SERTÃO DE PRETO”
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS
Centro de Ciências Sociais Aplicadas
Departamento de Política e Ciências Sociais
Curso de Graduação Bacharelado em Ciências Sociais
"SERTÃO DE PRETO”:
DINÂMICAS IDENTITÁRIAS E TERRITORIAIS NA
COMUNIDADE QUILOMBOLA DE BURITI DO MEIO
Montes Claros
Novembro / 2013
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Mauro Toledo Silva Rodrigues
"SERTÃO DE PRETO”:
DINÂMICAS IDENTITÁRIAS E TERRITORIAIS NA
COMUNIDADE QUILOMBOLA DE BURITI DO MEIO
Monografia apresentada ao Departamento
de Política e Ciências Sociais como
exigência para obtenção do título de
Bacharel em Ciências Sociais com ênfase
em Antropologia
Orientadora: Profª. Dra. Andréa Maria
Narciso Rocha de Paula
Montes Claros
Novembro / 2013
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Mauro Toledo Silva Rodrigues
"SERTÃO DE PRETO”:
DINÂMICAS IDENTITÁRIAS E TERRITORIAIS NA
COMUNIDADE QUILOMBOLA DE BURITI DO MEIO
Monografia apresentada ao Departamento de
Política e Ciências Sociais como exigência
para obtenção do título de Bacharel em
Ciências Sociais com ênfase em Antropologia
BANCA EXAMINADORA
__________________________________
Prof. Dr. Andrea Maria Narciso Rocha de
Paula / Unimontes - Orientadora
__________________________________
Prof. Ms. Felipe Teixeira Martins /
Unimontes
__________________________________
Prof. Dr. Isabel Cristina Brito / Unimontes
Montes Claros
Novembro / 2013
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As letras e a ciências só tomarão o seu verdadeiro lugar na obra do
desenvolvimento humano no dia em que, livres de toda a servidão
mercenária, forem exclusivamente cultivadas pelas que amam e para os
que amam.
Piotr Kropotkine
“O mais importante e bonito, do mundo, é isso: que as pessoas não são
sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre
mudando”
João G. Rosa
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Dedico este trabalho à todos os povos e comunidades
tradicionais que lutam diariamente para ter seus direitos
de reprodução símbólica e material da vida garantidos.
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todas as pessoas que me acompanharam nesta jornada de
conhecimentos e vivências ao longo destes anos.
Começo pela gratidão à família, Mauro, Dinah, Luísa e Nando, com quem eu
convivi todos esses anos e pude aprender a maior lição que sei até hoje, a busca pela
felicidade plena junto ao Amor.
Gratidão a minha nova família, minha esposa Carol e meu amado filho Miguel,
que me entenderam e “seguraram a onda” nas barras mais pesadas que vieram”, além de
sempre estarem do meu lado nos momentos em que me senti exausto e sem esperanças.
Estas famílias não me deixaram desistir dos meus sonhos por mais estranhos e distantes
eles pudessem parecer, sempre me incentivando a ir atrás do que me faria realizado.
É com grande alegria que eu agradeço de coração, a minha amiga, mestre, mãe,
psicóloga e nas horas vagas, orientadora, Andréa Maria Narciso de Paula Rocha, por
todos os devaneios e loucuras pelos quais eu a fiz passar durante o período acadêmico.
Sou grato sua a sabedoria, compreensão, carinho e principalmente toda a paciência que
teve comigo e com meus trabalhos. Agradeço ao mestre Felipe, com o qual eu tive
várias vivências passando pela Rosa dos Ventos, ao litoral paulista, do rio São Francisco
às chuvas de Uberlândia, gratidão pelo companheirismo e pelos ensinamentos. Ao
mestre João Batista, gratidão pelo apoio nas empreitadas acadêmicas, pelo estímulo aos
estudos e aos sonhos assim como pelas transcendentais vivências sanfraciscanas.
Gratidão ao povo do Opará, que mesmo com pouco contato, a intenso
aprendizado vivido foi de extrema relevância para minha formação acadêmica e pessoal
Maristela, Alê, Brandão, Graça, Erikita, Fernanda e demais membros do grupo.
Ao povo do NIISA, gratidão pela paciência e pela contribuição para minha
formação, os professores, Isabel, Rômulo e Felissa, assim como os estudantes.
Aos meus amigos que me acompanharam desde o início nesses longos seis anos,
e hoje já se encontram em outras esferas acadêmicas, Lula, Deyvisson, Iza, Raíssa,
Renato, Fabricim, Marcelo dentre tantos outros que se espalham pelo mapa brasileiro.
Àos meus atuais companheiros de luta, gratidão pela companhia, pela consolo,
pelo choro, pela sorriso, pela cajubrina, e tantas outras coisas que tornaram nossa
experiência de faculdade ainda mais completa, Sérgio, Tuca (Artur), Bárbara, Thaís
Luz, Adinei, Joy (Joice), Edmar, Hamilton (Pan), Emily, Patrícia, Edina, Lalá, Céu no
nome destes agradeço a todos os demais que puderam estar comigo. Como disse um
amigo em seus agradecimentos, esse povo é Retunchado! Por último, mas não menos importante, gratidão aos quilombolas! Povo de luta e de fé
que me acolheram com os braços abertos prontos a me ajudarem com os materiais que fossem
necessários para a realização da pesquisa. No nome de Dona das Neves e sua família, agradeço
à toda a comunidade pelo compreensão e cooperação, pois sem vocês não a possível estar
passando por esta etapa tão importante em minha vida!
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SÚMARIO
RESUMO___________________________________________________________________8
LISTA DE FIGURAS________________________________________________________9
INTRODUÇÃO_____________________________________________________________10
Trajetória e metodologia_____________________________________________________11
Categoria Social: Sertão _____________________________________________________14
CAPÍTULO I
COMUNIDADES TRADICIONAIS: O QUILOMBO SAI DA HISTÓRIA__________20
Histórico de ocupação, Expropriação territorial e sistema produtivo ________________25
Nós matamos a mãe d’agua: O drama da falta de água na comunidade do rio
São Francisco______________________________________________________________31
A religião no quilombo_______________________________________________________33
O artesanato quilombola_____________________________________________________37
CAPÍTULO II
IDENTIDADES EM JOGO:
A DIVERSIDADE IDENTITÁRIA DOS NATIVOS DE BURITI DO MEIO_________41
Ser quilombola é lutar, ser quilombola é chorar, ser quilombola é dançar: A emergência do
sujeito de direito ____________________________________________________________42
Resistir e Afirmar: A análise do ritual da festa da abolição_________________________49
Simbiose de casas: O sujeito migrante _________________________________________61
COSIDERAÇÕES FINAIS: O sertão é de preto! _________________________________67
BIBLIOGRAFIA___________________________________________________________70
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RESUMO
Neste trabalho desenvolvo uma interpretação das dinâmicas identitárias e territoriais
entre os quilombolas da comunidade Buriti do Meio, município de São Francisco, no
norte de Minas Gerais. Através do estudo etnográfico foi possível observar o cotidiano,
os festejos, as celebrações de fé que demonstraram o “ jogo das identidades” presentes
nas esferas da vida das pessoas do lugar, assim como a modificação no sistema
produtivo devido ao histórico processo de expropriação das terras do quilombo. A luta
do sujeito de direito, a festa da abolição como afirmação e resistência e o trabalho que
obriga a partir mas para ficar são representações do ser quilombola.
PALAVRAS-CHAVE: Quilombo e quilombola, identidade, território, comunidade
tradicional, cultura, Norte de Minas Gerais
ABSTRACT
In this paper I develop an interpretation of identity and territorial dynamics between the
Maroons of Buriti do Meio, São Francisco, in northern Minas Gerais community. Through
ethnographic study was possible to observe the everyday life, festivities, celebrations of faith
who demonstrated the "game of identities" present in all spheres of life of local people, as well
as changes in the production system due to the historical process of expropriation of land the
maroon comunity. The struggle of the subject of law, the party of abolition as affirmation and
resistance and the work that requires to become effective but are representations of being
maroon.
KEY-WORDS: Maroon community and maroons, identity, territory, tradicional camunity,
North of Minas Gerais
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LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 ................................................................................................................................13
FIGURA 2.................................................................................................................................21
FIGURA 3.................................................................................................................................27
FIGURA 4.................................................................................................................................38
FIGURA 5..................................................................................................................................39
FIGURA 6..................................................................................................................................43
FIGURA 7..................................................................................................................................51
FIGURA 8.................................................................................................................................53
FIGURA 9.................................................................................................................................55
FIGURA 10...............................................................................................................................58.
FIGURA 11................................................................................................................................61
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INTRODUÇÃO
A busca em conhecer os homens em sua essência desde o inicio da minha
construção acadêmica foi o combustível para minhas leituras, para a minha imersão em
grupos de pesquisa e em trabalhos de campo na área das ciências sociais, com ênfase em
antropologia e também na sociologia ambiental. Nesta travessia me deparo com alguns
eventos que tem a força simbólica de resignificar meus objetivos com as ciências sociais
e repensar o papel que almejo exercer e que direcionam minha jornada para o lugar em
que ocupo atualmente enquanto pesquisador de comunidades tradicionais no Sertão
norte mineiro.
O primeiro movimento que me projeta para esse caminho a ser trilhado com
orgulho e muito esforço é a entrada no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
comunidades tradicionais do rio São Francisco – OPARÁ1, este sendo articulando em
primeira instancia pelo Prof. Dr. e poeta Carlos Rodrigues Brandão. Esse grupo se
articula em dois polos principais, na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e na
Universidade Estadual de Montes Claros, este último sendo coordenado pela Profª. Drª.
Andrea Maria Narciso de Rocha Paula, orientadora deste trabalho monográfico.
Este grupo de pesquisas é um grupo permanente sendo institucionalizado via
CNPq e FAPEMIG, possui a dinâmica de projetos que ocorrem em simultaneidade. O
projeto do qual eu participo tem por título “Sujeito-Agente”2, projeto que visa a
capacitação de nativos de três comunidades tradicionais localizadas no norte de Minas
Gerais, com o intuito de devolver para essas pessoas a única coisa que podemos dar
enquanto pesquisadores, a própria técnica de pesquisa. Essa ideia foi pensada a partir da
contribuição dessas comunidades para com o universo acadêmico, abrindo suas vidas
para nós pesquisadores sem requisitarem nada em troca, antes pelo contrário, sempre
nos ajudando com aquilo que está no alcance dessas pessoas, sendo característico dessas
comunidades a reciprocidade. O projeto é guiado pela metodologia da pesquisa
1 Grupo reconhecido na Unimontes, FAPEMIG e no CNPq. Resolução 096/2011.
2 Sujeito agente pessoa sertão- Cepex- 271/2012.
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participante, na qual o pesquisador interage com seus sujeitos de pesquisa a fim de
construir e trocar conhecimentos a partir das demandas das próprias comunidades de
forma reciproca com os pesquisadores sem que haja a hierarquização que normalmente
acontece na pesquisa entre Pesquisador e pesquisado.
Para que a equipe de pesquisadores na qual eu estava incluído pudesse ser
treinada paraexecutar tal projeto foi necessário que nos deslocássemos de Montes
Claros, norte de minas para Poços, sul de minas, para um local que propiciasse uma
preparação para o início do projeto, o sítio da Rosa dos Ventos, local que é propriedade
do Brandão, mas que foi aberto ao público com uma proposta de imersões e vivencias
com práticas alternativas às vivenciadas pela sociedade moderna capitalista ocidental,
que presa pelo consumo de bens e mercantilização dos sujeitos.
A segunda parte da nossa pesquisa é o trabalho de campo em si, no estar na
comunidade e compreender como são as três comunidades: São Bento, localizada no
município de Buritizeiro, a Barra do Pacuí, no município de Ibiaí e a comunidade
quilombola de Buriti do meio, no município de São Francisco. A proposta da primeira
etapa é uma oficina inicial em cada comunidade, a oficina tendo a duração de três dias,
totalizando nove dias de viajem pelo Sertão nortemineiro. Esta segunda experiência é
mais um passo que me direciona ao meu locus de pesquisa, este sendo a comunidade
quilombola de Buriti do meio, para a qual eu fui designado a coordenação do trabalho
de campo do Sujeito-Agente. Com os contatos e interações que estabeleço com a
comunidade quilombola logo à seleciono como mundo social a ser explorado.
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Trajetória do pesquisador e metodologia de pesquisa
A minha imersão na comunidade de Buriti do Meio se iniciou no mês de março
de 2013, quando estive no quilombo para encontrar seus representantes e articular o
começo do projeto Sujeito-Agente, sendo uma oportunidade para dar o primeiro passo
de minha pesquisa ao interagir com algumas lideranças da comunidade e ter acesso livre
à comunidade. Desde então pude acompanhar a vida cotidiana da comunidade e suas
dinâmicas dentre várias idas e vindas ao longo do ano. Estas imersões se fazem
necessárias quando se tem por objetivo enxergar a constelação das relações sociais
presentes do quilombo, como também para que seja possível a compreensão dos sujeitos
nos aspectos mais profundos de sua cultura.
De acordo com Geertz(1989) cultura, se caracteriza enquanto uma teia de
significados tecidas pelos próprios sujeitos em questão, na qual estes se enredam em
suas interações com os outros. O mesmo autor entende a função do antropólogo
enquanto um tradutor de textos antigos, no qual estaremos defronte à um velho
manuscrito com caracteres desconhecido, sendo um exercício de interpretação árdua,
pois ao se encarar um texto com falhas em um dialeto estranho, faz-se necessário o
tempo do trabalho de campo, para que estes símbolos sejam identificadas e
interpretados.
No intuito de desvelar os significados da cultura local, a descrição densa é o
caminho que deve ser trilhada para que se possa desenhar a configuração e a estrutura
das relações sociais estabelecidas no contexto da pesquisa. A descrição densa enquanto
um mecanismo que possibilita a diferenciação de pequenos atos que possam se
assemelhar. Ao descrever um acontecimento em suas minúcias e nuances é possível
segundo Geertz(1989), identificar uma piscadela em seu significado, pois esta pode ser
um sintoma fisiológico, onde a pálpebra do individuo se contrai involuntariamente, mas
também pode representar a tentativa de uma interação social, caracterizada enquanto um
flerte. Portanto torna-se essencial para depreender os símbolos culturais em seus
significados locais, a descrição que possibilita uma real análise das relações que
ocorrem em um determinado contexto.
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Para realizar a descrição densa, algumasestratégias devem ser adotadas com o
intuito de conseguir uma interpretação em sincronia com a realidade trabalhada. Neste
sentido, o diário de campo ajuda o pesquisador a reter cada detalhe que lhe é permitido
ter acesso em um meio social. A entrevista com os sujeitos pesquisados é uma ponte
para o nível subjetivo do individuo, esta ferramenta deve sempre ser seguida de uma
atitude ética de pesquisa, onde os pesquisados devem estar cientes e compactuar com o
ato da gravação. A narrativa etnográfica se enriquece com registros de imagens que,
representam o cenário, no qual os acontecimentos vividos e as ações praticadas podem
ser apreendidas pelo leitor, que por sua vez estabelece conexões entre a narrativa escrita
e a imagem visual.
Figura 1 – Locais de memória
Fonte: RODRIGUES, Mauro, 2013
A riqueza do material fotográfico pode ser percebida ao proporcionar ao leitor a
visualização de paisagens e pessoas que interagem no momento em que esta foi
capturada. Na figura 1, vários membros da comunidade quilombola caminham com uma
equipe de pesquisadores para remontarem a história do quilombo em suas narrativas
14
pessoais e através de locais existentes na memória coletiva e no plano material, como os
caminhos no qual a fotografia mostra.
Aspecto tão importante quanto as “técnicas” de pesquisa é o posicionamento do
pesquisador frente a uma realidade desconhecida. Ao interagir com as pessoas da
comunidade tive em mente o meu posicionamento enquanto um sujeito pesquisador que
esta em contato com outros sujeitos, por sua vez pesquisados. Pois, ao se entender a
importância da (co)operação dos sujeitos pesquisados, entende-se a possibilidade de
uma construção mútua. Bubber(2001), ao tratar da intersubjetividade expõe um tipo de
interação que ele denomina de interação Eu-Tu. Nesta interação os dois lados efetuam
uma troca reciproca, ao entender que tanto Eu quanto o Outro temos um nível de
subjetividade que se perde no devaneio, mas que deve ser respeitado, para que tanto um
lado quanto o outro possam ter acesso as partes mais profundas do ser humano.
Aspecto fundamental para a realização do meu trabalho etnográfico foi o contato
que me foi possível estabelecer com as pessoas da pesquisa a partir de uma visão
bubberiana, pois pude entrar em contato com muitas pessoas no quilombo de forma a
me enredar em suas vidas, mas a pessoa com a qual eu passei maior parte do tempo e
sendo uma grande informante foi Dona Maria das Neves. Essa negra, que tem 47 anos,
artesã, esposa e mão de sete filhos é uma das lideranças da comunidade de Buriti do
Meio. Sua vivacidade e perspicácia e pela luta com e em prol dos quilombolas de seu
lugar, a fazem uma referencia da comunidade que a indica sempre que os de fora
querem conhecer o quilombo. Dormi várias noites em sua, casa, comi várias vezes de
suas comida, e por várias tardes sentamos debaixo do pé de manga para que ela me
contasse antigas histórias deste povo de luta, portanto estabelecendo grande importância
para o enriquecimento do campo pesquisado.
Assim sendo, Oliveira(1996) retrata a importância que o oficio antropológico
requer de uma percepção aguçada do olhar, do ouvir e de escrever. A observação como
exposto acima se faz essencial para traçar um mapa das relações, lugares e pessoas. Em
um nível mais profundo, o ato de participar da observação garante acesso aos níveis de
entendimento que normalmente não se tem a partir de uma pura observação externa. A
teoria que nos acompanha no campo é a garantia de uma possibilidade de nossa própria
construção intelectual.
Como último aspecto metodológico utilizado, recorri à compreensão geertziana
do trabalho do antropólogo. Este autor compreende que a construção teórica apenas
ocorre, quando o pesquisador consegue fazer um “trânsito teórico” de “estar lá”, que
15
significa estar presente com todas as capacidades cognitivas e sensoriais no campo de
pesquisa, e o “estar aqui”, que significa justamente a capacidade de reflexão teórica a
partir da experiência vivida no campo, movimento que se torna essencial para o trabalho
acadêmico.
Figura 2 – As recém-chegadas cercas do quilombo
Fonte: Acervo Opará, 2013
16
Categoria Social: Sertão
Inicio minha discussão sobre o imaginário e região, com a intenção de expor a
interação desses dois, como estes se comunicam e se complementam a partir de
construções sociais. Seja na literatura, na história ou na sociologia, a região é um
construto que se constitui a partir de contribuições dadas por estas áreas.Encaixo essa
temática em meu trabalho para desvelar a construção do social do sertão, as influencias
dos intelectuais no prisma que enviesa nosso olhar, esta serve para contextualizar a
minha pesquisa que se se passa no Sertão mineiro, na bacia do médio São Francisco,
sendo possível representar a região e suas características.
Sertão é o signo que classifica regiões do interior do Brasil, é uma construção
feita à partir de um campo, que de acordo com Bourdieu(2003),é constituído por
relações de dominação, no qual sempre existe uma agencia hegemônica que subjuga
outras agências, em relação ao campo regional o que está em disputa é a própria
construção da realidade de um determinado espaço, pois a agencia hegemônica possui a
legitimidade do discurso, que de acordo com Foucault(2012) esse é uma ordem, tem o
poderes de normatizar as individualidades dentro de um mundus social. Sendo assim,
me proponho a fazer um excurso acerca de intelectuais que construíram no imaginário
social, como cita o Albuquerque Jr.(2001), o Sertão e suas representações, pois os
intelectuais possuem um lugar de fala que é legitimado pelo campo regional e
intelectual segundo Bourdieu(2003). Colocarei em evidencia autores como Euclides da
Cunha em sua obra “Sertões” que foi publicada no início do século XX e teve grande
repercussão no âmbito nacional, outro autor que constrói uma teoria para a busca da
essência brasileira com um tom saudosista é o Capistrano Abreu, assim como a obra de
Darcy Ribeiro em sua interpretação da cultura brasileira na brilhante obra “O povo
brasileiro”. Partindo de um entendimento segundo Albuquerque Jr.(2001) que esses
discursos intelectuais ( não somente os intelectuais mais artísticos e culturais também,
mas trabalharei aqui apenas com a academia) mais do que representar o real estes
instituem a realidade devido a hegemonia no campo científico da região.
Definir a região é pensa-la como um grupo de enunciados e imagens que se
repetem, com certa regularidade, em diferentes discursos, em diferentes
épocas, com diferentes estilos e não pensa-la uma homogeneidade, uma
identidade presente na natureza. (ALBUQUERQUE JR. 2001, p. 25)
17
Começo então a caracterização histórica da representação3 da região que se
identifica como Sertão brasileiro sendo que este recorte é feito para entender o contexto
no qual o quilombo de Buriti do meio está imbicado sendo a própria fundação do
quilombo, que a narrativa local remonta este em meados do século XVIII.
Um dos primeiros registros que é feito dessa região de maneira institucional,
ocorre no final do século XIX e se materializa no livro “Sertões” de Euclides da Cunha.
Este que teve a missão jornalística de cobrir uma batalha épica que acontecia no interior
do Brasil, tendo uma vivencia que marcaria os primeiros traços de uma antropologia
feita dentro de territórios tropicais. Euclides da Cunha teve uma formação cientificista
devido à sua formação na escola politécnica e na escola militar, que se caracteriza na
sua literatura como vestígios do pensamento positivista que enquadra sua leitura do
mundo social em que Canudos se constituía e resistia pelo comando de Antônio
conselheiro.
A obra é dividida em três partes: A terra, o homem e a luta. Sendo que me
privarei as duas primeiras divisões que são de interesse deste trabalho. Em sua primeira
parte há uma caracterização minuciosa e científica dos aspectos geográficos do Sertão
baiano aonde Canudos se localiza com uma impressão de lugar estranho de acordo com
Cunha(1901), pois este denomina a terra de ignota, escrevendo da seguinte maneira:
Varada a estreita faixa de cerrados, que perlongam aquele último
rio, está-se em pleno agreste, no dizer expressivo dos matutos:
arbúsculos quase sem pega sobre a terra escassa, enredados de
esgalhos de onde irrompem, solitários, cereus rígidos e salientes,
dando ao conjunto a aparência de uma margem de desertos. E o
facies daquele sertão inóspito vai-se esboçando, lenta e
impressionadoramente.(1901, pág. 7)
Percebe-se então a criação de determinadas representações sobre a realidade que
estarão presentes no âmbito do imaginário social, como o desolamento da região, a
vegetação esparsa e torta o reflexo da geografia nas pessoas que parecem se enrijecer
juntamente com a paisagem e o sol que parece castigar essas pessoas e seu lugar de
morada. Cunha(1901) exalta nesse contexto a mais uma característica marcante dessa
região que como os outros aspectos geográficos parecem marcar nas populações ali
presentes cicatrizes de seus efeitos, como é o caso da seca. Esta é vista como uma das
3 Utilizo este conceito baseado em Dürkheim(1977) na teoria de construção social da realidade
18
principais características da região, que se difere bastante de regiões do litoral brasileiro,
com a presença da mata atlântica e da água.
A questão da água no sertão, ou da falta dela, representa uma construção que se
estenderá até os dias atuais e cabe fazer aqui uma consideração sobre a questão das
relações pessoais que ocorriam na região assim como a “construção” da seca. No
contexto de construção do Sertão, um dos principais traços que compunham a região era
a dominação pessoal que ocorria neste espaço geográfico. No período colonial brasileiro
que se inicia na “descoberta” e se estende até a chegada do Império, literalmente vindo
de Portugal, ocorrem relações sociais caracterizadas por Souza(2003), enquanto relação
de dominação pessoal. Pois em um local “inóspito” como aborda Euclides, a única
instituição que se fazia presente era a família, e dentro desta o homem, ou seja, o senhor
do engenho que por vez concentrava em si as reponsabilidades e poderes sociais,
formando um domínio patriarcal. Este modelo patriarcal se estendeu pelo século XVII e
XIX que possibilitou que se criasse com esse poderio, uma “indústria da seca”, como
elucida Darcy Ribeiro:
(...)Facilmente simulável numa enorme área de baixa pluviosidade natural,
quando para isso se associam os políticos, que, dessa forma, encontram
modos de servir sua clientela, os negociantes e os empreiteiros de obras que
passam a viver e a enriquecer da aplicação de fundos públicos de socorro e os
grandes criadores pleiteantes de novos açudes, valorizadores de suas terras e
que nada lhes custam. Apesar dos planos governamentais consignarem
sempre a destinação dos açudes à irrigação das terras para os cultivos de
subsistência, na forma de pequenas propriedades familiais, jamais um palmo
das terras beneficiadas foi desapropriada com esse objetivo, ficando as áreas
irrigáveis sob o domínio dos fazendeiros.” (1995, pág. 349)
Sendo esta realidade reproduzida na década de 50/60 do século XX na região
nortemineira pela SUDENE (Superintendencia de desenvolvimento do nordeste , que
foi instituída enquanto uma instituição para combater a seca na região, que foi
enquadrada no polígono da seca, dando continuidade à “indústria da seca” sob o
domínio do patriarcalismo.
Continuando a contribuição de Euclides da Cunha para o imaginário social do
sertão, este caracteriza de forma a estereotipar o homem dessa região que apresenta uma
determinada homogeneidade, a autor não afirma a possibilidade de homogeneidade de
raças, mas acredita que devido ao isolamento proporcionado à essas pessoas e seu saber-
fazer constituído como o oficio do vaqueiro, têm uma força homogeneizadora,
19
Cunha(1901). Essa região e caracterizada a partir do próprio Antônio conselheiro como
recurso de fuga do Ceará, se refugia adentrando o Sertão.
Tais características desenhadas a partir do olhar do Euclides da Cunha, são
representadas também por Capistrano de Abreu que segundo Guillen (2002) procura
definir uma identidade brasileira ou brasilidade, pois o Sertão no período colonial era
considerado como o interior do Brasil, criando a dicotomia entre litoral x interior ou
litoral x Sertão. Sendo que o princípio que guia Capistrano é o alcance do Sertão,
associado ao interior, no plano nacional, sendo esse uma convergência das identidades
que constituíam o plano nacional. Em sua obra Capítulos da historia colonial. (1500 –
1800) Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil, Capistrano assim como Darcy
Ribeiro na obra “ O povo brasileiro” retrata a construção desse espaço pela expansão da
colônia portuguesa.
Com o estabelecimento da colônia portuguesa, sua expansão litorânea e o
aumento da população, Holanda (1979) identifica que as técnicas nativas de caça e
pesca já não consegue resolver a questão da alimentação, sendo necessário criar uma
nova estratégia para a colônia. Com essa preocupação em pauta Portugal decide enviar
de gado e cavalos de além-mar para terras brasileiras para que o problema da
alimentação fosse resolvido. Com a chegada do gado é necessário que se encontre locais
mais propícios para a criação deste do que a costa litorânea. Nessa perspectiva inicia-se
uma penetração pelos colonizadores quando pelo sertão através de rios como o São
Francisco que permite a navegação para o interior do sertão. Holanda(1997) coloca o
gado como uma opção estratégica de ocupação dessa região, pois ele era um alimento
que “se transportava”, eliminando uma grande dificuldade que os colonos tinham com a
logística de suas cargas e não só como alimento o couro que era retirado do gado era
fundamental para a reprodução dessa população se estabelecia no Sertão brasileiro
como cita Capistrano em passagem antológica que caracteriza a chamada “era do
couro”:
De couro era feita a porta das cabanas, o rude leito aplicado no chão
duro, e mais tarde a cama para os partos; de couro todas as cordas, a
borracha para carregar água, o mocó ou alfoge para levar comida, a
mala para guardar roupas, a mochila para milhar cavalo, a peia para
prede-lo em viajem, as bainhas de faca, as bruacas e surrões, a roupa
de entrar no mato, o banguês para cortume ou para apurar sal; para os
açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas
de bois que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco
para o nariz.” (ABREU, Capistrano. 1982)
20
De acordo com Ribeiro (1979) o rebanho e seus vaqueiros avançavam
sertão adentro espalhando currais ao longo dos riachos que descobriam. Sendo que um
evento muito presente em tais expedições eram os encontros com etnias diferenciadas
de indígenas, com as mais complexas sociedades estabelecidas de forma completamente
estruturada e apresentando alta organização social. Sendo assim Ribeiro (1979) afirma
que as tribos que mantinham contato com os brancos, como os Timbíra da região sul do
maranhão que originalmente possuíam uma organização com cerca de 15 tribos teve seu
numero reduzido a apenas 4 tribos ao adentrarmos o século XX. Por outro lado índios
como os Xavantes da região central do Brasil se mostraram hostis em relação ao branco
evitando o contato e se refugiando em outras localizações longe dos pastos, o que
garantiu a sua sobrevivência ao longo dos séculos.
Outra população que se encontrava presente nessa região, não devido à sua
autoctonia mas sim a questões conjunturais, eram o negros advindos da África que se
refugiavam no interior do sertão como estratégia de fugir da colônia portuguesa e de sua
máquina escravagista, como expõe Costa(2008, p. 25)
A formação de quilombos em todas as colônias e países do Novo Mundo
constituiu-se em estratégia utilizada pelos africanos que, escravizados,
ansiavam por liberdade e, assim, instituíram alternativas ao sistema escravista
hegemônico e, então, vigente. O princípio subjacente à formação de
quilombo constituiu-se na busca de lugares de difícil acesso que propiciassem
o estabelecimento de barreiras estruturais, que tanto podiam ser naturais
quanto sociais. Os agrupamentos humanos aquilombados pretendiam, dessa
forma, impedir o contato do mundo branco e escravista com o mundo negro
vivendo em liberdade.
Entro aqui no ponto de formação do sertão que se converge com o locus de meus
estudos, pois a comunidade de Buriti do Meio em 2007 obteve o reconhecimento da
fundação Palmares4 e recebeu o título de comunidade remanescente de quilombo.
Sendo assim exploro a formação histórica da região do Norte de Minas contextualizar a
construção social da região do quilombo de Buriti do Meio, fazendo uma menção aqui
ao que Costa(2008) denominou de território negro da Jahyba, este que se constituiu no
Norte de Minas enquanto uma grande extensão de terras que abrigavam populações
negras aquilombadas, local de onde adveio o fundador de Buriti do Meio.
4 Fundação Cultural Palmares é um órgão vinculado ao Ministério da cultura, sendo este encarregado de
reconhecer as comunidades remanescentes de quilombo.
21
Com as compreensão da imagética construída a partir de trabalhos acadêmicos
sobre a região, parto para a compreensão teórica sobre povos e comunidades
tradicionais, para ser o prisma no qual eu vejo a comunidade quilombola.
Figura 2 - Casa de Donas das Neves
Fonte: RODRIGUES, Mauro, 2013
CAPÍTULO I:
COMUNIDADES TRADICIONAIS NA ATUALIDADE
22
Os estudos acerca das comunidades tradicionais se passam em uma perspectiva
da compreensão do rural e das ruralidades existentes neste. Em um contexto de
globalização onde a modernidade ocidental capitalista cada vez mais avanças sobre
qualquer modo de vida diferenciado que se coloque em frente ao seu desenvolvimento e
o oblitera, a busca por formas autenticas e históricas de reprodução da vida social
entram com grande força nas Ciências Sociais, que pretende estudar os traços diacríticos
de sociedades que vivem, de acordo com Brandão(2010), não em oposição aos centros
urbanos, mas em continuidade com a cidade, porém com formas específicas de
funcionamento.
Neste mesmo contexto há a emergência de identidades étnicas que se
posicionam enquanto subalternas, segundo Bhabha(1998), que entendem sua posição
desfavoravelmente abaixo da hegemonia, mas que se identificam com este local para
que seja uma referencia e uma alavanca para suas lutas e conquistas. No caso brasileiro
estes povos e comunidades tradicionais se encontravam como um empecilho ao
desenvolvimento, sendo caracterizados como povos atrasados e desprovidos de
racionalidades que permitiriam estes se desenvolverem por conta própria, ocupando um
lugar em que o sistema os impõe, enquanto desprivilegiados.
A trajetória atual dos Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil expressa
uma longa historicidade, por um lado, de dominação, descaso e exclusão e,
por outro lado, de busca de afirmação da condição humana pela (re)conquista
da liberdade, da autonomia e da humanidade própria pelo reconhecimento,
em sim, de cada singularidade e identidade coletiva. (COSTA: pág. 52, 2011)
Com as diversas identidades étnicas emergentes, trabalho aqui com os
quilombolas e seu histórico de violências e invisibilidade. As comunidades quilombolas
tiveram o reconhecimento de seus direitos incluídos na constituição de 1988 devido aos
movimentos sociais negros que se fizeram presentes na constituinte. Neste evento as
comunidades negras rurais foram contempladas com uma nova categorização de seus
modos de vida as comunidades remanescente de quilombo, porém O’Dwyer faz uma
consideração sobre essa categoria, antes histórica e agora antropológica:
(...) o texto constitucional não evoca apenas uma “identidade histórica” que
pode ser assumida e acionada na forma da lei. Segundo o texto, é preciso,
sobretudo, que esses sujeitos históricos presumíveis existam no presente e
23
tenham como condição básica o fato de ocupar a terra que, por direito, deverá
ser em seu nome titulada (...) Assim, qualquer invocação do passado deve
corresponder a uma forma atual de existência de capaz de realizar-se a partir
de outros sistemas de relações que marcam seu lugar num universo social
determinado. (pág. 14, 2002)
Tendo em vista as condições históricas das comunidades quilombolas é
necessário seu entendimento enquanto uma comunidade que é dotada de conhecimentos
e práticas ancestrais e que se reproduzem também através das cidades, apesar de ser
muitas vezes prejudicada pela lógica urbana. Sendo assim entro no mundo social da
comunidade de Buriti do Meio, para compreender as dinâmicas socioculturais
pertencentes a esta, assim como seus traços diacríticos e suas representações.
Figura 4 – Pesquisadores e quilombolas andam pela comunidade
Fonte: Acervo Opará/2013
O quilombo sai da história
24
Para acessar a comunidade de Buriti do Meio através de Montes Claros, caminho
que faço para chegar no quilombo, é necessário pegar rodovia BR-135 que é o acesso a
cidades como, Brasília de Minas, Luislândia e São Francisco. Sendo este último o
município no qual a comunidade quilombola está inserida. Durante o percurso é
possível observar a mudança geográfica, do terreno e da vegetação, que apesar de
Montes Claros se localizar no Norte de Minas assim como São Francisco e ambas se
caracterizarem com o bioma do cerrado, há uma diferenciações na vegetação e nos
relevos dentro da “depressão sanfransciscana”5. Neste espaço geográfico, Montes
Claros apresenta um cerrado com influências da mata seca6 e a região da cidade de São
Francisco para um cerrado característico da região do médio São Francisco. A primeira
vegetação tem características de árvores que variam de 15 à 25 metros e se apresentam
enquanto grande maioria de árvores retas com algumas emergente dentre as demais,
sendo esta paisagem influencia no cerrado da região montesclarence. Sendo assim, o
percurso, que apesar de transitar dentro da região nortemineira, atinge um cerrado
característico das vegetações baixas, de climas úmidos e subúmidos e de solo de baixa
fertilidade, sendo esta uma metáfora da diversidade cultural e étnica da região. Como
exemplo desta diversidade, ao passar pela cidade de Luislândia e entrar no distrito de
Vila do Morro, avista-se uma placa à esquerda com uma indicação da comunidade
quilombola de Buriti do Meio, sendo esta comunidade parte de uma rede de
comunidade que afirmam seu modo de vida e de reprodução social a partir de sua
identidade étnica, como os veredeiros, varzanteiros, geraizeiros, caatigueiros, dentre
outros povos e comunidades tradicionais que habitam a região nortemineira compondo
um mosaico étnico de riqueza cultural e ecológica infindáveis, o quilombo se torna um
terreno fértil para a identificação de traços de idiossincrasia característicos de povos
tradicionais.
Luislandia, São Francisco e Brasilia de Minas são municípios que circundam o
quilombo e fazem parte do circuito estratégico da reprodução da vida deste. Estas são
cidades de pequeno porte, mas que se configuram enquanto centros de comercio e
acesso de serviços e bens de consumo para a população quilombola, sendo
5 “Denominação das planícies que predominam nas margens do rio São Francisco e alcança os sopés dos
planaltos da serra do Espinhaço 6Sob a designação de mata seca estão incluídas as formações florestais no bioma Cerrado que não
possuem associação com cursos de água, caracterizadas por diversos níveis de quedas das folhas durante
a estação seca. A vegetação ocorre nos níveis de relevos que separam os fundos de vales, em locais
geralmente mais ricos em nutrientes. (EMBRAPA, 2007)
25
caracterizadas pela economia baseada na prestação de serviços e agropecuária
(agricultura familiar, assim como a agroindústria). São municípios que historicamente
fizeram parte da vida da comunidade, onde eram e são locais de venda de produtos
agrícolas e do artesanato característico do quilombo. Antigamente, devido a dificuldade
de locomoção a cidade de Luislandia era mais acessada pelo quilombo, que naquele
tempo a conheciam como Jacu7, no relato de moradores é possível identificar essa
ligação.
Me lembro quando eu era menina e tinha que de sair aqui do Buriti à pé, com
o pote de barro na cabeça. Tinha que sair de manhã bem cedo, porque a
caminhada era longa e a gente tinha ainda que chegar pra feira e reza pra
vende os pote para não voltar com peso pra casa” (Flávia, Buriti do Meio,
2013)
Essa fala caracteriza a influencia das cidades na reprodução da vida da
comunidade, que ao entrarem em contato, não estão livres de influencias uma das
outras, estabelece-se uma relação de interação onde elementos da comunidade são
alterados assim como alteram, mas a primeira passa por maiores alterações devido ao
modelo de cidade englobar um padrão hegemônico que tende a ser reproduzido mais do
que reproduzir.
Seguindo a “rua” de terra ao sair da estrada que segue para São Francisco é
possível visualizar a desigualdade agrária que reflete uma apropriação de terra desde
1850 que remete a regularização fundiária que institui a propriedade privada. Dos dois
lados do percurso aparecem cercas e mais cercas que guardam dentro de si o pasto que
expropria o cerrado em muitos pontos e alimentam o imaginário do Sertão desabitado.
Ao se aproximar da área do quilombo abrem-se dois caminhos que levam para a
comunidade. O caminho da esquerda passa pela margem da comunidade, o caminho da
direita continua em uma larga estrada, que possibilita uma nova paisagem. Margeando a
comunidade é possível ver ao lado esquerdo o cerrado em um estado mais nativo, mais
preservado, mais denso, com árvores mais robustas e mais qualidades de plantas. Ao
voltar o olhar para a direita é possível ver um par de oposições que se configura com as
cercas (inexistentes do lado esquerdo) e novamente a fazenda que descaracteriza a
biodiversidade nativa, que coloca no lugar do cerrado denso, a mancha branca da
criação de gado em larga escala, e o pasto, que se perde em largura e comprimento,
7 Ave característica da região, mas que apresentava uma maior concentração na região atual de
Luislandia sendo uma referencia para a caça destas.
26
outra metáfora ao paradoxo, ou melhor, a desigualdade de nossa dita moderna
sociedade. Continuando a mesma estrada, mais a frente, há uma entrada à esquerda,
com uma pequena placa identificando a direção ao centro da comunidade quilombola.
Atualmente a comunidade de Buriti do Meio possui cerca de 300 famílias8, que
literalmente se espalham de maneira espontânea e dispersa pelo território do quilombo,
as casas que encontramos são em sua maioria de alvenaria, com telhados de barro, mas
encontramos várias casas a base de adobe e enchimento. Estes contam com uma
estrutura que permite certa independência das cidades aqui antes citadas, contando com
duas escolas, uma estadual e outra municipal. A escola maior é a Escola Estadual
Fazenda Passagem Funda, que possui uma estrutura de várias salas de aula além de
refeitório, pátio coberto, secretarias, espaço de convivência e uma pequena horta nos
fundos da escola. Esta perpassa a educação e se torna um ambiente importante para a
socialização dos quilombolas, pois vários eventos ocorrem na mesma, como palestras,
celebrações dentre outros eventos. A comunidade possui também um PSF (posto de
saúde da família) que realiza consultas de rotina, com médicos e enfermeiros, tendo três
moradores da comunidade atuando como agentes de saúde, o que cria um maior vínculo
de informações dentro da comunidade, mas há também a dificuldade por parte dos
agentes de se locomoverem devido a falta de estrutura oferecida pelo PSF, pois os
agente tem que traçar as rotas à pé, percorrendo longas distancias devido ao caráter
habitacional de Buriti do Meio, que se configuram em pequenos aglomerados
espalhados em um grande território. Outras duas estruturas se configuram ao lado do
PSF, a associação de moradores de Buriti do Meio, responsável pela articulação o
reconhecimento da comunidade enquanto remanescente das comunidades de quilombo9,
e também o estação digital, espaço destinado a informatização dos moradores, assim
como acesso à internet com cursos e capacitações. Estas três estruturas ficam em um
mesmo lote, cercado por arame, que começam a compor o que seria o centro da
comunidade.
Histórico de ocupação, expropriação territorial e sistema produtivo
8 Este é um número aproximado dito pelos moradores devido à falta de um censo mais específico
9 Tratarei sobre o processo de certificação e suas implicações no decorrer do trabalho
27
Um dos aspectos que caracteriza as comunidades remanescentes de quilombo é o
seu antepassado negro ligado aos períodos da escravidão e as estratégias de
sobrevivências que estes adotavam nesse período, no caso a fuga das senzalas para se
aquilombarem nas matas fechadas e em terrenos inóspitos, evitando assim o contato
com a sociedade escravocrata.
A narrativa dos moradores remonta a um primeiro negro que inicia o tronco
familiar da região10
de Buriti do Meio, denominado de Euzébio Gramacho, que chega
nestas regiões fugido do sistema exploratório colocado naquela época, como reafirma
Aguiar(2012, p. 31):
Na interpretação construída pelos moradores de Buriti do Meio é colocada
ênfase na imagem de Euzébio como alguém que sempre resistiu à escravidão
e que buscando liberdade e autonomia, tomou como estratégia de
viabilização de seus desejos, a fuga que lhe proporcionava liberdade. Fugindo
no trabalho das minas de Grão Mogol, Euzébio encontrou, com mais três
companheiros, refúgio no território de São Francisco onde instituiu, com a
participação de seu companheiro Modesto, o mundus social que, na
atualidade, articula seus descendentes na coletividade de Buriti do Meio. A
fuga de Euzébio e seus companheiros ocorre em meados do século XIX o que
fundamenta a informação dessa coletividade constituir-se um quilombo
histórico durante o período escravista da sociedade brasileira e, na atualidade,
um quilombo emergido como tal por ato constitucional.
Há uma versão da construção histórica de Buriti do Meio, construída pelos moradores
do quilombo a partir da memória coletiva, no qual foi possível ter acesso por meio das oficinas
proposta pelo Sujeito-Agente, na qual os quilombolas retomam o tronco familiar desta
comunidade histórica, esta fazendo parte da legitimação destes enquanto remanescentes de
comunidades de quilombo:
A história de Buriti do Meio segundo a entrevistada Maria das Neves
moradora da comunidade, se deu por meio de um negro que se refugiou do
estado da Bahia, passando por Grão Mogol-MG e chegou até aqui. A
primeira família foi formada através da união desse primeiro negro Eusébio
Gonçalves Gramacho com D. Manuela Francisca de Barros, estes
constituiram 7 filhos que casaram com mulheres de comunidades vizinhas já
existentes, daí a comunidade foi se multiplicando e mais ou menos no ano de
1937 existiam aproximadamente umas 32 famílias, os filhos dessas famílias
foram se casando primos com primos e formando novas famílias, essas eram
conhecidas pelos apelidos dos sobrenomes que eram divididos em oito, a
família “Pereira dos Santos” eram chamados de (bois), “Pereira do Rosário” e
“Luiz de Souza” eram chamados de (paú), “ Ferreira Damião” eram
chamados (gavião), “Francisco” eram chamados de (macaco), “ Gonçalves”,
“Silva” e “Oliveira” eram chamados de (gago).
Outra característica fundamental para entender o complexo que se forma em
Buriti do Meio é a expropriação territorial que ocorreu na área da comunidade, que de
10
Devido a presença de familiares do mesmo tronco de Buriti do Meio em Imbu cabeludo
28
acordo com os relatos indicam que a inicial fazenda de Buriti do Meio possuía uma
dimensão de oitenta mil alqueires e atualmente a dimensão territorial da comunidade é
desconhecida justamente devido a tantas expropriações.
O histórico de regulamentações agrárias brasileiras se esbarra com a história das
minorias do Brasil, e com o histórico do quilombo, quando em 1850 é instituída a
propriedade privada através da lei de terras que acaba com a os sistema das sesmaria e
possibilita a compra de terras brasileira através de cartórios e instituições da igreja
católica. Contanto, essa lei era extremamente excludente, pois o Estado brasileiro, no
caso o Império, permitia o acesso às terras somente a homens que se encaixassem nas
categorias étnicas e econômicas ditas por este, ou seja, os índios, negros escravos ou
escravos alforriados foram impedidos de ter acesso à propriedade privada. Neste sentido
a história de Buriti do Meio, que tem seu território comprado por Euzébio das mãos de
uma fazendeira é impedido de ter sua terra documentada devido a esta lei.
Junto à lei de terras de 1850, há uma característica fundamental que contribui
para o processo de expropriação territorial, a questão do poder pessoal tão exercida
naquela época pelos latifundiários. De acordo com Holanda(1997), a sociedade
brasileira do século XVI ao XIX, se estrutura em torno das grandes propriedades rurais
com seus sistemas produtivos baseados na plantation de cana de açúcar e café. Neste
contexto a figura do senhor do engenho era dotado de poderes investidos por essa
estrutura. Como não havia cidades, a não ser pequenos aglomerados urbanos, todo a
estrutura social e econômica se organizava nas fazendas, todo o necessário para
consumo era feito na própria fazenda, assim como os diversos ofícios necessários para
garantir a reprodução das famílias, o que criava um monopólio que englobava não só os
serviçais, escravos e agregados, mas também toda a família do senhor de engenho, que
se posicionava submissa a este, lhe conferindo o poder pessoal sobre essas pessoas, pois
todos estavam atrelados ao patrão, que centralizava as reponsabilidades econômicas e
sociais em suas mãos. O que ocorre é que esta lógica se estende pelos séculos no mundo
rural, o que faz com que os quilombolas sejam submetidos às leis dos grandes
proprietários de terra, que estenderam seus territórios com a apropriação das terras
alheias. Segundo relato dos moradores, as apropriações eram feitas de várias maneiras,
seja pela grilagem das terras, ou mesmo pelas irregularidades no processo de
agrimensura das terras.
As consequências das expropriações territoriais vão além da diminuição dos
lotes hoje ocupados no quilombo, o sistema produtivo utilizado por eles é drasticamente
29
afetado com essa nova configuração das terras. A apropriação da natureza na
comunidade quilombola devido a seus traços ancestrais, se reproduzem na lógica da
tradição oral. Tradição está que está ligado á um modo de reprodução de vida, baseado
em uma troca com o ambiente natural. Sendo que Dayrell(2000), considera o
entendimento de produção e cultura como fenômenos imbricados um ao outro, pois o
sistema produtivo de uma comunidade, ou seja, a forma que esta utiliza para se
apropriar dos recursos naturais disponíveis e os modos de vida, crenças e mitos desta
comunidade formam um todo simbiótico, que se comunica através de suas práticas
diárias. As práticas encontradas no quilombo são de uma agropecuária ancestral, que é
possível ter acesso a alguns vestígios, pois a expropriação territorial tem como
agravante o estrangulamento do sistema produtivo das comunidades, ou seja, muitos
locais onde se praticava a solta do gado11
, atualmente pertencem à fazendeiros,
impedindo os quilombolas de reproduzirem suas vidas de acordo com suas práticas
ancestrais. Em consequência das expropriações, os moradores da comunidade são
obrigados a alterarem seus meios de se reproduzirem pois o sistema produtivo que
funcionava de acordo com as terras disponíveis, teve que ser adaptado, prejudicando as
estratégias desse povo que remontam séculos de adaptação ao meio.
11
Segundo os antigos da comunidade, em tempos memoriais não haviam cercas, ou seja, a terra era coletiva, com uma lógica coletiva de plantio e de solta do gado, apenas com uma parcela individual onde se construía a casa.
30
Figura 5 – Seo José trabalha artesanalmente o feijão catador
Fonte: Acervo do Opará/2013
Uma característica importante de se ressaltar em relação às forma de apropriação
da natureza, é o intercambio que os seres humanos estabelecem com esta. Esta análise
também se faz necessária para compreender as perdas sofridas por este povo, ao terem
que alterar suas maneiras de produção e reprodução da vida com a expropriação
territorial. A apropriação que os seres humanos fazem da natureza interfere diretamente
em sua visão de mundo e nas formas como a natureza é representada na cultura. Em
seus estudos sobre o trabalho humano em relação à apropriação dos recursos naturais,
Foster (2005), traz a consideração sobre a troca que o ser humano estabelece com o
ambiente natural, denominando esta de uma relação metabólica12
, ou um metabolismo.
Segundo o autor o metabolismo é balanceado e saudável nas formas ditas pre-
capitalistas de sociedades, à exemplo do quilombo antes das “cercas”, que no caso
representa os povos e comunidades tradicionais e suas práticas seculares, onde há uma
12
No sentido de troca orgânica, onde um organismo vivo troca fluídos de maneira constantes e sincrônica.
31
troca mútua onde a resiliência é presente devido ao tipo de apropriação que se faz do
ambiente :
O trabalho é, antes de qualquer outra coisa, um processo entre o homem e a
natureza, um processo pelo qual o homem, através das suas próprias ações,
medeia, regula e controla o metabolismo entre ele e a natureza. Ele encara os
materiais da natureza como uma força da natureza. Ele põe em movimento as
forças naturais que pertencem ao seu próprio corpo, aos braços, pernas,
cabeça e mãos, a fim de apropriar os materiais da natureza de uma forma
adaptada às suas próprias necessidades. Através deste movimento, ele atua
sobre a natureza externa e a modifica, e assim simultaneamente altera sua
própria natureza.(FOSTER, p. 221, 2005)
O autor entende que o modo de produção capitalista insere nas sociedades não só
uma maneira diferente de apropriação da natureza, , mas também insere um elemento
canceroso que deteriora a relação que antes existia entre homem e natureza, relação que
era baseada na reciprocidade, tem sua lógica alterada para uma relação “racionalizada
com a natureza, que a transforma em objeto e mais do que isso em mercadoria. Esta
lógica afeta então a própria natureza dos homens, que passam a constituir culturas
baseadas na mercantilização das esferas da vida.
Atualmente o sistema produtivo do quilombo se baseia na agropecuária de
pequeno porte, onde os quilombolas possuem terras para cultivo e para a criação de
gado em pequenas parcelas de terra, onde a lógica coletiva já não está tão presente
quanto antigamente, remetendo à patologias do metabolismo homem/natureza em seus
aspectos produtivos. Junto da agricultura há o artesanato ancestral que se constitui
enquanto uma estratégia tanto de reprodução quanto de afirmação étnica na
comunidade.
A organização dos terrenos se divide de forma funcional, de maneira a respeitar
a terra e suas propriedades, em uma interação ensinada pelos antigos de compreensão
daquele recurso natural. A apropriação da natureza feita pelos antepassados na
comunidade, encaixa em uma lógica de troca mútua, de reciprocidade, onde o homem
toma da natureza aquilo que necessita, respeitando a lógica de produção da natureza
sem agredi-la para obter mais do que esta tem para oferecer, neste sentido há a
adaptação de uso de cada tipo específico de solo para determinada função.Sendo assim,
o terreno basicamente se divide em dois ou três espaços, o espaço do terreiro , o espaço
de cultivo, e em algumas propriedades o espaço da solta do gado. O espaço do terreiro é
utilizado para se fazer a moradia, nele se concentram algumas atividades agrícolas,
como a plantação de hortaliças e árvores frutíferas, há também a criação de animais de
32
pequeno porte, como a galinha e o porco. O espaço de cultivo é caracterizado por ser
um terreno de baixa, onde há literalmente uma baixa na altitude no relevo, de acordo
com os moradores são lugares que já foram pântanos, ou então que passam perto de
alguma várzea. Esse solo se caracteriza por sua riqueza em nutrientes, se tornando
atrativo para o plantio de várias culturas como, mandioca, milho, feijão, cana-de-açucar,
entre outras. Nestes locais são utilizadas estratégias para não se esgotar as propriedades
do solo, no caso da comunidade se usa o rodízio de plantações, lembrando uma lógica
de reciprocidade para com a natureza, em uma visão que não escapa a resiliência. O
terceiro espaço, o local de solta do gado, se dá em algumas propriedades, pois nem
todos tem terras que possibilitem o espaçamento para se soltar o gado e quando são
existentes, se posicionam em locais onde o solo não é tão rico em nutrientes, ou seja a
terra não e boa para plantas, mas em compensação se faz um espaço ideal para a solta
do gado. Mesmo no contexto atual com a redução dos espaços ocupados pelo quilombo,
os moradores se apropriam dos recursos naturais que estão disponíveis de forma a
estabelecer uma relação harmoniosa com esta, procurando sempre a adaptação de
maneira a causar menor prejuízo para ambos os lados.
No quilombo de Buriti do Meio há poucas terras para se plantar e com o
estrangulamento do sistema produtivo ancestral da comunidade, os quilombolas são
forçados a utilizarem de estratégias que poderiam garantir sua reprodução, como é o
caso da migração sazonal. Em época de colheita de café e do corte da cana-de-açucar, é
de extremamente difícil ter contato com homens com mais de dezoito anos e menos de
trinta presentes em Buriti do Meio, quase sempre a resposta que se encontra ao procurar
alguma pessoa nessa faixa etária é: “Tá aqui não meu fio, foi trabalha fora, pras
firma”13
.
Portando o retrato do sistema produtivo de Buriti do Meio representa a
necessidade destas comunidades em se reproduzirem de acordo com suas
tradicionalidades, as mesmas são afetadas por uma lógica de produção que tem suas
ligações à outros símbolos que não os das tradições, criando assim um par de oposição
entre a agricultura familiar e a agroindústria, responsável pelas expropriações das
comunidades rurais. Pois o primeiro segue uma racionalidade de apropriação histórica
baseado nas tradições do contato com a natureza, enquanto o segundo utiliza de uma
racionalidade instrumental, voltada para o lucro.
13
Fala de D. das Neves, quilombola mão de cinco filhos, ao perguntar sobre o filho mais velho de 25 anos.
33
Figura 6 – Área de “baixa”, onde ocorre o plantio das culturas como o
feijão.
Fonte: RODRIGUES, Mauro. 2013
34
Nós matamos a mãe d’agua: O drama da falta de água na comunidade do rio São
Francisco
Aqui na comunidade todo mundo já ouviu falar, sabe?! Porque aconteceu
antigamente, mas a gente sente as consequências até hoje. E aconteceu foi com
uma comadre minha muito querida aqui em casa. Dizendo ela que estava indo
lá perto dos Buritis pega água, quando ela ta chegando lá em baixo ela disse
que tinha pensado que era alguém mexendo por lá, mas quando ela bateu o
olho na água viu as folha em cima mexendo e tremendo, quando pensa que
não, saiu uma moça de dentro da água, ela foi saindo e o cabelo, que era
cumprido e preto, foi tampando os peito dela, tinha os peito muito grande, uma
moça branca muito bonita. Mas ela não aguentou de medo, saiu correndo e
chamou os outros, mas quando eles chegaram só tinha as folhas tremendo em
cima da água....Era a mãe d’água” (grifos meus, D. das Neves, 2013)
A crença em entidades que representam a natureza sempre esteve presente na
relação homem/natureza como uma forma de interagir simbolicamente com o ambiente.
Vários destes seres estão presentes no imaginário popular como o curupira , o saci, o
caboclo d’água, Iemanjah com os seus orixás e por aí vai. Contanto o entendimento de
mundo das pessoas que tem contato com esses seres, geralmente encontrados em áreas
rurais, é desqualificado pelo sendo comum avindo da cidade, remetendo à estes como
criaturas provenientes de invenções ou alucinações, sendo criaturas fictícias que vivem
somente no imaginário das pessoas.
A construção dos sistemas simbólicos de uma comunidade tradicional se
constitui a partir da vivencia co-evolutiva e constante interação com seu meio natural,
sendo articulada intensas trocas materiais e simbólicas que fazem parte do processo de
construção do ethos dos nativos assim como de seu eidos, que segundo Geertz(1989) é
formado pelas diversas construções simbólicas de um coletivo no qual o indivíduo está
inserido, construindo assim as categorias de entendimento destas pessoas. Assim sendo,
em oposição à estas pessoas que possuem este tipo de interação com seu meio ambiente,
os indivíduo modernos, que vivem em cidades de concreto, embutidos em uma contexto
de extrema racionalização instrumental da vida cotidiana e tem seus meios de
reprodução social e simbólicos desvinculados com a natureza, possuem seu ethos e
eidos formado a partir desta estrutura. Criaturas míticas da natureza estão no plano dos
“contos de fadas” por não se encaixarem nas categorias de entendimento do mundo
urbano.
A racionalidade das pessoas que estão inseridas em complexos coletivos
tradicionais, ou seja, que possuem um vínculo histórico com seu ambiente físico, possui
outra maneira de interpretar o mundo e de interagir com este. A mãe d’água, é uma
35
criatura que vive nas veredas e representa a interação recíproca que as pessoas fazem ao
acessar os recursos naturais existentes nestes ambientes
Esta estória, como diz a própria Dona das Neves, é amplamente conhecida no
quilombo, mas ela remente à um tempo passado, pois atualmente a comunidade passa
um drama muito característico de povoados sertanejos, a falta d’água. O problema das
secas já é algo de se preocupar, pois perde-se várias plantações ao prever a chuva e esta
não vir, intensificando os problemas causados por falta de precipitações.
A questão agravante que se soma a seca é a falta de água para abastecer a cidade.
O mito da mãe d’água representa essa dificuldade no quilombo pois ao perguntarem
para os moradores o que ocorreu a resposta é imediata:
A mãe d’agua fugiu... Tem muito tempo que ela já não mora onde viram ela.
Ela gostava mesmo era daquelas veredas, bem lá onde ficava o olho d’agua,
mas o problema foi a falta de cuidado das pessoas. Eles tiraram muitas árvores,
e ali era um lugar que todo mundo sabia que não podia tirar nada, era de
preservar! Mas não teve jeito, a mãe d’agua fugiu. Dizem até ter visto ela
saindo de lá, eu não sei. Só sei que depois que ela fugiu secou tudo! Até um
corguim14
que tinha aqui secou. E ai nós enfrenta mais essa dificuldade meu
filho...(Grifos meus, Dona das Neves, 2013)
Ao se quebrar um vínculo moral de reciprocidade com estas entidades há o
desrespeito com elas, refletindo uma mudança na maneira de se apropriar dos recursos
naturais. Buriti do Meio vem tradicionalmente trabalhando suas terras de acordo com
os saberes baseando da mutualidade e na adaptação, que os primeiros moradores da
comunidade iniciaram.
Mas o contato com os centros urbanos a partir do século XIX, propiciou a
hibridação das lógicas rurais com as lógicas urbanas que estão ligadas à ao campo
hegemônico da economia e também do discurso, que segundo Foucoault(2012) este tem
a força de legitimar uma visão de mundo, sendo capaz de instituir a realidade através
dos símbolos enunciados pelas palavras de uma determinada ideologia. Com isso inicia-
se um processo de alteração nos dois sistemas simbólicos onde o hegemônico tem a
potencia de subjulgar o sistema subalterno, levando as consequências como a
representação da comunidade da fuga da mãe d’agua.
Este evento na narrativa da comunidade marca o início da secagem dos córregos
e veredas que existiam nesta. Atualmente a água é um bem muito precioso na
comunidade, significando muito para os moradores, que utilizam esta de forma
14
Entende-se por pequeno córrego
36
contabilizada, para não correrem o risco de agravar ainda mais a situação. A água da
comunidade é derivada do município de São Francisco, um caminhão pipa vai a
comunidade de dois em dois dias para abastecer os vários tambores já preparados pelos
moradores com quantidades e volumes estratégicos para conseguir armazenar a maior
quantidade de água possível pelos próximos dois dias. Uma problemática nesta logística
é que ela não é tão eficiente em cumprir o período de dois dias para abastecer a
comunidade, que muitas vezes sem nenhum aviso, permanece por três, quatro dias, sem
água.
Sendo assim, esta comunidade, que apesar de se localizar no distrito da cidade
de São Francisco, por onde passa o rio que leva o mesmo nome, possui sérias
dificuldades em lidar com a reprodução da vida social, pela escassez de algo tão
banalizado nos meios urbanos, como a água. Esta é mais uma incógnita que entra na
equação do sistema produtivo, tornando este ainda mais complexo de ser estruturado.
Pois, além da questão agrária, estas pessoas contam apenas com as águas da chuva para
poderem ter suas plantações irrigadas. Neste contexto é praticamente nula a
possibilidade de uma família com cinco pessoas, médias das famílias no quilombo,
possam produzir e reproduzir suas vidas contando apenas com a agricultura e seus
empecilhos.
Nesta atual configuração da comunidade, há pessoas que recorrem a poços
artesianos em locais que ainda possuem vestígios de água. Mas são casos específicos de
moradores que com umamaior articulação com a cidade possuírem recursos econômicos
para realizarem empreendimentos como os poços artesianos.
No entanto na maioria dos casos os moradores possuem muita dificuldade de
administrar este recurso tão escasso, passando por situações que fazem deste um povo
de muita resistência.
A água aqui ta ficando um problema sério, a gente não tem condições de sair
furando as terras para ver onde que vai dar água. E as pessoas que tem
disponível não gosta muito de falar do assunto com a gente não. As minhas
planta mesmo tão só diminuindo, porque não tem água para molhar então elas
acaba morrendo e eu fico aqui sem poder fazer nada, a não ser tirar da água que
eu bebo para poder molhar elas. (...) Tem vez aqui mesmo que não tem água
pra coar um cafezinho se quer, porque o caminhão que traz água falha uns dias
e ai só Deus mesmo pra saber quando ele vem e ai nós ficamos aqui nesse
sofrimento.(Rosimeire, 42 anos, 2013)
37
A religião no quilombo
A comunidade de Buriti do Meio tem muita influencia do catolicismo em suas
práticas, tanto no ethos da população quanto em sua cosmovisão, este contato com a
religião católica possui muitos anos de contato de missionários e de incorporação de
festividades como as folias e as festa de santos por parte dos moradores do quilombo. O
que se configura na comunidade é m catolicismo rural que possui certas especificidades,
este é facilmente perceptível pelas falas dos moradores sempre cheios de superstições
acompanhadas da palavra “Deus” em seguida.
Uma forte influencia da igreja católica na comunidade são construções físicas
que a priori passam despercebidas por visitantes despreparados, mas estão fortemente
gravadas nas memórias do povo da comunidade. Em vários lotes do quilombo há
algumas pequenas casas construídas de alvenaria onde pessoas da comunidade moram.
Estas casas possuem uma escrita em frente a sua estrutura logo abaixo do telhado da
casa, que lembram algum dialético europeu e ao perguntar para os moradores eles logo
explicam que são dizeres em alemão, nomes de pessoas. Anos atrás o bispo da cidade
de São Francisco, que era alemão, teve uma forte presença na comunidade de Buriti do
Meio e de acordo com a narrativa local, este se sensibilizou com uma precária estrutura
de moradia que o quilombo possuía então organizou uma expedição internacional. O
bispo trouxe vários conterrâneos seus para que pudessem fazer o empreendimento de
várias construções para os nativos do quilombo, sendo assim várias casas foram
construídas, e em cada casa construída pintou-se em alemão o nome desses
trabalhadores estrangeiros como forma gravar nas construções e nas memórias da
população a ação internacional que foi realizada através do bispo católico de São
Francisco.
Estes símbolos se tornaram muito significativos na comunidade, pois de acordo
com Durkheim(2000), o entendimento dos símbolos são construídos através da tradição
coletiva de determinado grupo, sendo o símbolo significado de acordo com a trajetória
desta coletividade e as influencias que este símbolo possuiu no coletivo. No caso do
quilombo este símbolo serviu para reafirmar a presença da religião católica na vida da
comunidade e a importância do vinculo religioso estar presente nas vidas dos
moradores, tornando as casas e principalmente as escritas uma símbolo que representa a
força e adesão dos moradores à fé católica.
38
Em meados dos anos 2000 chega à comunidade uma nova religião, levada
através de fiéis que eram parentes dos moradores de Buriti do Meio, a congregação
cristã do Brasil. A religião sempre proporciona aos humanos um local de conforto e de
segurança muitas vezes sendo inclusive considerado um mal necessário para a
humanidade. Mas o que ocorre quando há uma disputa religiosa dentro de uma mesma
comunidade, e mais inda, dentro de um mesmo grupo étnico é uma (des)união destas
pessoas devido à fidelidade à crença que cada um.
A religião evangélica que chega ao quilombo de forma tardia em relação à
católica começa a tomar muito espaço da igreja católica, o que causa aos fiéis católicos,
revolta e desprezo pela outra religião. Um símbolo que pode ser percebido dessa
“corrida religiosa” e relativo “sucesso” da CCB15
é a igreja pertencente a esta religião.
Ao lado da principal escola de Buriti do Meio, há uma rua lateral, que se for seguida à
pé é possível de se visualizar um sinal “CCB - 100 metros”, ao seguir essa placa,
passando por algumas propriedades chega-se à uma estrutura que aparenta estar em fase
final de término, uma grande construção religiosa, que remete à algumas construções
urbanas modernas, templo este que tem pelo menos três vezes o tamanho da igreja
católica.
A religião é uma instituição que tem o poder de interferir no modus operandi de
seus fiéis, que de acordo com Weber(2004), é o mecanismo que que tem a capacidade
de mudar a maneira com que as pessoas estabelecem suas relações sociais. Apesar do
quilombo se basear de maneira anterior no catolicismo, este é permeado de crenças e
mitos ligados à religiões de matriz africana. É fácil se perceber tal característica quando
se pergunta sobre as curandeiras e curandeiros da comunidade, que são pessoas
investidas de dons repassados por parentes, que tem o poder de cura através da natureza,
raízes e plantas, e também através de rezas. Estas pessoas são dotadas de um
sincretismo religioso muito grande, que é notável quando estes oram sobre a pessoa que
está enferma ou mesmo quando é uma oração de proteção, são falas que contem os
santos católicos e os espíritos da natureza se comunicando. Essa característica existe
mesmo com o poder normatizador e padronizador das religiões, dessa maneira o
catolicismo se mesclou com outras crenças do quilombo para dar luz à uma ética
específica da comunidade de Buriti do Meio. Contato, esta não é a mesma lógica que
perpassa a religião evangélica, na figura da CCB.
15
Congregação Cristã do Brasil, igreja ligada ao pentecostalismo.
39
A primeira marcação da diferença que há no ethos dos fiéis evangélicos,
principalmente das mulheres são as vestimentas, que no caso feminino é requisito que
se use saia abaixo do joelho. Desta maneira a diferença se torna visível, marcando de
maneira simbólica o modus operandi destas mulheres. Mas há uma ética que prejudica
em muito na sociabilidade do quilombo, a impossibilidade imposta ao evangélico de
participarem de eventos festivos, principalmente aqueles ligados à religião católica,
como a folia de reis. Este é um traço que faz com que os moradores criem uma certa
aversão frente ao outro, na parte dos católicos uma aversão aos evangélicos que não
participam das festividades, mesmo em comemorações como o “dia da abolição da
escravatura”, que nada possui de comemorações religiosas, mas por outro lado, é uma
festividade que tem por finalidade reafirmar a negritude do quilombo, os evangélicos
são impedidos de participarem.
Além destas diferenciações que acabam atrapalhando a sociabilidade
quilombola, há a própria natureza do mundo social de acordo com Bourdieu(2003), que
se configura em uma constante disputa de hegemonia pelo campo, ou seja, pela
legitimidade do discurso e da instituição da realidade social. Sendo assim, as religiões
naturalmente se confrontam pois estão disputando um campo singular, o campo
religioso. Os sujeito que estão dentro desta lógica são claramente afetados e acabam por
compor esta disputa enquanto co-autores de cada agência que disputa a hegemonia.
Outra característica que o autor traz sobre o funcionamento dos campos é a necessidade
de auto-conservação que a hegemonia do campo tende a se comportar. Sendo assim a
religião católica que se encontrava na hegemonia do campo sem ameaças claras de seu
monopólio sentiu uma ameaça real de perder a esta hegemonia. Como exemplo que
ilustra a necessidade de auto-conservação, é possível identificar estratégias adotadas
quando eu conversei com Dona das Neves, católica fervorosa, que me fala sobre as
missões populares da igreja, sendo Dona das Neves uma missionária.
A missão é algo de Deus mesmo, sabe?! Quando me chamaram para ser
missionária me senti orgulhosa de mim mesma, sabia que era importante para a
igreja, por isso eu aceitei logo a participar. Essa missão é da igreja católica, a
gente vai na casa das pessoas para poder conversar com elas, rezar junto e para
chamar as pessoas para irem para igreja porque hoje todo mundo pode ir na
igreja, mãe solteira, pessoa que usa droga, não tem problema a igreja vai
acolher tudo mundo. E eu faço parte disso sabe meu filho, é um verdadeiro
chamado pra mim e eu faço questão de não perder uma visita!(grifos meus,
Dona das Neves, 2013)
40
Na fala de Dona das Neves, é possível de observar que houve realmente uma
mudança de atitude da igreja católica. É claro que essa mudança não se deu apenas por
conta do contexto do quilombo, isso se deu devido há um contexto muito maior, mas
com certeza representa a disputa que existe no campo religioso, e cada vez mais com
novas estratégias serão tomadas para que a hegemonia possa ser conservada, ou para
que a agencia subalterna possa se elevar a hegemonia. A grande questão é que dentro
dessa disputa as pessoas, antes unidas por um vínculo histórico e étnico têm cada vez
mais fissuras em seus relacionamentos, e possuem cada vez mais dificuldade de
estabelecerem vínculos sociais entre si.
Dentro deste contexto de disputa de poder, há esferas sociais no quilombo, que
possibilitam, não somente a associação de pessoas por meio de sua prática, mas também
um resgate e uma afirmação da identidade históricas destas pessoas.
Figura 7 - Altar presente na sala da casa de Dona das Neves
Fonte: RODRIGUES, Mauro, 2013
41
O artesanato quilombola
A história do artesanato na comunidade, segundo a narrativa dos moradores,
possui mais de 300 anos de confluências, onde foi repassado pelas tradições da vivencia
e da história oral que remetem à raízes africanas. Segundo Dona das Neves, o início do
artesanato rememora uma negra advinda de Grão Mogol que fazia parte do troco
familiar da atual comunidade de Buriti do meio, ela foi capturada por um fazendeiro e
permaneceu nas propriedades deste. Naquela época os negros andavam como índios, e
eram muito hostis à brancos, apesar de ser capturada pelo senhor ela teve que ser presa
para ser “amansada”, com o tempo os poucos ela se adaptou e começou a trabalhar na
fazenda. Certo dia essa negra precisou de uma panela de uma panela de barro:
Figura 8 – Artesanatos diversos feitos pelos quilombolas
Fonte: Acervo do Opará/2013
Ela (a negra) fez a feijoada só que ficou muito preta. [disse ela] Lá na minha
terra a gente faz na panela de barro, mas aqui não tem. Aí eles perguntaram
como que é, e ela falou: Vai lá na nascente e aprofunda três metros arranca o
barro que tiver e traz pra mim fazer a panela. Aí eles foram arrancou o barro e
levou para ela e lá ela fez o processo todo, tudo que nos fazemos hoje. Secou
esse barro, depois quebrou, fez e depois queimou. Queimou a em um buraco,
igual os nossos antigos, meu avô mesmo ainda queimou nesse buraco(...) Aí
42
surgiu disso, depois surgiu o pote também para beber água, o pote que é mais
sadio, porque bebia água só nas cabaça da cisterna. E também ensinou a telha,
todo ano eles tinham muito prejuízo porque perdia as rapadura aí pegou o barro
e pós na coxa e fez a telha grande para cobrir o engenho e também fez
copos.(Donas das Neves, 44 anos, 2013)
O artesanato representa um traço diacrítico muito forte no quilombo, é
constituído de histórias de muitas gentes que repassaram durante os século as
engenhosidades necessárias para se transformar o barro no produto final. Este se
constitui enquanto um símbolo de suma importância para a comunidade, pois ele afirma
a negritude deste povo e sua rica história baseada na resistência e também é uma
estratégia alternativa para a comunidade reproduzir sua vida, pois é uma fonte
econômica significativa para muitos moradores.
Figura 9 – Forno utilizado para a queima do artesanato
Fonte: RODRIGUES, Mauro, 2013
Os traços de ancestralidade marcam este símbolo que é reconhecido pelo
município e pela região. No caso da comunidade quilombola o artesanato foi sendo
construído a partir da cultura negra e aos processos de interação do barro com os
aspectos sociais daquela coletividade. Ao longo dos séculos este foi sendo fabricado e
repassado de maneira a permanecer vivo ao longo de tanto tempo. Sendo assim o barro
43
e o artesanato são construções que se fortalecem dentro da comunidade devido a
identificação que os moradores têm com este, e se torna mais importante quando é
reconhecido pelo município, através de convites para a participação em promoções
culturais onde há a exposição das obras de arte, assim como pela região, legitimando
tanto o artesanato quanto o sujeito quilombola16
em âmbito regional. Com isso, um
simples pote de barro ou uma escultura de argila são resignificados pelos quilombolas,
que constroem um símbolo de luta, de resistência e de afirmação de um povo.
A importância também ocorre no plano material, pois quando a agricultura não
da conta de suprir as necessidades básicas para a reprodução da vida dos quilombolas, o
artesanato de barro surge como uma estratégia de resistência. Neste sentido existem
algumas face da resistência, que segundo Guha(1989), oscila entre dois pontos, o
confronto e a evitação. Estas faces oscilam de acordo como o grupo reage as pressões
sofridas pela hegemonia do campo , no caso dos quilombolas, estes se encontram em
uma condição que esta dentro do contexto dos povos e comunidades tradicionais pois
resistem a pressão imposta a estes no campo econômico. Os extremos da resistência vão
desde a luta ou guerra, o extremo do confronto e a fuga, o extremo da evitação.
Seguindo este pensamento a artesanato de barro é utilizado enquanto uma forma de
resistência que está na área da evitação, pois é uma alternativa para que os quilombolas
possam garantir se modo de vida sem que se coloquem em um embate, segundo o
discurso dos moradores:
O artesanato pra mim é parte da minha vida né?! Porque é dele que eu defendo
tudo aqui da minha família, o pão, a comida, o medicamento, tudo aqui. Meus
filhos estudaram desde criança e já tenho alguns na faculdade, tudo com esse
barro. (Donas das Neves, 44 anos, 2013)
Como acima mencionado por Dona das Neves, o processo de apropriação que
estas pessoas fazem do barro, acabam por moldar também a forma com que estes se
relacionam com a própria comunidade, pois estabelecem um contato íntimo com a
natureza que os fornece a matéria prima para manufatura do artesanato. Exemplo disto
são os locais onde eles extraem o barro, são locais que possuem uma formação
geológica específica que propiciam a constituição de “veias de barro”, pontos venais da
terra que produzem o barro e a argila, estas são área tidas como coletivas, pois não há o
cercamento destas áreas havendo um acordo tácito entre os moradores, tanto dos que
16
Identidade étnica emergente a partir da constituição de 1988. Nós capítulo a seguir será tratado sobre este termo em específico
44
produzem o artesanato quanto daqueles que não o produzem. Assim, produção de
artesanatos de barro e de argila representa um metabolismo,Foster (2005), que está em
pleno funcionamento, possibilitando uma troca recíproca com a terra e uma interação
que fortalece o vínculo com a terra.
A importância econômica do artesanato é visível nas casas dos moradores, pois
aqueles que não conseguem se sustentarem com a agricultura precisam de outra
ocupação para garantirem a sua reprodução, sendo que não há muitas opções de trabalho
na zona rural, além de algumas oportunidades como diaristas em fazendas vizinhas, que
remonta a dominação pessoal e exploração configurada em um passado próximo na
realidade do quilombo. Por conseguinte a alternativa do artesanato é uma estratégia que
faz com que o povo quilombola permaneça em seus territórios.
Figura 10 - Artesanato dentro do galpão
Fonte: Opará, 2013
45
CAPITULO II
IDENTIDADES EM JOGO:
AS REPRESENTAÇÕS IDENTITÁRIAS DOS NATIVOS DE BURITI DO MEIO
A identidade tem sido amplamente debatida nas áreas das ciências sociais,
sempre com o intuito de compreender a dinâmica identitária do indivíduo frente ao
corpo social. Ocorre que a identidade dentro do mundo social possui funções específicas
quando não dinâmicas próprias em geral se ligadas àdiferenciação e identificação.
Neste aspecto é preciso elucidar a desintegração do sujeito, havendo uma critica de
acordo com Hall(2005), da percepção de um indivíduo integral, originário e unificado,
que se fecha em si mesmo. Portanto parte-se de uma percepção plural da identidade,
onde o individuo deve assumir a distinção de si para que se possa marcar a diferença
frente ao outro e estabelecendo relações de coesão, onde os similares se agregam frente
aos diferentes, sendo possível esta sociabilidade apenas através da criação de marcos
diferenciais ou fronteiras identitária.
As identidades surgem então para que determinados tipos de relação ocorram em
determinados contextos, onde se cria o jogo de identidades. As fronteiras surgem para
demarcarem a diferença entre os grupos e indivíduos, pois segundo Bourdieu(0000),
estamos em um mundo social onde a dominação através do campo dita o funcionamento
das práticas sócias, neste sentido a fronteira, a diferença que marca profundamente o
meio social, aparece enquanto uma estratégia social que articula os poderes em jogo.
De acordo com Hall(2005), as identidades possuem ampla ligação com as
práticas discursivas, onde esta última é adotada em uma semântica foulcoaltiana, na
qual identifica esta prática enquanto uma prática normativa e imperativa. Sendo assim
os discursos são símbolos que operam dentro da gramatica social, onde a ordem dos
signos e significados é ditado pelo discurso hegemônico, funcionando em sincronia com
a identificação dos sujeitos às representações, onde Tomas Tadeu da Silva as interpreta
da seguinte maneira:
É por meio da representação, que por assim dizer, a identidade e a diferença
passam a existir. Representar significa, neste caso, dizer: “essa é a
identidade”, “a identidade é isso”(...) É também por meio da representação
que a identidade e a diferença se ligam a relações de poder. Quem tem o
poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade(...)
Questionar a identidade e a diferença significa, nesse contexto, questionar os
sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação(SILVA: pág. 91,
2005)
46
A representação entra enquanto aspecto fundamental para que se passa entender
a dinâmica da identidade e diferença, pois quando há a emergência das fronteiras pelas
distinções identitárias, as representações funcionam como mediadoras dos conflitos que
envolvem o poderio do campo. Assim sendo é possível visualizar a representação
enquanto aspecto importante a ser tratado para perceber as diversas faces das
identidades em jogo. No tocante da representação, Dürkheim(2000), trata desta
enquanto construção gestada à partir da interação coletiva e constituem uma maneira de
pensar e interpretar a realidade cotidiana, onde o peso do social se faz em aspectos
imperativos.
A representação é sempre uma atribuição da posição que as pessoas ocupam
na sociedade, toda a representação social é representação de alguma coisa ou
de alguém. Ela não é cópia do real, nem cópia do ideal, nem a parte subjetiva
do objeto, nem a parte objetiva o sujeito, ela é o processo pelo qual se
estabelece a relação entre o mundo e as coisas. (SÊGA: pág. 129, 2000)
Neste âmbito, utilizo o conceito de representação social, para trabalhar com as
dinâmicas identitária no quilombo de Buriti do Meio. Analiso as representações dos
quilombolas em três dimensões diferenciadas, para poder analisar e compreender como
estas foram construídas e como os sujeitos interagem e se utilizam da identidade em
jogo.
Figura 11 - Crianças na E.E. Fazenda Passagem Funda
Fonte: Opará, 2013
47
O sujeito quilombola
A partir dos movimentos sociais realizados pelos povos e comunidades
tradicionais com a reivindicações a favor de legislações para os mesmos, foi inaugurada
na constituição de 1988, os direitos à favor destas minorias sociais. Leis que garantem
“o pleno exercício de direitos culturais” (texto constitucional de 1988, art. 215), assim
como a garantia de direitos “... dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira... Os modos de criar, fazer e viver” (texto constitucional de 1988, art. 216).
Estes dispositivos constitucionais legitimam a luta das populações subalternas,
equipando-as com aparelhos legais para a sua luta por território, como elucida o João
Batista em seu estudo:
“Durante o processo constituinte na década de 1.980, representações
de diversas categorias sociais existentes no Brasil se fizeram presentes
reivindicando o reconhecimento de suas existências na Constituição Brasileira
que seria promulgada posteriormente. Articuladas a diversos movimentos
sociais, indígenas, membros de comunidade negras rurais, comunidades rurais
que foram atingidas brutalmente pelo processo de modernização da agricultura
e pecuária brasileira e diversos grupos étnicos, foram agentes da construção de
si mesmos como sujeitos coletivos de direito”(COSTA et al. Pág. 51, 2011)
Figura 12 – Dona das Neves e Don’Ana em reunião da associação
48
Fonte: RODRIGUES, Mauro, 2013
Neste contexto os aparelhos constitucionais conseguem legitimar a tanto a luta
como a identidade e os modos de vida destes povos e comunidades tradicionais. Há
então a emergência de sujeitos de direito baseados nos dispositivos legais, como caso
específico das comunidades remanescentes de quilombos, termo criado pela constituinte
de 1988, que é conceituado a partir da regulamentação dos dispositivos constitucionais,
em questão o decreto 4.887 de 2003 em seu art. 2º refere à estas comunidade como:
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins
deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à
opressão histórica sofrida.”(BRASIL, 2003)
Os critérios acima citados para que comunidades rurais negras sejam
reconhecidas enquanto remanescentes de comunidades de quilombo, como a “trajetória
histórica própria” e “relações territoriais específicas” podem ser notado nos tópicos
anteriores que registram as especificidades destas características na comunidade de
Buriti do Meio. Mas o que realmente define a identidade de uma comunidade negra
enquanto quilombola, são os critérios de “auto-atribuição” que possibilitam a autonomia
das pessoas da comunidade para se identificarem ou não com esta identidade criada a
partir de operadores do direito. Este é um critério de extrema importância, pois a
verdadeira significação ou identificação existe a partir dos próprios nativos, não há
como sobrepor esta identificação nas comunidades a partir de uma agencia externa, pois
este método iria resultar em uma violência simbólica, que segundo Bourdieu(2003) se
configura com a imposição de critério a calcados no discurso hegemônico para que um
determinado segmento social se alinhe à estes padrões.
Destarte, as comunidades negras tem que se identificar e se proclamar enquanto
remanescentes de quilombo para ter acesso aos direitos constitucionais. A organização
que reconhece as comunidades auto-atribuídas é a Fundação Cultural Palmares
vinculada ao Ministério da Cultura, responsável por emitir um certificado que legitima
legalmente a comunidade enquanto uma comunidade que possui modos de vida e de
reprodução social específico e permite que esta tenha acesso aos direitos concedidos.
A comunidade de Buriti do Meio teve seu reconhecimento garantido a partir de
2007, depois de uma longa caminhada por conhecimento através de instituições de
49
ensino, organizações como o serviço brasileiro de apoio a micro e pequenas empresas
(SEBRAE) e profissionais da área da antropologia para dar suporte à comunidade. O
histórico de como o interesse pelo direito ao acesso a identificação enquanto quilombola
se deu a partir de informações de agentes externos. O SEBRAE havia firmado um
contato maior com a comunidade no ano de 2005, onde este realizava oficinas
profissionalizantes para os moradores da comunidade. Ocorre que os integrantes do
SEBRAE que estavam ministrando os cursos começaram a participar da rotina da
comunidade e ter contato com as pessoas de maneira mais intensa que deu a eles acesso
aos modos de vida específicos do Buriti do Meio, e ao conversarem com alguns
representantes da comunidade que são mais velhos e detém a história da comunidade
em suas mentes, os professores do SEBRAE conseguiram identificar que aquela
comunidade em que estavam atuando tinham características muito específicas de
antecedentes negros, que remontam aos escravos africanos e suas estratégias de fuga
nos períodos coloniais. Com esta descoberta houve um reunião com os membros da
associação de moradores da comunidade para que fosse repassado a possibilidade
daquela comunidade se auto-atribuir de acordo com os dispositivos legais e ter acesso à
direitos que foram institucionalizados como forma de correção ao passado de massacre
e escravidão.
Outras instituições assim como o próprio poder municípal se envolveram no
processo junto a comunidade que procurou se informar melhor e tomar conhecimento
do que de fato esta declaração tinha haver com sua história e seus modos de vida.
Após os moradores terem tomado consciência do que realmente representava
essa titulação, houve o esforço comunitário de concretizar a auto-atribuição. Os
representantes da comunidade tiveram que se deslocar várias vezes, à sede do município
e também a capital, Belo Horizonte, para que fosse articulado com as instituições
responsáveis os trâmites necessários para que a Fundação Cultural Palmares emitisse o
título de comunidade remanescente de quilombo que ocorreu no final do ano 2007.
Assim que o certificado foi emitido e a comunidade reconhecida, houve alguns
processos que iriam ser desencadeados devido a identificação e o significado que isso
teve para a comunidade. A começar, houve um ressignificação do histórico da
comunidade, as os nativos de Buriti do Meio tinham conhecimento de sua história e a
ligação que esta tinha com a escravidão, mas isso era um motivo de “vergonha” para os
moradores, a maioria fazia questão de esconder este passado. É claro que isto se dava
devido a configuração com a qual a sociedade brasileira está identificada.
50
Anteriormente citei a violência simbólica de Bourdieu, que se encaixa novamente
quando deparamos com as falar dos moradores e a relação que estes tinham com a
trajetória histórica da comunidade antes do reconhecimento pela Fundação Palmares.
A gente tinha vergonha mesmo! Era muito difícil ver alguém falando sobre o
nosso passado, as pessoas daqui não queria saber dessa história de quilombo,
porque eles não entendia que era importante pra gente. Mas eu mesma tinha
vergonha, era muito difícil, ainda é sabe?! É que antigamente o povo pensava
muitas coisa ruim se a gente falasse essa coisa. Hoje a gente ta lutando pra
poder falar com orgulho né?! (Tânia, 2013)
Como respeitar seu próprio passado, olhar para traz e dizer com orgulho que é
descendente de escravos, quando todo um coletivo associa este mesmo passado com
coisas negativas e desclassifica o mesmo, e reafirmar o passado é sinônimo de
degradação da imagem de si e de sua comunidade? A violência simbólica que estas
pessoas sofrem, têm dimensões profundas e complexas, pois nas disputas travadas
dentro do campo, segundo Bourdieu(2003), há uma agencia que consegue a supremacia
e sobrepõe as outras, estabelecendo a legitimidade daquele mundo social, as pessoas que
estão nos grupos subalternos tem suas realidades violentadas pelo discurso hegemônico,
que tem o poder simbólico de instituir uma hierarquia valorativa baseada em seus
próprios critérios que excluem agencias que não pertencem aquela lógica ou não se
adaptam ao formato estabelecido.
Ao retornar para o histórico da emergência do sujeito quilombola na comunidade
de Buriti do Meio, passo a compreender o que foi possível advir nas pessoas da
comunidade quando a titulação da comunidade ocorre por uma instituição do Estado
que as classifica e as legitima no mundo social, que anteriormente as desclassificavam.
Novas lideranças comunitárias surgem com a possibilidade de poderem semostrar, sair
de sua camuflagem e emergir do contexto social dotado de um poder simbólico
propiciado pelos dispositivos legais assim como a própria força intrínseca à riqueza
cultural desse povo. Ao interagir com os sujeitos da comunidade em outro âmbito
através da execução do Projeto Sujeito Agente/Unimotes17
, é possível identificar que os
quilombolas têm consciência da força inserida no reconhecimento da Fundação
Palmares, devido às propostas sugeridas por estes para o projeto.
17
Fiz referencia ao projeto na introdução, mas lembro ao leitor que fiz e faço parte da equipe de pesquisadores do projeto e realizei o trabalho de campo na comunidade. O projeto é financiado pelo Fapemig e reconhecido na Unimontes pela resolução Cepex 271/2012, coordenado pela Professora Andréa Narciso.
51
O projeto sujeito-agente se propõe, à partir de uma perspectiva da pesquisa
participante, interagir com as pessoas que foram selecionadas internamente na
comunidade para que houvesse uma proposta de pesquisa que surge a partir dos
próprios sujeitos da comunidade. Os pesquisadores participantes do projeto, no qual eu
me incluo, capacitam os quilombolas no âmbito da pesquisa científica através de
oficinas realizadas na comunidade. A partir desse processo e do entendimento pelas
pessoas da comunidade sobre a pesquisa, estes são instigados a pensarem em um projeto
que surja a partir dos anseios perpassam os imaginários destas pessoas, pensando sobre
a atual conjuntura da sociedade quilombola e sobre as necessidades que podem ser
supridas com uma pesquisa acadêmica.
As propostas que surgem a partir da provocação inicial podem ser
consideradas como o reflexo ou uma representação do atual momento que vive o
quilombo, pois são propostas que inicialmente almejam resgatar o histórico da
comunidade, porque na visão dos moradores, apesar de já haver pesquisas que retomam
o surgimento e a fundação da comunidade, como exemplo a pesquisa de Aguiar (2012),
os sujeitos quilombolas anseiam fazer este processo de reconstrução à partir de seus
próprios esforços, com suas próprias representações, assim como fazer uma comparação
do contexto comunitário como um todo, antes e após o reconhecimento pela Fundação
Cultural Palmares. Esse segundo objeto de pesquisa proposto pelos nativos de Buriti do
Meio, exemplifica perfeitamente um divisor de águas, que surge a partir das
subjetividades dos próprios indivíduos que viveram este processo, sendo considerados
por estes uma possibilidade de melhoras para a comunidade. A vontade destas pessoas
destas pessoas de pesquisarem estas diferenças e anunciado por Tânia:
(...)A gente tem que ver como era aqui antes, porque as coisas eram diferentes,
tem gente que fala que não, mas é só olha paraas coisas novas da comunidade,
as escolas, o PSF, os programa do governo que a gente tem direito agora. Isso
muda as coisas por aqui, muda as pessoas também, a gente tem que saber como
que mudou, porque isso é importante pra gente, para o quilombo e para
pessoas, isso é importante até para os jovens. (meus grifos, Tânia em uma
oficina do projeto sujeito agente, 2013)
Observando o discurso da Tânia, moradora politizada, membro ativo da
associação de moradores, pode-se depreender com mais clareza o impacto que uma
titulação como este tem. O movimento de ressignificação por parte dos moradores, tanto
das estratégias quanto do histórico da comunidade se faz presente a partir do momento
em que este sujeito de direito emerge. Um exemplo emblemático que também
52
exemplifica de maneira sincrônica este sujeito quilombola e sua implicação no ethos das
pessoas da comunidade é a representante política e artesã da comunidade, Dona Maria
das Neves.
Dona das Neves, como os moradores a chamam na comunidade, participou
ativamente do processo de reconhecimento da comunidade, inclusive sendo convocada
para ir pessoalmente à capital, Belo Horizonte, para poder entrar em contato com a FCP
,onde ela passaria por alguns procedimentos burocráticos para que o reconhecimento
pudesse ser efetivado. Essa mulher quilombola é uma figura carismática e performática,
que consegue de atribuir características simbólicas para estabelecer fortes relações
dentro e fora da comunidade. Ela é constantemente convocada para representar a
comunidade de Buriti do Meio em eventos oficiais e apresentações culturais. Este lugar
de representação ocupado por Dona das Neves se torna possível por conta de seu
engajamento no cenário político da comunidade e recentemente pela recente
participação no processo de reconhecimento. Ela atuava como membro ativo da
associação de moradores de Buriti do Meio, mesmo quando esta não existia
oficialmente e se organizava junto à associação de morados da comunidade de Imbu
Cabeludo, que já estava registrada e ajudava os moradores de Buriti do Meio nas
questões funcionais dos aspectos políticos. O quilombo não possuía autonomia de ter
um presidente próprio e dependia da outra comunidade para resolver até mesmo
questões burocráticas, mas a partir do ano de 1998 há a criação e registro da associação
de Moradores de Buriti do Meio, contando com Dona das Neves como um dos membros
fundadores. As influencias de Donas das Neves passaram então a ser catalisadas pelos
símbolos a ela cedidos através dos dispositivos constitucionais e sua participação
significativa na efetivação destes para o quilombo.
A trajetória, de acordo com Geertz(1989), representa parte importante na
construção e no fortalecimento dos símbolos, principalmente aqueles ligados à esfera do
carisma, que investiram Dona das Neves de um poder associados aos símbolos que atua
através da legitimidade que lhe foi proporcionada pelo Estado, sendo assim os símbolos
que ela utiliza em sua performance social são eficazes.
O sujeito quilombola se torna instrumento primordial para que a comunidade
possa ter acesso à um direito de fundamental importância para estes povos, o direito ao
território através do Laudo Antropológico. As comunidades quilombolas, se enquadram
dentro dos dispositivos infraconstitucionais, no caso art. 68 ADCT, que garante aos
quilombolas direito a seus territórios que vêm sido ocupados de forma histórica por suas
53
famílias. Este por sua vez é regulamentado pelo decreto presidencial 4.887 de 2003, que
garante aos quilombolas a possibilidade do “auto reconhecimento”, como já colocado
acima e também regulamenta e institui o Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação (RTID), que possibilita aos quilombolas, através do INCRA, terem acesso
a seu território ancestral, ou seja, retomada das terras expropriadas.
Esta é uma equação complexa que envolve uma série de incógnitas, pois apesar
de, no mesmo decreto, o 4.887/03, regulamentar tanto o reconhecimento quando a
titulação das terras, estes não ocorrem de forma sincrônica, ou seja, tanto um como o
outro são processos que são desencadeados depois de muita articulação por parte da
comunidade, e principalmente o segundo, por conta de movimentos sociais como forma
de pressionar os órgãos responsáveis. No caso de Buriti do Meio, desde 2007 que a
comunidade é reconhecida, mas até os dias atuais esta não possui sinais de que vai haver
a demarcação de terras, contando apenas com seu nome na “lista de espera” do INCRA.
Esta situação exemplifica a necessidade das comunidades reconhecidas pelas FCP de se
articularem em torno desta nova identidade acerca de um modo de vida ancestral.
Passando por um processo de ressignificação, pois o significante, quilombola, é uma
identidade que surge de legislações governamentais, ou seja, se localiza em esferas
distantes daquela vivenciada pelos sujeitos que a “receberão”. Assim sendo, há a
necessidade se se preencher, de dotar este de significado a partir da própria comunidade
que vivencia esta identidade nos âmbitos políticos e culturais.
O processo de demarcação territorial se faz necessário para estas comunidades
devido à seu histórico de expropriação vivido em âmbitos praticamente gerais na região
norte mineira, remetendo à imagética-discursiva existente sobre a região. Neste
contexto, o sujeito de direito quilombola, deve ser acionado, ou seja, deve ser assumido
pelos moradores de Buriti do Meio para que se possa legitimar o processo de retomada
das terras. Pois, mesmo nesta comunidade quilombola, há pessoas que não tem interesse
nas demarcações territoriais, pessoas que não querem participar da luta política, por já
julgarem ter um pedaço de terra justo, onde podem reproduzir-se minimamente ou
simplesmente por não terem o interesse de aderir ao movimento quilombola, são
pessoas que não se identificam com a identidade constitucional, se posicionando apenas
como trabalhadores rurais.
54
Festa da abolição de Buriti do meio
Neste tópico recorro à descrição densa para traduzir a festa de abolição da
escravatura que aconteceu no Buriti do Meio, pois esta foi vivida por mim em sua
totalidade, ou seja, desde a arrumação da festa, passando pelo evento em seu ápice até a
percepção posterior ao dia da festa. Analiso está enquanto um ritual feito pelos
moradores, enxergandoesta através do prisma de Peirano (2003), que apresenta uma
abordagem de ritual contrária à visão que cristalizaou é entendida pelo senso comum
enquanto acontecimento extraordinário, sagrado ou formal que está fora da esfera do
cotidiano das pessoas. Para a autora os acontecimentos desta esfera, na vida de uma
sociedade, podem ser entendidos e analisados enquanto processos ritualísticos dotados
de símbolos, celebrações e até mesmo de uma eficácia simbólica acionada durante o
processo. Na perspectiva metodológica de analise, recorro à proposta de Turner (2005),
que organizada a compreensão em três etapas: as formas observáveis do processo, a
interpretação dos especialistas e dos leigos, e a elaboração do antropólogo.
O evento observadoocorreu no dia 25 de maio de 2013, sendo que me foi
possível chegar à comunidade no início dias antes e vivenciar o pré-rito junto aos
moradores. O evento é realizado no terreiro18
de Dona das Neves, local onde ocorrem
reuniões coletivas, e eventos, principalmente os organizados por ela. A justificativa do
local do evento se dá devido à sua natureza organizacional. Esta festa tem o apoio da
associação de moradores da comunidade, que participa cedendo o caminhão
comunitário para resolver aspectos da logística do evento. No demais toda a estrutura é
articulada e organizada pela família de Dona das Neves, que conta com alguns parentes
para ajudar na montagem da ornamentação, nas tem sua família nuclear como equipe
que participa de todo o processo, incluindo o trabalho durante o evento.
A família nuclear deDona das Neves é estrutura inicialmente com seus cinco
filhos, três mulheres e dois homens, que não estava completa por conta da ausência de
dois filhos homens mais velhos, que se estavam migrando para sul de Minas onde
ofertam sua força-de-trabalho na lavoura de cana-de-açúcar e café, para garantir a
reprodução familiar como caracterizado anteriormente. A filha mais velha desta
matriarca, Flávia, é casada com Wendel, personagem importante na comunidade e na
festa enquanto articulador de ideias e eventos. Ele não é nativo da comunidade, mas por
casamento exogâmico passa amorar na comunidade, residindo há quatro anos
18
Terreiro deve ser compreendido na perspectiva discutida por Woortmann (1983) sobre os espaços no
sítio camponês.
55
nesta,sendo reconhecido pelos moradores como um quilombola e que participa
ativamente dos movimentos políticos da comunidade.
Minha chegada ao quilombo no início da tarde não alterou a rotina das pessoas
que estavam trabalhando na montagem da festa, pelo contrário, logo sou recebido por
Flávia que me mostra onde vou dormir e me incluí nas tarefas, demonstrando que a fato
de e eu ter estado no quilombo algumas vezes propicia uma familiarização de inclusão
por parte dos nativos. Seguindo essa lógica sou incumbido de ajudar o Wendel a
arrumar a parte elétrica colocando várias lâmpadas espalhadas pelo terreiro e
improvisamos algumas tomadas. Este momento de pré-rito, sou incluso nos preparativos
enquanto uma pessoa de dentro, ou seja, as pessoas da comunidade me incluem nas
atividades assim como a seus próprios parentes, me fazendo trabalhar junto ao Wendel,
enquanto as mulheres trabalhavam a comida, preparando e limpando o arroz e o feijão.
Enquanto isso os dois filhos de Das Neves estão fora resolvendo o transporte do som
que será utilizado na festa e as filhas e a própria Das Neves junto à mais algumas
pessoas tomam conta dos alimentos que serão servidos no dia seguinte.
Dona das Neves que possui sua força política e cultural na comunidade, se faz
presente em eventos sempre de forma performática, anda com vestidos coloridos e
turbantes na cabeça e vários colares de sementes. A roupagem utilizada por ela,
consideradas como próprias da comunidade, reflete oethose a afirmação da identidade
negra. Numa perspectiva foucaultiana, o discursoproferido por ela, enuncia o
quilombola na sua luta pela afirmação de seu passado histórico.
56
Figura 13 – Dona das Neves em seu quintal.
Fonte: RODRIGUES, Mauro, 2013
Com o findar da tarde, as pessoas que não moram na casa de Das Neves
começaram a se recolher, ficando apenas os filhos de para o dia seguinte. Um enorme
silêncio toma conta da atmosfera do terreiro, o céu dá espaço à bandeirolas que são
musicalizadas pelo vento, os artesanatos, símbolos da identidade quilombola, estão à
mostra debaixo de uma mangueira, iluminado pelas lâmpadas improvisadas e o galpão
do artesanato se torna um auditório onde acontecerão palestra e discursos de convidados
e moradores da comunidade. Assim, se encerra o pré-rito, momento necessário para
ornamentar o evento, assim como prever os gastos, organizar as quantidades de comidas
e bebidas, estabelecer os cargos que as pessoas ocuparão do momento central do evento.
Peço a Dona da Neves que me fale sobre a festa da abolição, considerando ela
como uma das especialistas do ritual:
Essa festa é importante para o povo daqui valorizar o que é, e pra lembrar da
história, né?! Nós já fomos escravos, né?! E não tem tempo não! O povo
57
daqui parece que se esquece. Mas eu não esqueço não! A minha vó mesmo
foi escrava, tratada igual bicho e presa em corrente de ferro. E parece que a
gente ainda é escravo, nessa vida sofrida que a gente leva” (Dona das Neves,
2013).
O amanhecer das pessoas começa bem cedo, com o assobiar das panelas de
pressão cozinhando as carnes e o cheiro de lenha queimada que aquece o fogão de
lenha. Às seis horas da manhã o movimento já é intenso no terreiro. Várias pessoas que
não se encontravam no dia anterior se fazem presentes para ajudar com os últimos
preparativos. Wendel me procura para que eu possa ajuda-lo a compor perguntas para as
dinâmicas que ele preparou para os estudantes participaram do primeiro momento do
evento que basicamente se dividirá em três instâncias: A gincana, parte específica
destinada aos jovens das cidades vizinhas, as apresentações culturais, momento onde as
pessoas de Buriti do Meio fazem várias apresentações, de capoeira, catulé, folia entre
outras e o momento de descontração, onde uma banda contratada de São Francisco
animará as pessoas na parte da noite.
Wendel é um negro alto e robusto, articulado e gesticulador que junto à Das
Neves luta pelos direitos dos quilombolas, como interpretado por ele:
Figura 14 – Wendel no galpão de artesanatos
58
Fonte: Acervo Opará/ 2013
Vou te dizer, eu acho esse trabalho de D. das Neves fundamental pra
comunidade. Se depender das pessoas daqui, eles não fazem nada. Porque
vou te falar, preto ainda é escravo hoje, e você sabe a dificuldade que é falar
de preto né?! A gente tem na cabeça nossa que tudo de ruim é preto, até o
pessoal daqui acha isso de vez em quando, e Dona das Neves sabe que é
importante mudar isso (Wendel, 2013).
Por volta das oito horas da manhã as “cores” do quilombo começam a ser
tingidas de branco. Quatro turmas de estudantes do ensino médio junto ao corpo
docente que os acompanha começam a ocupar o terreiro. Adolescentes eufóricos, que
em sua maioria não são negros, ocupam rapidamente um grande espaço vazio de terra
batida sob as bandeirolas. Eles irão participar das dinâmicas da parte da manhã, regidas
pelo Wendel. As escolas são das cidades de São Francisco, Brasília de Minas e
Luislândia, principais centros que envolvem a comunidade de Buriti do Meio, o que dá
o tom de reconhecimento microregional à festa e ao quilombo.
Posicionado em um palco feito de madeiras de eucalipto e coberto por uma
estrutura metálica, Wendel convoca os adolescentes para que se iniciem as dinâmicas,
abrindo os trabalhos do rito em si. O objetivo das dinâmicas é que estes jovens possam
praticar atividades que são costumes dos quilombolas, para que eles “vivam” um pouco
da realidadeda comunidade. Sendo separadas três equipes que disputarão a gincana é
esclarecido como a mesma ocorrerá.
A primeira fase se baseia em um jogo de perguntas e respostas, onde perguntas
sobre a escravidão e sobre o quilombo serão realizadas, acumulando-se “pontos” a cada
acerto das equipes.
A segunda fase exige o aspecto físico dos estudantes, estes terão que fazer uma
“corrida rústica”, de acordo com Wendel, simulando algumas atividades cotidianas do
quilombo como: cortar lenha e levar ao forno, carregar potes de barro cheios de água na
cabeça e colher a mandioca para fazer a tapioca, esta atividade sendo realizada de forma
performática.
Na fase final cada equipe tem a tarefa de simular a dança e o canto feitos pelas
mulheres do quilombo. A gincana ocorre de forma descontraída com o clima de
competição estimulado pelo Wendel, que inflama com gritos e frases animadoras as
equipes. Neste momento percebo a formação dos grupos presentes no terreiro. Há o
grupo dos estudantes que se forma no centro do terreiro se dividindo em três equipes.
Cada equipe tem atrás de si a torcida de sua escola, composta por estudantes e
59
professores. Um segundo grupo se forma no entorno das equipes formado por
professores ligados a instituições de ensino de Belo Horizonte e Montes Claros, por
políticos da região e em grande parte por quilombolas. Ao final de muita agitação por
parte das equipes de estudantes e do próprio Wendel, encerra-se a gincana anunciando a
equipe ganhadora. Todas as equipes recebem como troféus esculturas de barro feitas por
Dona das Neves. Ao término da gincana procuro alguns jovens que dela participaram.
Nas duas interpretações abaixo é possível compreender um sentimento de
compartilhamento da vida dos quilombolas de Buriti do Meio.
Figura 9 – Gincana da festa da abolição
Fonte: Acervo do Opará/ 2013
Achei muito divertido! Acho que foi muito importante para todos nós
aprendermos sobre os quilombolas, porque eu mesmo nem sabia o que essa
palavra significava. É importante a gente viver essas coisas porque a
sociedade nossa é muito preconceituosa. Eu acho que fazer parte da dinâmica
fez a gente entender um pouco mais como eles vivem (Sofia – 16 anos -,
Brasília de Minas, 2013).
60
Eu acho que a escola deveria levar a gente mais pra fora, pra conhecer as
coisas, as pessoas. Eu adorei a gincana e acho que essas pessoas merecem
muito respeito pela vida que levam aqui, fiquei sabendo que até água falta pra
eles, fico pensando como é viver aqui todos os dias... (Matheus 17 anos -,
Luislândia, 2013).
No momento em que se estabelece a relação dos quilombolas com os estudantes
durante a gincana, posso observar a efervescência coletiva, em uma perspectiva
dürkheimiana, tomando conta da atmosfera da dinâmica. Os símbolos e o eidos dos
quilombolas, reproduzidos pelas performances dos próprios estudantes, provocam um
efeito de comunicação simbólica como discutido por Peirano (2003). Os estudantes por
sua vez acessam o sistema simbólico local que é comunicado simbolicamente pelas
tarefas realizadas na gincana. A comunicação entre todos os participantes e a
efervescência coletiva estabelecida dentro do ritual propiciam a comunhão de todos os
sujeitos envolvidos no evento, quilombolas,estudantes, professores, políticos, assim
como, outras pessoas que estão nos grupos mais exteriores no momento da gincana.
Nesse momento, utilizo Dürkheim (2000) que entende o momento de efervescência
coletiva como umcompartilhamento das mesmas ideias, valores e sentimentos. Entendo
que este momento propicia a eficácia da comunicação estabelecida no ritual, pois os
estudantes, assim como outros presentes, apreendem o conteúdo dos símbolos
quilombolas comunicados e que passarão a ser compreendidos por todos, como disse a
estudante acima.
Após o término da gincana, os alunos se dispersam do centro do terreiro, pois
neste momento iniciam-se alguma palestra dentro do galpão acerca da temática da
festa.Dentro do galpão, foram retirados os artesanatos que deram lugar aos bancos e as
pessoas presentes, assim como, banners e cartazes que continham informações sobre os
trabalhos do quilombo, como a danças e o artesanato. Nos cartazes as seguintes
afirmações: “A abolição aconteceu?” e “Resistir e Afirmar!”. Diante deste cenário
ocorriam discursos proferidos por professores das escolas, moradores da comunidade,
professores de instituições de ensino superior e de políticos. Todos falavam sobre a
escravidão e a abolição em suas perspectivas históricas e seus reflexos atuaiscomo o
preconceito e a exclusão social. Seu Geraldo, membro da associação de moradores da
comunidade de Buriti do Meio, falou sobre as dificuldades que a comunidade encontra
em ter seus direitos garantidos enquanto quilombolas. João Batista, antropólogo que
participava do evento foi convidado a falar para as pessoas ali presentes, que em sua
61
maioria eram estudantes e quilombolas, onde abordou a questão ideológica do
embranquecimento e sobre o preconceito dos próprios negros com eles mesmos, entre
outras coisas disse que “tem que se arrancar o branco que está sentado no centro de
nossas cabeças”. O discurso para Foucault(2012) é um símbolo que tem a força de criar
representações do real. Entendo a fala do antropólogo como a construção de uma
representação, que desconstrói a representação hegemônica dentro do campo
ideológico. O campo pode ser entendido, segundo Bourdieu(2003), enquanto um espaço
onde se travam relações de dominação, sendo que a agencia hegemônica no campo tem
o poder simbólico de instituir o real através de sua “legítima” representação. O que
posso perceber no âmbito das palestras são símbolos sejam eles, pessoas, cartazes ou
discursos que constroem uma representação que dá visibilidade ao quilombola e sua
cultura, que por sua vez é legitimada no tempo ritual pelas pessoas, tanto de dentro
quanto os de fora, como estudantes, professores e até mesmo quilombolas de uma outra
comunidade do mesmo município de São Francisco, Bom Jardim da Prata.
Terminadas as falas dentro do galpão, as pessoas começam a ser reunir
novamente no terreiro e se dirigem para diversos locais onde é servido almoço, em
pratos e copos de cerâmica feitos para este fim, que a comunidade disponibilizou para
todos. Numa perspectiva simbólica posso dizer que os quilombolas de Buriti do Meio
repartiram o pão, como no simbolismo cristão.
Em seguida, os estudantes em sua maioria foram embora, havendo uma maior
concentração de quilombolas nesta parte do ritual. Inicia-se então a parte artística da
festa com o terno de folia de reis se apresentando junto das mulheres “dançadeiras” da
comunidade de Buriti do Meio. Rodrigo, folião que puxa o grupo, afirma que a folia foi
iniciada há mais de duzentos anos, remontando os tempos do Seu Euzébio, negro
fundador deste grupo social. Tocam junto ao Rodrigo outros três moradores da
comunidade e em frente a eles cinco mulheres entre elas, Flávia, filha de Dona das
Neves. Elas dão movimento às músicas da folia, que só são dançadas por mulheres. Há
uma grande empolgação por parte das pessoas que assistem, que aplaudem e cantam
juntos. Percebo novamente um momento de efervescência contaminar o coletivo ali
presente, que segundo Durkheim (2000) propicia a exposição da visão de mundo desse
grupo social, que festivamente representa a si mesmo. As danças e a folia são símbolos
fortes que representam a ancestralidade e a resistência da comunidade. Interpreto com
Peirano (2003) que as danças e as músicas comunicam aos presentes a recriação da
62
representação da comunidade e da identidade quilombola local. A narrativa abaixo
evidencia este aspecto:
Das Neves é a dona da casa, e é ela que incentiva a comunidade inteira. A
gente nasceu aqui. Temos a dança da roda, a folia e a dança do pote. Todas
são danças católicas. Das Neves é muito católica. A dança do pote é uma
senhora com um pote na cabeça e ao seu redor têm outras mulheres dançando
e cantando. Só mulheres dançam e os homens ficam para tocar. As mulheres
não tocam. Mas das Neves toca com batuque. Isso tudo é uma tradição e
continua. É um costume. A tradição é ela dança, e para não parar. A função é
para preservar a cultura (Entrevista concedida pelos integrantes, Jaime e
Brasiliana, 2013).
Figura 15 – Roda de catira das mulheres de Buriti do Meio
Fonte: Acervo Opará/ 2013
Depois das apresentações das danças e da folia, a capoeira é anunciada e a roda
se forma. Mestre Bigode conduz a dança, tocando o berimbau e cantando num ritmo
contagiante, logo as pessoas começam a acompanhar com palmas e os capoeiristas
63
entram na roda, que se movimenta em uma mistura de dança lutada ou de luta dançada.
As letras das musicas enunciadas por mestre Bigode falam da luta e da resistência de
escravos que fugiam e de costumes ligados aos negros, como o beneficiamento da
mandioca para fazer o alimento. Cinco capoeiristas se revezam na dança, mostrando
muita habilidade nos movimentos, o que faz com que as pessoas gritem e aplaudam com
euforia.
Durante as apresentações de capoeira, há uma intervenção de Dona das Neves
que, trajada com maltrapilhos e com a cara pintada de barro preto, entra no meio da roda
de copeira e todos os participantes se ajoelham em sinal de reverencia. Compreendo que
neste momento os símbolos anunciados, representam e reverenciam a luta dos negros
que vindos da África contribuíram para a construção do Brasil. Das Neves começa uma
performance que simula uma escrava, sua fala contém dor e luta, ela discorre sobre a
vida do escravo e sua labuta. Ela, também, fala do quilombo nos dias de hoje e com
muita emoção, grita para as pessoas presentes: Ser quilombola é sofrer, ser quilombola
é lutar, ser quilombola é resistir, ser quilombola é chorar, ser quilombola é
afirmar!Durante sua performance muitos quilombolas presentes se emocionam e o
silencio só é quebrado pela voz da própria Das Neves. Ao término de sua encenação ela
é fortemente ovacionada e quando sai da roda a capoeira volta a ser tocada e dançada.
Como enunciado no início deste tópico utilizo o método proposto por Turner
(2005), que em sua primeira instancia propõe a observação dos fatos externos. Na
observação das relações estabelecidas dentro do ritual e dos símbolos presentes neste, é
possível identificar a representação simbólica que se materializa no cenário da festa. O
fato de este ocorrer em um quilombo só fortalece os símbolos da identidade e da cultura
desse povo. As pessoas presentes são contagiadas com todo o contexto que representa o
lugar de vida dos quilombolas. O terreiro de Dona das Neves com todos os seus
símbolos fortemente enfatizados pelo ritual: o artesanato, as danças, a capoeira, a
música, a comida e é claro os próprios moradores expressam a intenção do rito na
perspectiva da festa de abolição da escravatura. Em segunda instancia analiso a
interpretação dos leigos e dos especialistas perante a festa. Nas falas de Donas das
Neves e do Wendel, que considero como especialistas do ritual, é possível observar a
ênfase dada à festa enquanto instrumento de emancipação do sujeito quilombola e de
sua cultura. Estes entendem que o negro é vista enquanto um sujeito inferior e veem a
necessidade de utilizar de rituais para que haja a promoção e a divulgação da cultura
negra como forma de emancipação do sujeito quilombola frente ao preconceito da
64
sociedade. Os leigos, que considero em primeiro lugar os estudantes, afirmam a
existência de preconceito racial na sociedade em que vivem. Após comungarem da
realidade local no ritual, quando foram expostos à visão de mundo e aos símbolos
quilombolas, entendem que participar de rituais em uma comunidade negra possibilita
ter um contato profundo com o sujeito quilombola e sua cultura, ainda que subsumida à
ideologia hegemônica. Outros sujeitos que considero enquanto leigos, são os próprios
quilombolas que estão ali para apreciar o rito, estes afirmam a importância de ver a sua
cultura ancestral se renovando e perpetuando, sendo a mesma comtemplada e legitimada
por pessoas “de fora”.
Na minha visão entendo esse ritual com um ato de sociedade de afirmação de si
como quilombola por meio da resistência cultural. Os rituais e eventos ampliam,
acentuam e sublinham o que é comum em uma sociedade, segundo Peirano (2003),
sendo que no quilombo de Buriti do Meio, a luta pelos direitos quilombolas, assim
como a afirmação constante da identidade e da cultura são traços marcantes na vida
desse povo. A efervescência coletiva propiciada pelo ritual é sentida por todos a cada
momento, pois os acontecimentos do rito desde a gincana, onde se reproduz o cotidiano
da comunidade até à folia de reis, que recria os cantos dos primeiros moradores da
comunidade, representam traços ancestrais da cultura local. Esses traços possuem
grande valia para as pessoas que ali moram, pois é através destes símbolos que a
comunidade de Buriti do Meio se reproduz e resiste à uma sociedade que coloca estes
mesmo sujeito enquanto inferiores.
Ao final das apresentações culturais, as pessoas que fazem parte da organização
do evento, me incluindo novamente, iniciam uma reorganização do espaço da festa, para
dar início a terceira e última etapa do evento. Este é um momento em que há a presença
de uma maioria de pessoas de dentro da comunidade, tendo algumas outras vindas das
comunidades e cidades vizinhas.
A reestruturação do espaço se dá no sentido de transforma-lo, de um evento
temático da cultura negra, para um momento de entretenimento e descontração. O
primeiro espaço a ser colocado em evidencia é um balcão ao lado da casa do Wendel,
que tem a função de comercialização de bebidas alcoólicas e não alcoólicas. Assim, as
pessoas já entram em outra atmosfera do evento, que se inicia de fato com o inicio da
apresentação de uma banda de forró vinda de São Francisco no mesmo palco no qual
foram anunciadas as gincanas e as danças culturais. Este é um momento de
sociabilização das pessoas, em que a temática quilombola não é acionada, as pessoas
65
dançam, bebem e se divertem em um contexto de festa, estão ali para se entreterem,
neste momento não há um apelo por direitos, por rememoração histórica ou menção à
resistência negra. São homens e mulheres, crianças e idosos que se fazem presente para
prestigiar a música e as próprias pessoas ali presentes.
O dia 26 de maio se caracteriza enquanto o momento de pós-rito. Este se dá pela
nova organização da festa, que agora precisa ser desmontada os itens que foram
emprestados ou alugados precisam ser devolvidos. Este é um momento experimentado
apenas por pessoas participaram do primeiro e do segundo momento.
Este é um momento de reflexão e de agradecimento por parte das pessoas que
organizaram a festa. É possível descobrir em uma conversa com Donas das Neves que
todo o evento é financiado pela família desta, que planeja com alguns meses de
antecedência e conta com o dinheiro arrecadado com o artesanato para que se possa
fazer o evento. Nessa intensa vivência da festa, das três esferas do evento, consegui
depreender a necessidade dessas pessoas de terem que recorrer a eventos como este para
que possa ser legitimado no âmbito regional, a identidade e o modo de vida quilombola.
É um trabalho árduo, pois estas pessoas não contaram com o apoio de nenhuma
instituição, nem para a organização, muito menos para o auxílio financeiro. Foi-me
possível ver mais de perto a reciprocidade que existe nas categorias de pensamento
destas pessoas do quilombo, pois muitas pessoas participaram da organização da festa,
mesmo sabendo que a quantia arrecada iria para a família de Dona das Neves, mas eles
o fizeram de modo a afirmar o seu apoio a este tipo de evento, de legitimar Dona das
Neves enquanto uma representante da comunidade. A atmosfera criada pela
coletividade de ajuda mútua foi tão forte, que mesmo eu, pesquisador de fora, fui
incluso em uma lógica recíproca, e passei a operar neste mesmo sistema simbólico,
apoiando de forma a se pensar no único objetivo, a realização da festa.
66
Figura 16 - Dinâmica proposta pela gincana
Fonte: Opará, 2013
67
Migrações sazonais: Entre o quilombo e a “firma”
Figura 17 – Estrada que sai do quilombo. Caminho feito pelos ônibus que levam as
pessoas para as “firmas”.
Fonte: RODRIGUES, Mauro, 2013
Irei transitar neste tópico pelos meandros das migrações e dos sujeitos, que nela
atracados, sempre partem e nunca chegam. A compreensão dessa dinâmica se inicia em
aspectos que já foram tratados, no caso do sistema produtivo, perpassando os aspectos
territoriais, familiares e identitários, que muitas vezes são inconscientes pelo próprio
migrante, que preso a essa lógica, só se preocupa em pensar quantos “pé de cana já
cortei?”.
A migração em Buriti do Meio se dá principalmente pela falta de mão-de-obra
na zona rural, sendo que esta é catalisada pelo estrangulamento do sistema produtivo.
Em um local onde não se pode plantar devido à alteração dos circuitos produtivos da
comunidade, não deixa alternativa para as pessoas que querem permanecer no
quilombo, ainda mais quando as “firmas” mandam alguns ônibus para buscarem os
trabalhadores em suas comunidades.
A exemplo da estrutura familiar e sua ligação com a migração, tomarei a família
de Dona das Neves para ilustrar essa constelação. Como já exposto anteriormente, Dona
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das Neves tem sete filhos: Davi, 17 anos, Walter, 19 anos, Mariana, 24 anos, José
domingos, 26 anos, Maria Cassia, 27 anos, Flávia, 29 anos e Manoel Luiz, 31 anos.
Sempre estão presentes na comunidade ou na região19
todos os filhos de Donas das
Neves, com exceção dos dois filhos homens mais velhos, José Domingos e Manoel
Luiz, que funcionam em um calendário ditado pela migração temporárias das lavouras
de cana-de-açúcar e de café.
Nesta constelação desenhada pela estrutura familiar de Donas das Neves é
possível estabelecer relações que perpassam as migrações. A começar pela relação do
gênero e da idade. Esta relação é definidora de perfis de migrantes, pois Davi e Walter
ainda se encontram estudando no ensino médio, estes estão sempre presentes na casa da
mãe, e quando vão longe é em alguma festa nas cidades vizinhas. As filhas mais velhas
que já se formaram no ensino médio, logo entraram para o ensino superior a distância, e
se encaixam em um tipo de migrantes, pois optaram por permanecerem no quilombo e
viajarem para a cidade uma vez na semana para poder cumprir com a carga horária da
faculdade. Os dois filhos homens mais velhos, já participam a algum tempo da migração
temporária, pois assim que terminaram o ensino médio tiveram a “oportunidade”,
quando o ônibus da “firma” foi ao quilombo buscar trabalhadores, de irem trabalhar nas
monoculturas do sul de Minas.
Essas migrações, tanto das mulheres em busca de estudo, quando a dos homens
em busca de recursos, tem um denominador comum, a permanência no território
quilombola. Estas pessoas tema possibilidade de mudarem de vez para a cidade para
sanar suas buscas e seus anseios, mas ao invés disto optam por permanecerem em seu
lugar de origem, onde tem suas famílias, seus amigos, sua casa. A estratégia de partir
para ficar pode ser encarada com um tipo de resistência, que de acordo com
Guha(1989), pode se configurar em uma resistência de evitação, sendo esta
caracterizada pela adoção de estratégias que possam garantir seus objetivos onde não
acontecerá o enfrentamento. Pois, estes quilombolas poderiam estar em processo de luta
política ou até mesmo luta armada (em uma visão extremista), para poder ter o direito
de permanecer em seus territórios, direito este garantido pela constituição federal, mas
como mostra a família de Donas das Neves, estas pessoas optam por estratégias mais
passivas, degradam os vínculos destes com a terras e com o território, mas conquistam
de alguma forma a possibilidade de permanecerem em suas terras. É claro que os dois
19
No caso das meninas Mariana, Maria Cassia e Flávia, que fazem faculdade em São Francisco.
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tipos de migrações, aquela feita por homens e aquelas feita por mulheres, tem níveis de
violência simbólica, um tanto quanto diferenciados, pois uma pessoa que percorre 30
km uma vez por semana, tem seus sistema simbólico muito menos afetado do que uma
pessoas que percorre de 800 à 1000 km a cada quatro ou seis meses.
Ao deslocar-se 30 km, as alterações que se tem são mínimas, alterações em todas
as esferas, climática, cultural, geográfica. Essa distância faz com que as pessoas ainda
estejam em sua região, não alterando com tanta violência a lógica e o funcionamento
das coisas e das pessoas. Mas ao percorre uma distancia média de 900 km vários
aspectos mudam radicalmente. As mudanças proporcionadas pelas longas distâncias não
são negativas por si só, o que as torna negativa é o tipo de viagem que as pessoas do
quilombo têm acesso ao percorrem essa extensão. É o caso da migração temporária que
José de Souza Martins traz:
Geralmente, essas migrações combinam ciclos agrícolas distintos. São
migrações completamente dominadas e ritmadas pelo tempo cíclico das
estações do ano, do plantio, do crescimento e da colheita dos produtos
agrícolas. (MARTINS: pág. 49, 1986)
As situações mais significativas de migrações temporárias que podem ser
encontradas no Brasil mostram que a migração temporária é,
contraditoriamente, um modo de desatar os laços da família e, ao mesmo
tempo, um modo de atar o desenvolvimento do capital à exploração mais
intensiva da agricultura familiar (MARTINS: pág. 50, 1986)
Dessa maneira as pessoas estão presas em um circuito completamente paradoxal,
pois estão saindo de suas terras onde estão vivendo, no sentido literal da palavra, para
irem à locais distantes onde a única lógica que irão encontrar é a lógica do trabalho do
capital. Ao mesmo tempo, estes saem de suas terras para terem uma chance de viver
nelas, mas tem o outro lado da viagem, os que ficam. A migração então se torna em uma
faca de dois gumes, “cortando” a vida de dois sujeitos em um único processo, pois
quando José Domingos vai, Marineth (sua esposa) fica e eles vivem tempos e lógicas
diferentes. José vive no sul de Minas em função da quantidade de cana que conseguiu
cortar, enquanto Marineth vive em função dos animais, das plantas, das águas, das
pessoas. E quando José volta? Ele deixa todo seu funcionamento laboral para trás, no
sul? E como Marineth o percebe depois de tanto tempo? Sem dúvida as interferências
70
que estas pessoas sofrem ao entrar em contato com ambientes nos quais a palavra de
ordem é “ganhar um trocado”, são imensas e o objetivo de permanecer em terras
ancestrais parece se descolar de seus propósitos.
As pessoas do Buriti do Meio que migram, tem a possibilidade de poder
trabalhar nas cidades e viver no quilombo, mas muitas das vezes o trabalho na cidade
proporciona mais coisas do que somente o recurso no final da temporada. As maiorias
das pessoas que migram não participam dos movimentos sociais, nem das lutas por
direitos ou reconhecimento enquanto quilombolas. Geralmente são pessoas que não
estão a pá da situação política da comunidade pois, como afirmado por José de S.
Martins em sua citação acima, que interpreta a migração temporária como:“um modo de
desatar os laços da família”. Acontece que há consequências graves quando estas
pessoas têm seus laços afetados, pois estes representam a conexão com a terra, com as
pessoas, com o ambiente. Se a relação da família nuclear é afetada, quem dirá as
relações com as outras pessoas, isso se dá devido ao “descolamento” com os vínculos
familiares e tradicionais para que possa aderir ao vínculo do capital e do trabalho, do
urbano e do “desenvolvido”. A violência simbólica sofrida por estas pessoas passa então
a ser explícita, pois carregam uma racionalidade tradicional, baseada na vivencia e na
experiência com seu ambiente e sua cultura que é desfigurada para dar lugar a uma
racionalidade funcionalista, baseada nas demandas do capital e da modernidade. Assim
como explica:
As atividades de produção em tempos antigos eram caracterizadas como
atividades de subsistência e possibilidade de permanecia no campo. As
relações de trabalho relatadas não se baseavam apenas nas leis de mercado.
As ações econômicas dos indivíduos baseavam-se também em trocas entre as
famílias, parentes, vizinhos, imbricando valores de cooperações,
solidariedade e reciprocidade. (Paula et al: pág. 6, 2002)
Os tempos, os valores, as pessoas, os circuitos, todos estes são diferenciados no
caminho entre o quilombo e a “firma”. Afirmar que o sujeito tem a possibilidade de
permanecer em seu território através da estratégia migracional seria leviano, pois como
visto aqui, o individuo que migra não é aquele que permanece em seu território, estes
são sujeitos diferentes. Talvez o desejo inicial de um migrante seja a permanecia, mas
até quanto esta ideia ira permanecer defronte de seus olhos, quando estes estão sendo
vedados com cédulas imbuídas de valor simbólico.
Voltemos ao exemplo inicial da família de Dona das Neves, os dois filhos que
migram, constantemente ausentes, não participam das atividades quilombolas, muitas
71
vezes planejadas e executadas pela própria mãe, como no caso da festa da abolição. O
distanciamento dos rapazes é perceptivo no cotidiano, uma vez que estas pessoas não
participam tão efetivamente da vida da comunidade, tendem a “flutuação”, pois não
estão nem aqui nem ali, não estão migrando, mas também não estão participando das
manifestações culturais. Neste cenário é preocupante a desagregação de pessoas na luta
quilombola, pois, esta luta só existe devido à um processo histórico de desigualdade,
catalisado por dispositivos constitucionais que legitimam essa luta, mas com a nova
“inclusão” do capital, ou seja, com a adesão de jovens ao sistema, através da migração
temporária desviasse de foco a luta, para dar lugar à alienação, pois em um sistema onde
pessoas são transformadas em indivíduos e estes transformados em força de trabalho,
não há espaço para cultura, muito menos para luta por direitos, sendo o sistema do
capital um grande desarticulador da comunidade quilombola.
Desde logo, é conveniente que se figa que exclusão, em si mesma, como
fenômeno isolado, é uma ficção – não existe exclusão propriamente dita. Na
sociedade capitalista, a rigor, não se pode haver exclusão; não pode existir
sociedade capitalista baseada na exclusão. Toda a dinâmica dessa sociedade se
baseia em processos de exclusão para incluir.(MARTINS: pág. 119, 2002)
O que faz o capitalismo, ao desenraizar as pessoas, é transforma-las em
proprietárias de uma única coisa: a sua força de trabalho. O desenraizamento
do camponês não está simplesmente em sua expulsão da terra. É reduzi-lo à
única coisa que interessa ao capitalismo, que é a condição de vendedor de força
de trabalho. (MARTINS: pág. 121, 2002)
O desenraizamento e a interferência das lógicas urbanas capitalistas na vida dos
quilombolas se torna um problema que preocupa os moradores, pois, uma vez que estas
pessoas vão para as “firmas” e tem seu eidos e seu ethos afetados, estes voltam e as
alterações não param nas individualidades, um indivíduo contamina o outro, aprende
com o outro, o migrante “tira vantagem” de suas roupas “modernas” e de seu dinheiro
acumulado ao longo dos meses. Ou seja, há um efeito dominó dentro do quilombo, as
coisas interferências se dão em todos os níveis.
“Hoje o problema da droga é muito grande aqui na comunidade. As pessoas
trazem de fora. Antes aqui ninguém ouvia falar disso, isso era coisa de
cidade, mas hoje em dia, a gente tem até que chamar polícia pra dar palestra
aqui na comunidade sobre as drogas, porque as pessoas que vão trabalhar
fora acaba caindo na conversa dos outros e voltam viciados, aí não tem jeito,
vem pra cá e trazem coisas que não é nossa. O povo que vai corta cana
mesmo, usa droga pra corta mais cana e ganhar mais dinheiro, mas não vê o
que ta fazendo com ele, e muito menos com a comunidade.” (Joana, 34 anos,
2013)
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No relato da Joana, presidente da associação, é possível visualizar claramente
como as influencias externas afetam a lógica e o funcionamento da comunidade, assim
como os indivíduos que saem do quilombo são afetados pela lógica do capital. Não há
como pular em um rio e sair dele sem que suas águas o toquem, assim como não há
como trabalhadores rurais passarem temporadas em centros urbanos, ou em pequenas
cidades onde trabalham nas monoculturas, sem que os ciclos tanto de suas identidades
quanto de suas cosmovisões sejam afetados.
É possível enxergar na estratégia dos quilombolas as duas faces da moeda. Pois,
a principio são sujeitos que foram vítimas da perda de suas terras e do complexo sistema
produtivo que possuíam, forçados a adotarem algum tipo de estratégia que os tiraria
daquela situação. Portanto são “agressivamente20
” incluídos pelo capitalismo enquanto
mão de obra barata que servem de combustível humano para a agroindústria. Ao mesmo
tempo estes estão em um contexto de retomada dos territórios ancestrais, a partir de
lutas e movimentos sociais. Mas estes são neutralizados com a alienação do capital, que
deixa o quilombola estéril, pronto para cortar mais mil pés de cana.
20
Me remeto a este termo devido a estratégias utilizadas pelas empresas de enviarem ônibus as comunidades rurais em busca de trabalhadores.
73
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
O Sertão é de Preto!
O objetivo deste estudo monográfico foi a discussão das dinâmicas presentes
tanto nas identidades dos sujeitos em questão, quanto nos territórios ocupados por estas
pessoas. Reforço neste contexto a importância da minha pesquisa etnográfica para a
compreensão destas esferas da vida em Buriti do Meio, assim como um interação de
respeito mútuo, onde estas pessoas me acolheram em suas casas e abriram não somente
as portas de seus lares, mas também as suas vidas, suas crenças, seus pensamentos e
suas confiança.
Pude observar os quilombolas em seu cotidiano, no campo, no artesanato, na
partida para a viagem de trabalho, nas viagens para estudo. Estas experiências deram a
vivencia necessária para apreender como estas pessoas lidam com a batalha da vida,
como elas se posicionam frente às dificuldades, ou seja, como a identidade é acionada
nas relações em que os quilombolas têm com o mundo da vida. Nesse âmbito pude
entender quão importante é para estas pessoas uma identidade legitimada pelo Estado,
pois se veem dotados de uma força simbólica para lidar com as dificuldades impostas
pelo contexto social e histórico.
A identidade quilombola ao contrário do que eu esperava encontrar, apresenta
um caráter diverso, estas pessoas não são indivíduos estáticos que tem lógicas simples
de funcionamento devido à sua localização no rural. Os indivíduos do quilombo são tão
complexos e profundos quanto qualquer outro indivíduo moderno.
Um exemplo desta elasticidade encontrada nas identidades em Buriti do Meio,
foram os três recortes, ou três esferas em que pude ter acesso aos sujeitos e suas
manifestações autênticas. Pude perceber o quanto estas pessoas movem suas identidades
de acordo com o contexto em que estão posicionadas, como uma navegação social
propiciada pelas identidades. No contexto do “sujeito de direito” é inegável o quanto
uma identidade se torna importante e como as pessoas da comunidade ressignificam
estas identidades de acordo com a cultura local, e mais que isso, de acordo com o
contexto vivido por eles. Na busca do reconhecimento como quilombola são muitas as
74
lutas, inclusive internas, afinal o ser quilombola ainda é uma construção dentro da
comunidade.
No contexto da festa, a identidade é um instrumento de performance, um
símbolo de afirmação e resistência. É mais um momento onde as pessoas dos quilombo
ressignificam um símbolo identitário para que possam instituir e legitimar localmente
uma cultura própria, um modo de vida específico e ser reconhecido e respeitado pela
sociedade. Esse mesmo individuo que nas duas ocasiões citadas acima, tem o poder de
ressignificar e de apresentar uma identidade de acordo com uma cultura local, tem sua
identidade “desarticulada” ao ter que recorrer a migração enquanto estratégia de
reprodução. Ou seja, a mesma pessoa que estava na festa da abolição da escravatura
afirmando sua identidade negra e seus antepassados históricos de rica tradição, agora se
vê forçado a adotar uma identidade que está exposta à influencia e ressignificações
externas a partir do contato com o mundo do capital e suas dinâmicas demandadas por
ele.
No âmbito das dinâmicas territoriais, o principal fator que entra em pauta é a
expropriação territorial. Este fator sendo ligado à historia dessas pessoas devido à sua
posição na pirâmide social. Pude entender que o sistema produtivo destas pessoas está
ligado de forma intrínseca à seu território, a sua maneira histórica de apropriação das
terras ao longo dos séculos pelos seus antepassados. Mas nesta lógica de território, e
não simplesmente de terra, a expropriação não pode ser sanada apenas com a aquisição
de outras terras, a necessidade destas pessoas é das suas terras históricas, pois somente
nelas é possível de se regatar um sistema que foi construído historicamente, somente a
partir da restauração deste território específico, podem ser restauradas as dinâmicas
sustentáveis que uma vez existiram ali, assim como o reestabelecimento do
metabolismo homem/natureza.
Ao entrar no contexto territorial consigo enxergar um denominador comum entre
as identidades assumidas pelos quilombolas. Porque, ao questionar qual foi o impulso
que gerou um sujeito migrante que se permite sair de sua lógica de vida para enfrentar
uma lógica do capital, a resposta advém do território expropriado.
Ao ponderar sobre a necessidade da identidade quilombola enquanto sujeito de
direito e sua apropriação pelos moradores de Buriti do Meio, e da luta dessas pessoas
para que fossem reconhecidos enquanto tal, mais uma vez encontro a raíz no território
expropriado. E na última esfera, o questionamento da necessidade destas pessoas, se
articularem localmente para lançarem uma festa da abolição da escravatura, sem
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nenhum apoio institucional e mobilizarem a região para presenciar este evento, vejo
estas pessoas lutarem por um reconhecimento, por uma afirmação para que seu direito
ao território seja garantido.A realização da festa é um símbolo de resistência e de
afirmação dos negros do lugar, é a celebração da vida e a manifestação de prosseguir na
luta.
A compreensão final deste trabalho é que é a questão territorial que aciona as
identidades. Este foi o fator pelo qual os sujeitos “compraram um briga” institucional
com o Estado e com os fazendeiros, foi o motivo pelo qual estas pessoas assumiram
para si uma identidade que foi criada pela constituinte de 1988, assim como foi motivo
pelo qual estes são forçados a alterarem radicalmente suas formas de reprodução da vida
como no caso da migração. Com este entendimento passo a compreender de maneira
profunda a necessidade que estas pessoas tem de reaverem seus territórios ancestrais. Os
quilombolas querem seus territórios para a reprodução material e simbólica da vida, é
nele e somente nele em que o seu sistema produtivo funciona, é somente nele em que a
mãe d’agua espera pacientemente que as matas cresçam, é só nestas terras de ancestrais
que a cultural do negro acontece.
Os pretos em Buriti do Meio dançam, cantam, trabalham, parte e voltam, fazem
no cotidiano uma “lida” diária buscando a manutenção da terra. É na festa, no migrar,
no fazer o pote de barro, na luta pelos seus direito que o povo do Sertão grita: o Sertão
é de Preto!
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