SEMINÁRIO DE APROFUNDAMENTO NA ÁREA DA SURDEZ · campo da surdez, sobretudo aquelas que se...
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SEMINÁRIO DE APROFUNDAMENTO NA ÁREA DA SURDEZ Professoras conteudistas/pesquisadoras: ELISANE MARIA RAMPELOTTO
Acadêmica: SILVANA MACARI SACILOTTO
Carga Horária: 30h
Resumo
Nessa disciplina, trataremos de esclarecer algumas das questões que envolvem
o campo da surdez, proporcionando um aprofundamento teórico por meio de leituras
dirigidas. Assim, apresentaremos algumas noções que fazem parte do cenário da
educação de surdos e problematizaremos alguns conceitos como identidade,
diferença, representação, cultura e diversidade para compreendermos como se
constitui a comunidade surda, salientando os principais conceitos que permeiam a
educação desses sujeitos. Discutiremos, a partir das representações da surdez e dos
surdos, discursos e práticas que constituem a representação na diferença.
Abordaremos a questão do outro a fim de questionar como a alteridade deficiente é
inventada/fabricada/produzida. Depois, abordaremos como o outro é produzido a
partir da normalidade e qual a importância de uma pedagogia da diferença na
educação do outro surdo.
Palavras-chave:
Surdez, identidade, diferença, representação, cultura.
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Unidade A – IDENTIDADE, DIFERENÇA E CULTURA NO CAMPO DA SURDEZ
Nessa unidade, buscaremos problematizar algumas questões que envolvem o
campo da surdez, sobretudo aquelas que se referem a identidade, diferença e cultura.
Iniciaremos destacando como ocorre o processo de produção social da identidade
surda e da diferença, numa perspectiva cultural contemporânea. Ressaltaremos que a
identidade está em constante processo de deslocamento, ocasionado este por
mudanças nos discursos da pós-modernidade. Assim, apresentaremos a identidade
como não-unificada ou permanente. Além disso, descreveremos como identidade e
diferenças são produzidas, destacando a relação de dependência existente entre
esses dois termos.
Para uma discussão sobre a cultura nos tempos pós-modernos, destacaremos
características e conceitos que marcam esse período, os quais interferem na
concepção de cultura que é própria à pós-modernidade. Desenvolveremos o conceito
de cultura percebendo-a a partir de uma descrição antropológica e como um território
de luta em torno da construção social e da significação. Posteriormente, utilizaremos
alguns acontecimentos históricos para mostrar quando as ações na área da Educação
Especial tiveram início, ressaltando os espaços e tempos culturais que marcam a
educação dos surdos na atualidade.
A.1 – Produção social da diferença e da identidade surdas
Na sociedade atual, vivemos profundas transformações sociais e políticas.
Estamos em constante processo de mudança. Essas situações têm uma influência
direta sobre os sujeitos, as suas ações e, principalmente, sobre a sua formação.
É em meio à pós-modernidade1 que os diferentes grupos sociais buscam seu
espaço e produzem suas identidades, lutando por sua participação no contexto social,
cultural e político. É nesta perspectiva cultural contemporânea que o conceito de
identidade torna-se central.
1 (GLOSSÁRIO) - Pós-modernidade: refere-se a “um momento histórico e cultural de questionamentos e de insatisfação que se apresentou na década de 80 (...) diante do desencantamento com as propostas de progresso que caracterizaram a época da chamada ‘modernidade’” (SÁ, 2002).
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Devemos considerar que o conceito de identidade vem sofrendo muitas
alterações ao longo da história, vivendo, portanto, um constante processo de
recontextualização. As identidades são interpeladas por diferentes discursos2, nos
mais variados contextos históricos, o que ocasiona mudanças na concepção de
sujeito.
Stuart Hall (2000), professor de sociologia da Open University e conhecido
teórico dos Estudos Culturais3, cita três concepções de identidade: a do sujeito do
Iluminismo, a do sujeito sociológico e a do sujeito pós-moderno.
O sujeito do iluminismo é caracterizado pela centralidade, pela unificação do
próprio eu. É uma concepção de identidade fixa, que defende o indivíduo como um ser
individual e masculino. Sofreu influência direta de importantes movimentos culturais
religiosos e científicos como, por exemplo, a Reforma, o Protestantismo4, o
Humanismo Renascentista5, as revoluções científicas e o Iluminismo6.
2 (GLOSSÁRIO) - Discursos: “práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” Foucault ( apud VEIGA-NETO, 2000, p. 56). 3 (GLOSSÁRIO) - Estudos Culturais: campo de teorização e investigação que busca problematizar questões que envolvem relações sociais como: diferença, cultura, identidade e linguagem. 4 (GLOSSÁRIO) - Protestantismo: Conjunto de doutrinas religiosas cristãs derivadas da reforma luterana (Dicionário de Língua Portuguesa, p.1992, p. 914). 5 (GLOSSÁRIO) - Renascença: Movimento de renovação cultural e artística dos séculos XV e XVI na Europa que se caracterizou pela imitação da Antigüidade greco-romana (Dicionário de Língua Portuguesa, 1992, p. 969). 6 (GLOSSÁRIO) - Iluminismo: Movimento que caracterizou o pensamento europeu do século XVIII, baseado na crença do poder da razão e do progresso, na liberdade de pensamento e na emancipação política (Dicionário de Língua Portuguesa, 1992, p. 603).
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Figura 1: O Sujeito do Iluminismo
A concepção de sujeito sociológico emerge na medida em que a sociedade
moderna vai evoluindo. O conceito do sujeito individual não daria conta desta
evolução; assim, origina-se a concepção do sujeito sociológico, envolvido em
processos de grupo, numa constante interação com as culturas que estão a sua volta.
A identidade então é formada nessa interação entre o eu e a sociedade, ocupando o
espaço entre o mundo pessoal e o mundo público.
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Figura 2: O sujeito sociológico
Já a concepção do sujeito pós-moderno postula que a identidade não se
apresenta única, fixa ou permanente. Em vez disso, a identidade modifica-se
constantemente.
Segundo Hall, a identidade para o sujeito pós-moderno
torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente
em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados
nos sistemas culturais que nos rodeiam (...) O sujeito assume identidades
em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de
um “eu” coerente (HALL, 2000, p.13).
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Figura 3: O Homem pós-moderno
Esse conceito de homem pós-moderno emergiu da descentralização do sujeito,
ou seja, do deslocamento das identidades do sujeito cartesiano7 ocasionado por
diversas mudanças nos discursos da modernidade. Dentre essas mudanças no
pensamento do século XX, merecem destaque: a descoberta do inconsciente por
Freud, já que, a partir da visão do pensamento psicanalítico, a identidade não é inata,
mas constantemente construída; a argumentação do lingüista Saussure8, que
descreve que o significado não é uma construção individual; e o trabalho de Foucault,
com a idéia do poder disciplinar, composto pela regulação e pela vigilância das ações
do indivíduo. Estes novos territórios de discussão auxiliam na compreensão da não-
existência de uma unidade de identidade.
7 (GLOSSÁRIO) - Sujeito cartesiano: “Concepção do sujeito racional, pensante e consciente, situado no centro do conhecimento” (HALL, 2000, p. 27). 8 (AUTOR) - Saussure: Ferdinand de Saussure (1857-1913), investigador suíço nascido e falecido em Genebra. Foi o fundador da lingüística moderna, e seu pensamento desencadeou o surgimento do estruturalismo. Além disso, suas idéias estimularam muitos dos questionamentos que encontramos na lingüística do século XX.
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Hall (2000) nos coloca esta constante transformação do processo de identificar-
se, mostrando que, ao longo do tempo, o sujeito não permanece idêntico, mas, em
vez disso, sofre continuamente influências do meio em que vive e das pessoas que
compõem este meio. O referido autor coloca que as identidades
não são nunca unificadas; que elas são na modernidade tardia, cada vez
mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas
multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que
podem se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma
historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e
transformação (2000, p.108).
Contemporaneamente, as diferenças culturais constroem identidades marcadas
pela lógica da diferença, fundamentadas nas concepções de grupos excluídos. São as
minorias raciais, étnicas, lingüísticas, dentre outras tantas, que buscam o direito de
identificar-se enquanto sujeitos.
Em meio a estas identidades marcadas pela diferença, encontramos as
comunidades surdas, que, cada vez mais, vêm se afirmando enquanto comunidades
detentoras de uma cultura própria, a qual se firma no intuito de lutar pelo respeito e
pela aceitação não “mascarados”, mas politicamente assistidos.
O surdo foi considerado por muito tempo como deficiente. Este discurso clínico
sobre a surdez se faz presente até hoje, transmitindo a idéia de que, para se
desenvolver realmente, o sujeito surdo deve falar, ou seja, de que deve ser “normal”
como os demais ouvintes. Esta visão de reabilitação foi a que conduziu a educação
dos surdos por décadas e, por isso, ainda se faz fortemente presente. Essa
representação terapêutica da surdez foi denominada por Skliar de “ouvintismo”9,
conceito que abrange um “conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o
surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte” (SKLIAR, 1998
p.15). É através das práticas reabilitatórias derivadas do diagnóstico clínico que o
surdo é forçado a olhar-se e a narrar-se como ser deficiente.
9 (GLOSSÁRIO) - Ouvintismo: um exemplo de forma institucionalizada do ouvintismo é o oralismo, que ainda hoje continua sendo um “discurso hegemônico em diferentes partes do mundo” (SKLIAR, 1998, p. 15). Leia o conceito de oralismo no glossário de número 20 deste caderno.
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Assim, pretende-se disciplinar o corpo e as atitudes dos surdos para que estes
se “encaixem” na sociedade. A este respeito, Perlin escreve:
É evidente que as identidades surdas assumem formas multifacetadas em
vista das fragmentações a que estão sujeitas face à presença do poder
ouvintista que lhe impõe regras, inclusive encontrando no estereótipo
surdo uma resposta para a negação da representação da identidade surda
ao sujeito surdo (PERLIN, 1998, p.54).
Buscando mudar essa visão acerca da surdez, surgem estudos que passam a
perceber o surdo como social e historicamente construído. Desse modo, criam-se os
Estudos Surdos em Educação10, que, segundo Skliar (1998), apresentam-se como
um território de investigação educativa e de proposições políticas que, por meio de um
conjunto de concepções lingüisticas, culturais, comunitárias e identitárias, definem
uma particular aproximação ao conhecimento e aos discursos sobre a surdez e os
surdos. Este campo de estudo está embasado nos Estudos Culturais. Nessa perspectiva, as questões envolvidas na educação de surdos passam a
considerar o modelo sócio-antropológico da surdez, percebendo a Língua de Sinais
como propulsora do desenvolvimento da comunidade surda. O sujeito surdo passa a
ser considerado como lingüisticamente diferente, pois percebe o mundo através do
canal visual.
Seguindo a temática dos Estudos Culturais, a identidade está estreitamente
ligada à diferença; nessa perspectiva, esses conceitos estão inter-relacionados.
Desse modo, cada um desses conceitos influencia o outro, mantendo uma estreita
relação de dependência. Identidade e diferença são, portanto, inseparáveis. Hall
(2000, p. 110) afirma que:
(...) as identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela.
Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas
por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com
10 (GLOSSÁRIO) - Estudos Surdos em Educação: “um programa de pesquisa, onde as identidades, as línguas, os projetos educacionais, a história, a arte, as comunidades e as culturas surdas são entendidos a partir da diferença e do seu reconhecimento político” (SKLIAR, 1998, p. 5).
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precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de seu
exterior constitutivo, que o significado “positivo” de qualquer termo – e
assim, sua “identidade” - pode ser construído.
Nesse sentido, quando alguém, por exemplo, afirma “sou assim”, está dizendo
que não é de outra forma, está negando outras identidades diferentes da sua. Afirmar
então a nossa identidade só tem sentido se compreendemos as afirmações da
diferença.
Muitas vezes considera-se a diferença como algo que surge a partir da
identidade, pois é ela que servirá de norma11 para se determinar o que é diferente.
Silva (2000), porém, percebe e aponta identidade e diferença como mutuamente
determinadas. O mesmo autor destaca que “além de serem interdependentes,
identidade e diferença partilham uma importante característica: elas são o resultado
de atos de criação lingüística” (SILVA, 2000, p. 76). Ou seja, ambos os termos só
adquirem sentido se compreendidos dentro de sistemas de significação. Assim sendo,
identidade e diferença são produzidas por meio da linguagem.
Nesse sentido, Hall destaca:
É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora
do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em
locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e
práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas.
Além disso, elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas
de poder e são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da
exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, naturalmente
constituída, de uma “identidade”, em seu significado tradicional - isto é,
uma mesmidade12 que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça,
sem diferenciação interna (HALL, 2000, p. 109).
11 (GLOSSÁRIO) - Norma: “princípio de comparação, de comparabilidade, uma medida comum, que se institui na pura referência de um grupo a si próprio, a partir do momento em que só se relaciona consigo mesmo, sem exterioridade, sem verticalidade” (EWALD, 1993, p. 86). 12 (GLOSSÁRIO) - Mesmidade: Para Skliar, não existe sinomínia entre os termos mesmo, mesmice e mesmidade. O mesmo está relacionado com o próprio; a mesmice é pejorativa do próprio; a mesmidade “é um estado/processo do próprio no olhar para o(s) outro(s)” (SKLIAR, 2002, p. 7).
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Considerando-se identidade e diferença como oriundas de práticas de
significação, e estas, por sua vez, como diretamente influenciadas por relações
sociais, faz-se necessário compreender como a cultura interfere nesta discussão, a
partir de uma perspectiva pós-moderna.
A.2 – Cultura em tempos pós-modernos
O período pós-moderno surge com o intuito de questionar e problematizar
conceitos instituídos na modernidade e aceitos como verdades, principalmente
aqueles conceitos que envolvem princípios do pensamento iluminista. Surgem, na
pós-modernidade, transformações na vida coletiva que revolucionam as formas de
pensar. Veiga-Neto (2000, p. 39) salienta que “a condição pós-moderna implica a
dissolução das metanarrativas 13”.
De acordo com Sá, no pós-modernismo, “um dos principais objetivos passa a ser
o de interpretar os discursos enquanto constituidores das subjetividades” (SÁ, 2002, p.
24). Na seqüência de seu pensamento, a referida autora ainda destaca que:
o que o pós-modernismo propunha/propõe é uma desconstrução textual
que possibilite denunciar o poder14 que se “esconde” na validação dos
discursos (...) nesta perspectiva, desconfia-se de todas as metanarrativas
pelo entendimento de que todos os discursos são parciais (2002, p.27).
Como a cultura é uma questão central nas discussões atuais, principalmente
quando nos embasamos nos Estudos Culturais, sua concepção merece ser discutida
frente a todas as mudanças pelas quais passou através dos anos. De acordo com
Costa (2000, p. 23), ”toda a movimentação que tem caracterizado os Estudos
Culturais (...) pode ser atribuída aos deslocamentos naquilo que se tem entendido e
tomado como cultura”. A cultura, nesse enfoque, não é vista simplesmente como
13 (GLOSSÁRIO) - Metanarrativa: “Grande narrativa” ou “narrativa mestra”. “Esses pressupostos funcionam como narrativas semelhantes aos mitos, que acabam por legitimar as instituições, as estruturas e as práticas sociais” (VEIGA-NETO, 2000, p. 45). 14 (GLOSSÁRIO) - Poder: Nas análises pós-estruturalistas inspiradas em Foucault, o poder “é concebido como descentralizado, horizontal e difuso” (SILVA, 2001, p. 91).
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11
aquela herdada dos ancestrais, mas percebida numa descrição social,
antropológica15, ou seja, no modo de vida como se vive.
Silva, ao procurar definir cultura, destaca que existem diferentes sentidos para
diferentes vertentes da teoria educacional. Este autor afirma que, na perspectiva pós-
estruturalista, “a cultura é teorizada como campo de luta entre os diferentes grupos
sociais em torno da significação” (SILVA, 2000, p. 32).
Nesse sentido, a cultura é compreendida como um território de luta em torno da
construção social de um determinado grupo. Costa (2000) se baseia nos escritos de
Hall para caracterizar a cultura como o eixo principal onde se problematizam as
divisões desiguais das sociedades capitalistas; é neste eixo que se trava uma
verdadeira luta pela significação.
A respeito disso, Veiga-Neto destaca que esta prática de cultura dos grupos não
só está estreitamente ligada às relações de poder, como também está inserida no
próprio interior dessas relações. Para o autor:
(...) porque a cultura está imbricada indissoluvelmente com relações de
poder, derivam dessas relações de poder a significação do que é relevante
culturalmente para cada grupo. Isso significa, então, uma desnaturalização
da cultura, isto é, significa que, para os Estudos Culturais, não há sentido
dizer que a espécie humana é uma espécie cultural sem dizer que a
cultura e o próprio processo de significá-la é um artefato social submetido
a permanentes tensões e conflitos de poder (VEIGA-NETO, 2000, p. 40).
Nessa perspectiva, Sá parte da obra de Moreira & Silva para mostrar que a
cultura passa a ser entendida como “terreno em que se enfrentam diferentes e
conflitantes concepções de vida social, é aquilo pelo qual se luta e não aquilo que
recebemos” (SÁ, 2002, p. 33).
É em meio às manifestações culturais que se desenvolvem os processos de
subjetivação; conseqüentemente, é ali que se firmam as identidades grupais. O sujeito
é, portanto, produzido e interpelado de acordo com as relações e acontecimentos que
ocorrem a sua volta.
15 (GLOSSÁRIO) - Antropológica: Relativo à antropologia; é a ciência que estuda a história natural do homem e dos grupos humanos (Dicionário de Língua Portuguesa, 1992, p. 67).
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12
A.3 – Espaços e tempos culturais na educação de sujeitos surdos
Até o século XVIII, a “deficiência” estava ligada ao misticismo e ao ocultismo. A
religião, ao colocar o homem como imagem e semelhança de Deus, inculcava a idéia
da condição humana como necessariamente atrelada à perfeição física e mental. Não
sendo “parecidos” com Deus, os “portadores de deficiência”, ou “imperfeitos”, eram
colocados à margem da condição humana (MAZZOTA, 1996, p. 16). Em
conseqüência disso, não havia preocupação em organizar serviços para atendimento
ao “incapacitado”, ao “deficiente”.
Na virada do século XVIII para o XIX, surge o famoso caso do menino de
Aveyron. Encontrado nas matas do sul da França, o menino apresentava hábitos
selvagens e era destituído do uso da palavra. O caso gerou curiosidade na
comunidade em geral, despertando grande interesse de filósofos e cientistas. O
menino, ao chegar ao Instituto dos Surdos-Mudos em Paris, foi submetido aos olhares
da sociedade, que designou um grupo de pessoas para examiná-lo e para observar o
estado em que se encontrava.
As conclusões do médico Philippe Pinel, que compara o caso do menino aos de
outros indivíduos por ele atendidos, são de que o selvagem de Aveyron era idiota,
motivo pelo qual teria sido abandonado na floresta. Para o médico, era impossível sua
recuperação e educação. Mas um aluno de Pinel, o médico Jean Marc-Gaspard Itard
(1774-1838), examina o selvagem de Aveyron16 e interessa-se pela idéia de educá-
lo e integrá-lo à sociedade. Com os mesmos princípios epistemológicos de seu
professor, Itard diagnostica o estado do menino como privação da convivência social.
Jean Itard foi o médico responsável pela possibilidade de educação do selvagem
e foi também quem inaugurou o campo denominado de médico-pedagógico, mais
conhecido como Educação Especial. Trata-se de um campo em que se articula, com
base no poder dos saberes médicos da época, a “idéia de aplicar os conhecimentos já
constituídos à educação do menino ‘selvagem’” (Banks-Leite e Souza, 2000, p. 58).
A partir disso, Pérez de Lara (1998, p. 54) destaca que é nos primórdios da
Educação Especial que há o surgimento do “sujeito humano psicológico, da disciplina
16 (ASSUNTO) - Menino Selvagem de Aveyron: conheça mais sobre o menino selvagem lendo a obra A Educação de um Selvagem: as experiências pedagógicas de Jean Itard, organizada por Luci Banks-leite e Isabel Galvão (São Paulo: Cortez, 2000).
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13
psicopedagógica e da psicologização da Educação”. A autora salienta ainda que, ao
mesmo tempo, origina-se “uma separação entre o saber produzido pela experiência e
o saber produzido pelo conhecimento científico” (PÉREZ DE LARA, 1998, p. 54).
Foi somente na segunda metade do século XIX, com a intenção de normalizar
as diferenças, que foram iniciadas as ações na área de Educação Especial. No Brasil,
por exemplo, tais ações surgiram com o Imperial Instituto de Meninos Cegos
(denominado atualmente de Instituto Benjamin Constant – IBC/RJ17) e com o
Imperial Instituto de Surdos-Mudos (denominado atualmente de Instituto Nacional da Educação de Surdos – INES/RJ18).
A institucionalização da escola pública, obrigatória e gratuita, acontece no último
terço do século XIX, em países industrializados. Desse modo, a partir de uma escola
acessível a todos, uma vez que obrigatória e gratuita, é possível uma forma
econômica e eficaz de controlar normais e anormais, evitando-se assim prováveis
gastos em manicômios e prisões.
Nesse sentido, Álvarez-Uría (1996, p. 103) afirma que “é preferível prevenir que
corrigir, já que resulta cada vez mais econômico e mais eficaz”. Segundo o mesmo
autor, em termos gerais, seria possível dizer que:
(...) a denominada Educação Especial seria impensável sem a
institucionalização da escola obrigatória para todas as crianças
compreendidas em determinados períodos de idades e sem o
funcionamento prévio de outras instituições de normalização, (...) de
instituições produtoras de um tipo de normalidade que é apresentada de
forma normativa como a única normalidade possível (1996, p. 90).
Nesse sentido, Álvarez-Uría (1996, p. 103) afirma que “é preferível prevenir que
corrigir, já que resulta cada vez mais econômico e mais eficaz”. Segundo o mesmo
autor, em termos gerais, seria possível dizer que:
17 (ASSUNTO) - Instituto Benjamin Constant: conheça mais sobre o instituto em: www.ibcnet.org.gov.br . 18 (ASSUNTO) - Instituto Nacional da Educação de Surdos: conheça mais sobre o instituto acessando: www.ines.gov.br .
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14
A escola pública obrigatória surge como espaço de civilização da criança
operária em grande parte dos países industriais, no final do século XIX. Institui-se a
escola pública e gratuita “no preciso momento em que se produzem uma série de
equações entre loucos, criminosos, degenerados e crianças enquanto sujeitos
situados, na escala filogenética19, em uma posição muito próxima da animalidade”
(ÁLVAREZ-URÍA, 1996, p.103).
Assim, agravam-se as dificuldades das crianças em acompanhar os conteúdos
escolares, surge a necessidade de se criarem locais e saberes com os quais se possa
controlar, disciplinar e ortopedizar o diferente, ou seja, esse outro que deve ser
normalizado.
A educação dos deficientes está legalizada por outras instituições que,
anteriores à instituição especial, também se preocupam em controlar, em vigiar e em
normalizar aquelas populações de indivíduos que se encontram nas margens dos
padrões de normalidade estabelecidos para determinada época. Antes da instituição
especial, são instituições como a prisão, o hospital e os manicômios que aparecem
como espaços para normalizar, reabilitar e recuperar delinqüentes, doentes e loucos
(FOUCAULT, 2001).
Nesse sentido, a educação voltada para os deficientes se inscreve em um
espaço de normalização, onde a norma passa a ocupar a centralidade nas práticas
pedagógicas e na institucionalização de políticas públicas. Assim, o normal pode ser
entendido como aquele que “está na média”, dentro de uma medida que individualiza
e é comparável. A idéia de norma e de normalidade adquire vigor a partir da noção de
média. É um conceito que tem efeitos intensos de estatística.
Para Skliar (2003), diante dessas colocações, a palavra “normal” é,
incontestavelmente, uma invenção da modernidade. O autor, fazendo uso das
palavras de Canguilhem, complementa que “uma classe normativa conquistou o poder
de identificar a função das normas sociais com o uso que ela própria fazia das normas
cujo conteúdo determinava” (ibid., p. 218).
Nesse contexto, como afirma Thoma (2002, p. 74), “normalizar nada mais é do
que trazer o outro para a minha eficiência”. A autora acrescenta ainda que “para nós,
19 (GLOSSÁRIO) - Filogenética: “História da evolução de uma raça, espécie, gênero e de outras unidades taxonômicas” (Dicionário da Língua Portuguesa, 1992, p.511).
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15
ouvintes, a surdez é, em geral, vista como uma anomalia, uma falta biológica. Esse
pensamento deu origem às práticas de normalização e de recuperação tão presentes
na história da educação dos surdos ao longo dos séculos.”
Consistente com a educação oralista, que se propõe a ser normalizadora por
meio do treinamento auditivo, da mecânica da fala, da articulação e, principalmente,
da leitura labial, a legislação brasileira, durante muito tempo, defendeu o princípio da
normalização do surdo no sistema regular de ensino através da oralização20.
Com o surgimento dos Estudos Surdos em Educação, as questões que
envolvem os surdos e a surdez passam a ser pensadas a partir de outros olhares.
Começam a ocorrer mudanças nas representações do que é ser surdo, deixando de
relacionar-se a surdez com a deficiência.
A partir daí, emergem deste campo de discussões as considerações que os
próprios surdos destacam sobre a sua educação. Assim os surdos passam a lutar
contra as representações criadas a partir de discursos construídos historicamente e
tidos como “verdades absolutas”.
20 (GLOSSÁRIO) - Oralização ou oralismo: “é um método no qual o surdo deve ser exposto a um treinamento com técnicas específicas, que desenvolvem a percepção auditiva através do
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16
Figura 4: Movimento surdo
Enquanto minoria lingüística, a comunidade surda está cada vez mais unida em
prol de uma articulação política e social que considere seus direitos lingüísticos e de
cidadania, impondo-se em busca do respeito à diferença. Essa comunidade vem
lutando por seus ideais, pela compreensão de sua cultura e de sua própria língua,
começando assim a consolidar seu grupo, já que passou a estar presente, através de
movimentos surdos, na tomada de decisões que interferem em sua educação e,
conseqüentemente, em sua vida.
Atividade da Unidade A:
Para encerramento desta unidade, solicitamos que você entre no site do MEC
(http//www.mec.gov.br/seesp), clique no link Legislação específica e acesse a
Resolução CNE/CEB Nº. 2/01, que trata das Diretrizes Nacionais para Educação
Especial. Leia o documento e selecione alguns textos publicados referentes à surdez
e aos surdos. Observe quais discursos estão constituindo o sujeito surdo no material
lido.
Para registrar sua atividade, utilize a biblioteca.
Referências da Unidade A: ÁLVAREZ-URÍA, Fernando. La configuración del campo de la infancia anormal: de la
genealogia foucaultiana y de su aplicación a las instituiciones de educación especial.
In: FRANKLIN, Barry M. (Org.). Interpretación de la discapacidad. Barcelona:
Pomares-Corredores, 1996. p. 90-120.
BANKS-LEITE, Luci; GALVÃO, Izabel (orgs.). A Educação de um Selvagem: as
experiências pedagógicas de Jean Itard. São Paulo: Cortez, 2000.
treinamento auditivo, a percepção visual e a percepção tátil, possibilitando ao surdo, dessa forma, falar e compreender a fala das pessoas ouvintes” (RAMPELOTTO, 1993, p.24).
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17
COSTA, Marisa Vorraber (org.). Estudos Culturais em Educação: mídia, arquitetura,
brinquedo, biologia, literatura, cinema. Porto Alegre: Editora Universidade, UFRGS,
2000.
EWALD, François. Foucault, a Norma e o Direito. Lisboa: Veja, 1993.
FOUCAULT, Michel. Os Anormais: curso do Collège de France (1974-1975). São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
2000.
LAROUSSE, Cultural. Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Cultural,
1992.
MAZZOTTA, Marcos J. S. Educação Especial no Brasil: história e políticas públicas.
São Paulo: Cortez, 1996.
PÉREZ DE LARA, Núria. La Capacidad de Ser Sujeto. Más allá de las técnicas en
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PERLIN, Gladis. Identidades Surdas. In: SKLIAR, Carlos. A Surdez: um olhar sobre
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RAMPELOTTO, Elisane Maria. Processo e Produto na Educação de Surdos. Santa
Maria: UFSM/CE, 1993. Santa Maria: Programa de Pós-graduação/Centro de
Educação/Universidade Federal de Santa Maria, 1993 (Dissertação de Mestrado).
SÁ, Nídia Regina Limeira de. Cultura, Poder e Educação de Surdos. Manaus:
Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2002.
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
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______. Representação, Estereótipo, Imagem. In: Currículo como Fetiche: A Poética
e a Política do Texto Curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
SKLIAR, Carlos (org.). A Surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre:
Mediação, 1998.
______.Prefácio: A pergunta pelo outro da língua; a pergunta pelo mesmo da língua.
In: LODI, Ana C.; HARRISON, Kathryn M.P.; CAMPOS, Sandra R.L. de (orgs.).
Letramento e Minorias. Porto Alegre: Mediação, 2002. p. 5-12.
______. Pedagogia (Improvável) da Diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio
de Janeiro: DP&A, 2003.
THOMA, Adriana da Silva. O Cinema e a Flutuação das Representações Surdas:
“que drama se desenrola neste filme? Depende da perspectiva...”. Porto Alegre:
UFRGS/PPGEDU, Programa de Pós-graduação e Educação. Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, 2002. Tese (Doutorado em Educação).
VEIGA-NETO, Alfredo. Michael Foucault e os Estudos Culturais. In: COSTA, Marisa
Vorraber (Org.). Estudos Culturais em Educação: mídia, arquitetura, brinquedo,
biologia, literatura, cinema. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2000. p. 37 - 69.
Sites relacionados:
www.mec.gov.br/seesp
www.ibcnet.org.gov.br
www.ines.gov.br
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19
Unidade B – REPRESENTAÇÃO, DISCURSO E ESTEREÓTIPO Nessa unidade, promoveremos uma discussão a respeito de três conceitos
que estão continuamente interferindo e transitando no campo da educação de surdos:
as noções de representação, estereótipo e discurso.
Desenvolveremos uma breve descrição de algumas mudanças que vêm ocorrendo
nas representações culturais dos surdos e da surdez, num sentido educacional mais
amplo. Do mesmo modo, reconheceremos que a maioria da sociedade ainda vê o
surdo como deficiente auditivo. No entanto, emergem novas percepções que vêem a
comunidade surda enquanto um grupo minoritário que possui uma cultura visual.
Promoveremos, ainda, uma discussão sobre a relação da surdez com a Educação
Especial, desconstruindo a idéia que se formou a respeito deste campo de estudo, a
qual a reputa responsável pela “correção” dos anormais e, portanto, por uma
intervenção médico-pedagógica, cujo papel seria normalizar e corrigir o surdo.
Por fim, destacaremos a noção de estereótipo, tão presente nas representações
construídas historicamente acerca da educação de surdos, a partir das quais foram
instituídas denominações simplistas que marcam as pessoas dotadas de diferenças
como inferiores.
B.1 – Representações Culturais sobre os surdos e a surdez
Ainda é bastante freqüente falar-se em surdo, em surdez, em educação de
surdos e em Educação Especial como se essas denominações se referissem a
problemas.
Nas mudanças e nos novos paradigmas da “educação especializada”, um dos
pontos polêmicos é levar a discussão da surdez para a ampla arena do contexto geral
da educação. Pretende-se então fomentar uma discussão em que o surdo não seja
visto como um problema, mas que se veja “o discurso sobre o surdo como um
problema” (SILVA, 1997, p. 4).
Muitos autores, entre eles Wrigley, colocam que “a surdez não é um tema de
audiologia, mas de epistemologia” (WRIGLEY apud SKLIAR, 1999, p. 23). Essa é uma
afirmativa que leva os surdos e a surdez a serem “vistos como criando e constituindo
uma diferença política” (ibid., p.23), ou seja, que nos convida a problematizar a
normalidade ouvinte e não a condição de ser o outro – o surdo. Isso faz com que a
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20
questão se altere, invertendo aquilo que foi edificado como regime de verdade. Nesse
sentido, o referido autor documenta que é preciso,
em vez de entender a surdez como uma exclusão e um isolamento no
mundo do silêncio, defini-la como uma experiência e uma representação
visual; em vez de representá-la através de formatos médicos e
terapêuticos, quebrar essa tradição por meio de concepções sociais
lingüísticas e antropológicas; em vez de submeter aos surdos a uma
etiqueta de deficientes da linguagem, compreendê-los como formando
parte de uma minoria lingüistica; em vez de afirmar que são deficientes,
dizer que estão localizados no discurso da deficiência (ibid., p.23).
O que está mudando, comenta o mesmo autor, são as percepções sobre o
sujeito surdo e a surdez, são as descrições em torno da língua de sinais, são as
decisões sobre as políticas educacionais, são as análises das relações de saberes e
poderes entre surdos e ouvintes.
As discussões sobre as formas com que os surdos e a surdez têm sido
representados pelas práticas e políticas educacionais se enquadram nos modelos de
correção, recuperação e normalização da surdez, ou então naqueles modelos que
entendem o grupo de surdos enquanto “categoria cultural de auto-identificação”.
De um lado, está a representação da surdez, que, para a maioria das pessoas
ouvintes, representa “uma perda de comunicação, um protótipo de auto-exclusão, de
solidão, de silêncio, obscuridade e isolamento” (SKLIAR, 1999, p.21). Essa é uma
representação, portanto, que concebe o surdo como um deficiente auditivo que
“precisa ter sua deficiência removida através de terapias da fala e sessões de
oralização da pessoa surda, utilizadas a fim de que o surdo se pareça, o mais
possível, com as pessoas ouvintes” (THOMA, 1998, p.43).
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21
Figura 5: Professora ouvinte.
Por outro lado, o surdo e a surdez também são vistos como constituindo um
grupo minoritário de cultura visual. A cultura surda é expressa por meio de “símbolos,
basicamente visuais, cuja maior representação é a Língua de Sinais” (FADERS et al.,
2002, p. 8). Esta cultura é compartilhada de geração em geração pelos costumes,
hábitos, piadas e histórias. É através do contato entre os surdos, em suas
associações e escolas, em seus clubes e bairros, entre outros lugares, que se
constitui a cultura visual dos surdos.
Para apresentar a surdez como uma experiência visual, é preciso entender o
que isso representa. É entender que nada do que sabemos, nada do que alguma vez
entendemos sobre surdez fica igual. Dizer que a surdez não é uma deficiência
auditiva, mas é uma experiência visual, muda o pensamento sobre tudo o que se
refere a esse conceito: sobre a questão da escola, sobre a questão do bilingüismo21,
sobre as questões didáticas, etc. Falar que a surdez é uma experiência visual constitui
uma mudança radical da percepção que precisamos ter dos surdos. Uma delas é
21 (GLOSSÁRIO) - Bilingüismo: “prática pedagógica em cuja filosofia está presente a existência de uma língua natural – a língua de Sinais – e a língua oficial do país” (RAMPELOTTO, 1993, p. 37).
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22
romper com o símbolo tradicional das mãos, dos ouvidos, para que se tenha a
percepção da visão. 22
Figura 6: Comunicação espacial-visual do professor surdo
O processo de representação não se refere aqui às questões teóricas do que se
deve ou não saber, ou então do que é verbalizado em relação a informações, atitudes,
imagens e formas de dominar o outro. Para Costa (2000, p.77), representações são:
noções que se estabelecem discursivamente, instituindo significados
segundo critérios de validade e legitimidade vinculados a relações de
poder. As representações não são fixas e em suas transformações não
expressam aproximação a um suposto “correto”, “verdadeiro”, “melhor”.
Para outros autores, representações (ou imagens) são construções criadas
dentro das relações sociais e produzem efeitos de verdade.
22 (ASSUNTO) - Metodologia Bilíngüe: saiba mais sobre o assunto na disciplina: “Escola, Currículo e Educação de Surdos”, que está sendo desenvolvida neste semestre.
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23
Stuart Hall (2000) refere-se ao termo para falar do processo pelo qual os
sentidos e as significações são produzidos e celebrados entre membros de uma
comunidade. Para o autor, representação é o processo pelo qual membros de uma mesma cultura usam a linguagem
para produzir sentidos...as coisas, objetos, eventos do mundo não têm,
neles mesmos, qualquer sentido fixo, final ou verdadeiro. Somos nós, em
sociedade, entre culturas humanas, que atribuímos sentidos às coisas, nós
que “significamos” as coisas. Os sentidos, consequentemente, sempre
mudarão de uma cultura para outra e de uma época a outra (HALL, 2000,
p. 61).
Hall ainda afirma que as práticas de significação estão incluídas nas relações de
poder, tornando-se significativas quando manifestam as relações entre aquelas
culturas e instituições que fazem a “representação” de pessoas ou objetos e aqueles
que são “representados” por elas.
B.2 – A produção da surdez nos discursos da Educação Especial
A Educação Especial ainda hoje é tratada como tópico subteorizado e como um
espaço especializado de educação. É uma educação marcada pela inserção médico-
pedagógica e determinada freqüentemente por modelos clínico-terapêuticos, em que
as práticas pedagógicas têm a tarefa da correção e da normalização. É uma prática
de intervenção terapêutica orientada para o cuidado e o tratamento, com a intenção
de oferecer uma ortopedia dos corpos e das mentes. Skliar (1999, p. 17) acrescenta
que isso é “conseqüência de uma tradição histórica de controle do sujeito deficiente
por expertos e aficionados na medicina”.
Conforme Skliar e Souza (2000, p. 269), a Educação Especial preserva “para si
um olhar iluminista sobre a identidade de seus sujeitos”, partindo assim de oposições
como “perfeito/imperfeito, normalidade/anormalidade, racionalidade/irracionalidade e
de completude/incompletude como elementos centrais na produção de discursos e
práticas pedagógicas”. Os autores acrescentam que, na Educação Especial, “os
sujeitos são homogeneizados e naturalizados, valendo-se de representações sobre
aquilo que está faltando em seus corpos, em suas mentes e em sua linguagem” (ibid.,
p. 269).
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24
Hoje, as próprias definições de “Educação Especial”, “deficientes”, “sujeitos
educativos especiais”, etc. vem atravessando profunda crise em sua interpretação
política, filosófica e epistemológica. É preciso questionar, como afirma Skliar (1999, p.
9), “em que sentido se justificou uma forma especial de entender e produzir uma
educação para certos e determinados sujeitos” que, concebidos como surdos,
deficientes mentais, cegos, etc., seriam sujeitos educativos especiais? Por que a
Educação Especial foi criada? Como os problemas foram interpretados dentro da
Educação Especial? Que critérios afirmam a singularidade desses sujeitos? Fala-se
realmente de um processo de educação ou de uma intervenção terapêutica?
Vale lembrar que a Educação Especial refere-se a uma educação determinada e
delimitada nos moldes clínicos e de terapia. Faz referência aos surdos como sujeitos
deficientes, definindo-os a partir de seus traços negativos, os quais são percebidos
exclusivamente como exemplos de desvio de normalidade (SKLIAR, 1999).
Mas, afinal, como se produz a surdez nos discursos da Educação Especial?23
Para exemplificar a produção da surdez nos discursos da educação especial,
recorremos ao trabalho de pesquisa que Lunardi (2003) elaborou em sua tese de
doutorado.
A autora realiza um estudo tendo como foco principal a Política Nacional de
Educação Especial – PNEE. Ao analisar o documento, mostra “como os surdos são
constituídos como sujeitos patológicos”, e ainda, “como se incide sobre eles uma
terapêutica que é capaz de acionar mecanismos de correção, exame e vigilância”.
Nesse documento, os discursos instituídos pelas práticas da Educação Especial
“analisam, decompõem e classificam” os sujeitos patológicos “e estabelecem sobre
eles a partilha entre normalidade e anormalidade” (LUNARDI, 2003, p. 9).
Partindo da análise feita pela pesquisadora, um dos discursos mais produtivos
da Educação Especial presentes na PNEE é o da correção como estratégia de
normalização. Entre os materiais analisados, é possível perceber, por exemplo, a
indicação freqüente do uso de aparelho auditivo, a apresentação de técnicas
recorrentes para realizar treinamentos auditivos, assim como a estimulação para
desenvolvimento da fala.
23 (ASSUNTO) - Conheça mais sobre a produção da surdez nos discursos da Educação Especial lendo A produção da anormalidade surda nos discursos da educação especial, tese de doutorado de Márcia Lise Lunardi (Porto Alegre: UFRGS, 2003).
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25
Portanto, os surdos precisam ser curados da surdez. Eles precisam ser
modificados em suas habilidades e ser levados à normalidade – e a normalidade, para
os surdos, é a fala.
Então, é desenvolvendo uma didática especial que forçosamente tenta
normalizar o surdo, que tenta curá-lo da surdez por meio de trabalhos de correção, de
articulação, de leitura labial, de exercícios fonoarticulatórios, de ritmo, de treinamento
auditivo e de outros treinamentos de habilidades que se produz a surdez nos
discursos da Educação Especial. É em torno da idéia de surdez como um problema
patológico e da idéia de surdo como (a)normal que eles se constituem.
Lunardi mostra em sua pesquisa outra maneira de se produzir a surdez nos
discursos da Educação Especial trazidos pela PNEE: é a política pela inclusão. Isto é,
a PNEE “é o documento oficial que ‘marca’ a partida oficial para os processos de
inclusão dos alunos com necessidades educativas especiais no ensino regular”
(LUNARDI, 2003, p. 53). A autora questiona ainda: “como problematizar a inclusão
como estratégia de normalização?”. Assim, segundo Lunardi, “o binômio
inclusão/exclusão” é instituído “como estratégia de normalidade, como um mecanismo
de poder que, ao tratar de incluir, acaba por normalizar” (Ibid.p. 53).
B.3 – Os estereótipos e as representações no campo da educação de surdos
A noção de estereótipo está associada ao conceito de representação, enquanto
um sistema de significação. Estereótipo é a forma como determinados grupos
narram/representam outros grupos tidos como inferiores; o estereótipo passa a ser
assim uma forma de conhecimento.
No caso da comunidade surda, por exemplo, a representação que se tem é a de
que os surdos são deficientes. Esta representação foi produzida e instituída ao longo
da história, a partir do discurso clínico da surdez que ainda hoje continua presente.
Foi a partir dessa visão que se instituiu um modelo “ideal” de ser: o normal, o
perfeito. Nesse sentido, o surdo é visto como fora do “padrão” instituído como ideal.
Este modelo de referência é o estereótipo criado pelos ouvintes sobre o surdo, o qual
acaba por perceber o sujeito surdo como incapacitado, inferior. De acordo com Silva
(2001, p. 51), “no estereótipo, o outro é representado por meio de uma forma especial
de condenação em que entram processos de simplificação, de generalização, de
homogeneização”.
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26
Por isso, ao longo da história, o surdo foi frequentemente reconhecido e
denominado como o “mudinho”, o “surdo-mudo”, o “surdinho”, fato que, em muitas
situações, persiste ainda hoje. Isso ocorre porque é mais fácil serem usadas essas
denominações simplistas, que demonstram a inferioridade deste grupo e marcam a
deficiência no corpo, que reconhecer toda a gama cultural de significados que está por
trás de uma mudança na representação do que é a comunidade surda.
Vejamos então a reportagem a seguir, que mostra como essas questões são
tratadas pela mídia.
Figura 7: Texto jornal
Para Silva (2001, p. 51), no estereótipo,
a complexidade do outro é reduzida a um conjunto mínimo de signos:
apenas o mínimo necessário para lidar com a presença do outro sem ter
de se envolver com o custoso e doloroso processo de lidar com as
nuances, as sutilezas e as profundidades da alteridade.
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27
Em seu livro Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico, Silva (2000, p.
54) define estereótipo como uma:
opinião extremamente simplificada, fixa e enviesada sobre as atitudes,
comportamentos e características de um grupo cultural ou social que não
aquele ao qual se pertence (...). Na análise cultural contemporânea, o
conceito é visto com certa desconfiança, por suas conotações
psicológicas, ao focalizar o indivíduo e não processos sociais e históricos.
Assim o estereótipo passa a ser a simplificação de uma realidade, uma forma
fixa de se perceber alguns indivíduos, procurando instituir uma representação que
desfavoreça esse grupo, marcando sua diferença como um traço de inferioridade, e,
portanto, os indivíduos dotados de diferenças como incapazes.
Atividade da Unidade B:
Para encerramento da unidade, propomos que você realize uma entrevista com
pessoas ouvintes que tenham contato, convivam ou conheçam algum surdo na
cidade. Para realizar a tarefa, você pode procurar uma escola, uma associação de
pais e amigos dos excepcionais, uma associação de surdos, um estabelecimento
comercial ou ainda uma família em que haja surdo(s).
Após escolher a instituição em que será realizada a entrevista, faça as seguintes
perguntas às pessoas selecionadas:
1) Quais são as representações que você (pessoa entrevistada) tem do
surdo e da surdez?
2) A partir do que você (pessoa entrevistada) construiu essas
representações?
Como forma de reflexão sobre essas questões, propomos um Fórum de
Discussão com os demais colegas.
Referências da Unidade B:
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28
COSTA Marisa Vorraber. Michael Foucault e os estudos culturais. In: COSTA, Marisa
Vorraber (org.). Estudos Culturais em Educação: mídia, arquitetura, brinquedo,
biologia, literatura, cinema. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2000.
Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para pessoas
Portadoras de Deficiência e Altas Habilidades no Rio Grande do Sul, Federação
Nacional de Educação e Integração dos Surdos e Secretaria de Educação/ Divisão de
Educação Especial. Surdos: Direitos Humanos e Surdez. A acessibilidade
promovendo a cidadania dos surdos. Porto Alegre: GRAFO, 2002.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
2000.
LUNARDI, Márcia Lise. A Produção da Anormalidade Surda nos Discursos da Educação Especial. Porto Alegre: UFRGS/FACED, 2003. Porto Alegre: Programa de
Pós-Graduação em Educação/Faculdade de Educação/Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, 2003. (Tese de Doutorado).
RAMPELOTTO, Elisane Maria. Processo e Produto na Educação de Surdos. Santa
Maria: UFSM/CE, 1993. Santa Maria: Programa de Pós-graduação/Centro de
Educação/Universidade Federal de Santa Maria, 1993. (Dissertação de Mestrado).
SILVA, Tomaz Tadeu da. A política e a epistemologia do corpo normalizado. In:
Espaço: informativo técnico-científico do INES. n 8 (agosto-dezembro-1997) – Rio de
Janeiro: INES, 1997.
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______. Currículo como Fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001.
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29
SKLIAR, Carlos. A invenção e a exclusão da alteridade “deficiente” a partir dos
significados da normalidade. In: Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 24, n.º 2,
jul./dez., 1999, p. 15-32.
______,; SOUZA, Regina Maria de. O debate sobre as diferenças e os caminhos para
(re)pensar a educação. In: AZEVEDO, J. C., GENTILI, P., KRUG, A. e SIMON, C.
(Orgs.). Utopia e Democracia na Educação Cidadã. Porto Alegre: Secretaria
Municipal da Educação de Porto Alegre, 2000, p.259-276.
THOMA, Adriana da S. Os surdos na escola regular: inclusão ou exclusão? In:
Reflexão e Ação. Santa Cruz do Sul. V.6 n.2 jul./dez. 1998. p.41-54.
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30
Unidade C – A INVENÇÃO DO OUTRO
Nessa unidade, explicaremos como acontece a invenção do outro no campo da
surdez. Para tanto, utilizaremos conceitos como os de alteridade, normalidade,
diferença e diversidade para problematizar a invenção da própria alteridade deficiente.
Evidenciaremos como ocorre a produção do outro surdo a partir da normalidade,
fazendo colocações sobre os eufemismos criados para nomear e instituir a norma e os
discursos de poder. Destacaremos termos como inclusão/integração para mostrar
como vem sendo compreendida esta idéia.
Para finalizar, desenvolveremos uma discussão a respeito da pedagogia da
diferença, ressaltando a distinção entre os termos diferença e diversidade,
evidenciando a importância de que sejam consideradas as questões culturais na
educação de surdos.
C.1 - Invenção da alteridade deficiente
Entre nossas temporalidades e espacialidades, existe um outro, um outro que
tem sido “inventado, produzido, fabricado, (re)conhecido, olhado, representado e
institucionalmente governado em termos daquilo que poderia denominar-se como um
outro ‘deficiente’”, em outras palavras, “ainda que não seja o mesmo, um outro
‘anormal’, uma alteridade ‘anormal’”(SKLIAR, 2003, p. 113).
Com a modernidade, instala-se “não apenas um tempo de fabricação da
alteridade deficiente”, mas o destino da “era da produção do outro em geral” (ibid., p.
113).
Quando fazemos referência ao outro, é evidente que se pode ouvir/ver o outro
surdo, ou também o outro negro, o outro mulher, o outro índio, o outro cigano, o outro
pobre, o outro menino de rua, o outro velho, o outro criança, o outro selvagem, o outro
homossexual, o outro delinqüente, o outro louco, o outro estrangeiro, o outro
deficiente, e assim por diante.
Ao abordar essa questão sobre a produção do outro, Baudrillard e Guillaume
comentam que “não se trata já de matá-lo, devorá-lo ou seduzi-lo, nem de enfrentá-lo
ou rivalizar com ele, tampouco de amá-lo ou odiá-lo”. O que afirmam esses autores é
que se “trata de produzi-lo”. Assim, “o outro deixou de ser objeto de paixão para
converter-se em objeto de produção” (BAUDRILLARD & GUILLAUME, 2000, p.113).
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31
Figura 8: O lugar do outro
O termo “invenção” é utilizado aqui no sentido que “inventamos a surdez, como
inventamos a loucura, como inventamos a infância, nesse esforço desesperado pela
identidade normal e justa” (SKLIAR, 2004, p. 9). O autor afirma ainda que “ao inventar
a surdez, ficamos do lado da normalidade, do ser-ouvinte e, também, do lado da
racionalidade, do lado do ser-adulto” (ibid., p. 10).
Como toda alteridade deficiente, os surdos têm sido continuamente inventados
e excluídos. Os “seus corpos foram moldados a partir do ouvido incompleto e da fala
insuficiente. Suas identidades, pensadas como pedaços desfeitos. Suas mentes,
como obscuras e silenciosas cavernas” (SKLIAR, 1999, p.28). A lista de eufemismos
que encontramos com a finalidade de nomear os outros é cada vez mais crescente na
Educação Especial.
Skliar (1999) enfatiza ainda que, ao pensarmos na cadeia de significados que
localiza e ordena o “outro” em determinados discursos de poder, poderíamos obter
uma seqüência discursiva em que:
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32
Deficientes = patologia = outros deficientes = naturalização = reeducação = normalização = integração
Ao substituirmos, nessa seqüência discursiva, a representação dos deficientes
pela dos sujeitos com necessidades educativas especiais, a nova seqüência
resultante, conforme analisa Skliar, passaria a ser:
Sujeitos com necessidades educativas especiais = patologia = outros sujeitos com necessidades especiais = naturalização = reeducação = normalização = integração
As questões das definições sobre os outros “constituem apenas um debate
sobre melhores e piores eufemismos para denominar a alteridade e que não
caracteriza, por si mesma, nenhuma mudança epistemológica, política e/ou
pedagógica” (SKLIAR e SOUZA, 2000, p. 270).
A seqüência discursiva que Skliar sugere como sendo capaz de produzir uma
mudança substancial na cadeia de significados que localiza e ordena o “outro” em
determinados discursos de poder inicia-se pelo:
Reconhecimento político da diferença = prática da diferença = experiências comunitárias = outras diferenças/alteridade = experiências culturais = educação = interação educativa
Nesse sentido, é preciso pensar a possibilidade de se construir outras formas de
narrar a alteridade, mas que não são outras formas verdadeiras, nem as melhores
nem as mais corretas. São outras formas que vão sair desse engessamento, dessa
forma fixa de onde a Educação Especial sempre foi narrada e ouvida.
C.2 - A produção do outro surdo a partir da normalidade
Por um longo período, a Educação Especial foi inventada como sendo a
educação da normalização, mas, desde a última década até hoje, é inventada como
sendo a da inclusão – aquela que tem como paradigma dominante a promessa
integradora.
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33
Quanto ao uso do termo “inclusão”, que veio para substituir o termo “integração”,
o Ministério da Educação e Cultura e a Secretaria de Educação Especial -
MEC/SEESP esclarecem que: “o termo integração passou a ser utilizado no sentido
de se ter acesso ao sistema de ensino, e não exclusivamente ao ensino regular; o
termo inclusão passou a ser utilizado no sentido de ter acesso ao ensino regular que
inicia um processo de reestruturação, mantendo os serviços de apoio de Educação
Especial” (BRASIL, 2001).
A partir da Declaração de Salamanca24, a idéia de incluir o outro deficiente na
escola regular torna-se uma prática recomendada e freqüente. O discurso da escola
inclusiva passa pelo compromisso com a “educação para todos”, reconhecendo a
necessidade e a urgência de o ensino ser ministrado, no sistema comum de
educação, a todas as crianças, jovens e adultos com alteridade deficiente.
Figura 9: Educação para Todos.
24 (ASSUNTO) - Declaração de Salamanca: documento inspirado no princípio de integração e no reconhecimento da necessidade de ação para conseguir “escolas para todos”. Você pode conhecer mais sobre esse documento acessando o site: www.mec.gov.br/seesp/pdf/salamanca.pdf.
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34
Entre outras coisas, o aspecto revelador da Declaração de Salamanca consiste
no encaminhamento de diretrizes básicas para a formulação e a reforma de políticas e
sistemas educacionais. Desse modo, o próprio texto (UNESCO25, 1994) declara que a
Conferência de Salamanca
propiciou uma oportunidade única de colocação da Educação Especial
dentro da estrutura de “educação para todos” firmada em 1990 (...) Ela
promoveu uma plataforma que afirma o princípio e a discussão da prática
de garantia de inclusão das crianças com necessidades especiais nessas
iniciativas e a tomada de seus lugares de direito numa sociedade de
aprendizagem (BRASIL, 1994, p.5).
Compreender a proposta de inclusão do outro surdo no sistema comum de
ensino é compreender um problema de significados políticos e de representação. É
discutir a questão do outro estabelecendo uma relação com as imagens produzidas
sobre a alteridade.
Para Larossa e Pérez de Lara (1998, p.7), essas imagens tratam da
imagem dos loucos feita pelas pessoas com uso da razão que, afinal, são
as que definem o sentido da razão e da sem-razão; as imagens das
crianças feitas pelas pessoas adultas que são as que determinam o que é
maturidade e imaturidade; a imagem dos selvagens feita pelas pessoas
civilizadas que são as que definem o que é civilização e barbárie; a
imagem do estrangeiro feita pelas pessoas nativas que são as que
definem o que é ser ou não ser membro de uma comunidade; a imagem
dos delinqüentes feita pelas pessoas de bem que são as que determinam
o que é ser ou não ser uma pessoa dentro da lei; a imagem dos
marginalizados feita pelas pessoas integradas que são as que definem o
que é ser ou não ser uma pessoa corretamente socializada; a imagem dos
deficientes feita pelas pessoas normais que são as que definem o que é a
normalidade e a anormalidade.
25 (GLOSSÁRIO) - UNESCO: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
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35
A partir dessas colocações, Skliar (1999, p. 27) questiona:
Qual é a teoria que justifica essa prática? Como fazem as crianças surdas,
sós e isoladas no mundo dos ouvintes, para desenvolver sua identidade,
sua língua e uma vida comunitária entre pares? Qual é a participação que
se imagina para a criança surda nas discussões e nas construções
pedagógicas coletivas? Com quem discutirá a criança surda? Qual será a
formação de professores que suponha o domínio da língua de sinais?
Onde estão os intérpretes da língua de sinais que garantam o fluxo da
informação?
Entre muitas outras questões que poderiam ser mencionadas aqui, é possível
deduzirmos como a prática e o discurso da inclusão se transformam, para o surdo, em
uma experiência de exclusão26.
O paradigma da inclusão tem que revisar qual é o “sujeito” que está sendo
incluído. Precisa revisar e discutir questões fundamentais como: qual é a formação de
professores que acompanha os discursos da Sociedade Inclusiva, da Escola para
Todos ou da Escola Inclusiva? Como se está pensando a interação entre grupos
sociais diferentes dentro de determinada escola ou dentro de determinada sociedade?
Como são as didáticas e as dinâmicas que permitem a entrada dos outros num
sistema regular de ensino?
Para isso, é preciso entender o significado dos conceitos de inclusão e exclusão.
É preciso, portanto, entender as múltiplas formas de relação que existem entre
inclusão e exclusão; entender que a forma moderna de exclusão não é assassinar os
outros, mas criar uma ficção de que os outros estão sendo incluídos. Por fim, é
preciso revisar questões epistemológicas e políticas antes de dar respostas aos
problemas das didáticas, da formação dos professores, etc.
C.3 - Pedagogia da diferença: o outro surdo na educação
26 (ASSUNTO) - Exclusão: Para saber mais sobre este assunto, leia “A invenção e a exclusão da alteridade ’deficiente’ a partir dos significados da normalidade”, de Carlos Skliar (in: Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 24, n. 2, jul./dez.1999).
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As discussões a respeito do espaço da diferença e do espaço da diversidade
têm sido palco de debates em vários estudos e concepções teóricas. Mas que
espaços são esses? Os espaços da diferença e da diversidade são os mesmos?
O espaço da diferença pode ser entendido de diversas maneiras. Skliar (1999, p.
22) aponta algumas marcas que possibilitam o entendimento das diferenças. O autor
comenta que:
- as diferenças não são uma obviedade cultural nem uma marca de
“pluralidade”;
- as diferenças se constroem histórica, social e politicamente;
- não se caracterizam como totalidades fixas, essenciais e inalteráveis;
- as diferenças são sempre diferenças;
- não devem ser entendidas como um estado não desejável, impróprio de
algo que cedo ou tarde voltará à normalidade;
- as diferenças dentro de uma cultura devem ser definidas como diferenças
políticas – e não simplesmente como diferenças formais, textuais ou
lingüísticas;
- as diferenças, ainda que vistas como totalidades ou colocadas em
relação com outras diferenças, não são facilmente permeáveis nem
perdem se vista suas próprias fronteiras;
- a existência de diferenças existe independentemente da autorização, da
aceitação, do respeito ou da permissão outorgado da normalidade.
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Figura 10: Pedagogia da diferença
O espaço da diversidade acaba por assumir um caráter conservador, não
reconhecendo o significado político das diferenças culturais.
Nas atuais discussões sobre a educação, destacam-se questões que envolvem
o respeito à diferença, o reconhecimento da diversidade; assim sendo, nas políticas
educacionais, discute-se a importância de uma pedagogia para a diversidade. Na
educação de surdos, esses termos estão constantemente presentes, porém
diversidade e diferença estão sendo historicamente interpretadas como sinônimas.
Essa semelhança que vem sendo instituída entre os termos ocorre devido à
apropriação do significado de diferença quando da utilização da palavra diversidade.
Percebemos claramente essa relação entre diversidade e diferença a partir dos
significados que encontramos nos dicionários para essas palavras. Nessa ferramenta,
diversidade significa “diferença, dessemelhança, variedade, divergência, oposição,
contradição”, enquanto a palavra diferença é entendida como “caráter que distingue
um ser de outro, uma coisa de outra, diversidade, variedade” (Dicionário de Língua
Portuguesa, 1992, p. 372).
Assim, podemos verificar que os significados de diferença e de diversidade
distinguem “o outro do um, o outro do mesmo. Quer dizer que o diferente ou diverso é
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o contrário do idêntico” (FERRE, 2001, p. 195). Além disso, os termos diferença e
diversidade são freqüentemente encontrados em documentos oficiais e nos discursos
da Educação Especial com o mesmo significado. Por isso a “diversidade, neste e em
outros contextos mais amplos, retrata uma estratégia conservadora que contém,
obscurece, o significado político das diferenças culturais. A ambigüidade de – e a
hipocrisia – com que se pensa e se constrói a diversidade, gera como conseqüência,
no melhor dos casos, a aceitação de um certo pluralismo que se refere sempre a uma
norma ideal ” (SKLIAR, 1999, p.21).
Na perspectiva de uma pedagogia da diferença, a educação de surdos teria que
ser fundamentada em questões culturais que configurassem uma identidade cultural e social27 própria para esses indivíduos.
Atividade da Unidade C: Para o encerramento desta disciplina, escolha uma das três subunidades da
Unidade C (C.1, C.2 ou C.3) e produza uma resenha, que poderá ser individual ou em
grupo. Em seguida, disponibilize a sua produção na biblioteca.
Referências da Unidade C: BAUDRILLARD, Jean; GUILLAUME, Marc. Figuras de la Alteridad. México: Taurus,
2000.
FERRE, Núria Pérez de Lara. Identidade, diferença e diversidade: manter viva a
pergunta. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos (Orgs.). Habitantes de Babel:
políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
27 (GLOSSÁRIO) - Identidade Cultural e Social: conjunto daquelas características pelas quais os grupos sociais se definem como grupos. Desse modo, aquilo que eles são é inseparável daquilo que eles não são, daquelas características que os fazem diferentes de outros grupos (SILVA, 2000, p. 46).
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LAROUSSE Cultural. Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo, SP: Nova
Cultural, 1992.
LARROSA, Jorge; PÉREZ de Lara, Nuria. (Orgs.). Imagens do Outro. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1998.
SKLIAR, Carlos. A invenção e a exclusão da alteridade “deficiente” a partir dos
significados da normalidade. In: Educação e Realidade. Porto Alegre. v.24 n.2
jul./dez. 1999.
______. Pedagogia (Improvável) da Diferença. E se o outro não estivesse aí? Rio
de Janeiro: DP&A, 2003.
______. Apresentação. In: LOPES, M. C.; THOMA, A. da S. (Orgs.). A Invenção da Surdez: cultura, alteridade, identidade e diferença no campo da educação. Santa Cruz
do Sul: EDUNISC, 2004.
______.; SOUZA, Regina Maria de. O debate sobre as diferenças e os caminhos para
(re)pensar a educação. In: AZEVEDO, J. C.; GENTILI, P.; KRUG, A.; SIMON, C.
(Orgs.). Utopia e Democracia na Educação Cidadã. Porto Alegre: Secretaria
Municipal da Educação de Porto Alegre, 2000, p.259-276.
UFSM. Estrutura e Apresentação de Monografias, Dissertações e Teses: MDT/
Universidade Federal de Santa Maria. Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa. 6.
ed. Santa Maria: Ed. da UFSM, PRPGP, 2005.
Sites relacionados:
www.mec.gov.br/seesp/pdf/salamanca.pdf
http://www.mec.gov.br/seesp/publicaçoes
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