 – impulsionado pelo Congresso da Virada58
, que aconteceu em
1979 –, expresso pela publicação da autora Marilda Villela Iamamoto, em conjunto com Raul
de Carvalho, do livro Relações Social e Serviço Social no Brasil, no ano de 1982, que o
Serviço Social se aproximou, verdadeiramente, dos conteúdos originários de Marx, ou seja,
diretamente da fonte de Marx e que passou então a adotar a vertente marxista enquanto
referência teórico-metodológica hegemônica. Foi, portanto, a partir da aproximação direta às
fontes originais de Marx, que as interpretações reducionistas – que até então estavam –
presentes no Serviço Social, foram aos poucos substituídas pelos conteúdos da tradição
marxiana e marxista.
Um dos principais elementos que expressaram o amadurecimento intelectual da
profissão de forma concreta mediante a apropriação da teoria marxista constitui-se na
aprovação, em 1986, do quarto Código de Ética dos profissionais Assistentes Sociais. “Ao
mesmo tempo em que se evidenciou como produto de um processo coletivo de deliberação, o
Código de 1986 se colocou como parte de um projeto profissional, articulado a um projeto de
sociedade” (BARROCO; TERRA, 2012, p. 47). Assim,
O conjunto das conquistas efetivadas no CE de 1986 pode assim ser
resumido: o rompimento com a pretensa perspectiva “imparcial” dos
Códigos anteriores; o desvelamento do caráter político da intervenção ética;
a explicitação do caráter de classe dos usuários, antes dissolvidos no
conceito abstrato de “pessoa humana”; a negação de valores a-históricos; a
recusa do compromisso velado ou explícito com o poder instituído. A partir
de 1986, o CE passa a se dirigir explicitamente ao compromisso profissional
58
Aconteceu em 1979 e, de acordo com Bravo (2009, p. 686-687), “[...] vários acontecimentos ocorreram na
categoria que potencializaram a organização dos assistentes sociais para a virada no III Congresso Brasileiro de
Assistentes Sociais (CBAS), estimulados pelo processo de mobilização e organização que estava ocorrendo na
sociedade civil brasileira e que repercutiram na profissão [...]. São considerados como relevantes: O III Encontro
Nacional de Entidades Sindicais ocorrido de 21 a 23 de setembro de 1979, em São Paulo [...] O Encontro
Nacional de Capacitação Continuada promovido pelo Celats, em 1979, no Rio de Janeiro [...] A discussão e a
mobilização para a revisão da formação de Serviço Social pela Abess e a realização da Convenção ocorrida em
Natal em 1979 [...] [e] A rearticulação do movimento estudantil em Serviço Social com a realização do Encontro
Nacional de Serviço Social (Eness) realizado em Londrina (PR), no período de 29 a 31 de outubro de 1978”.
50
com a realização dos direitos e das necessidades dos usuários, entendidos em
sua inserção de classe (BARROCO; TERRA, 2012, p. 48).
Cabe ainda falar do quinto e último Código de Ética dos Assistentes Sociais aprovado
em 1993 – vigente até o momento – e que está em sintonia com o Código de 1986. “A revisão
a que se procedeu, compatível com o espírito do texto de 1986, partiu da compreensão de que
a ética deve ter como suporte uma ontologia do ser social [...]” (CFESS, 1993, p. 15).
Portanto, é importante pautar que todo esse processo histórico percorrido pela
profissão demonstra de forma lenta e gradual o percurso de amadurecimento teórico e
intelectual da profissão. Perpassado por diversas tensões e demonstrando que a profissão –
ainda jovem – precisa frequentemente aprofundar seus estudos para que possa, fundada nos
pressupostos do materialismo histórico dialético, manter-se atualizada às novas demandas,
assim como buscar concretizar seus compromissos enquanto projeto ético profissional.
No ponto que se segue, será desenvolvida mais detalhadamente a forma como o
Serviço Social se aproximou da corrente marxista e de que modo essa perspectiva tornou-se
hegemônica na categoria profissional dos Assistentes Sociais.
2.2 A APROXIMAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO COM O MATERIALISMO
Como já mencionado anteriormente, a vertente materialista histórica-dialética vinha
perpassando os rumos teóricos do Serviço Social desde a década de 1960, quando, de acordo
com Brandão (2006), alguns grupos de assistentes sociais59
começaram a questionar o Serviço
Social quanto à sua natureza e operacionalização, partindo assim para uma crítica da
sociedade. Contudo, esse processo se deu de modo tímido e mediante interpretações
equivocadas de um materialismo histórico dialético que acabou sendo, em seguida, suprimido
pela ditadura militar instaurada no Brasil a partir de 1964. Deste modo, de acordo com Netto
(2011), para que se possa compreender o movimento de construção da trajetória do Serviço
Social, ligado à vertente marxista, é preciso entender, fundamentalmente, os rebatimentos
advindos a partir do golpe militar de 1964 que incidiram diretamente – mas não somente – na
formação universitária dos assistentes sociais.
59
Dando origem ao Movimento de Reconceituação já explicitado anteriormente.
51
Ainda segundo Netto (2011), houve, a partir de meados dos anos de 1950, no Brasil,
uma demanda social por uma educação institucional60
, na medida em que tal demanda estava
condicionada ao padrão de desenvolvimento associado à industrialização pesada. Após a
instauração do golpe militar de 1964 – apesar da educação institucional continuar se
mantendo presente ainda enquanto uma demanda da própria sociedade brasileira que vinha se
industrializando e demandando uma força de trabalho mais qualificada – ocorreram algumas
mudanças na esfera da educação, dado que “[...] desde o início do golpe de abril [...] já se
tinha definida a ‘filosofia’ para a política social no terreno da educação. [...] esta ‘filosofia’
consistia no enquadramento do processo institucional da educação” (NETTO, 2011, p. 54,
grifos do autor). Desta forma, desde o golpe militar se tinha por objetivo uma educação com o
intuito de manutenção do regime que havia se instaurado. Assim, a questão educacional se
constituía em um dos elementos no qual os dirigentes do regime militar tinham por objetivo
desenvolver ações; contudo, não se configurava, em um primeiro momento, como uma
preocupação, mas tornou-se quando a partir de 1967 e 1968 o movimento estudantil começou
a alçar os primeiros planos de contestação ao regime. Trata-se de “[...] um contingente social
cujas expectativas sociais [...] se defraudadas, engendram um efeito político-social
potencialmente ameaçador para a consolidação da vitória conquistada pela coalizão golpista
de 1964” (NETTO, 2011, p. 56, grifos do autor). Desta forma, quando os dirigentes do regime
sentiram-se ameaçados, direcionam ações voltadas para a refuncionalização do sistema
educacional61
.
Essa política educacional engendrada pela ditadura, segundo Netto (2011), não
resultou na redução da repressão advinda com o golpe. Ao contrário, houve o acirramento da
repressão na medida em que “O requisito da ‘construção educacional’ era a liquidação – pelos
métodos mais execráveis – de todas as fontes visíveis de resistência à ditadura” (NETTO,
2011, p. 60). Deste modo, ocorreu a reformulação da política educacional em face ao modelo
econômico, na perspectiva de suprimir qualquer possibilidade de ascensão de forças
60
De acordo com Netto (2011), essa educação institucional relaciona-se com a qualificação da população
brasileira, na medida em que a população não transitava historicamente pela escola em qualquer nível. Assim, foi
a partir desse incentivo – não somente decorrente da ditadura militar brasileira, mas que teve forte presença
nesse período – que a educação torna-se um elemento de cunho mais obrigatório em âmbito nacional, com o
objetivo de qualificar a população para atender as demandas do mercado dentro do estado brasileiro. 61
“[...] a refuncionalização do sistema educacional a partir de então conduzida obedece, no que concerne ao
ensino superior, ao modelo oferecido pelos assessores norte-americanos que comandaram os estudos para a
‘reforma universitária’ [...] numa operação que um analista não hesitou em caracterizar como uma
‘desnacionalização no campo educacional [que] tomou formas nunca vistas’ (Góes, in Góes e Cunha, 1985:33).
[...] O que importa é que [...] emerge o sistema educacional da autocracia burguesa, erguido num
processamento que primeiro incidiu sobre os níveis superiores do ensino para, em seguida, modelar os níveis
elementares e básicos” (NETTO, 2011, p. 59-60, grifos do autor).
52
subversivas ao regime. Ocorreu também a entrada da “lógica empresarial”, que, de acordo
com Netto (2011, p. 62) “[...] transformou [...] o ensino superior num setor para investimentos
capitalistas privados extremamente rentáveis – a educação superior sob a autocracia burguesa,
transformou-se num ‘grande negócio’[62
]”.
Apesar dessa configuração que passou a se desenvolver e se ampliar, precisamente
nesse período histórico, conforme Netto (2011), a resistência democrática não foi totalmente
suprimida, apesar de adquirir um caráter profundamente restrito. Desta forma, o resultado
alcançado pela política educacional consistiu na neutralização e no esvaziamento da
universidade, na medida em que:
Sem condições de construir [...] uma universidade ativamente legitimadora,
o regime autocrático burguês teve o seu sistema universitário [...]
conformado num ensino superior asséptico, apto a produzir quadros
qualificados afeitos à racionalização formal-burocrática. Em larga medida, o
regime conseguiu o que pretendia: cortou com os laços vivos, tensos e
contraditórios que prendem a universidade ao movimento das classes sociais:
oclusos, obturados pela repressão e pela gestão “modernizadora”, os seus
condutos com a vida e o[s] processo[s] sociais, a universidade foi insultada:
perdeu o dinamismo crítico (e, pois, criativo) que só lhe garante o
rebatimento, no seu interior, das tensões entre distintos projetos societários, e
consequentemente viu exauridos os seus processos específicos e particulares
de elaboração produtiva. Nela, hipertrofia-se o procedimento reprodutivo,
com a decorrência inevitável da degradação do seu padrão de trabalho
intelectual” (NETTO, 2011, p. 65, grifos do autor).
Diante dessa estrutura da política educacional, Netto (2011), demarca ainda a expulsão
de professores e pesquisadores atrelados às tendências democráticas e progressistas. Isso
porque houve o aumento quantitativo do corpo docente, “[...] criou-se um quadro de
professores ‘descomprometidos com o passado’ – inclusive e principalmente com a
continuidade do padrão de trabalho intelectual que vinha se afirmando, a duras penas, desde
meados dos anos cinquenta” (NETTO, 2011, p. 66). Funda-se nesse momento o que chama de
“aparente pluralismo” que sugeria tolerar, ou seja,
62
De acordo com Chauí (1999), foi no período de ditadura militar brasileira que o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) direcionou investimentos frente à reforma do ensino. “O BID trata o ensino superior
exatamente como trata todos os seus outros investimentos (portanto, em uma perspectiva administrativo-
operacional) e apoiará os projetos com forte componente de reforma. [...] financiará os projetos adequadas à
idéia de investimento bancário. [...] O banco pretende, assim, reunir, centralizar e racionalizar essas forças para
que haja sucesso no investimento. [...] O BID considera, porém, que as universidades privadas, ‘embora
ofereçam uma formação de baixa qualidade, caracterizam-se por fatores que estão na ordem do dia da
modernização: diferenciação institucional, financiamento privado, resultados muito melhores em termos dos
critérios de eficiência e limitação dos conflitos políticos’. O diagnóstico negativo se refere, portanto,
prioritariamente às universidades públicas, cujo grau de politização, julga o BID, é excessivo e prejudicial”
(CHAUÍ, 1999, p. 121-122).
53
[...] um discurso de esquerda, que só pagava um preço para sobreviver; não
conjugar a reflexão [...] No limite, tal neutralização era compatível até com a
existência de um “marxismo acadêmico” – desde, é claro, que jejuno de
prática social e, preferencialmente, crítico do “marxismo aplicado”. Este
“marxismo acadêmico”, limitado a fronteiras puramente intelectuais,
potencialmente desempenhava funções de apologia indireta (NETTO, 2011,
p. 67).
Conforme Netto (1995), esse período trouxe mudanças substantivas para a profissão,
pois a ditadura foi, em parte, responsável pela laicização do Serviço Social, isto é, mediante o
desdobramento da ditadura militar brasileira é possível identificar os primeiros traços de
rompimento com o conservadorismo tradicional presente no Serviço Social. Esse fato ocorreu
porque as práticas tradicionais – relacionadas à ação da Igreja Católica – foram substituídas
por práticas burocráticas de cunho racional ligadas ao Estado, e também porque a própria
profissão vinha se desenvolvendo e se afastando das práticas tradicionais. Portanto, pode-se
concluir que a laicização do Serviço Social apresenta um duplo caráter, pois antes mesmo da
ditadura militar o Serviço Social vinha se desenvolvendo de forma lenta e gradual rumo ao
distanciamento das práticas ligadas à ação da Igreja Católica, uma vez que através da criação
da primeira Escola de Serviço Social – em São Paulo, em 1936 – ocorreu o aprofundamento
de estudos e de disciplinas, o que vinha ocasionando uma reflexão acerca das práticas
tradicionais. Por outro lado, a instauração da ditadura militar potencializou e impulsionou de
forma mais intensa a reflexão da profissão no que se refere às práticas tradicionais. Nesse
contexto é que é possível identificar o processo de renovação do Serviço Social, que “[...]
impulsiona a categoria repensar questões emergentes e favorecer a construção de sua nova
identidade profissional” (BRANDÃO, 2006, p. 51).
Netto (2011) caracteriza três direções constitutivas desse processo, a saber:
1) a perspectiva modernizadora que se deu no período de 1965 a 1970 e é expressa
pelo seu caráter inovador de adequação do Serviço Social a práticas compatíveis com o
regime autocrático burguês63
. Sofreu influência norte-americana, tendo como característica os
aspectos: burocrático, funcionalista e tecnocrático. Essa perspectiva foi a que teve maior
aspiração pela categoria profissional, sendo difundida pelo Centro Brasileiro de Cooperação e
Intercâmbio de Serviços Social (CBCISS). Houve, nesse período, a modernização de
63
De acordo com Netto (2011), é uma expressão que se refere à influência de um grupo, neste caso, a burguesia,
no poder e no desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Não se caracteriza como um regime político, mas seu
processo se dá com a tomada de decisões em termos de políticas públicas a partir da posição da burguesia, que
sofre influências dos países centrais imperialistas.
54
tendências tradicionais, na medida em que a atuação condizia com as demandas impostas pelo
regime ditatorial. Somente mais tarde, essa perspectiva entrou em crise em virtude dos
segmentos tradicionais e críticos, pois os primeiros não concordavam com a nova roupagem
dada à atuação dos profissionais, enquanto que os segmentos mais críticos também não
concordavam com a atuação moderna com traços tradicionais. Pode-se considerar que foi um
momento de tensão entre os profissionais e também que foi nesse período que o repensar da
atuação profissional se engendrou de forma embrionária, abrindo a discussão para o coletivo
da categoria, na medida em que se desdobrou nos anos subsequentes numa busca por romper
com as velhas práticas.
2) a reatualização conservadora: ocorreu entre 1970 a 1975. É caracterizada por
repudiar tanto a teoria positivista como a teoria dialética – nesse momento, compreendida de
forma equivocada. Incorpora a teoria fenomenológica, na medida em que os fatos se
justificam por si só, desenvolveu-se a partir da concepção de pessoa, diálogo e transformação
social. Teve como objetivo centrar-se nas experiências individuais dos sujeitos a fim de
reintegrá-los ao meio social pela via da psicologização. Essa reatualização conservadora não
se adequou à autocracia burguesa, mas também não foi contrária à ela, correspondeu à
atuação no sentido da neutralidade. Retomou características conservadoras sob um novo viés,
considerando essas práticas como as mais adequadas. Foi difundida pelas instituições
universitárias. Nesse período, dá-se início a uma tendência crítica, donde se inicia a reflexão –
de forma bastante genérica – acerca dos fenômenos que se justificavam em si mesmo, ou por
si só – características da teoria fenomenológica – que vai se desenvolver mais tarde dando
início a intenção de ruptura.
3) a intenção de ruptura ocorreu entre 1975 a 198564
e é caracterizada pela entrada
progressiva da teoria marxista, sendo contrária às outras duas direções. Diferencia-se delas
porque nesse momento os assistentes sociais passaram a se identificar enquanto classe
trabalhadora, o que deu origem – a partir desse momento – ao compromisso assumido com os
seus usuários e com a classe trabalhadora. Desta forma, é nesse contexto que a profissão
enquanto categoria passa a se questionar, de modo mais direto e efetivo, quanto à sua atuação
profissional, na medida em que passa a entender a lógica capitalista diante de sua intervenção
profissional, ou seja, a categoria continua servindo aos interesses da autocracia burguesa, mas
agora passará a buscar legitimar também os interesses da classe trabalhadora.
64
Apesar de datado esse momento denominado de “Intenção de Ruptura”, pode-se afirmar que a “Intenção de
Ruptura” ainda é vivenciada atualmente, na medida em que se podem constatar práticas conservadoras que
proporcionam tensões entre diferentes profissionais nos diversos ambientes de trabalho.
55
Deste modo, de acordo com Netto (2009), para que se possa compreender a
aproximação do Serviço Social com o materialismo histórico dialético65
e também o que
levou a categoria profissional a apropriar-se dessa vertente teórica de forma hegemônica – de
modo embrionário a partir da década de 1970 e de forma mais consistente no decorrer da
década de 1980 –, é preciso considerar que a profissão na década de 1960 desconhecia a
pesquisa como parte constitutiva do seu perfil profissional. Isso não significa dizer que os
assistentes sociais não realizavam pesquisas, mas que a pesquisa não tinha – nesse período –
uma centralidade no exercício profissional. É importante salientar esse processo para
compreender o percurso da profissão e o modo como ocorreu – de forma lenta e gradual – o
amadurecimento da categoria profissional que a direcionou à vertente materialista.
Segundo Netto (2009), nos anos que se seguiram a 1968 – conforme já mencionado –
o país passou por uma reforma universitária que desencadeou transformações na sociedade
brasileira, o que ocasionou tanto a alteração das condições da formação dos assistentes
sociais, como também ao exercício da profissão. Novas demandas emergiram, a formação
laicizou-se66
e passou a integrar de modo efetivo os círculos acadêmicos. Fato, este último,
que impulsionou e estimulou a pesquisa na área do Serviço Social. Deste modo, a pesquisa
adquiriu uma importância para o Serviço Social, na medida em que foi se apropriando do
método marxista e que vai, a partir disso, construindo um referencial teórico, compreendendo,
a partir de então, os processos sociais.
[...] o método não é um conjunto de regras formais que se ‘aplicam’ a um
objeto que foi recortado para uma investigação determinada nem, menos
ainda, um conjunto de regras que o sujeito que pesquisa escolhe, conforme a
sua vontade para ‘enquadrar’ o seu objeto de investigação. [...] O método
implica, pois, para Marx, uma determinada posição (perspectiva) do sujeito
que pesquisa: aquela em se põe o pesquisador para na sua relação com o
objeto, extrair dele as suas múltiplas determinações (NETTO, 2009, p. 688-
689, grifos do autor).
65
De acordo com Brandão (2006), a dialética consiste em um movimento ocasionado por forças produtivas, que
são contraditórias, mas que se complementam. Seu surgimento trouxe consigo grandes rebatimentos para a
história da humanidade e não se caracteriza como produto da criação isolada de um sujeito, mas sim é produto
do desenvolvimento da história e dos sujeitos sociais de modo coletivo. “A dialética do materialismo é a posição
filosófica que considera a matéria como a única realidade e que nega a existência da alma, de outra vida e de
Deus. Sustenta que a realidade e o pensamento são as mesmas coisas: as leis do pensamento são as leis da
realidade” (BRANDÃO, 2006, p. 66). 66
Laicizou-se no sentido de afastar-se da perspectiva conservadora tradicional ligada à Igreja Católica, ou seja, a
partir desse momento a formação assume um caráter racional, mas ainda sofre influência religiosa, através de
instituições filantrópicas.
56
De acordo com Netto (2009), a teoria dentro do método marxista consiste na
reprodução do ideal, a reprodução do pensamento e de um movimento concreto que existe na
realidade. Deste modo, pode-se afirmar que a teoria não é e não se reduz ao mero
detalhamento com relação a um objeto. Pelo contrário, sempre vai buscar as medições e as
determinações do objeto, com as questões mais totalitárias. Assim, a pesquisa e/ou a teoria vai
ser sempre uma ciência da verdade. Conforme Netto (2009), para Marx, a teoria é sempre
reprodução do real; assim, não se trata de algo que na medida em que se desenvolve a
comunidade científica, pode considerar certo ou errado. A teoria vai ser sempre reprodução do
real, na medida em que a teoria por si só não produz nada, ela apenas reproduz o movimento
da realidade. Após entender esse processo, há no método duas outras categorias que são
importantes, a saber: aparência e essência.
Conforme Netto (2009), a aparência refere-se a um fenômeno ou objeto. É o que Netto
chama de aparência fenomênica “[...] por onde necessariamente se inicia o conhecimento,
sendo essa aparência um nível da realidade e, portanto, algo importante e não descartável –, é
apreender a essência (ou seja: a estrutura e a dinâmica) do objeto” (NETTO, 2009, p. 674).
Trata-se do ponto de partida do pesquisador e nunca será um objetivo, porque a aparência está
dada, na medida em que o contato do pesquisador com o objeto ou fenômeno ocorre no
momento em que ele se depara com ele de forma aparente. Após esse primeiro contato com o
fenômeno ou objeto, cabe ao pesquisador desvelar sua essência. Assim, a teoria social
marxista vai realizar o seguinte movimento: concreto, abstrato e concreto pensado.
Segundo Netto (2009), o concreto refere-se à aparência, mais precisamente ao modo
como um fenômeno aparece ao pesquisador. Em um primeiro momento, estará sempre
relacionado à aparência, ou seja, ao imediato. Esse fenômeno está atrelado a múltiplas
determinações67
; contudo, nesse momento, o pesquisador ainda não consegue apreender essas
múltiplas determinações.
A abstração, de acordo com o mesmo autor, “[...] é a capacidade intelectiva que
permite extrair da sua contextualidade determinada (de uma totalidade) um elemento, isolá-lo,
examiná-lo; é um procedimento intelectual sem a qual a análise é inviável [...] é um recurso
indispensável para o pesquisador” (NETTO, 2009, p. 684). Assim, a abstração relaciona-se ao
67
Conforme Netto (2009, p. 685), “[...] determinações são traços pertinentes aos elementos constitutivos da
realidade; nas palavras de um analista, para Marx, a determinação é um ‘momento essencial constitutivo do
objeto’ [...] por isto, o conhecimento concreto do objeto é o conhecimento das suas múltiplas determinações –
tanto mais se reproduzem as determinações de um objeto, tanto mais o pensamento reproduz a sua riqueza
(concreção) real. As ‘determinações as mais simples’ estão postas ao nível da universalidade; na imediaticidade
do real, elas mostram-se como singularidades – mas o conhecimento do concreto opera-se envolvendo
universalidade, singularidade e particularidade”.
57
pensamento, a fazer a análise daquele fenômeno, na medida em que sempre passa por um
processo ideal do pensamento intelectual, isto é, trata-se de um objeto de pesquisa sobre o
concreto. Já no que se refere ao concreto pensado, trata-se da realização do processo de
reflexão daquele objeto, ou seja, o pesquisador passa a entender aquele concreto do início,
mas já de uma maneira reflexiva sobre ele, compreendendo as medições e as determinações
postas.
A realidade é concreta exatamente por isto, por ser a “síntese de muitas
determinações”, a “unidade do diverso” que é própria de toda totalidade. O
conhecimento teórico é, nesta medida, para Marx, o conhecimento do
concreto, que constitui a realidade, mas que não se oferece imediatamente ao
pensamento: deve ser reproduzido por este e só “a viagem de modo inverso”
permite esta reprodução. [...] em Marx, há uma contínua preocupação em
distinguir a esfera do ser da esfera do pensamento; o concreto a que chega o
pensamento pelo método de Marx considera “cientificamente exato” (o
“concreto pensado”) é um produto do pensamento que realiza a “viagem de
modo inverso”. Marx não hesita em qualificar este método como aquele
“que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto”, “único modo” pelo qual
“o cérebro pensante” “se apropria do mundo” (NETTO, 2009, p. 685).
Deste modo, pode-se concluir que esse é o movimento do método do pensamento
marxista. Assim, é possível entender a aproximação e a relação do Serviço Social com o
materialismo histórico dialético, na medida em que o ponto crucial não é a profissão conhecer
propriamente toda a teoria marxista, mas sim apropriar-se do seu método de pesquisa. Logo,
não se trata de uma teoria que dá conta de uma totalidade ampla, mas metodologicamente dá
conta do todo. Desta forma, portanto, pode-se constatar que a grande questão da profissão foi
a matização do método marxista, na medida em que ele permite apanhar “[...] criticamente a
imediaticidade dos fenômenos, identificando as determinações subjacentes às demandas,
descontruindo-se e promovendo a produção de conhecimentos e de referências que balizem a
intervenção profissional” (MOTA, 2014, p. 703).
2.3 A RELAÇÃO ENTRE O MATERIALISMO DE FEUERBACH COM O
MATERIALISMO DO SERVIÇO SOCIAL
Diante de todos os elementos desenvolvidos ao longo deste trabalho, pode-se constatar
que a compreensão do materialismo por Feuerbach constitui-se a partir de sua crítica à
religião. Assim, “Feuerbach colocou-se [...] o desafio de mostrar que o que constituía a
fundamentação da religião, [...] era a manifestação de um conteúdo humano, o qual remetia
58
fundamentalmente ao homem e suas potencialidades e não a uma entidade divina exterior”
(SCHÜTZ, 2011, p. 21). Deste modo, de acordo com Schütz (2011), na concepção de
Feuerbach, a partir do momento em que o homem consegue se descolar dessa compreensão
metafísica de existência de um ser extraterreno fora de si, é-lhe permitido adentrar a sua plena
liberdade, na medida em que isso lhe possibilitaria construir a si e a sociedade a partir dele
mesmo. Feuerbach buscou demonstrar que não existe nada para além da materialidade do
próprio homem. Assim, é preciso romper com a alienação religiosa, na medida em que a
existência de um ser extraterreno nada mais é do que uma ilusão humana, proveniente de
reflexos inatos ao próprio homem. Feuerbach constrói sua crítica desvelando os fundamentos
antropológicos da religião, ou seja, o seu materialismo refere-se ao materialismo
antropológico.
Deste modo, para que seja possível estabelecer uma relação entre a crítica de
Feuerbach à religião, especialmente na sua aproximação com o materialismo a partir da
ruptura do aspecto religioso do Serviço Social brasileiro e de seu Movimento de
Reconceituação e aproximação com o materialismo – na medida em que a trajetória do
Serviço Social adquiriu ao longo do seu processo histórico o amadurecimento e os
embasamentos teóricos que lhe proporcionaram a aproximação e a adesão do materialismo
histórico dialético de Marx – é preciso compreender antes a ligação existente entre o
materialismo de Feuerbach e o de Marx. Trata-se de autores diferentes, mas que possuem uma
relação teórica, na medida em que Marx, ao construir a sua teoria crítica embasada no
materialismo, apropriou-se de alguns conceitos e termos elencados anteriormente por
Feuerbach, bem como de outros autores.
De Feuerbach, Marx retira a concepção de alienação religiosa como
desapropriação de seu próprio “ser genérico”, tornando-se homem estranho
de si mesmo. De Bruno Bauer, retira a concepção de alienação religiosa
como opressão do homem por seu próprio produto (Deus). De Moses Hess,
retira a concepção de alienação do dinheiro, como inversão da relação entre
meio e fim (LOWY; DUMÉNIL; RENAULT, 2015, p. 13).
É importante dizer que Marx, ao apropriar-se e aprofundar o conceito de alienação de
Feuerbach68
, deslocou essa categoria para outras dimensões das relações humanas. Diante
68
“Em Marx, a noção de alienação designa: a) uma separação (separação entre o homem e a sua natureza,
separação entre o trabalhador e os seus produtos); b) uma inversão (inversão das relações entre o homem e Deus,
da vida social e da vida política, da atividade humana e das relações econômicas); e c) uma opressão do sujeito
pelo objeto (submissão dos homens às representações religiosas, dominação da vida social pelo Estado, opressão
dos trabalhadores pelo capital)” (LOWY; DUMÉNIL; RENAULT, 2015, p. 13).
59
disso, de acordo com Schütz (2011), Feuerbach ao longo de seu desvelamento acerca da
alienação religiosa não conseguiu percebeu as potencialidades mais amplas que a categoria
alienação poderia atingir no âmbito de outras esferas das relações sociais. Condição esta
apreendida por Marx e desenvolvida por ele ao longo de seus estudos acerca da sociedade
capitalista e que lhe deu sustentação69
para a estruturação de seu materialismo histórico
dialético. Deste modo, na medida em que Marx apropriou-se e aprofundou alguns termos
utilizados por outros autores, essas apropriações contribuíram para que desenvolvesse a sua
teoria crítica embasada no materialismo histórico dialético, ou seja,
[...] Marx apresentou a sua própria filosofia como “novo” materialismo. No
ponto em que a ação é interpretada pelo idealismo como atividade subjetiva,
Marx coloca, do materialismo, o papel determinante das “circunstâncias”, ou
as condições naturais e sociais da prática. [...] de alcance essencialmente
polêmico, essa concepção materialista designa um projeto, mais que uma
doutrina: trata-se de levar o estudo da história à sua base econômica, e de
deixar de vê-la como o simples desenvolvimento de princípios abstratos.
Mas trata-se, obviamente, do projeto de uma ciência materialista da história,
que será designada precisamente “materialismo histórico”, no marxismo
(LOWY; DUMÉNIL; RENAULT, 2015, p. 85-86).
Assim, a apropriação do materialismo de Marx pelo Serviço Social envolve alguns
elementos mais profundos do que o materialismo antropológico desenvolvido por Feuerbach.
Desta forma, a relação existente consiste primeiramente no materialismo em si, ou seja, que
tanto em Feuerbach quanto no Serviço Social parte-se do pressuposto da materialidade do
homem e das relações provenientes dessa materialidade. Assim, tanto na concepção de
Feuerbach quanto no amadurecimento teórico da profissão – denominado de Movimento de
Reconceituação do Serviço Social – ocorreu a desconstrução e/ou o distanciamento da relação
do homem com os princípios religiosos, na medida em que a concepção religiosa deixou de
69
“Aquilo que na crítica da religião só poderia se dar numa dimensão abstrata e desvinculada da realidade
política e histórica do ser humano, precisava tornar-se um instrumento para trazer à tona as formas de dominação
não sagradas que se apoiavam na mesma forma de legitimação que a religião. Era preciso, pois, utilizando esta
estrutura crítica, combater a realidade concreta e fundamentadora da alienação, demonstrando o seu caráter
enganador” (SCHÜTZ, 2011, p. 53). Assim, “[...] o capital é aquele resumo religioso em vista e pelo qual toda
sociedade se organiza, e do qual a forma de trabalho abstrato, o dinheiro e mesmo a constituição social burguesa
(Estado X Sociedade civil) são apenas algumas expressões. É o princípio hegemônico a partir do qual tudo se
organiza. Mas, tal como Deus, que ao mesmo tempo está em tudo, mas não está em nada, é um princípio
metafísico que orienta a organização social, a partir do qual os indivíduos e suas atividades podem ser
reconhecidas. [...] Marx, no entanto, buscou mostrar que esta era apenas uma forma histórica de organização
social e tinha pressupostos antropológicos que poderiam ser tornados públicos e reavaliados. Em outras palavras,
ao tentar desmistificar os pressupostos da sociedade capitalista, Marx estava à procura de estruturas que
evidenciassem esta alienação humana possibilitada pela falta de consciência social do ser humano” (SCHÜTZ,
2011, p. 180).
60
ser um argumento – tanto para Feuerbach quanto para o Serviço Social em suas primeiras
práticas – para as soluções dos problemas que se relacionam aos homens, assim como a partir
desse entendimento, parte-se do pressuposto de que os acontecimentos são provenientes das
ações dos próprios homens e que não há nenhum Deus que “guia” ou que “decide” a vida das
pessoas.
Deste modo, pode-se afirmar que a aproximação do Serviço Social com o
materialismo histórico dialético de Marx – que fundamentou muito de sua teoria a partir de
conceitos provenientes de Feuerbach, por isso existe a relação entre um e outro – trouxe
elementos mais consistentes para a profissão e também veio a possibilitar, de forma mais
efetiva e consistente, a intenção de ruptura com as antigas práticas. Assim, pode-se constatar
que o materialismo histórico dialético de Marx – que possui traços na sua construção
advindos do próprio Feuerbach – consiste na corrente teórica que melhor sustenta a
compreensão de mundo, homem e sociedade que o Serviço Social construiu ao longo de sua
trajetória e amadurecimento intelectual, quando a partir de 1980 ganhou maturidade teórica
justamente pela aproximação e apropriação do materialismo de Marx.
61
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No processo de pesquisa que se desenvolveu neste Trabalho de Conclusão de Curso,
buscou-se responder ao problema: é possível estabelecer uma relação entre a crítica de
Feuerbach à religião, especialmente na sua aproximação com o materialismo a partir da
ruptura do aspecto religioso do Serviço Social brasileiro e de seu Movimento de
Reconceituação e aproximação com o materialismo?
Deste modo, pode-se concluir que Feuerbach parte da concepção de homem e
fundamenta sua crítica à religião a partir da constatação de que a existência de um ser
denominado Deus não passa de uma ilusão humana. Assim, Deus nada mais é do que um
reflexo ilusório criado pelo próprio homem à sua imagem e semelhança. Portanto, Deus não
existe e a concepção de sua existência é proveniente dos próprios homens. Os homens criam
essa criatura e se submetem à ela, perdendo de vista os seus fundamentos antropológicos, na
medida em que na verdade “A essência verdadeira é a que pensa, que ama, que deseja.
Verdadeiro, perfeito, divino é apenas o que existe em função de si mesmo” (FEUERBACH,
2012, p. 36). Desta forma, o que existe é o homem em si mesmo, de modo que as concepções
que se direcionam para além disso consistem em construções humanas com princípios
determinados, direcionados à manipulação, controle e domínio. Utiliza-se aqui da alienação
como instrumento de dominação. Feuerbach, em seu livro, abriu a discussão, na busca por
desmistificar os princípios religiosos e proporcionar outra forma de apreensão da vida em
sociedade. Desenvolveu seus estudos e concebeu o materialismo antropológico.
A gênese do Serviço Social esteve vinculada com práticas ligadas à ação da Igreja
Católica, característica presente não só no Brasil, mas em grande parte do mundo. Nesse
ponto, a relação com Feuerbach se dá na medida em que as primeiras ações desenvolvidas
tinham como pressuposto a forte influência da existência de um Deus que agia e controlava as
relações sociais, de modo que a atuação profissional possuía um caráter assistencialista,
baseando-se nos princípios da moralidade e da solidariedade cristã. Tendo como referência a
crítica de Feuerbach, isso significa dizer que as ações eram movidas pelo intuito de fazer o
bem, na medida em que não havia neste momento a apreensão de que a Igreja havia perdido
influência, que buscava se fortalecer e sendo orientada pela hierarquia procurava “[...]
organizar e qualificar seus quadros intelectuais laicos para uma ação missionária e
evangelizadora na sociedade. [...] A Igreja, luta, ainda, pela legitimação jurídica de suas áreas
de influência dentro do aparato do Estado” (IAMAMOTO, 2013, p. 20). Deste modo, Deus
62
passou a ser considerado como “[...] fonte de toda a justiça, e apenas uma sociedade baseada
nos princípios cristãos pode realizar a justiça social” (IAMAMOTO, 2013, p. 21). Nesse
sentido, o Serviço Social – ainda não institucionalizado – caracterizava-se pelos mesmos
princípios a que Feuerbach se refere, pois não havia a clareza dos interesses perpassados pela
ação da Igreja Católica, assim como não havia a percepção da contradição inerente ao modo
de produção capitalista. Assim, a ação do laicato caracteriza-se por uma atuação de cunho
alienado, na medida em que fortalecia a lógica capitalista sem nesse momento entendê-la. Não
havia a clareza dos interesses, da influência que a Igreja possuía sobre a sociedade dentro dos
moldes capitalistas, da articulação embrionária entre o Estado e a Igreja e da concepção de
que a existência de um Deus nada mais era do que uma forma de controle e dominação, não
sendo percebido, neste momento, como meramente o reflexo do próprio ser humano.
Somente mais tarde, após a institucionalização do Serviço Social, que ocasionou o
surgimento das primeiras escolas, o que proporcionou através da pesquisa a aproximação
teórica e científica, é que essa perspectiva foi lentamente discutida e superada por outras
formas de intervenção.
Assim, pode-se constatar que, dentro da trajetória do Serviço Social, algumas
perspectivas perpassaram a forma de atuação e intervenção profissional – positivista e
fenomenológica – até o momento em que inicia em 1965 o chamado Movimento de
Reconceituação. Esse Movimento de Reconceitução trouxe a aproximação – inicialmente de
forma equivocada e depois a partir de fontes originais – do materialismo histórico dialético de
Marx. Esse materialismo relaciona-se com o materialismo de Feuerbach na medida em que
Marx apropriou-se de e aprofundou conceitos que foram desenvolvidos inicialmente por
Feuerbach – cabe aqui lembrar o conceito de alienação que Marx deslocou para outras
dimensões das relações sociais dentro do modo de produção capitalista. Esse aprimoramento
desenvolvido por Marx, dos pressupostos desenvolvidos por Feuerbach, proporcionaram-lhe
condições para elaborar a sua teoria crítica, a qual foi apropriada pelo Serviço Social, na
medida em que essa passou a ser a vertente que melhor expressa o entendimento da categoria
profissional mediante a visão de homem, mundo e sociedade.
O materialismo do Serviço Social caracteriza-se e é resultado do amadurecimento
teórico-metodológico da profissão, ou seja, devido ao próprio aprofundamento científico e da
apreensão da categoria profissional foi possível apreender a profissão e sua intervenção como
um processo histórico, proveniente do próprio homem e que permanece em construção.
Assim, o materialismo histórico de Marx é a vertente que melhor expressa o entendimento da
63
categoria profissional mediante a visão de homem e mundo. A relação entre o materialismo de
Feuerbach e o do Serviço Social relaciona-se nesse ponto dentro da concepção de
materialidade do homem, do mundo e da sociedade, na medida em que as relações se dão
essencialmente dentro dessa perspectiva de matéria/materialidade.
Desta forma, a atuação do Serviço Social deve possibilitar a transformação da
sociedade e das pessoas. Assim, não cabe mais a noção de um Deus que “guie” ou que
justifique as desgraças da vida do sujeito, ou ainda, o pensamento de que Deus irá
recompensar e melhorar a vida, porque as relações ocorrem na materialidade e não nos
pressupostos de uma construção metafísica que é resultado de um processo histórico e
proveniente da ilusão humana.
A trajetória do Serviço Social perpassou algumas apreensões de mundo diferentes das
apresentadas pelo materialismo histórico de Marx – perspectiva positivista e fenomenológica.
Contudo, pode-se destacar que foi a partir do Movimento de Reconceituação, e mais
efetivamente a partir de 1980 e ainda hoje, que se pode constatar a escolha da categoria
profissional direcionada ao materialismo porque o processo de amadurecimento levou os
profissionais a essa escolha teórica, conforme já elencado.
Assim, abre-se uma importante questão a ser enfatizada e que deve proporcionar
futuras investigações: apesar do conservadorismo ligado às práticas tradicionais de cunho
religioso e também a outras vertentes teóricas que confrontam diferentes tendências no
interior da categoria profissional serem consideradas práticas superadas por grande parte dos
profissionais, notam-se em diversos espaços a forte presença dos pressupostos religiosos,
assim como da atuação de profissionais relacionados a outras vertentes teóricas que não a
marxista. Deste modo, um dos principais desafios que se colocam hoje para o Serviço Social,
na medida em que se verifica cada vez mais a atuação profissional ligada a práticas
conservadoras “[...] é garantir que os avanços teórico-políticos e acadêmicos do Serviço
Social brasileiro, gestados desde a década de 1980, mantenham uma relação de unidade com
a prática e a formação profissional” (MOTA, 2014, p. 700, grifos do autor).
Trata-se de uma discussão de suma importância, mas que é pouco discutida em virtude
do discurso de que esse tema se trata de algo superado pela trajetória da categoria
profissional. Porém, não se pode deixar que as lutas e conquistas alcançadas após o fim do
regime militar sejam esquecidas. Os novos assistentes sociais precisam apropriar-se do
processo histórico da profissão, dar continuidade na luta pela garantia dos direitos
conquistados e principalmente ter a dimensão do significado da ofensiva neoliberal e dos
64
rebatimentos que essa ofensiva vem proporcionando – não apenas, mas principalmente – à
formação profissional dos assistentes sociais. A discussão precisa ser reaberta e deve voltar
aos círculos do debate profissional e acadêmico, para que as conquistas alcançadas com muito
esforço não sejam esquecidas e, principalmente, para que as práticas conservadoras – já muito
presentes – não alcancem ainda maior espaço no exercício profissional.
Desta forma, embora nos limites desta pesquisa e a partir das inúmeras indagações
proporcionadas com o processo, buscou-se aqui entender a relação existente entre a crítica de
Feuerbach à religião dentro do processo que o levou ao seu materialismo antropológico, e o
processo de ruptura do Serviço Social com o aspecto religioso e o seu Movimento de
Reconceituação que apresenta traços presentes do materialismo de Feuerbach ao apropriar-se
do materialismo de Marx.
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