RYNGAERT Jean Pierre Ler o Teatro Contemporaneo

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  • Ler o teatrocontemporneo

    Jean-Pierre Ryngaert

    Mart/ns Fontes

  • Complementada por uma antologia,um dicionrio de autores e noesfundamentais, e tambm por umacronologia, esta obra constitui oinstrumento de refernciaindispensvel a todos os estudantes eao pblico interessado por teatro.J.-P. Ryngaert faz o balano dos anoscinqenta e do nouveau thtre queabalou profundamente o panoramada criao. Autores como SamuelBecket ou Eugne Ionesco continuama marcar nossa poca. No entanto,seguindo a linha deles ou ao lado deseus textos, novos autores exploramoutras formas. O desaparecimentodas ''grandes narrativas", onascimento de uma "'dramaturgia dofragmento1', a fragmentao doespao e do tempo, a modificaodas formas do dilogo e oquestionamento do status dapersonagem colocam o leitor emuma relao diferente com os textos.

    Jean-lHerre Ryngaert, professor de estudosteatrais na universidade de Nantes, tambm diretor. Alm disso, autor de obras e artigosrelacionados principalmente encenaoteatral e s dramaturgias barrocas econtemporneas.

  • Ler o teatrocontemporneo

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    Ler o teatrocontemporneo

    Jean-Pierre Ryngaert

    TraduoANDRA STAHEL M. DA SILVA

    Unimontes - Sistema de Bibliotecas

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    Martins FontesSo Paulo I998

  • Lsta obra fui publicada on_etna!r>iefirc em francs ivm o lmoLlRE LE THTRE CONfEMPORAN por ditions Duiwtl Pn\

    Copyright t> Dunod Paru, J993Cop\ri$hx Li\ rtina Maritn.\ For/ies Ediwra Lida .

    So Pulit. ftyQH, paru ti presente edio

    998

    TraduoANDRLA STAHEL M DA SILVA

    Reviso grficaAna Lmitt Erunt^uProduo grfica

    Geraldo Aires

    Siudift 3 Desenvoh mientft Editorial (6957-7033}

    Dados Inlemaconats de Calaiogau na Publicao (CIP)iCmara Brasileira do Livru, SP, Brasil)

    Ryngaert, Jcan-PierreLer o (cairo ctiniemporneo / Jcan-Pierre Ryngaert : traduo

    Andra Stabel M. da Silva. So Paulo ; Manins Fontes. 199S -(Coleo leitura e criticai

    Ttulo original: Lire te ihttTe contemporain.Bibliografia,ISBN 85-336-0913-2

    l. Crlita J. Ttulo. IL

    9S-2778 CDE>-8O9r2r

    ndices para cala Jugo sistemtico:1. Teatro : Histria e crlica

    Tfxios os direitos para o Brasil reservados Livraria Martins Fontes Editora Laia.Rua Conselheiro Ramalho, 330134001325-000 So Paulo SP Brasil

    Tel. (011,239-3677 Fax (0111 3105-6867e-mail: [email protected]

    http:! ''H VTH1. ma rnsfontes. com

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    ndice

    Introduo XI

    O QUE O TEATRO CONTEMPORNEO?

    I. "As obscuras cia rezas e as incompreensveis lu-zes" 3

    II. Mal-entendidos entre autor e leitor 7

    III. Cinco incios 111. Les chaises, de Eugne Ionesco 122. Vatelier, de Jean-Claude Grumberg 153. La bonne vie, de Michel Deutsch 174. Dissident, il va sans dire, de Michel Vinaver... 205. Dans Ia sotude des champs de coton, de Ber-

    nard-Marie Kolts 23

    IV. Problemas de leitura 271. Entrar no texto 272. A rede temtica e as peas sem "assunto" 283. O "sentido" no uma urgncia 294. Construir a cena imaginria 30

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  • HISTORIA E TEORIA

    I. Teatro, sociedade, poltica 371- O lugar do autor no panorama teatral 37

    Um teatro de duas faces 37Um teatro que diz "merdra"! 38O teatro ainda pode incomodar? 39A condio de autor dramtico 41

    2. A questo do engajamento nos anos 50-60 42O texto teatral exposto poltica 42A polmica acercado teatro engajado 43

    3. O questionamento do texto e do status do au-tor por volta de 1968 46O corpo, o ator e o coletivo no processo decriao 47As prticas de escrita e os teatros de interven-o 49

    4. Os anos 70: o cotidiano e a Histria 52Emergncia e necessidade do teatro do coti-diano 52Um teatro prximo das pessoas 54Abordar novamente, pelo outro lado, o campohistrico 55

    5. Os anos 80: a perda do narrativo, para dizer oqu? 57

    II, evoluo da representao 611. O texto e acena 61

    As relaes complexas entre autor e diretor.... 61O "status" do texto na representao 63

    2. Evoluo das tcnicas cnicas 66O texto e a evoluo das tcnicas cnicas 66O teatro e as outras artes 68

  • III. O texto, o autor e as instituies 711. Situao da edio teatral 712. O papel dos locais de experimentao e pesquisa. 73

    O impacto do "Thtre Ouvert" 73Bales de ensaio para autores em experincia 74Rumo a uma nova imagem do autor dramtico? 15

    TEMAS E ESCRITA

    I. Os avatares da narrativa 831. A perda da grande narrativa unificadora 842. A escrita dramtica descontnua e os limites

    do gosto pelo fragmento 853. A voga dos monlogos e o teatro como narrativa 894. Variaes em torno do monlogo: entrecruza-

    mentos e alternncias 945. A alternncia de monlogos e dilogos 98

    II. Espao e tempo 1051. Desregramentos do tempo 1072. Aqui e agora 1093. As contradies do presente 1124. Tratamentos da Histria 1155. O presente visitado pelo passado 1206. O teatro das possibilidades 1277. Aqui e alhures: simultaneidade e fragmentao 129

    III. Nos limites do dilogo 1351. Um teatro da conversao 1372. Entranamento e entrelaamento do dilogo ... 1453. O teatro da fala 150

    IV Como se fala no teatro 1551. O ser privado de sua linguagem: automatis-

    mose derriso 158

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  • 2. A fala das pessoas e a "dificuldade de dizer" 1623. A escrita e as tentaes da linguagem oral 1694. A lngua inscrita no corpo 175

    ANTOLOGIA DE TEXTOS

    I. Contextos 183Thtre Populaire - Retomar o teatro do GrandeComentrio 183Travail Thtral - Definir, com a maior exatidopossvel, o ncleo da criao teatral 184Thtre Public - Analisar seu tempo, questionar-se e debater 186L* Art du Thtre - A obra dramtica um enig-ma que o teatro deve resolver 187

    II. Aqui e agora, alhures e outrora 191Bertolt Brecht - A vida dos homens em comumsob todos os seus aspectos 191Heiner Mller- Um dilogo com os mortos 193Michel Vinavtr - Apreender o presente 194Antoine Vitez - O teatro uma arte que fala dealhures outrora 196

    III. O real e o teatral 199Arthur Adamov -A imagem impressionante no necessariamente teatral 199Samuel Beckett - No h pintura. H apenasquadros 201Jean Genet - O teatro no a descrio de ges-tos cotidianos vistos de fora 202Claude Rgy - Renovar sua sensao do mundo .. 204

  • IV O silncio, as palavras, a fala 207Eugne Ionesco - A palavra tagarela 207Nathalie Sarraute - Esse fluxo de palavras quenos fascina 208Jean-Pierre Sarrazac - O silncio, descobertaprimordial 210

    V. O autor, o texto e a cena 213Jean Genet - Um ato potico, no um espetculo..., 213Bernard-Marie Kolts - Sempre detestei um pou-co o teatro 216Valre Novarina - o ator que vai revolver tudo 218

    ANEXOS

    Noes fundamentais 223Notas biogrficas 231Quadro cronolgico 239Bibliografia 247ndice de autores e diretores 251

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  • Introduo4iO que no ligeiramente disforme parece insen-svel - donde decorre que a irregularidade, isto ,o inesperado, a surpresa, o espanto sejam umaparte essencial da caracterstica da beleza. O Belosempre estranho.51

    Baudelaire

    O teatro contemporneo ainda identificado vanguar-da dos anos 50, de tanto que o movimento foi radicai e nossogosto por rtulos amplamente satisfeito por essa denomina-o/ Como imaginar, efetivamente, quarenta anos mais tarde,o agrupamento de autores to diferentes como Adamov.Beekett e Ionesco sob a mesma bandeira sem se surpreendercom isso? O absurdo, o teatro metafsico e um certo teatropoltico, ou um teatro da provocao, por assim dizer, ladea-ram-se na mesma oposio, expressa de modos diferentes, ao'Velho teatro", Como diz Adamov em Uhomme et l 'enfant [Ohomem e a criana], surpreso, mas reconhecendo seu prazerem fazer parte de uma "turma", "ns trs ramos de origemestrangeira, ns trs perturbamos a quietude do velho teatroburgus" e "os crticos sucumbiram"1'.

    Os tempos mudaram e, no entanto, o velho teatro bur-gus no vai to mal, A "vanguarda" admitida nos liceus.Beekett, encenado no mundo inteiro, escandaliza cada vezmenos por estar morto e ser identificado como um "clssicocontemporneo".

    A partir dos anos 50, a escrita dramtica conheceu sor-tes diversas. Os novos autores tiveram de enfrentar a tor-menta do fim dos anos 60 e a desconfiana que pesava sobrea escrita, esse ato solitrio e vagamente elitista. Alguns re-sistiram ao entusiasmo em favor da linguagem do corpo e do

  • XII LER O TEA TRO CONTEMPORNEO

    indizvel. Outros tombaram no campo de batalha do teatropoltico ou se declaram assassinados por diretores cansados,por um tempo, de suas leituras dos clssicos. Outros, ainda,descobrem um dia que eles no existem, j que, como todossabem, "no h autores", quando muito alguns "jovens auto-res" surpresos com sua "eterna juventude". "Os autores denosso tempo so to bons quanto os diretores de nossotempo", escreveu um dia Bernard-Marie Kolts, provavel-mente cansado do olhar dirigido aos textos de hoje.

    Autores ingnuos se surpreendem com a ofensiva doteatro comercial devidamente patrocinado; os menos ing-nuos sobrevivem com bolsas ou encomendas oficiais.

    Talvez a maior dificuldade para muitos autores tenhasido situar-se em uma escrita do "ps-Beckett", como se ele,que anunciava incessantemente o fim dessa escrita, da sua,da nossa e da escrita do teatro, tivesse, enfim, sido ouvido.Em compensao, a escrita do "ps-Brecht", esse outro pai,foi libertada pelo afastamento dos temas polticos e peloenfraquecimento das ideologias, mesmo que a dramaturgiaalem ainda influencie tanto alguns autores franceses quan-to seduz os diretores.

    No tentaremos colocar ordem em um panorama teatralem movimento, assim como no empreenderemos a impos-svel classificao dos "autores vivos" rotulando-os por esco-las e panelinhas. Era necessrio um ponto de partida, encon-tramo-lo de forma natural nos autores dos anos 50 que seopuseram antiga dramaturgia. No os retomaremos de ma-neira exaustiva, j que existe uma literatura crtica sobre oassunto, mas iremos utiliz-los como uma base de reflexo.Dando seqncia a eles, citaremos, para apoiar nossa anli-se, principalmente os autores que se dedicam a assuntos eformas no muito repertoriadas, em todo caso no forjadasnos moldes da dramaturgia clssica que sobreviveu ampla-mente na Frana para alm do sculo XIX, e com freqncia

  • INTRODUO XIII

    at hoje. Evidentemente consideraremos apenas os textospublicados e apenas assinalaremos aqui alguns espetculosque no se fundam em um texto dramtico estabelecido. Fa-remos breves referncias a alguns autores estrangeiros, paraassinalar uma influncia manifesta ou uma grande populari-dade na Frana, no porque eles sejam menos importantes,mas por ser necessrio respeitar o plano desta obra. Tantopior se por vezes se trata de fenmenos de moda, o riscoque o assunto corre; tanto pior se escapam autores a nossainvestigao, so os limites de nosso trabalho e talvez, tam-bm, de nosso gosto.

  • "As obscuras clarezas e asincompreensveis luzes"

    Se fosse necessrio dar a mais ampla definio do textode teatro moderno e contemporneo, talvez pudssemos re-tomar a bela formulao de Umberto Eco, que qualifica ostextos de "mquinas preguiosas", em Lector in fbula [Opapel do leitor], e considerar que nosso corpus rene osmais preguiosos de todos. No necessariamente os maisabstratos ou mais enigmticos, como s vezes se ouve dizer,mas antes os que no se revelam facilmente no ato de leitu-ra, que resistem ao resumo rpido das programaes publi-cadas nas revistas e solicitam do leitor uma verdadeira coo-perao para que o sentido emerja.

    "Ser que no estamos significando alguma coisa?", dizHamm a Clov em Fin de partie [Fim de jogo], de Beckett.Ouve-se essa rplica entre o jbilo e o terror dos que se ex-pem ao olhar dos outros e que literalmente correm o riscode ficarem surpreendidos por serem tomados pelo que noso ou pelo que no desejariam ser. Em outras palavras, elescorrem o risco, como que sua revelia, de ser "interpretados"no simulacro de vida que levam e de ver atribudos a seusatos mais andinos indcios de significao, "idias". Essabrincadeira humorstica de Beckett evoca sua desconfianados smbolos e, mais ainda, dos exegetas de todos os tiposdiante da representao. Somos o que somos e fazemos oque estamos fazendo, diz o olhar cmplice dos atores fin-

  • 4 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    gindo espanto por serem tomados pelo que so, isto , atoresinterpretando personagens. Esses mesmos personagens seinquietam ou se alegram por ver atribudo um sentido "re-presentao da vida" que eles se esforam para reviver ma-quinalmente sob o olhar dos espectadores. Esse sistema emtrompe l 'oeil* nega representao o direito de ser outra coisaque no o que ela , um simulacro, no prprio momento emque ela se d como tal e em que se correria o risco de tom-lapor "verdade" dando-lhe sentido demais.

    Dar sentido demais ou no dar o suficiente , j de incio,o problema do leitor confrontado com os textos atuais. O tea-tro no so idias, mas ser que ele ainda pode ser pensamentonascente? "Suas obscuras clarezas, suas incompreensveisluzes", como diz Valre Novarina sobre Rabelais, uma for-mulao que gostaramos de retomar ao comentar os textos.Reivindicaramos para o teatro o que Christian Prigent louvanos textos de Francis Ponge, uma "obscuridade homeoptica",que mostra que:

    a implicao no figurar o mundo, mas responder sua pre-sena real por uma igual presena verba], por uma densidadeequivalente; ao mesmo tempo polissmica e insignificante.

    Ceux qui merdrent [Os que merdram]r

    E quase um programa de leitura, uma procura de um ca-minho. Estamos no momento em que as vanguardas estomortas e so redescobertas. Em um momento em que no bom, para um autor, revelar inveno formal demais sobpena de ser rejeitado como ilegvel e suspeito de um retorno

    * Literalmente, "engana o olho"; d a idia de ^aparncia enganadora",deriva do nome de um tipo de pintura que visa essencialmente a criar, por artif-cios de perspectiva, a iluso de objetos reais em relevo (Le pe Rabert, 1995).RdoT. )

  • JO QUE E O TEA TRO CONTEMPORNEO':

    do terrorismo intelectual. Em que melhor que um textono perturbe demais a linguagem acadmica e manifesta daboa vontade para comunicar. Em que, talvez, o pensamentoseja suspeito, se no "ultrapassado", se no se apresentarimaculado e andino.

    Aqui estamos, de sada, submetidos ao paradoxo teatral,divididos entre o desejo de compreender e explicar os tex-tos, e cheios de amor pelos que resistem, que no se mostramimediatamente como fceis, entregando pronto um universoraso ou insignificante. O texto de teatro no imita a realida-de, ele prope uma construo para ela, uma rplica verbalprestes a se desenrolar em cena. Entre os textos com que ire-mos trabalhar, alguns parecem obscuros e no se abrem lei-tura. Textos ruins, textos fracassados ou leitores ruins, leito-res insuficientes diante de formas que ainda no so de do-mnio pblico?

    O teatro repousa, desde sempre, sobre o jogo entre oque est escondido e o que mostrado, sobre o risco da obs-curidade que de repente faz sentido. A representao, derri-sria em seu prprio projeto, esfalfa-se para mostrar o mun-do em cena com os meios rudimentares do artesanato defeira e pela linguagem, Isso verdade desde os Mistrios daIdade Mdia, cujas representaes de Cristo ou dos diabosdo Inferno encantavam, segundo dizem, os espectadores. Is-so ainda verdade, mas hoje em dia no completamente, jque existem muitos outros meios de representao alm doteatro, bem mais "verdadeiros", principalmente as imagensfilmadas, e bem mais "falsos"; so apenas imagens, e nemsempre imagens exatas, diria Jean-Luc Godard.

    Vem da, provavelmente, um primeiro mal-entendidoentre os que escrevem e encenam o teatro de hoje e os queassistem a ele. Existe uma grande distncia entre o teatro talcomo praticado e tal como percebido ou, em todo caso,segundo a idia que se faz dele. Nos sales, e s vezes nas

  • LER O TEA TRO CONTEMPORNEO

    universidades, ainda ouvimos falar de cortinas vermelhas,dos faustos do teatro italiana, iluso, magia do ator-estrela,e inquietao do personagem, isto , rapidamente, uma con-cepo que remonta ao sculo XIX. E isso no est errado, oteatro ainda vive disso, de sua parte de espetculo. Quandose trata de escrita teatral, ouvimo-nos dizer: intriga, desfe-cho, pea bem feita e golpes teatrais, talvez mesmo trs uni-dades; de modo geral, o conhecimento transmitido pelo en-sino tradicional. E isso tambm no est errado, j que ne-nhuma escrita, mesmo que se levante contra esse outro tea-tro, pode ignorar sua origem. Ensaiam-se formas para repre-sentar o mundo com regras que nem sempre derivam deAristteles. Contudo, e a h outro paradoxo, no pode ha-ver ruptura radical com as antigas formas, ou melhor, apesardessas rupturas, a matriz primeira continua sendo uma trocaentre seres humanos diante de outros seres humanos, sobseu olhar que cria um espao e funda a teatralidade.

    Portanto, h nos autores de hoje um desejo de rompercom uma certa rigidez da representao tradicional. Essacrise, quando comea pela escrita, opera um desregramentonas convenes da representao. Esta se isola ao se opor aosavoir-faire dramtico e inevitavelmente ao enredo.

  • II. Mal-entendidos entreautor e leitor

    Um clich bem conhecido mostra os produtores holly-woodianos, diante dos roteiristas que os assediam, como aque-les que querem saber, o mais rpido e diretamente possvel,qual a histria que estes tm para contar ao pblico. "Whatis the story?" continuaria sendo a questo essencial, todo oresto seria uma questo de savoir-faire e de "literatura".

    Os produtores teatrais no fazem necessariamente essapergunta aos novos autores, mas ela permanece implcitanas relaes entre o objeto cnico e o pblico que exige, evi-dentemente, compreend-lo. Compreender continua sendosempre, no imaginrio coletivo, compreender a histria eresumir a narrativa, o que Aristteles e a dramaturgia clssi-ca chamam de enredo, como se o sentido se apoiasse essen-cialmente na histria narrada.

    Essa uma primeira razo de mal-entendido na medidaem que uma parte dos autores contemporneos considera arelao com o enredo de maneira diferente. Eles se colocammenos como "contadores de histrias" e mais como escrito-res que recorrem a toda a densidade da escrita.

    Poderamos imaginar que eles so legitimados, ou quese sentem como tal, pela evoluo dos estudos crticos sobrea leitura, sobre o modo como os estruturalistas e depois ossemilogos, de Roland Barthes a Umberto Eco, deram umnovo enfoque atividade do leitor na relao com o texto e

  • 8 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    na elaborao do sentido. Mas a resistncia forte e, se deum ponto de vista terico, o ato de leitura parece estabelecercom certeza a atividade do leitor que constri seu texto ati-vando redes de sentido que lhe permitem se relacionar com oautor, na prtica escolar ou universitria, at mesmo nosmeios artsticos, s vezes se continua a perguntar, antes dequalquer outra forma de estudo, "o que isso est contando?".

    No se pode, evidentemente, ignorar essa questo notrabalho de dramaturgia. Mas esse um primeiro mal-enten-dido acerca dos escritores, dos quais se diz que "enfraquece-ram o enredo" e at que renunciariam a qualquer enredocoerente em suas obras.

    O mal-entendido se agrava assim que nos interessamospelo sistema de informaes utilizado pelo escritor O mo-delo clssico repousa sobre a evidente clareza das informa-es do enredo, que devem ser completas, coerentes e com-pactas desde o incio do texto. A informao insuficiente naescrita dificilmente aceita como um jogo com o leitor,como a montagem de um quebra-cabea informativo cujaspeas chegaro apenas aos poucos e, bem pior, como umquebra-cabea em que faltaro obrigatoriamente elemen-tos, j que estaria pressuposto que estes existem na enciclo-pdia individual do leitor e que seu papel trabalhar sobreessas ausncias e sobre o esvaziamento da escrita para nelaintroduzir seu prprio imaginrio.

    Os dois modelos perduram; um, ainda clssico, de umaescrita informativa e, no fim das contas, fechada, ao menostanto quanto autoriza a aspirao imposta pela cena seguin-te; o outro, cheio de vazios, de uma escrita que no se esfor-a para fornecer narrativa mas que, se bem-sucedida, im-pe suas "ausncias" como ms para atrair sentido, para ex-citar o imaginrio para construir a cena seguinte.

    No se escapa, na abordagem das escritas contempor-neas, devido falta de certezas e modelos, suspeita da au-

  • O QUEO TEATRO CONTEMPORNEO}

    sncia de savoir-faire. Uma escrita muito aberta e sem tra-ma narrativa bem amarrada no esconderia a impotncia doautor para construir uma histria? No se pode levantar essasuspeita mais do que a que visa um pintor abstrato quandoperguntam se ele sabe desenhar "bem". O trabalho de leituraconsiste, com a menor dose de a priori possvel, em entrarno jogo do texto e medir sua resistncia.

  • III. Cinco incios

    Propomos, ento, uma viagem sem roteiro determinadopor cinco textos contemporneos dos quais leremos as pri-meiras rplicas ou linhas sem formalizar demais as proposi-es. Trata-se de uma espcie de teste em que entraremosem contato com escritas diferentes sem que elas sejam rotu-ladas e sem que estabeleamos um mtodo explcito de lei-tura. As entradas sistemticas no texto sero propostas noterceiro captulo. Aqui, trata-se antes de abrir cada um doscinco volumes: Les chaises [As cadeiras], de Eugne Iones-co; Vatelier [O ateli], de Jean-Claude Grumberg; La bonnevie [A boa vida], de Michel Deutsch; Dissident, il va sansdire [Dissidente, evidente], de Michel Vinaver; Dans Iasolitude des champs de coton [Na solido dos campos dealgodo], de Bernard-Marie Kolts. Iremos dedicar-nos aum ato de leitura breve e sinttico, limitando-nos estritamen-te ao fragmento citado. Os textos foram escolhidos porquepropem escritas diferentes umas das outras e porque seusautores, mesmo que no sejam muito conhecidos pelo "gran-de pblico", foram todos encenados vrias vezes em teatrosnacionais franceses ou de importncia nacional. Estuda-remos prioritariamente o sistema de informaes e o modocomo se instaura o dilogo entre autor e leitor em funo desuas respectivas "enciclopdias", tendo em mente Lector infbula, de Umberto Eco. Evidentemente, no esgotaremos o

  • 12 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    trabalho sobre o sentido e nos limitaremos a algumas obser-vaes preliminares,

    Uma viagem como essa pelos incios dessas peas re-centes mostra que no existe soluo nica nas escritascontemporneas. As narrativas se estabelecem em diferen-tes nveis de informao e com subterfgios muito con-trastantes sem que se possam classificar automaticamenteessas diferentes escritas em funo de uma esttica. Aoentender como se estabelece a relao entre autor e leitor,compreenderemos melhor como construdo todo o siste-ma narrativo.

    l."Leschaises"Eugne Ionesco(estreada em 1952; Gallimard, 1954)

    Levantam-se as cortinas. Penumbra. O Velho est emcima do escabelo, debruado na janela da esquerda. A Velhaacende o lampio de gs. Luz verde. Ela vai puxar o Velhopela manga.

    A VELHA - Vamos, meu amorzinho, feche a janela; a guaestagnada est cheirando mal, e, alm disso, esto entran-do mosquitos.

    o VELHO - Deixe-me em paz!A VELHA - Ora, vamos, meu amorzinho, venha se sentar. No

    se debruce, voc pode cair na gua. Voc sabe o que acon-teceu com Francisco L preciso tomar cuidado.

    o VELHO - Novamente exemplos histricos! Que bosta!Estou cansado da histria da Frana. Quero ver; os barcosna gua fazem manchas no sol.

    A VELHA - Voc no pode v-los, no h sol; noite, meuamorzinho.

    o VELHO - Ainda h a sombra do sol.

  • O QUE O TEA TRO CONTEMPORNEO? 13

    Ele se debrua mais ainda.

    A VELHA (ela o puxa com ioda fora) - Ah!... voc me assus-ta, meu amorzinho... venha se sentar, voc no os verchegar. No vale a pena. J noite...

    O Velho se deixa levar a contragosto.

    o VELHO - Eu queria ver, gosto tanto de ver a gua.A VELHA - Como pode, meu amorzinho? Isso me d verti-

    gem. Ah! no consigo me acostumar com esta casa, comesta ilha. Tudo cercado de gua... gua sob as janelas, ato horizonte...

    A Velha e o Velho, ela o levando, dirigem-se s duas ca-deiras no primeiro plano da cena; o velho se senta com todaa naturalidade no colo da velha.

    o VELHO - So seis da tarde... j noite. Voc se lembra?Antes no era assim; ainda estava claro s 9 da noite, s10, meia-noite.

    A VELHA - mesmo, que memria!o VELHO - As coisas mudaram muito. [...]

    Essas doze primeiras rplicas fornecem uma grandequantidade de informaes ao leitor, mas estas so, de incio,suspeitas e se revelam pouco teis. O espao dado, um espa-o fechado cercado de gua; banal para uma ilha, menosbanal para uma casa. O tempo, muito preciso j que o velhodiz que so seis horas, de repente relativizado, diretamentepela invocao recordao, indiretamente por uma aluso sestaes; inverno e essa contestao das informaes pou-co comum no teatro. A referncia histrica a Francisco I no, evidentemente, digna de f, embora se trate aparentementede um hbito da velha sustentar assim suas afirmaes delembranas "culturais", e um hbito do velho queixar-se de-las. A ao tambm banal, j que se trata, para um. de olharpela janela, e, para o outro, de o impedir.

  • 14 LER O TEA TRO CONTEMPORNEO

    As relaes entre esses personagens muito idosos (Io-nesco indica na abertura que eles tm, respectivamente, 95 e94 anos) so confusas devido a seus comportamentos. A ve-lha trata o velho como se ele fosse uma criana imprudentee ele se senta em seu colo. Alm disso, eles se interpelam uti-lizando palavras que se referem infncia ("meu amorzi-nho, que bosta"), surpreendentes no contexto.

    Essa situao, em resumo burlesca, que revela um ve-lho casal em sua intimidade derrisria, contrariada pelatemtica do fim que se impe desde o incio de maneira re-corrente. inverno, o fim do dia sobre a gua estagnada edo sol resta apenas a sombra. A morte est presente na ao(risco de cair na gua) tambm pelas aluses aos cheiros e luz verde.

    Essas velhas crianas isoladas em uma paisagem semfim e sem luz perderam suas referncias temporais, ou entoembelezam-nas pela memria. O enclausuramento rene-gado ou enunciado como tal, e o horizonte estabelecido hpouco j est fechado.

    Se o leitor corre o risco de fazer uma leitura naturalista,esta imediatamente encontra obstculos nas informaesvacilantes e na ausncia de unidade do texto. Se se trata deum velho casal que espera a morte, o dilogo o enuncia ape-nas de maneira indireta, sem patos e de uma maneira que sediria, sobretudo, burlesca. A vertigem diante da ausncia dereferncias uma das chaves do fragmento, j que o textocomea ao modo do fechamento e do lamento e j que a pe-a se abre para o vazio e a ausncia de projetos.

    Se o leitor j freqentou o teatro rotulado de "absurdo"ou "metafsico", ele imediatamente encontra uma temticafamiliar. Caso contrrio, confrontado com um sistema deinformaes contraditrias que se funda na pardia da dra-maturgia tradicional.

  • O QUE O TEA TRO CONTEMPORNEO? 15

    2."Catelier"Jean-Claude Grumberg(estreada em 1979; Actes Sud Papiers, 1985)

    Cena 1, A experincia (fragmento)Bem cedo, em uma manh de 1945. Simone, sentada

    cabeceira da mesa, de costas para o pblico, trabalha. Emp, perto de outra mesa, Hlne, a patroa, tambm trabalha.De vez em quando ela olha para Simone.

    HLNE - Eles tambm prenderam minha irm em 43...SIMONE - Ela voltou?HLNE - No... ela tinha vinte e dois anos (Silncio.) Voc

    trabalhava por conta prpria?SIMONE - Sim, s meu marido e eu; na poca de maior traba-

    lho contratvamos uma operria... Tive de vender a m-quina no ms passado; ele no poder nem mesmo voltar atrabalhar... Eu no deveria t-la vendido, mas...

    HLNE - Uma mquina uma coisa fcil de achar...SIMONE (concordando com a cabea) - Eu no deveria t-la

    vendido... Ofereceram-me carvo e...

    Silncio.

    HLNE - Vocs tm filhos?SIMONE - Sim, dois meninos...HLNE - Qual a idade deles?SIMONE - Dez e seis.HLNE - uma boa diferena... Pelo menos, o que dizem...

    No tenho filhos.siMONE - Eles se viram bem; o mais velho toma conta do

    menor. Estavam no campo, em zona livre; quando volta-ram o maior teve de explicar ao menor quem eu era; omenor se escondia atrs do grande, no queria me ver, mechamava de dona...

    ;i

    .

    Nas indicaes cnicas e nessas doze primeiras rpli-cas, Grumberg fornece imediatamente muitas informaes

  • 1 6 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    teis para a construo do enredo. Trata-se de dados histri-cos e "objetivos" (1945, a zona livre, a falta de carvo, a pri-so em massa), dados concernentes aos dois personagens(maridos, filhos, trabalho), elementos mais psicolgicos (ossilncios, o estabelecimento das relaes entre as duas mu-lheres). A cena tem um ttulo e podemos deduzir que Si-mone, a quem so feitas as perguntas, que est em perodode experincia. notvel que as duas mulheres falem ao tra-balhar e, portanto, que o problema da atividade dos persona-gens em cena esteja resolvido, assim como notvel ajusti-ficao do aparecimento da palavra, o dilogo tomando aforma de uma espcie de conversa iniciada entre duas mu-lheres que trocam de maneira "natural" informaes sobreelas mesmas, informaes evidentemente destinadas indire-tamente ao leitor, que tem condies, mesmo em um espaode dilogo to breve, de situar satisfatoriamente o enredoinicial. Ele sabe onde e quando se passa a ao, comea adispor de elementos biogrficos enunciados ou sugeridos(existncia de uma irm para uma, de um marido para aoutra).

    A ancoragem imediata e mais forte ainda se o leitortem uma boa possibilidade de dispor em sua "enciclopdia"pessoal de muitos elementos que lhe permitam completar arede de informaes, graas s histrias sobre a ocupaotransmitidas pela memria coletiva. Grumberg sabe disso,j que no faz afirmaes inteis, nomeia o inimigo apenascom um "eles", insinua mais do que enuncia o racionamentoe todo um modo de vida que se tornou "comum" em uma si-tuao fora do comum (as crianas em zona livre). Ele aindano constri um "drama", mas deixa entrever que j dispede elementos patticos fortes o suficiente, ainda no assu-midos emocionalmente pelos personagens, para que o dra-ma possa se desenvolver (os seres queridos arrancados desuas famlias, o filho que no reconhece mais a me). Tudo

  • O QUE O TEA TRO CONTEMPORNEO? 17

    est dado, e bem dado, em poucas palavras, ainda que sub-sistam lacunas suficientes para que o leitor faa sua parte detrabalho e, portanto, que seu interesse seja atrado. Podera-mos dizer que esses vazios no foram, de modo algum, dei-xados ao acaso. Aqui eles esto perfeitamente indicados ecomo cercados de informaes para que cada pessoa os lo-calize sem incertezas inteis. No fundo, o leitor tem a satis-fao de estar diante de um texto moderno cujas chaves lheso, contudo, familiares.

    3. "La bonne vie"Michel Deutsch (Thtre Ouvert; Stock, 1975;10/18,1987)

    Cena 1, A felicidadeUm caminho florestal declina.A auto-estrada, ao fundo, avana,Um R8 e um velho PeugeotDois casais e uma criana.Almoo sobre a reiva... pode-se dizerpiquenique.Trata-se da trucagem um pouco fraca de uma fotografia?Talvez do cinema sobre fundo de tela pintada... Sobretudopalavras: gelados... longnquos.., geolgicos.

    RAYMOND - um belo dia.JULES - ... tambm acho.MARIE - Mas no se ouvem mais os pssaros.RAYMOND - Exato. Isso a vida moderna No se pode ter

    tudo. Sempre digo: o progresso tem seu lado bom e seulado ruim, Mas preciso conviver com sua poca. So ospssaros ou a auto-estrada,

    FRANOISE-Eu...RAYMOND-Sim?FRANOISE - Ouvi um agora h pouco!

  • 18 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    RAYMOND - Voc ouviu um pssaro?FRANOISE - Ouvi, Posso at dizer que era um melro.JULES - Acho que no. Em todos os casos posso afirmar que

    no era um melro. Isso posso afirmar.

    Pausa.

    Era um arqueopterix.MARIE - Ento voc tambm ouviu.RAYMOND - Um arqueopterix?... Mulher, a cerveja.JULES - o que estou dizendo. Li que esse tipo de ave denta-

    da instalou-se h alguns anos nos arbustos que crescemperto dos trevos de auto-estradas. Voc tambm poderiater lido isso.

    MARIE - Nem todo o mundo l a mesma coisa.JULES - Justamente,MARIE - H pessoas que lem o mesmo jornal sem ler a

    mesma coisa.

    Dessa vez, o leitor no dispe de informaes dire-tas sobre a poca. O ttulo da cena geral demais para forne-cer uma indicao; pode-se at supor que no seja isento deironia. J de incio, as didasclias surpreendem por seu car-ter no prescritivo, ao contrrio da tradio. Deutsch sequestiona e nos devolve a pergunta, deixa escapar um "tal-vez". O "declnio" do caminho florestal j pode ser entendi-do nos dois sentidos e se ope auto-estrada que "avana**.Dos modos de marcar a dinmica de espaos que se opem.O piquenique corrige com humor o que o "almoo sobre arelva"* prope de cultural e conota uma outra cultura. Tudogira em torno da produo de imagens, do quadro foto. Ocinema sobre fundo de tela pintada pode ser entendido comouma rubrica para o teatro e tambm como uma escolha est-

    * Referncia a Le djeuner sur 1'herbe (em portugus, "o almoo sobre arelva"}, quadro de . Manet. (N. do T.)

  • O QUE O TEA TRO CONTEMPORNEO? 19

    tica, "Sobretudo palavras" contradiz tudo o que at ento eravisual, e o surpreendente "geolgico" anuncia provavelmen-te o arqueopterix que aparecer no dilogo.

    Essas informaes cnicas mais questionam do que in-formam (a nica informao objetiva se refere aos persona-gens e aos carros), so polissmicas e, dessa maneira, "po-ticas". O humor cria um efeito de surpresa e prope, de sa-da, um vnculo particular, "ativo", com o leitor, que se sentecomo convidado a participar de um trabalho de decifraodo que est sendo escrito.

    O dilogo fornece muito poucas informaes. Ele des-fia deliberadamente uma srie de lugares-comuns conver-sacionais (do "belo dia1' evoluo da "vida moderna") ecria uma espcie de cromo do piquenique de periferia, cer-veja includa. A histria ainda no est "no ponto" (comose diz de um cimento que endurece), ainda que se esbocemrelaes de fora na conversa entre os que sabem ou pre-tendem saber e os que tm acesso palavra. O ueu" pro-nunciado por Franoise seguido do "sim" de Raymondchamam a ateno. Essa troca vazia de contedo indicaque a fala no totalmente "livre", e que um controle, dolado masculino, opera-se na sua distribuio. (Na relaode personagens, Franoise anunciada como mulher deRaymond.)

    Evidentemente o arqueopterix (que se ope ao melro,mais esperado no cenrio) que prende a ateno, como umasurpresa lexical no contexto sobretudo banal das trocas.Esse saber particular justificado pela leitura do jornal, comuma espcie de ironia de Deutsch, em forma de anncio (preciso ler e sobretudo saber ler, ou seja, escolher o que sel e o que se acrescenta a isso). Ainda no se sabe o que vemfazer esse pssaro familiar dos arbustos dos trevos de auto-estrada, exceto que ele estimula o intercmbio (Jules vemem auxlio de Franoise e Marie).

  • 20 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    O leitor s pode construir com prudncia (ele convi-dado a ler com ateno) em um dilogo sinuoso e acidenta-do. Dois carros, dois casais, dois caminhos to opostos quan-to os dois pssaros. Demarcaes, sob a forma de rplicas jconhecidas ou que incitam a um efeito de reconhecimento(a situao seria um piquenique no campo). Uma surpresa, opssaro pr-histrico acerca do qual se esboa um mincon-flito de saber, talvez uma espcie de vaga ameaa. Tudo eraraso, nem tudo j o inteiramente (procure-se o erro no di-logo, no lxico) e no cerne da banalidade surgem palavrasque convidam derivao.

    Poderamos prosseguir na construo, mas ento nosinstalaramos em um jogo de hipteses que a cena convi-dada a esclarecer, se no a resolver. Contudo, evidente quepara ler La bonne vie no devemos nos contentar com asaparncias, mas devemos estar atentos s ranhuras do cro-mo, s distncias que se instauram nessa foto suspensa, nes-se instantneo captado entre dois espaos (o antigo e o no-vo), dois pssaros (o familiar e o inslito) e dois tempos (opassado e o futuro). A incerteza e, talvez, o mal-estar estono centro dessa encruzilhada de trocas entre modos de vida.Sem recorrer a uma anlise minuciosa, o leitor no escaparao sentimento de banalidade e de j lido.

    4. "Dissident, il va sans dire"Michel Vinaver(L'Arche, 1978)

    UM

    HLNE - Elas esto no bolso do meu casaco.PHILIPPE - No nem em cima do mvel.HLNE - Voc gentil.PHILIPPE - Por voc o ter deixado em fila dupla?HLNE - Ento talvez eu as tenha esquecido em cima do

    carro.

  • O QUE O TEA TRO CONTEMPORNEO? 21

    k - Um dia vo roub-lo voc.HLNE-Voc no se candidatou?PHILIPPE - Claro que sim.HLNE - No tive coragem dei no sei quantas voltas no

    quarteiro est ficando cada vez mais difcil.PHtLiPPE - Vou estacion-lo para voc.HLNE - Daqui a um ano voc poder tirar sua habilitao.PHILIPPE-,HHLNE - Este pulver novo?PHILIPPK-.HLNE - Pergunto-me de onde vem o dinheiro.

    No h didasclias nesse fragmento, introduzido somen-te por um nmero, mas a lista dos personagens define quePhilippe filho de Hlne. Este dilogo lacnico e sem pon-tuao toma a forma de uma conversa iniciada que trata si-multaneamente de vrios assuntos.

    Aparentemente estamos no andino, no banal. O carroe suas chaves, achar ou no achar lugar para estacionar (issoaconteceria em Paris ou em uma cidade grande!), a habilita-o, o emprego (candidatar-se), o puver, o dinheiro. Preo-cupaes comuns de personagens comuns, com informa-es destiladas indireta e habilmente (Philippe tem 17 anos,procura emprego, provavelmente mora com a me, ela temum carro, talvez ela at esteja voltando do trabalho, preo-cupa-se com o filho, com o que ele faz, o que veste, com odinheiro que ele tem ou no, em todo caso ela quem faz asperguntas). Mas isso passa rpido, e o dilogo no desenvol-ve nada e parece colocar tudo no mesmo nvel de interesse,o que seria importante "dramaticamente" (a histria de umjovem desempregado?) e o que o seria menos (Hlne per-deu as chaves do carro).

    Como em uma conversa "de verdade", os personagensno nomeiam o que evidente para eles (as chaves que per-manecero "elas", "o mvel" e o carro, imprecisos porquefamiliares). uma primeira causa dos "vazios" desse dilo-

  • 22 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    go, j que s nomeado o que importante para os persona-gens; cabe ao leitor fazer o resto, a informao no lhe for-necida com insistncia. Entretanto, pela desordem aparenteda conversa ir instaurar-se um outro nvel de sentido se re-lacionarmos as rplicas (e os assuntos) entre si. Hlne pro-cura uma vaga (para seu carro), ou melhor, ela no a encon-trou. Hlne espera que seu filho encontre uma vaga (ele secandidatou?) e se ele no responde, est pronto a encontraruma (para o carro) mesmo que isso "esteja ficando cada vezmais difcil". Hlne deu 'Voltas" e "no teve coragem" dedeixar de outro modo que no fosse em "fila dupla". Ondeest a coragem de Philippe cujo lacnico "claro que sim" le-vanta um muro diante de sua situao real (estaria, ele tam-bm, em "fila dupla"?)? Philippe que se preocupa com oeventual roubo do carro, mas Hlne que se pergunta deonde vem o dinheiro do novo pulver (emprestado, rouba-do?). Hlne tem uma habilitao, Philippe ainda no (de quehabilitao ele precisa?). Hlne perde suas chaves, Philippeas encontra e est pronto a achar uma vaga para a me.

    Assim se instaurar o sentido se o leitor procurar preen-cher os vazios, ou de preferncia encontrar ligaes entre asilhotas de palavras que so as rplicas. Se nada mais im-portante do que o resto, se s vezes eles do a impresso defalar para no dizer nada, porque tudo importante e por-que, nesse dilogo, no dizer nada , ainda assim, dizer, apartir do momento em que relacionar as rplicas provoca cur-tos-circuitos que chamam a ateno.

    As trocas so como que abandonadas logo depois deiniciadas ("Voc no se candidatou? Claro que sim"). Nomomento em que o leitor espera obter mais, a conversa bi-furca e a me que fala em lugar do filho, de seu problemacom a vaga, o dela (e, alm disso, talvez seja justamente odele). Uma enorme importncia , portanto, dada ao leitor,j que ningum alm dele pode determinar as ligaes sub-terrneas e as implicaes secretas das trocas de palavras

  • O QUE O TEA TRO CONTEMPORNEOS 23

    que, na superfcie, permanecem obstinadamente rasas. Vi-naver trata apenas indiretamente do "retorno da me ao larpara junto de seu jovem filho desempregado", se a questofor realmente essa, suprimindo de seu teatro todo risco depattico, ou pior, de peso dramtico. Resta ao leitor encon-trar seu caminho entre essa superfcie banal e o jogo dasprofundezas, sabendo que a interpretao no deve, emnada, criar um peso que no pertenceria mais ao registrodessa escrita.

    5. "Dans Ia solitude des champs de coton"Bernard-Marie Kolts (Editions de Minuit, 1986)

    O TRAFICANTE

    Se voc est andando, a esta hora e neste lugar, porquedeseja alguma coisa que no tem, e eu posso fornec-la paravoc; pois se estou neste lugar h muito mais tempo que voce por muito mais tempo que voc e se mesmo esta hora, que a hora das relaes selvagens entre os homens e os animais,no me expulsa daqui, porque tenho o que necessrio parasatisfazer o desejo que passa diante de mim, e como umpeso do qual preciso me livrar em cima de qualquer um,homem ou animal, que passe diante de mim.

    por isso que me aproximo de voc, apesar da hora que, normalmente, a hora em que o homem e o animal se jogamselvagemente um sobre o outro; aproximo-me de voc, comas mos abertas e as palmas voltadas para voc, com a humil-dade de quem possui diante de quem deseja; e vejo seu dese-jo como se v uma luz que se acende, em uma janela bem noalto de um prdio, no crepsculo; aproxmo-me de voccomo o crepsculo aproxima esta primeira luz, vagarosa-mente, respeitosamente, quase afetuosamente, deixando lembaixo na rua o animal e o homem esticarem suas correiase se mostrarem, selvagens, os dentes. [...]

  • 24 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    O CLIENTE

    No estou andando em determinado lugar em determi-nada hora; estou somente andando, indo de um lugar a outro,para negcios privados dos quais se trata nestes lugares e nono meio do caminho; no conheo nenhum crepsculo nemnenhum tipo de desejo e quero ignorar meus acidentes depercurso. Eu ia desta janela iluminada atrs de mim, l emcima, a esta outra janela iluminada, l embaixo, na minhafrente, segundo uma linha bem reta que passa por voc por-que voc se colocou a deliberadamente. Ora, no existenenhum meio que permita, a quem vai de uma altura a umaoutra altura, evitar descer para em seguida ter de subir denovo, no absurdo de dois movimentos que se anulam e cor-rendo o risco de; entre os dois, pisar a cada passo nos dejetosjogados pelas janelas; quanto mais alto moramos, mais oespao saudvel, porm mais dura a queda; e, no momen-to em que o elevador o deixa embaixo, ele o condena a andarno meio de tudo o que no se quis l em cima, no meio de ummonte de recordaes que esto apodrecendo, como num res-taurante quando um garom faz a conta e enumera em seusouvidos repugnados todos os pratos que voc est digerindoh muito tempo. [...]

    O incio desse texto citado de maneira muito incom-pleta, j que as primeiras "rplicas" alternadas do traficantee do cliente ocupam, cada uma, muitas pginas. Tivemosento de romper com nosso mtodo de amostragem e inter-romper de maneira insatisfatria para apresentar, mesmo as-sim, trechos do texto de cada um para que a obra no apare-cesse na citao como um monlogo.

    O texto no precedido por nenhuma outra indicaoalm de uma longa definio do "trfico", "transao comer-cial referente a valores proibidos ou estritamente controlados,e que se conclui, em espaos neutros, indefinidos, e no pre-vistos para tal uso, entre fornecedores e consumidores [-..]".

  • O QUE O TEATRO CONTEMPORNEO? 25

    Essas longas rplicas rompem com a utilizao contem-pornea do dilogo nervoso ou dos longos monlogos, exige-se uma escuta particular entre os parceiros. O leitor dificil-mente acha nelas seu espao e sua dose de informaes,ainda que paradoxalmente o texto proceda a uma descrioextraordinariamente minuciosa dos fatos e gestos de cadaum, de seus projetos respectivos e de suas intenes aparen-tes ou mascaradas. No somente a fala quase no esvazia-da como tende a uma espcie de saturao, rumo a uma lita-nia verbal ritualizada na qual as estratgias no se expemna troca relacionai mas no desdobramento lento e precisodas palavras.

    Seria um erro saltar para a concluso, voltar-se para atransao comercial da qual se trata e nome-la para que osentido aparea. Ora, reduzir a troca ao trfico de drogas ou prostituio enfraquece o texto de maneira evidente, redu-zindo-o a uma anedota, mesmo sendo possvel que umaparte dos rituais daquelas transaes comerciais esteja pre-sente na escrita.

    oTalvez seja necessrio analisar primeiramente o aspectoodo espao e do movimento, O traficante est inicialmentepostos, instalado, como que imvel, espera, tal como indic?toda a rede lexical. Em seguida, contudo, ele descreve suaabordagem do cliente, que apresentado como estando emmovimento. Uma parte da rplica do cliente serve para justi-ficar seu deslocamento, sua caminhada em terra desde omomento em que um elevador o deixou embaixo. Alis, averticalidade recorrente em suas palavras. Ao redor deles,edifcios imveis abstratos, janelas iluminadas como refe-rncias, a meno ao solo e possvel queda. Eles se consa-gram, pois, tanto um como outro, a um jogo de movimentos,a estratgias espaciais complexas cujo objetivo , para um, irem direo ao cliente, e para o outro negar qualquer intenode compra, no final das contas, normal, na presena do trafi-

    a

  • 26 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    cante. As aluses caa e aos animais selvagens, ao creps-culo, remetem tambm noo de territrio.

    Uma outra rede lexical remete religio e ao sagrado.As janelas iluminadas so os pontos para os quais o clientese dirige, mas seu desejo luz, diz o traficante que se adian-ta com "humildade", "as mos abertas e as palmas voltadaspara voc". Esses avanos tm algo de ritual e sagrado, ape-sar ou por causa da evocao do desejo e das intenes co-merciais no dissimuladas. O traficante sabe qual o desejodo cliente, mas no nomeia o objeto do desejo, de tanto queele evidente e provavelmente porque isso no o que inte-ressa a Kolts.

    Nesse lugar "baixo" cheio de dejetos que caem do alto,o que dado a ver uma espcie de dana ritual, um encon-tro de trajetrias abstratas, inevitveis e, por isso, quase tr-gicas. Eles acabaro por se encontrar, pois esse o objetodessa dana, insinua o traficante. Efetivamente, ele s podiapassar por ali, reconhece o cliente, que no evita o trafican-te, j que este estava no percurso previsto por sua trajetriainicial.

    Essa "dana do desejo" incessantemente falada, co-mentada e desrealizada, em uma linguagem que , ela pr-pria, regozijo em seu desdobramento. Talvez a pea fale es-sencialmente da tenso nica que ao mesmo tempo rene eope dois seres ligados pelo desejo e pela possibilidade desatisfaz-lo. A longa aproximao verbal, quase manacaem sua preciso nos dois personagens, participa dessa "exi-bio" do desejo - ou do comrcio, como se queira - querene a pessoa que possui e a que pede, a denegao do de-sejo fazendo parte do ritual obrigatrio e inquietante que pos-sibilita o acesso ao prazer.

  • IV. Problemas de leitura

    A abordagem desses textos, no teorizada aqui, eviden-temente no d conta de todas as escritas atuais. Sua brevi-dade permite apenas que se tenha conscincia de sua diver-sidade e complexidade. Podemos tirar disso algumas hipte-ses de trabalho.

    1. Entrar no texto

    A leitura do texto se realiza sem pressupostos drama-trgicos, ou melhor, ela se efetua com instrumentos diferen-tes de acordo com os textos. Os textos teatrais consideradosilegveis ou hermticos so textos que no sabemos ler, ouseja, para os quais no achamos nenhuma chave satisfatria.Com freqncia, trata-se de textos que no obedecem s re-gras da dramaturgia clssica, aos quais o leitor se refere commaior ou menor conscincia. Todo texto legvel se dedica-mos tempo a ele e se nos damos os meios para isso. O crit-rio de legibilidade, de qualquer maneira muito discutvelmesmo que seja difundido, no deveria ser acompanhado deum julgamento de valor sobre a "qualidade" do texto, ou seja,sobre nosso prazer de leitor que entra em relao com o au-tor durante o ato de leitura.

    Vrios dos textos apresentados aqui fornecem poucasinformaes que ajudam a construir uma histria, ou, pior.

  • 28 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    Hi

    algumas informaes aceitas sem verificao conduzem afalsas pistas, a fragmentos de histria que no levam a lugarnenhum. O piquenique de La bonne vie no um piqueni-que comum, mesmo que parea ser. Uatelier no apenasuma histria que se passa sob a ocupao ou logo depois,ainda que isso constitua um ponto de partida essencial.

    O que podemos chamar de "subinformaao narrativa", com bastante freqncia, o regime dos textos que nos in-teressam aqui. Portanto, preciso mudar de distncia focaie, em vez de se preparar para captar com a grande-angular oretrato da sociedade ou a epopia, comear a identificar, noprprio cerne do texto, todos os indcios que ajudaro aconstruir um sentido. Na maior parte do tempo deveremosrenunciar s macroestruturas que ajudam a compreender umtexto, s vezes rpido demais, em sua totalidade e construira partir do t4quase nada" que nos dado. Portanto, ler tam-bm, ou sobretudo, olhar pelo microscpio. Nada do que seencena em As cadeiras e em Dissident, il va sans dire tempossibilidade de chegar a ns se imediatamente reduzimosesses textos a partir do "j conhecido" e de conversas cor-rentes. Sem dvida so conversas, mas maquinadas, organi-zadas, cheias de armadilhas, e todo o seu interesse est emsua organizao. No caso de Dans Ia solitude des champs decoton, escolhemos centrar a anlise no espao porque eleaparece como a rede de sentido mais abundante e mais per-tinente, ao menos nessas primeiras pginas.

    t\

    2. A rede temtica e as peas sem "assunto"

    A pergunta "o que isso narra?" se desdobra em uma re-flexo sobre "de que isso fala?". Uma classificao temti-ca mais insatisfatria do que nunca se leva a imaginar queos autores "escrevem sobre", isto , que eles "tratam de um

  • O QUEO TEATRO CONTEMPORNEO? 29

    assunto". A maioria deles antes de tudo escreve, e so os as-suntos que nascem da escrita e no os assuntos preexisten-tes que fazem a escrita, mesmo que haja, como veremos, umapoltica de encomendas ou escritas mais intencionais queoutras. Pode-se dizer que Dissident trata do desemprego dosjovens ou da relao entre rnaes e filhos? Que Dans Ia soli-tude des champs de coton fala do mercado de drogas e Labonne vie, do estado do campo ao redor das auto-estradas?No trabalho sobre o sentido, um recenseamento temticoexaustivo interessante quando no reduz a pea a umaanedota, ilustrao de um assunto ou, pior, de um proble-ma social. Evidentemente existem peas conjunturais oudidticas e interessante ver como elas resistem ao tempo.Quando so importantes, no se limitam a seu assunto e re-sistem a ele.

    3 . 0 "sentido" no uma urgncia

    O problema do "sentido" de um texto a questo maisrdua j abordada pelos trabalhos tericos nessa rea. prin-cipalmente os de Roland Banhes, Umberto Eco e AnneUbersfelcL Notemos simplesmente que se trata aqui, contra-riamente a uma certa prtica, da coisa menos urgente a serformulada para o leitor e que ao querer dar sentido logo deincio que se perde p na leitura. De fato, damos sentidoincessantemente quando observamos diferentes redes (nar-rativas, temticas, espaciais, lexicais..,), j que tentamos in-terlig-las. Diante de textos complexos importante escaparde uma hierarquizao grande demais da anlise, a que pri-vilegia justamente as redes narrativas ou temticas em detri-mento de estruturas propriamente teatrais (o dilogo e o queele revela das relaes entre os personagens, o sistema espa-o-temporal...).

  • 30 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    4. Construir a cena imaginria

    A leitura de um texto teatral eqivale a construir umacena imaginria na qual o texto seria percebido da maneiramais satisfatria para o leitor Isso no quer dizer que o textoteatral seja "incompleto" por natureza, mas que ele resulta deum regime paradoxal, tal como abordamos em nossa Introdu-o anlise do teatro*, Ele completo enquanto texto, mastoda leitura revela as tenses que o encaminham a uma prxi-ma cena. A cena no explica o texto, ela prope para ele umaconcretizao provisria.

    Diante de um novo texto, o leitor no pode nem se refe-rir a uma concepo antiga da mquina teatral nem se apoiarna dramaturgia tradicional. As solues cnicas evidentesdemais fecham o texto antes mesmo que tenhamos podidoapreender seu interesse. Imaginar Dissidente il va sans direou Dans Ia solitude des champs de coton em um cenrio fal-samente naturalista emprestado do teatro de bulevar no tra-ria nada para a compreenso desses textos- Seria o mesmocaso de uma concepo obstinadamente "vanguardista" detoda escrita nova, que a encerraria em um outro sistema declichs.

    A representao teatral contempornea "representa"menos do que no passado e alguns diretores se chocam comobstinao contra o muro do no-representvel ou do menosrepresentvel quando procuram fazer recuar os limites doque habitualmente dado a ver. Como "mostrar'7 (fazer sen-tir, partilhar) a ausncia, ou a morte, por exemplo, e todas asemoes que no participam do espetculo convencionado?Existe ainda uma confuso entre "teatro" e "espetculo",embora essas duas noes no coincidam. A teatralidade nosenso comum se traduz com muita freqncia em um exage-

    * Trad. bras. Martins Fontes, 1996.

  • O QUEO TEATRO CONTEMPORNEO} 31

    ro nas tintas, um adensamento das emoes, uma simplifi-cao do que dado a ver. Mas a teatralidade (no sentido doque se desenrola em um espao dado e sob o olhar do Outro)tambm existe com discrio, pudor, moderao. A falta deviso no se traduz automaticamente em falta de percepo,sensao ou compreenso.

    Em compensao, a cena contempornea aposta no fatode que "tudo representvel", isto , nenhum texto est, apriori, excludo do campo do teatro por falta de teatralidade.As cadeiras ou Dans Ia solitude des champs de coton noso apriori textos de espetculo, mas seria um erro classifi-c-los como textos radiofnicos ou "textos para serem reci-tados", como se a cena no tivesse nada o que fazer comeles, ao passo que suas representaes, quando necessrio,provaram o contrrio.

    O que seria da cena seguinte em Dans Ia solitude deschamps de coton? Uma confluncia de ruas cheia de lixo en-tre blocos de conjunto habitacional? A reproduo do que sepassa sob o metr elevado de Barbs-Rochechouart? Umaalameda do Bois de Boulogne? Trajetrias entre sombra eluz em um planalto nu? A que se assemelhariam as pessoasque fazem piquenique em La bonne viel A heaufs* da hist-ria em quadrinhos de Cabu? Aos operrios de Billancourtvestidos pela Trois suisses? A primos de personagens queescaparam da obra de Jean Renoir? A caadores de arqueop-terix? O leitor, se no nem cengrafo nem diretor, traba-lha, no entanto, para construir imagens na relao entre oque l e o estoque de imagens pessoais que detm. E aindanecessrio que ele organize as imagens persistentes impos-tas pela concepo dominante do teatro e que ouse recorrera um imaginrio no convencionado.

    * Pequeno burgus com idias limitadas, conservador e machista (Le petitRohen, 1995. {N, do T)

  • . o personagem central do gari brilha;cinco autores diferentes, com idades de 9 a 46 anos, so res-ponsveis por ele. A cena se divide em sete lugares que si-tuam momentos do passado, do futuro sonhado por AugusteG. e diferentes momentos do presente- Em Chant publicdevant deux chaises lectriques [Canto pblico diante deduas cadeiras eltricas] (Seuil, 1964) existem cinco espa-os-possibilidade representando salas de espetculo em Lyon,Hamburgo, Turim, Los Angeles e Boston, em que especta-dores assistem simultaneamente representao de umapea sobre o caso Sacco-Vanzetti, o que d execuo esuas conseqncias uma dimenso mundial. Em Lapassiondu general Franco [A paixo do general Franco] (Seuil,

  • TEMAS E ESCRITA 129

    1968), ele inventa trajetos geogrficos que estruturam apea e ilustram a situao do espanhol errante, exilado pol-tico ou econmico,

    Gatti um autor pouco encenado hoje, talvez devido aoengajamento poltico de seu teatro. No entanto, sua drama-turgia teve uma influncia duradoura e quase subterrnea napercepo do tempo e do espao no teatro.

    7. Aqui e alhures: simultaneidade e fragmentao

    O espao-tempo fragmentado nem sempre tem tais pres-supostos ideolgicos. Em vrias de suas obras, Michel Vi-naver imbrica diferentes conversas que prosseguem ao longode toda uma seqncia. Desse modo, ele entrelaa discursosque poderiam advir de espaos-tempo diferentes e faz comque sejam ouvidos simultaneamente. Em La demande d'em-pioi (1972), "pea em trinta partes", quatro personagens(Wallace, diretor de recrutamento de executivos, CIVA; Fa-ge; Louise, sua mulher; Nathalie, filha deles) so captadosentre uma conversa familiar e a continuao de um questio-nrio de admisso. ''Eles esto em cena sem interrupo",define Vinaver, que, por outro lado, no fornece nenhuma in-dicao cnica e, principalmente, nenhuma indicao espa-cial. Este o incio da primeira parte, intitulada UM:

    WALLACE - O senhor nasceu dia 14 de junho de 1927 emMadagascar

    LOUISE- QueridoFAGE - Fisicamente tenhoWALLACE - E evidenteLOUISE - Que horas so?NATHALIH - Papai, no faa isso comigoFAGE - um ideal forjado em comum, quero dizer que no se

    trabalha s pelo contracheque

  • 13 O LER O TEA TRO CONTEMPORNEO

    LOUISE - Voc deveria ter me acordadoFAGE -- Eu ia acord-la, mas voc estava dormindo to pro-

    fundamenteWLLACE - O que seus pais estavam fazendo em 1927 em

    Madagascar?FAGE- Com o brao dobrado, era bonito de olharNATHALIE - Papai, se voc me fizer issoLouist - No engraxei seus sapatosFAGF - Meu pai era mdico do exrcitoLOUISH - Voc saiu todo enlameadoNATHALIE -Papai, responda-meFAGE-"Naquela poca naguarnio em TananariveWALLACK - Em nossa sociedadeFAOE - Mas no me recordo de nadaWALLACE - Damos muita importncia ao homem [,..].

    Nessa forma de conversa mltipla, dispomos de pou-cos indcios espaciais, Podemos imaginar um local priva-do, ntimo, o da famlia, e um local externo, social, o doescritrio de uma empresa. Nesse caso, Louise e Nathalieesto ligadas ao primeiro, Wallace ao segundo, e Fage ga-rante a conexo, j que ele que fala nesses dois locais aomesmo tempo. Nada torna esses lugares realmente indis-pensveis representao. Talvez se trate de um local ni-co, o de Fage ou de sua conscincia, atravessado pelos doisdiscursos. Mas podemos imaginar outras solues, inclusi-ve uma "instalao" da famlia na empresa ou uma incrus-tao do diretor de recrutamento no local privado. Doponto de vista temporal, podemos imaginar um retorno aolar aps a entrevista (uma parte das rplicas concernem aoperodo da manh, antes de Fage sair), mas ainda assimnada evidente e nada data, por exemplo, as intervenesde Nathalie. Lgica demais na separao dos espaos leva-ria a um reexame do dilogo entrelaado. Mas o interessedo texto reside precisamente nos entrechoques das falas,na confrontao entre o discurso profissional que se torna-

  • TEMAS E ESCRITA 131

    r impiedoso e o enfraquecimento progressivo do discursofamiliar

    Em Oeuvres completes [Obras completas], Vinaver apre-senta a pea:

    Desempregado h trs meses, um diretor de vendas pro-cura um novo emprego. Ao mesmo tempo que se submete aquestionrios aplicados corno mquinas infernais, ele encarasua filha, esquerdista, e sua mulher, que no lida bem com aperda de um modo de vida seguro. Esta trama simples servede suporte a uma escrita dramtica fora de esquadro: ausn-cia de lugar, ruptura de cronologia, encavalamento de moti-vos e ritmos. Nos espaos misturados, os personagens entre-cruzam seus tempos e se falam. No sem realismo: comosempre, cada um aqui est sozinho com todos e em todos oslugares.

    Mesmo que a chave esteja dada (o encavalamento),nada est resolvido do ponto de vista da representao, masuma coisa certa: a escolha da forma est, aqui, totalmenteligada ao modo de narrar e quilo que poderamos chamarde ideologia da narrativa. A complexidade inerente obrae no deve absolutamente ser analisada como uma preocu-pao voluntria de parecer "moderno".

    O carter musical da construo do dilogo, observvelem Vinaver, acentuado por Daniel Lemahieu em Viols[Violaes] (1978), em que toda relao com um espao eum tempo identificveis desaparece em benefcio nico dosfragmentos do dilogo para duas vozes de mulheres. Nessecaso, a simultaneidade mais formal, menos ancorada aindano espao e no tempo, e o texto se assemelha a um oratrio.

    Nesses dois exemplos o dilogo prevalece sobre todasas marcas espao-temporais; o texto em fragmentos atingelimites em que a enunciao privilegiada, o que torna otrabalho do leitor particularmente delicado por falta de

  • 132 LER O TEA TRO CONTEMPORNEO

    apoios concretos concernentes situao. preciso, ento,que ele aceite abandonar seu sistema habitual de observa-o, que desconsidere o que seria da ordem de uma situaotradicional e que se entregue aos fragmentos do dilogo. Es-se o preo para se encontrar a unidade profunda de textosem que as variaes do espao e do tempo so tantas e torepentinas que prefervel ficar na superfcie da fala, noponto em que o choque das rplicas fragmentrias produzsentido quando se aproximam umas das outras e podem sercompreendidas em sua continuidade.

    A grande liberdade dramatrgica que se instaurou nasrelaes com o tempo e o espao marcada por uma obses-so pelo presente, qualquer que seja a forma que assumamesses diferentes "presentes", e por uma desconstruo queembaralha as pistas da narrativa tradicional fundada na uni-dade e na continuidade. O "aqui e agora" do teatro se torna ocadinho em que o dramaturgo conjuga em todos os temposos fragmentos de uma realidade complexa, em que os perso-nagens, invadidos pela ubiqidade, viajam no espao, porintermdio do sonho ou ento, mais ainda, pelo trabalho damemria.

    Tudo se passa como se um teatro atual voltasse obstina-damente a hoje e como se todos os acontecimentos convoca-dos fossem revividos e julgados novamente luz do presen-te. Pode-se ver nisso o indcio de uma espcie de imperialis-mo da conscincia contempornea que ainda se alimenta deacontecimentos passados sob condio de aproveit-los semdemora, da impacincia de uma poca em que a percepodo instante teria primazia sobre o longo trabalho de recons-tituio precisa da Histria. Talvez tambm se deva buscarna influncia da psicanlise esta relao com um presenterevisitado pelo passado ou assombrado por ele. De qualquerforma, os acontecimentos colocados no teatro so incansa-velmente questionados, confrontados, ligados entre si e como

  • TEMAS E ESCRITA 133

    que movidos por uma agitao que transcende as incertezas.Na falta de um ponto de vista ideolgico seguro, a narrativase entrega dvida. A conscincia admitida como inteira-mente subjetiva quando a busca individual submetida svacilaes da memria. Ela recorre aos pontos de vista ml-tiplos e refrao prismtica para compreender um mundoinstvel, considerado entre a ordem e a desordem. A frag-mentao no uma palavra de ordem de cunho modernista,mas na maioria das vezes a expresso de um questiona-mento, at mesmo de uma angstia, sobre a verdade dos fa-tos e seus desdobramentos. Ao passo que Gatti mostrava oti-mismo ao falar das "possibilidades" desta ubiqidade narra-tiva, a desconstruo agiu jogando a responsabilidade para ocampo do leitor e submetendo-o, por sua vez, s incertezasdadecifrao.

  • III. Nos limites do dilogo

    UE o dilogo que representa o modo de expresso dram-tica por excelncia", escrevia HegeL Michel Corvin, em seuDictionnaire encyclopdique du thtre [Dicionrio enciclo-pdico do teatro], salienta que "o dilogo o sinal de reco-nhecimento mais imediato do teatro como gnero at o fimdos anos 60" e "(que ele) se mostra definitivamente quandoseus elementos constitutivos, as rplicas, no so mais atri-budos exclusivamente a personagens individualizados".

    Sem dvida foi na esfera do dilogo que o teatro mo-derno modificou com maior freqncia as regras tradicio-nais da fala e de sua circulao, ao ampliar o sistema de con-venes da enunciao, A troca de falas alternada entre vriospersonagens que simulam a comunicao de informaes di-rigidas, em ltima instncia, ao leitor e ao espectador, cha-mada "dupla enunciao" pelos lingistas e semiologos. Essesistema lindador da comunicao teatral dificilmente podeser modificado em seu princpio, o de uma fala procura dedestinatrio, para retomar a formulao de Anne Ubersfeld.No mximo, seria possvel modificar algumas de suas regras,enfraquecendo-as ou agravando-as. O verdadeiro dilogocontemporneo se faz cada vez mais diretamente entre o Autore o Espectador, por diversos procedimentos enunciativos, opersonagem enfraquecido mostrando ser um intermediriocada vez menos indispensvel entre um e outro.

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    136 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    Os dramaturgos considerados "do absurdo" fizeram dafala repisada, verborrgica, desregrada em sua necessidadee na segurana das informaes que transmite, uma das cha-ves de seu teatro. A fala circular, de utilidade duvidosa, em-baralha as trocas entre os personagens e lana, em direoao espectador, informaes incertas ou contraditrias. Aconveno do dilogo em que se falaria para dizer e cons-truir o enredo foi abalada, como vimos no roteiro de leitura.Ao passo que o classicismo fizera da preciso, da seguranae do carter completo das informaes dirigidas ao especta-dor uma das regras da escrita teatral, os dramaturgos do ab-surdo propuseram um embaralhamento geral que torna anecessidade do "dizer" cada vez mais problemtica.

    O enfraquecimento do personagem enunciador, sua des-multiplicao ou sua supresso pura e simples uma outramodificao notvel. A fala no mais necessariamenteenunciada por um personagem construdo, com identidadeobservvel. Ele ainda fala, mas nem sempre se sabe de ondeisso vem, por falta de referncias sociais, psicolgicas, ousimplesmente de identidade afixada.

    Nem sempre se sabe precisamente de onde vem a fala,ou quem fala, e tambm no se sabe a quem ela se dirige.Os entranamentos do dilogo modificam as leis da alter-nncia e fazem com que nem sempre se saiba com certeza aquem so destinados os discursos. Pode ser que o dilogose apresente sob a forma de um novelo no qual os assuntos seentremeiam para simular os caprichos da conversa e rompera tradio do "falso dilogo", brilhante em todas as suas pa-lavras espirituosas e regrado como uma partida de pingue-pongue.

    Enfim, a palavra mantm uma relao cada vez menosnecessria ou cada vez menos codificada com a situao e aao. Os personagens falam "ao lado" da situao, sem dar a

  • TEMAS E ESCRITA 137

    impresso de que esta levada em conta ou sem que ela sejaobservvel. Daniel Lemahieu escreve em "Prludes et figu-res" [Preldios e figuras], posfcio de Usinage:

    Oposio entre a situao em que se encontram imersoso personagem e seu discurso. Exemplo: a cama como lugarde debates polticos; a reunio de famlia como metfora deum tempo de trabalho.

    Esse descolamento do dilogo e da situao difcil deperceber, pois ele inova no que se refere a uma dramaturgiaem que o que falado inevitavelmente o reflexo do que interpretado. As relaes entre a palavra e a ao, contradi-trias ou divergentes, mostram a inquietao ou a estratgiade personagens que no correspondem fatalmente ao quedizem ou fazem.

    Todo um teatro construdo estritamente no terreno dafala, como se as verdadeiras implicaes estivessem nosdesafios e nas fragilidades de sua emergncia, como se afala fosse a nica coisa capaz de construir uma realidadeteatral que desconfia das convenes.

    3

    li

    11. Um teatro da conversao

    Um teatro da conversao um teatro em que as trocase as circulaes de palavras prevalecem sobre a fora e ointeresse das situaes, um teatro em que nada ou quasenada "agido", em que a fala, e somente ela, ao. Pode-se at acrescentar, considerando a palavra "conversao" aop da letra, que os enunciados intercambiados apresentamum interesse restrito, que as informaes que circulam porintermdio dessas palavras so antes andinas, ligeiras, su-perficiais e sem relao direta obrigatria com a situao.Tornada assim independente da situao, desconectada da

  • 138 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    r

    r-H3 ,

    urgncia de nomear ou de fazer progredir a situao, a falase manifesta por si mesma na situao, apenas expondo asimplicaes das trocas entre os personagens-enunciadoresquando ainda existem.

    Est muito longe do teatro dramtico convencional, emque se pede aos leitores que procurem a situao, e aos ato-res que a interpretem, para alm das falas, portanto, ou comose essas falas s encontrassem todos os seus sentidos emuma relao com a situao. O que s vezes no teatro cha-mado de "subtexto" comporta justamente os elementos dasituao que justificam a tomada de palavra dos persona-gens, se est convencionado que estes falam para agir, isto ,para influenciar a situao ou para faz-la progredir O que

    ! acontece quando a situao no mais perceptvel, ou quan-do ela se mostra to enfraquecida que o fato de observ-la(ela facilmente observvel, de tanto que insignificante ebanal) no faz mais nada progredir? Pode-se dizer que umadas tendncias do teatro contemporneo minar a situaoe, assim, fazer recuarem os limites do "dramtico". As tro-cas verbais acarretam, para os enunciadores, a adoo deposturas sucessivas, assim como tantas outras situaes fu-gidias independentes da situao geral.

    Em Faons de parler [Formas de falar], E. Goffmanndefine assim a conversao; "De acordo com a prtica dasociolingstica, "conversao1' ser utilizada aqui de manei-ra no rigorosa, como equivalente de palavra trocada, deencontro em que se fala. Ele a ope ao uso que se faz dela navida cotidiana, "fala que se manifesta quando um pequenonmero de participantes se rene e se instala no que sentemcomo [...] um momento de lazer vivenciado como um fimem si*' (p. 20). Ele acrescenta que "as rplicas tambm soencontradas, sob forma artstica, nos dilogos do teatro e dosromances, transmutao da conversao em um jogo crep-tante em que a posio de cada jogador restabelecida ou

  • TEMAS E ESCRITA 139

    modificada a cada vez que ele toma a palavra, o que constituio alvo principal da rplica seguinte,./1

    A ttulo de exemplo, aqui est uma "verdadeira conver-sao" gravada e transcrita:

    1. Comprei quinze merguez*2. Quinze mergitez, mas voc louca3. Ora oito para hoje noite trs para cada um de ns e duas

    para voc2. No voc sabe muito bem que eu s como uma1. No na verdade sempre fazemos duas para voc voc co-

    loca uma no seu prato e a outra voc come em pedacinhosna travessa

    2. No eu como s uma voc louca de sempre desperdiarassim

    3. Por que voc comprou tantas1. Ora essa voc foi comigo ao Mareei

    r

    3- E mas eu no estava prestando ateno temos que conge-l-las seno no vai adiantar nada ter comprado um conge-lador

    1. E mas est temperada se bem que Catherine congelou chou-rios antilhanos

    2, E mas ela os jogou fora mas verdade que Alain e Chris-tiane tambm os tinham congelado

    1. Ns dois juntos ento comemos cinco e voc uma o que dseis faremos ento sete devemos congelar oito s temosque congelar oito no papel alumnio comeremos o guisadode carneiro amanh e as comeremos na tera

    2. Se vocs vo com-las na tera no vale a pena congel-las3. Ento o que adianta ter comprado um congelador

    Esse "drama" das merguez se funda em uma troca con-versacional em que a situao insignificante (volta das

    * Pequena lingia apimentada, base de carne de vaca e de carneiro (LepeiiiRohert, 1995). (N. do T.)

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    ^ r f

    140 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    compras, preparo da refeio) mas em que as implicaestraduzidas pela fala so fortes, pois permitem entrever con-flitos, alianas, rancores, rituais, assim como uma experin-cia comum implicitamente transmitida (a recente compra deum congelador, a experincia dos outros personagens co-nhecidos).

    Pode-se comparar esse intercmbio que no pertence aor

    corpus dos textos de teatro a um fragmento de dilogo ex-trado de Lejour se leve, Lopold [Est amanhecendo, Lo-pold], de Serge Valletti (Bourgois, 1988):

    MEREDICK-Entre.SUZY (entrando) - Parece que ele est muito mal-humorado..-

    Lopold me disse.BASTIEN (a Suzy) - Ele tambm vir, est encarregado dos

    ovos, achamos que fosse ele.MEREDICK - Bom dia, Suzy!SUZY - Bom dia, Biquet*. Ela telefonou? Por causa do aspi-

    rador?MEREDICK - Sim, ele disse que desta vez era para comprar os

    sacos s no Frelon.SU2Y - Frelon me enche o saco, vou dizer isso!MEREDICK - Ela disse que no era para dizer.SUZY - Essa no! Se no dissermos nada, nunca teremos o

    que bom, teremos sempre o que ruim. Isso eu garanto!MEREDICK (mudando de assunto) - Ento, foi tudo bem?

    Lopold disse...SUZY - Mas s vezes certo. Eu no gostei da msica por

    causa das gravaes. Todas eram uma nulidade!MEREDICK - Voc danou?SUZY - MuitO pOUCO.MEREDICK - Pelo menos eles foram gentis com voc?SUZY- S faltava essa..-!

    * Literalmente, "cabrtinho"; usado como um termo afetuoso em relao acrianas. (N. doT.)

    &

  • TEMAS E ESCRITA 141

    BASTIEN (a Suzy) - Est lhe fazendo perguntas porque elesempre faz perguntas...

    MEREDICK (interrompendo-o) - Fica quieto, Pastille*! Eu tearrebento!

    SUZY - Eles esto brigando... Que idiotice! Mesmo assim preciso trocar os sacos do aspirador?

    Aqui tambm a situao insignificante e as implica-es da "conversao" tanto mais fortes quanto consider-vel o subentendido existente entre os personagens. Do pontode vista do enredo, a discusso acerca do aspirador no temnenhum interesse e nem traz nada de novo situao. Emcompensao, Suzy que comea a falar nesse assunto apa-rentemente "neutro" e que o retoma, enquanto Meredick sepreocupa com o que Suzy fez na noite anterior e a bombar-deia de perguntas. No entanto, Valletti desenvolve comoquer o assunto de carter domstico, conduzindo os leitorespor uma "falsa pista" narrativa que segue os meandros dodilogo. Tudo tratado da mesma maneira, e nesse momen-to do texto o leitor incapaz de discernir uma hierarquia dosassuntos. Desse modo, uma das questes tradicionalmente"dramticas" (Com quem Suzy danou na noite anterior,sem a presena de Meredick?) se perde em meio a assuntosmltiplos (o que Frelon disse a respeito dos sacos, o rancorde Meredick que recai sobre Frelon...).

    O teatro da conversao registra uma espcie de desgas-te das situaes dramticas que levam a um "dilogo debois"** quando o que falado repousa inteiramente no quedeve ser dito, comunicado ou feito. Quando no existe maisnenhuma distncia entre o dizer e o fazer, o dilogo torna-sefatalmente redundante. Isso evidente quando se assiste aimprovisaes medocres em que a palavra apenas nomeia e

    * Literalmente, ''comprimido, pastilha". (N. do T.)** Referncia a langue de bois. Ver nota p. 50. (N. do T.)

  • 142 LER O TEA TRO CONTEMPORNEO

    -

    repisa a situao por meio de clichs. Se a situao for umarefeio em famlia, o dilogo misturar "o que dito" nas re-feies em famlia, se a situao for em uma estao, o dilo-go ser um dilogo de estao e nunca se afastar disso. In-felizmente s vezes esse tambm o caso de alguns textos deteatro.

    Ao se interessarem tanto pela conversao, os sociolin-gistas e os lingistas ofereceram dramaturgia uma ferra-menta de anlise suplementar ligada observao do siste-ma de enunciao, vlida para qualquer pea de teatro fun-dada em uma troca de palavras. O que nos interessa aqui,alm das ferramentas emprestadas de Goffmann, Searle ouCatherine Kerbrat-Orecchioni, a existncia de uma drama-

    _jj, turgia amplamente fundada na prtica conversacional, que2 se poderia fazer remontar a Tchekov, com a devida distnciaIr artstica a ser observada, claro.

    Nem por isso esses dilogos so realistas. Paradoxal-mente, os dilogos que citam ou mimam a conversao rein-troduzem uma forte teatralidade. Nas obras do dramaturgoingls Harold Pinter, que damos como exemplo por ele fazerescola desde os anos 60, as trocas amortecidas de palavrasandinas so fotogrficas apenas aparentemente, pois dei-xam vastos espaos para que a interpretao se precipite nelas.Os enunciados so to insignificantes que preciso confiarem tudo que lhes permita aparecer e, portanto, nas implica-es no verbais. A situao, tambm bastante insignifican-te, s apresenta interesse na medida em que a fala introduznela defasagens nfimas que se revelaro explosivas. E oque ocorre em Lamant [O amante] (Gallimard, 1967 para atraduo francesa), nesta cena de fim de dia, na falsa banali-dade de um retorno do trabalho, da qual suprimimos as indi-caes cnicas iniciais:

    SARAH-Boa noite,RICHARD - Boa noite.

    I

  • TEMAS E ESCRITA 143

    (Ele a beija na bochecha, entrega-lhe o jornal da noite,pega o copo que ela lhe estende e se senta. Ela se senta nova-mente no sof, com o jornal.)

    Obrigado.

    (Ele bebe um gole, apia-se no encosto e d um suspirode bem-estar.)

    ah!SARAH - Cansado?RICHARD - Um pouquinho.SARAH - Engarrafamentos?RICHARD - No, o trnsito no estava nem um pouco ruim.SARAH - Ah, bom.RICHARD - O fluxo estava regular.

    (Um silncio.)SARAH - Tive a impresso de que voc estava um pouco atra-

    sado.RICHARD - Voc acha?SARAH - Um pouquinho.RICHARD - Havia um congestionamento na ponte.

    O que veiculado pelo dilogo no ter estritamentenenhum interesse se no for retransmitido pela interpreta-o (e aqui essencialmente pelo ritmo). Richard est objeti-vamente atrasado? Por que est cansado? Por que Sarahaborda a questo do atraso indiretamente (a questo dos en-garrafamentos)? So muitas as pistas de leitura que a inter-pretao deve abrir ou sugerir mas que no so verbalizadasde maneira evidente pelos personagens, No h nada a assi-nalar sobre a atitude do casal do ponto de vista dessa con-versa rasa demais, a no ser o indcio de nfimas fendas pe-las quais o sentido pode se precipitar. Um pouco de sentido,pois a sobre interpretao de um dilogo to insignificantepode tra-lo ao lhe dar demasiada importncia dramtica echaves demais ao espectador.

  • 144 LER O TEA TRO CONTEMPORNEO

    Da mesma forma, o dilogo lacnico ganha novo im-pulso quando a identidade dos personagens misteriosa e asituao inabitual. Em Transat [Transatlntico/Espregui-adeira], de Madeleine Lak (Thtre Ouvert/Enjeux; 1983),Madame Sarah "aluga" uma criana por algum tempo. Natemporada de estria, um ator adulto, Andr Marcon, foi res-ponsvel pelo personagem. Os no-ditos do dilogo do umcheiro estranho a todo a troca conversacional, sendo que abanalidade aparente das palavras trocadas se apoia no car-ter ambguo da situao:

    TOMMY - Eu falei enquanto dormia?/ SARAH - No, no! Voc no disse nada; pelo contrrio, esta-is va muito calmo, estava dormindo profundamente.- TOMMY - Eu estava realmente com os punhos cerrados?** SARAH - No, na verdade no... E uma maneira de falar, uma'y

    f expresso consagrada.i TOMMY - E... voc se debruou sobre mim enquanto eu dor-,: mia?P SARAH - No, no me debrucei sobre voc.

    TOMMY-Ah, bom!SARAH - Por qu?

    Toda anlise do dilogo deve levar em conta a relaodialtica que se instaura entre o personagem e sua fala. Em-bora na verdade este no preexista ao que fala, as interpreta-es de identidade e os desvios entre a fala esperada (a quedeveria convir situao) e a fala efetivamente proferidado a alguns dilogos atuais uma cor estranha. A ''conversa-o" subsiste como fio condutor, mesmo que no constituaseu ncleo.

    l* Referncia frase anterior em francs Dormir a poings ferms - literal- .

    mente "Dormir com punhos fechados", mas uma expresso que significa "Dor- \mir profundamente". (N. doT.) |

  • TEMAS E ESCRITA 145

    2, Entranamento e entrelaamento do dilogo

    A verdadeira conversao tambm se caracteriza pelocarter aleatrio do encadeamento das rplicas e por umencavalamento dos assuntos que obedece apenas ao desejodas pessoas que falam. Os lingistas identificaram regras daconversao que os participantes seguem com maior ou me-nor conscincia para que a fala possa se produzir e se desen-volver. Os desvios em relao a essas regras nas tomadas depalavra fazem sentido tanto na conversao quanto nos di-logos que elas inspiram. Alguns dramaturgos se interessamh muito tempo por uma "fala em fragmentos" cuja distri-buio em rplicas obedece menos necessidade de cons-truir um discurso do que de compreender o movimento dafala, seus fluxos e refluxos, suas hesitaes, seus fracassos esuas obsesses. Esse processo de escrita no repousa nointeresse ou na clareza dos enunciados mas nos rituais so-ciais, nas relaes de fora e nos movimentos da conscin-cia que constrem a enunciao.

    Esses textos s vezes resistem leitura a ponto de con-ferirem a seus autores a reputao de difceis ou obscuros.Mas o encavalamento aparente das rplicas, cuidadosamen-te organizado, em geral se esclarece por ocasio da passa-gem acena, j que o interesse se desloca do que dito para oque leva o personagem a tomar a palavra. Trata-se efetiva-mente de reconstruir na encenao ou na leitura do texto deteatro todo o aparelho extraiingstico que acompanha odiscurso; ele que faz sentido, e no, como nos sugere a tra-dio, o discurso propriamente dito.

    Essa impresso de obscuridade agravada por uma al-ta dose de subentendido que existe entre os personagens;como em uma conversa verdadeira, o autor os faz dizerapenas o necessrio para a troca de informaes entre eles.No respeita uma conveno habitual do dilogo segundo a

  • 146 LER O TEA TRO CONTEMPORNEO

    qual, no processo de comunicao teatral, todas as infor-maes so destinadas, antes de tudo, ao leitor ou ao espec-tador, com o inconveniente de que, como em algumas cenasde prtase clssicas, eles repetem longamente uns para osoutros tudo o que j sabem, inclusive suas identidades e bio-grafias, em benefcio unicamente do espectador que est defora.

    Anne Ubersfeld fala disso como "dilogo esburacado",em todo caso, mais esburacado do que o intercmbio teatralcomum, Essa escrita investe em proteger o subentendido quepreside as trocas entre os personagens organizando umaquantidade suficiente de informaes ou referncias para queo espectador no seja excludo definitivamente delas.

    F

    E o que ocorre no incio da parte intitulada "A aberturado pacote postal de tmaras" que abre Nina, c 'est aatre chose(UArche, 1978), de Michel Vinaver, em que vrios assuntosde preocupao dos dois personagens esto encavalados demaneira - contudo - lgica, desde que se esteja sensvel aossubentendidos que comandam as tomadas de palavras:

    SBASTIEN - Querem que eu passe a ser chefe de equipeCHARLBS - - Mas conteSBASTIEN - Contei dez vezesCHARLES - Como ela abriu suas pernasSBASTIEN - Foi ela que abriu as pernas delaCHARLES - , foi ela e alm disso no se recusa o avanoSBASTIEN - No gosto de comandarCHARLES - O lado para abrir esteSBASTIEN - Ela tinha pequenos sininhos pendurados nas pul-

    seiras no colarCHARLES - Tenho medo por Nina na nossa casa lugar o que

    no falta ela vai ficar muito pequenininha j que nochega a um metro e sessenta

    SBASTIEN - Na nossa casaCHARLES - Se eles esto propondo que voc passe a ser chefe

    de equipe porque o acham capaz de ser chefe de equipe

    I

  • TEMAS E ESCRITA 147

    SBASTIEN - Ela tinha um colar comprido que fazia vaivmna minha barriga

    CHARLES - O patro uma dessas noites vai segui-la e subir atseu quartinho ontem noite ela se regalou voc viu? Elaadora coelho ela repetiu duas vezes seria melhor ela semudar

    As implicaes da fala no so dadas de imediato, elasse esclarecem medida que o dilogo se desenvolve e ne-nhuma obscuridade gratuita entra nesse dilogo. Vrios as-suntos se encavalam logicamente nas conscincias: a aber-tura do pacote postal de tmaras; a recordao ertica dapessoa que os envia; para Sbastien, a urgncia de uma preo-cupao recente, passar ou no passar a ser chefe de equipe;para Charles, fazer Nina ir casa "deles". Nada explicita-mente desenvolvido em termos de informao macia jque o dilogo toma a forma de uma conversa em que os per-sonagens externos fala so perfeitamente conhecidos dossujeitos falantes,

    Vinaver definiu, em um texto publicado com o ttulo"Une criture du quotidien" [Uma escrita do cotidiano]{Ecrits sur le thtre, pp. 126 ss.), o que ele entendia por4'Entrelaamento" e como o sentido se construa progressi-

    vamente sem que nada fosse dado de imediato:

    O fluxo do cotidiano arrasta materiais descontnuos,disformes, indiferentes, sem causa nem efeito. O ato de es-crita no consiste em orden-los, mas em combin-los, talcomo so, brutos, por meio de cruzamentos encavaladosuns nos outros. o entrelaamento que permite aos mate-riais se separarem para se reencontrarem, que introduz in-tervalos e espaamentos. Pouco a pouco tudo comea apiscar.

    Aqui, a abertura do pacote postal de tmaras se cruzacom a abertura das pernas, a abertura da casa a uma pessoa

  • 148 LER O TEATRO CONTEMPORNEO

    de fora com a abertura novidade (Nina, um novo cargo); oantigo sonho ertico de Sbastien com a urgncia amorosade Charles. So vaivns do sentido que introduzem, secun-dariamente, a maioria dos temas que so desenvolvidos naprimeira parte e na totalidade da pea.

    O entrelaamento torna-se mais complexo quando ospersonagens so numerosos, quando as rplicas se cruzam equando o autor faz do subentendido a pea mestra de umjogo com o leitor em que o exposio do "assunto" motor dodilogo est no cerne da dramaturgia. o caso deste frag-mento de uma cena de Usinage, de Daniel Lemahieu, intitu-lada "La table de mariage (b)" [A mesa de casamento (b)]

    ,: (ThtreOuvert/Enjeux, 1984):wH I

    a; (Eles entram um por um.) *

    __

    o PAI - No consegui impedi-loA ME, - Voc tinha de atravessar sem olharA IRM - Mas ele olhou para atravessarA ME - No atrs dele para ver se alguma coisa o seguiaA TIA - Pior que havia um perseguidoro TIO - No piore as coisas no horao AMIGO - No tem ningum? Ningum que possa me ajudar

    a peg-lo? Ele est dando uns gritinhos de acreditar queainda esteja vivo

    o PAI - O que voc est esperando?A M - Quem? Eu? Estou enjoadao PAI - No estado em que ele est so necessrias duas pes-

    soas

    A IRM - So uns barbeiros s porque tm um carro ficamloucos

    A ME - Pra mijar na cabea dos outros, isso simo NOIVO - Ela ficou perto dele ela est chorando e ou outro

    no pra de gemer(A noiva entra segurando um cachorro ensangentado.)

  • TEMAS E ESCRITA 149

    w

    I

    Essa seqncia dialogada funciona a partir de um duploquestionamento do leitor. O acontecimento principal (o aci-dente com o cachorro) no anunciado de forma precisa notexto. Ele permanece impreciso por muito tempo. Trata-seprovavelmente de um acidente, como indica o lugar-comum"atravessar sem olhar1' em que interveio um carro (a alusoaos "barbeiros"). A impreciso sobre a identidade da vtimasubsiste por mais tempo ainda. Ela designada por prono-mes ou vocbulos indefinidos, por impessoais, a palavra''cachorro" nunca empregada. Lemahieu joga com as re-gras da comunicao teatral. Dado que os personagens co-nhecem a vtima, no sentem necessidade de design-la demaneira precisa na conversa. Suas intervenes verbais osreconduzem a suas prprias reaes, a suas eventuais rela-es com o acontecimento, nunca ao acontecimento em si.A didasclia fornece, enfim, a chave do enigma. A expecta-tiva e a ambigidade foram a jogar o jogo das hipteses. Aconfrontao entre uma conversa andina e um aconteci-mento sangrento faz aparecer uma espcie de mal-estar inte-ressante no plano dramtico, pertinente do ponto de vista daconstruo do sentido global. A noiva ou o noivo (que esta-va bbado e doente na seqncia anterior), ou mesmo outropersonagem, poderiam ter se acidentado. O melodrama ("aci-dente no dia de seu casamento'1) no ocorre, mas esboa-do, sugerido como uma possibilidade dramtica para, emseguida, ser mais bem esquivado. Todos os acidentes de sen-tido so possveis, portanto, no momento de vacuidade emque o leitor est entregue a conjeturas, como na confronta-o entre a imagem violenta e o dilogo andino, para umdrama banal que nunca conduz a uma crise de verdade.

    Trata-se sempre de um material esburacado que se ori-gina da conversa. Lemahieu enfatiza seus efeitos de sncopee de indeciso, "o deslocamento de rplicas que se ajustambem demais", como diz J.-R Sarrazac. Nem sempre se sabe

  • 150 LER O TEA TRO CONTEMPORNEO

    a que a rplica se refere, e na leitura tambm nem sempre sesabe a quem ela se dirige, Pode at, no momento em que proferida, ter apenas uma relao indireta com a situaoimediata, encerrando o personagem em um discurso que dconta sobretudo de suas emoes do instante e de suas estra-tgias pessoais.

    Experincias ainda mais radicais conduzem a escritasem que subsistem apenas retalhos de rplicas que se cru-zam, a um dilogo fragmentado cu