São Paulo 460

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ESPECIAL DEANIVERSÁRIO

Para este aniversário de 460 anos de São Paulo, o Estadoouviu, nas últimas semanas, 16 especialistas das mais diver-sas áreas e com eles buscou entender as principais transfor-mações pelas quais a cidade deve passar nas próximas déca-das – afinal, faltam apenas 40 anos para a metrópole come-morar cinco séculos.

O cenário esboçado é otimista. Uma São Paulo mais verde,com melhores serviços, com mais qualidade de vida, enfim,com mais felicidade. Não podia ser diferente: quando imagi-namos a cidade do futuro, acabamos desenhando justamen-te aquela que queremos.

Também pedimos para os leitores contarem o que amamhoje em São Paulo, o que deve ser preservado e não podeacabar. As respostas foram as mais variadas, todas sentimen-tais. São Paulo trouxe o amor, o trabalho, amigos, vida novae, principalmente, esperança.

O Parque do Ibirapuera, a Avenida Paulista e o centro ve-lho apareceram em várias histórias, atuais ou lembranças deinfância. Mas houve também quem tenha falado de uma árvo-re específica ou de um prédio favorito. Esse mosaico virouum “mapa afetivo” das 460 coisas que amamos em São Pau-lo, um guia imperdível para conhecer melhor a nossa cidade.

Este é o nosso “parabéns” para São Paulo. Festivo, é claro.Mas também reflexivo. Estamos certos de que, para termosum lugar melhor para se viver, é preciso que autoridades, cida-dãos, políticos e sociedade civil ponham mãos à obra. Só tere-mos a cidade com que sonhamos se começarmos a mudá-ladesde já. Rumo aos 500 anos.

PARA QUE LADO VAI A CIDADE NOSPRÓXIMOS 40 ANOS? ESPECIALISTASDESENHAM CENÁRIO OTIMISTA

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2054

A promessa é repetida por governos desde os anos 1980: no futuro próximo, os Rios Tietê e Pinheiros estarão limpos. O discurso é corroborado por be-

las ilustrações, pessoas nadando no rio, outras se divertindo nas margens, natureza verdejante, felicidade. O fato é que, ainda em 2014, os rios chei-

ram mal, sem muito sinal de vida na Região Metropolitana de São Paulo.Quase todos os especialistas ouvidos pelo Estado apostam na limpe-

za deles. Mais cedo ou mais tarde. “Acreditamos que, em 20 anos, Tietê e Pinheiros já serão navegáveis, embora ainda não completamente limpos”,

afi rma Rodrigo Ferraz, arquiteto do escritório FGMF. A solução, de acordo com ele, está na tecnologia, que vai possibilitar uma limpeza mais efi ciente

e adequada. Mas é em 2054 que teríamos o cenário ideal. “Com a renaturalização dos

córregos, poderemos ter uma malha de rios em toda São Paulo. Um impac-to paisagístico fundamental”, vislumbra o arquiteto Lourenço Gimenes,

do FGMF. Ou seja: todos aqueles córregos que foram canalizados ao longo dos anos voltariam à tona, limpos e prontos para o uso. Água límpida cor-

rendo em locais onde quase ninguém sabe que antes havia um curso d’água. Riozinhos ladeados por mata ciliar, parques lineares, ciclovias, equipamen-

tos de lazer. Todos navegáveis. E, quem sabe, “nadáveis”.A cidade cujas praias, segundo a piada, são os shopping centers vai ter

uma semipraia de 50 quilômetros entre a Penha, na zona leste, e Interlagos, na zona sul, um arco azul e verde nos dois principais rios da Grande São

Paulo. Os galpões que hoje ocupam as margens internas dos cursos d’água dariam espaço para parques e ofi cinas culturais.

Rearranjo. Mas essa desapropriação em massa não seria de graça. O “es-vaziamento dos cheios”, como defi ne o arquiteto Decio Tozzi, dependeria

de um rearranjo completo dos bairros vizinhos ao eixo hidrográfi co pau-listano. Tozzi já fez sua parte na retomada dessa margem – é dele o projeto

do Parque Villa-Lobos, área verde de 732 mil metros quadrados de espécies da Mata Atlântica que alivia a paisagem (e um pouco do odor) no Alto de

Pinheiros, zona oeste. Agora, o arquiteto defende uma transformação mais intensa, um projeto de décadas para buscar “um novo equilíbrio entre o es-

paço construído e o espaço natural”.A ideia é fazer uma troca. O mercado imobiliário desocuparia a parte

mais próxima dos rios, o que permitiria a criação de parques em toda a sua extensão. Em contrapartida, construiria e exploraria megaempreendimen-

tos mais para dentro da cidade, nos chamados pés de morro – regiões como a Avenida Marquês de São Vicente, na Barra Funda, na zona oeste, por

exemplo. Mas mesmo esses projetos não seriam simplesmente “espigões”. Seriam bairros verticais autônomos, com residências, comércio, serviços

e entretenimento. “Eles teriam uma escala medieval. O sujeito, nos cinco dias da semana, iria ao trabalho a pé, ao cinema a pé. Toda circulação neces-

sária fi caria em um raio de um quilômetro”, diz Tozzi.Arquitetonicamente, os bairros verticais poderiam ser variados. Mas to-

dos teriam a mesma orientação básica: estruturas parecidas com prédios empilhados, com áreas multifuncionais, praças suspensas, passarelas e sis-

temas de trânsito aéreo, como elevadores e monotrilhos.Tozzi admite que é uma ideia difícil, mas perfeitamente possível, com

planejamento a longo prazo. “Há muitas áreas nesses 50 km da Penha a Interlagos que ainda estão com ocupação rala”, ressalta. “É possível fazer

macro-operações urbanas em um prazo de décadas.” Mas, para isso, o po-der público e o empreendedorismo devem ter um objetivo conjunto claro.

“O negócio imobiliário vai ser dirigido para isso. O poder público, em vez de se submeter aos interesses do capital, deveria orientar.”

O executivo Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central e pre-sidente da Associação Viva o Centro, defende que, para viabilizar esses

grandes empreendimentos, o governo federal passe a encarar São Paulo como uma “metrópole nacional”, com direito a um aporte maior de verbas

considerando a importância que tem para todo o País. “Aí conseguiríamos recuperar as áreas verdes, expandi-las e despoluir todo o sistema fl uvial da

cidade, garantindo fontes de lazer e embelezamento”, explica. “É preciso devolver o espaço público para a população”, diz Meirelles. Tozzi concor-

da: “O grande sonho é reverter a ocupação das beiras dos rios”.

ENFIM, TEMOS NOSSOS RIOS DE VOLTALIMPEZA DOS CURSOS D’ÁGUA VAI PERMITIR TIRAR CÓRREGOSDO SUBSOLO E TRANSFORMÁ-LOSEM EIXOS DE LAZER

TRANSFORMAR OS DOIS ESGOTOS A CÉU ABERTO QUE TEMOS, O TIETÊ E O PINHEIROS, EM RIOS É IMPORTANTISSIMO PARA MELHORAR A CIDADE

ODED GRAJEW, COORDENADOR DA REDE NOSSA SÃO PAULO

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H4 Especial SÁBADO, 25 DE JANEIRO DE 2014 O ESTADO DE S. PAULO

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É difícil pensar em uma utopia com rios limpos e áreas verdes para a cidade de São Paulo com a poluição atual – dos 12 pontos de medição da Compa-

nhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) nos Rios Tietê e Pinhei-ros, só dois (ambos em Mogi das Cruzes) apontaram situação boa de qua-

lidade da água em 2012. O resto fi cou ruim ou péssima. “Gosto de imaginar o Rio Tietê como a metáfora da própria dinâmica da cidade. Enquanto ele

continuar sujo, a cidade vai continuar desigual”, diz o ativista cultural Livio Tragtenberg. “Gosto dessa metáfora: limpando os rios é como se a cidade

fosse lavada, mas acho isso muito improvável”, diz. “Daqui a 50 anos, va-mos conversar sobre a mesma questão. O rio vai estar sujo. Isso porque,

por aqui se ganha muito em não se fazer coisas, mais do que em fazer. Ainércia é muito mais lucrativa do que o movimento.”

Mas, mesmo quem é mais otimista ressalta que o trabalho de melhora deve começar hoje, e audaciosamente. “Até agora, as legislações vêm sendo

feitas pressionadas pelo capital imobiliário”, alerta o arquiteto Decio To-zzi. “É preciso ter um equilíbrio, uma troca.”

Tozzi destaca que a evolução urbana está ocorrendo em termos numé-ricos (aumento de população, número de empreendimentos), mas não em

termos qualitativos. “É um quadro impraticável em uma sociedade que se diz civilizada e detém um certo conhecimento.”

A principal preocupação é a situação ambiental da cidade de São Paulo. O arquiteto Lucio Gomes Machado cita como um dos principais pontos o

assoreamento e a poluição da Represa do Guarapiranga, na zona sul, im-portante fonte de abastecimento em uma cidade com água cada vez mais

rara – relatório de 2013 da Cetesb aponta que o Reservatório do Guarapi-ranga tem sedimentos muito tóxicos e quantidade considerada péssima de

coliformes fecais. “Em 2054 talvez ela não exista mais. Mas temos de dar um jeito de existir, porque é fundamental.” Para ele, o fornecimento de

água é o principal problema das próximas décadas para a Grande São Paulo.Já Tozzi destaca o aumento das ilhas de calor, causadas pela imperme-

abilização do concreto e pela redução das áreas verdes. “A fl ora some. Só asfalto e concreto. E a fauna, essa é triste. Não há mais passarinhos. Só há

insetos, ácaros, aranhas e escorpiões”, afi rma Tozzi. “O processo de pro-víncia a metrópole foi tão rápido nesses últimos 50 anos – e aumentado nos

últimos 30 – que o centro expandido já é uma grande ilha de calor.”Tozzi diz que o conhecimento para reverter essa tendência existe há

tempos. “Houve distração dos órgãos públicos? Não. Houve aceitação da pressão econômica”, aponta, afi rmando que, se não houver mudança de

posicionamento, a ilha de calor vai aumentar. “Em 2030, estará muito pior. A desertifi cação da cidade estará em grau mais elevado. E os municípios da

Região Metropolitana de São Paulo acompanham esse processo. Vai se so-mar uma metrópole desértica.”

Mas ele diz que ainda não é tarde: “É hora de mudar isso”.

CAIXOTES DE DINHEIRO

PAULAFÁBRIO

I greja, shopping, livraria. Agência bancária. No formato qua-drado a cidade se empenha.

É o futuro-já, com janelas encravadas no cimento dos pré-dios. Centenas, numa única braçada de olho. Milhares, na vi-

são periférica. Algumas mais ao alto, com vista para o elevado e o engavetamento, ou para o cemitério, onde se retêm mais caixotes.

Estes, uns sobre outros, para não sermos iguais. Nunca. Privilégio é ter caixinhas envidraçadas gourmet e avistar palmeiras no asfal-

to. Na garagem, um minitanque de guerra.É verdade. O horizonte subiu ao céu num contorno quadriculado

metálico. Também pudera, muito tempo se passou desde 1984 e dos últimos leitores de livros.

No formato quadrado a cidade se empenha e ganha dinheiro. O cartaz colorido e o sorriso plantado já não interessam. Apenas

a tela do jogo, o link do link do link. O novo eletrônico intuitivo. Pulso e cartão de crédito. Tudo num chip implantado. Contração e

expansão em linhas desordenadas, pontas desencaixadas e lascas soltas. Não obstante, emergem caixotes maiores, câmpus, retân-

gulos, onde o conhecimento se mede pelo número de aplicativos. Na praça, o quadrilátero é avesso às voltas. Agora no futuro, o rolé é

démodé. Já ninguém sai detrás das grades. De nenhum lado. Confi -nados, a nos suportar. Como carneiros com ferraduras quadradas.

Mas antes de agonizar, janelas se espremem e sobem ao alto como árvores à procura do sol. Enfi m, sós e emoldurados. O cadeado se-

guro. O portão automático. A tela 4D. Sonha-se em ângulo reto. O caixote da morte. O da vida. O achatamento da terra, na luz branca

e roxa do sol que se pôs, e outro dia que passou, tão rápido, nas ho-ras extras fi ngidas – a brincadeira mórbida a ver quem se aguenta

mais no escritório. E o escape fugidio, nos parques temáticos, no jardim simulado. Janelas de computador.

A despeito de tudo, a mão redondinha da criança deixa sua marca de tinta no papel. Um deslize. Pois no fi nal, não há ponto. O cerco.

Fechado. Em linhas perpendiculares. E você não resiste.

VENCEDORA DO PRÊMIO SÃO PAULO DE LITERATURA COM O ROMANCE DESNORTEIO (PATUÁ, 2012) NA CATEGORIA ESTREANTE +40 ANOS, NASCEU EM

SÃO PAULO E FORMOU-SE EM COMUNICAÇÃO. ATUALMENTE, FAZ MESTRADO EM LETRAS NA USP E EM BREVE PUBLICARÁ SEU NOVO LIVRO, PONTO DE FUGA,

PREMIADO PELO PROAC, DA SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA DE SÃO PAULO

PARA MUDAR, É PRECISO

COMEÇAR HOJE

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