Romance Claudio
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franco more tt i
A cultura do romance
Traduo denise bottmann
Capa waltercio caldas
cosac naify, 2009
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cla ud io ma gr is
O romance concebvel sem o mundo moderno?
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Em uma pgina de dirio, Croce escreve que o autor de romances Moravia foi
encontr-lo naquele dia. A nota traz sua inconfundvel malcia, aquele humor fe-
rino, sagaz e penetrante, que talvez permanea o gnio maior e mais duradouro de
don
um rude rebaixamento de Moravia e uma limitao implcita de sua importncia
e de sua fama, como se o nome Moravia no fosse por si s bastante e houvesse
tratasse de um visitante annimo qualquer, para conferir-lhe uma identidade.
informao de passaporte, parece quase redutora, a indicao de uma atividadehonesta e respeitvel, ao menos pela boa vontade, mas no especialmente brilhante
e portanto situada em um nvel pouco elevado da vida do esprito; mais o exerccio
de uma funo prtica por certo dialeticamente til do que uma criao de poe-
sia, do que para Croce a poesia. Certamente, Croce gostou de alguns romances
e soube interpret-los, mas o romance permaneceu, fundamentalmente, estranho
sua esttica e sua crtica. No por acaso, pois o romance expresso daquela
modernidade radical, daquele mundo moderno que ele celebrava como progresso
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libertado de dogmatismos polticos e religiosos e assim por diante mas que a
sua natureza mais ntima impedia-lhe de compreender e compartilhar o modo deser e de sentir, as transformaes da sensibilidade e da prpria subjetividade em
sua relao com o mundo, a empoeirada, parodstica, por vezes degradada mas
aventurosa e radicalmente nova odisseia.
O romance nasce e cresce quando se desfaz a civilizao agrria e a ordem
feudal, espelho de estruturas perenes ou ao menos de longussima durao do
ser, que so e permanecem as categorias essenciais da fantasia e do gosto de Croce,
de seu modo de enxergar e viver o mundo e de acolher sua evoluo. No plano
poltico, Croce exalta a burguesia, que destruiu o classicismo agrrio e criou e
amou o romance, mas no plano esttico ele permanece completamente estranhoe insensvel moderna prosa do mundo que, como poderia ter-lhe ensinado
seu caro Hegel, constitui a premissa e essncia do romance. Croce soube viver e
com inteligncia desabusada contemporaneamente a poltica moderna, mas
no a cultura, a arte, a literatura, ou seja, a maneira pela qual os homens vivem a
vida e, em consequncia, tambm a poltica; um contemporneo aguerrido de
Pode-se imaginar o romance sem o mundo moderno? O romance o mundo
moderno; no apenas no poderia existir sem este, como a onda sem o mar, mas
o olhar e o contorno da boca so a expresso de um rosto. Decerto, o termo
romance remonta epoca medieval, e h os romances gregos, mas se poderia
embrionrias e com todas as caractersticas culturais, sociais e estilsticas de suas
pocas aquelas caractersticas de modernizao, para bem e para mal, e de
da pica, a ambivalente simbiose de crise epigonal e inovao tcnica, resduos
do universo pico remodelados e recompostos em novas estruturas, declnio deantigos valores e arrojada construo da realidade; mistura de estratgias narra-
tivas populares, seriale feuilletons que fascinaram o pblico antigo, como mais
tarde o burgus, polifnica contaminao de gneros e especialmente de regis-
iminncia de algum outro, e radicalmente diferente, que percebemos mas no
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O primeiro romance em sentido prprio o incomensurvel Dom Quixote, que,
olhos de Deus; a partir de seu modelo, sculos mais tarde, o romantismo inventaDom
Quixote o epos epos
deixar de aventurar-se pelas estradas esburacadas do mundo, como se este fosse
desiluso e com essa desencantada e paradoxal resistncia; a epopeia do desen-
canto e conserva e esbanja, ao menos no incio, na lcida descoberta e na narrao
do triunfo da prosa, o eco e a ressonncia da poesia e da epopeia.
O grande estilo pico, escreve Hegel, consiste no fato de a obra parecer cantar-
se sozinha e apresentar-se como autnoma, sem ter na fronte o nome do autor;Homero um, nenhum e muitos. O heri do epos e com ele o autor sente
originariamente potica do mundo, como Hegel a chama, na qual os valores,
as normas ticas, a unidade da vida no so sentidas pelo indivduo como algo
imposto exteriormente, mas como fundido e temperado em sua disposio de
esprito, que ignora qualquer ciso.
O sujeito se sente em harmoniosa e inocente unidade consigo mesmo e com
insubstituvel e transforma as descartveis bacias de barbeiro no elmo de Mam-
brino, como queria Dom Quixote, nico e irrepetvel.
Essa condio originariamente potica acaba, segundo Hegel, com a moderna
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divduo deve propender mesmo contra a sua individualidade, adequando-se ao
progresso social que exige a sua especializao ou seja, a restrio de seu desen-
volvimento pessoal, a renncia formao completa de sua personalidade em
Quando se instaura essa ciso, as determinaes universais que guiam a ao hu-
mana diz Hegel no fazem mais parte da alma do indivduo, mas se erguem
ante ele como uma coao estranha, como uma ordenao prosaica das coisas.
A abstrao e a natureza mecnica do trabalho parecem desautorizar o sujeito
e contrapor sua poesia do corao sua exigncia de viver uma vida verdadei-
ramente sua
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do mundo, a rede annima de relaes sociais, na qual se encontra apenas como
Hiprion, o heri do romance-poema de Hlderlin que sonha o renascimento daHlade, ou seja, o nascimento de uma nova civilizao total e harmoniosa, fala
de uma vida cortada pela raiz, do homem que era e deveria e dever voltar a
ser tudo e que, ao contrrio, nada.
O romance nasce do triunfo da prosa do mundo, que se pe e percebida e
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ra da sociedade e da relao entre os homens, suas vidas e da narrao de suas vidas;
como guinada metafsica da histria, de que a verdadeira metafsica um elemento
fundante. modernidade essencial, entre outras coisas, a ideia de domnio da his-
tria e da natureza, do projeto capaz de mudar-lhe e dirigir-lhe o curso. No importa
ir aumentar at se exasperar em nossos dias de uma mutabilidade vertiginosa de
tudo o que se mostrava ao menos em relao ao tempo histrico do homem como
eterno e imutvel. O prprio homem, pouco a pouco ou seja, suas paixes, suas
percepes, sua conscincia, sua lgica, seu ser , surgir mutvel em sua essncia,
e mutvel surgem, por conseguinte, os prprios cnones e ideais de poesia e beleza.
O romance o gnero literrio por excelncia dessa transformao universal, que
envolve e destri todo classicismo, todo Belo potico eterno, e no permite mais
crer que, sobre os modernos, brilhe ainda o mesmo sol de Homero. No difcil
entender por que no era um gnero literrio particularmente agradvel a Croce,
para quem a alternativa poesia/no poesia tinha um estatuto imutvel.
O romance o gnero literrio que representa o indivduo na prosa do mun-
do; o sujeito sente-se inicialmente estrangeiro na vida, cindido entre sua nostlgica
interioridade e uma realidade exterior indiferente e desvinculada. O romance
com frequncia a histria de um indivduo que busca um sentido que no h, a
odisseia de uma desiluso. Hegel, entretanto, acreditava e esperava que o romance
fosse a nova epopeia burguesa, mostrando como o sujeito, superada a exignciajuvenil da poesia do corao, inseria-se judiciosamente na concatenao do mun-
do, subordinando-se realidade prosaica das relaes sociais, que no princpio
conduzir, portanto, passando pelas forcas caudinas do desencanto e da depresso
Na histria da Roma republicana, episdio em que os romanos so subjugados sob duras]
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subjetiva, a um eplogo positivo, ao reconhecimento de uma totalidade social na
qual se integrar e aceitao consciente do duro preo a exautorao do indiv-
duo que o progresso histrico exige.A moderna epopeia burguesa, inspirada nesta f dialtica, ser de fato quase
inexistente; uma realizao sua por certo no muito importante poder ser
paradoxalmente, por exemplo, o romance realista-socialista ou stalinista, que re-
presentar a construo de um mundo pico, coletivo a revoluo, a sociedade
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divduos que se lhe submetem, mesmo sendo triturados.
Antes que epopeia moderna, como queria Hegel, o romance moderno ser
a antiepopeia do desencantamento, da vida fragmentria e desagregada. Talvez
apenas o romance setecentista, anterior Revoluo Francesa, revele um carter de
para a prpria aventura vital, emancipada de qualquer cdigo valorativo. O Tom
Jones de Fielding uma autntica epopeia burguesa, uma alegre correspondncia
entre um sujeito sem valores e um mundo sem valores, que se oferece inesgotavel-
Defoe em primeiro lugar Moll Flanders, a cortes indestrutvel constroem e
indiferena e permutabilidade de valores, usados e descartados como roupas.
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corrncia universal nasa uma liberdade maior.
A mo invisvel de Adam Smith, deusa do mundo moderno, governado pela
cincia triste da economia, rege portanto o ordenamento do universo romanesco
como os deuses do Olimpo e, acima deles, o destino regiam o universo da
garantidos. O mesmo Adam Smith, de resto, usa a metfora da mo invisvel
como demonstrou Giorgio Gilibert menos do que se acreditava (trs vezes) e
com uma f incontestvel em seu agir, mas menos incondicionalmente otimistado que se costuma supor.
De acordo com o diagnstico de Fichte, retomado e evocado genialmente por
Lukcs muito mais tarde, o romance surge como o gnero literrio de uma poca,
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trica e cruel de todos contra todos, da anarquia dos particulares desenraizados de
qualquer totalidade.
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sente a idade moderna como uma contraditoriedade inesperada e por esse senti-
mento culpado de uma contradio desacorde que nasce a maior arte moderna esobretudo o grande romance moderno. O sentimento de culpa, a pecaminosidade,
no diz respeito, moralmente, ao indivduo isolado, ao seu agir privado, pelo qual
subjetivamente responsvel, mas condio histrica geral, impossibilidade objetiva
de instaurar valores e de encontrar um sentido da vida, o caos e a angstia do mundo.
O indivduo experimenta o sentimento de viver em um mundo cado e o prprio sen-
se sentiro culpadas exatamente porque incapazes de remir sua condio de fraqueza
e de vaidade, porque incapazes de resistir ao mecanismo do mundo que as ameaa,
inadequadas fora criadora e ao mesmo tempo destrutiva da existncia.
A melancolia, a sensao oprimida de sentir-se vtima, vivida como culpa.
Esse sentimento de culpa no menospreza o progresso e suas conquistas, nem se
volta a idealizaes nostlgicas e falsas do antigo, mas reala o nexo estreitssimo
entre o progresso e a violncia das transformaes que o realizam, o perigo que
ameaa o indivduo, que corre o risco de ser destronado e tragado em um ano-
nimato indistinto.
A arte arroga-se a prpria anttese da prosa moderna e simultaneamente o
prprio enredamento desta ltima, a prpria estranheza vida e a impossibili-
dade de enraizar-se nesta, a prpria falta de atualidade epocal. O moderno surge
marcado pela falta de um cdigo tico e esttico, de um fundamento, de um valor
central e fundante que d sentido e unidade multiplicidade da vida, que parece
um acervo desconexo e desarticulado de objetos indiferentes. O romance nasce
dessa desconexo e a reproduz. Ele urbano e a grande cidade moderna, emble-
ma do moderno, logo aparece como alegoria da caducidade, de um tumultuoso
progresso, que transforma o mundo e constri realidades ciclpicas, mas tambm
e sobretudo acumula runas.
O romance com frequncia uma mistura de celebrao e crtica da moder-nidade; o que mais conta que, assim, esta ltima se torna sua respirao, a cir-
culao de seu sangue. O romance simultaneamente a cruel representao e a
manifestao do novo demnio do mundo moderno, o consumo. O romance o
gnero literrio burgus por excelncia e a burguesia criadora e protagonista do
mundo moderno e de seu nexo de produo e consumo; ela produz e consome
romances, em um ciclo e em um ritmo que torna difcil dizer como, de resto, em
toda atividade do homo oeconomicus se a demanda que condiciona a oferta ou
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vice-versa. A burguesia escreve Giuliano Baioni, vive diretamente a instabilidade
do moderno, aquela variabilidade da vida histrica destacada por Simmel.
O romance criatura e voz dessa instabilidade insere a literatura no me-canismo do consumo e da concorrncia, no mercado, realidade deliciosamente
Schlegel observa que o Belo e o objetivo do classicismo foram substitudos pelos
modernos interessante, novo e excntrico, que devem estimular com surpresas
portanto, necessitados de solicitaes e estmulos de intensidade crescentes, como
no uso de uma droga que reclama doses maiores e novas combinaes.
Inventor do romantismo, Schlegel teoriza a arte da vanguarda contemporanea-
mente, com suas experimentaes necessariamente cada vez mais radicais e a pro-
pense-se na contaminao do romntico promovida por Schlegel apropria-se
radicalmente do consumo, destino do moderno, e integra-se, em diversos nveis,
ao poeticamente grandioso.
Ele ainda se apropria do novo sentimento do tempo caracterstico do moder-
no, tornando-o sua estrutura profunda; a conscincia peculiar, nova em relao
tradio precedente, do efmero, da caducidade, do tempo entendido como
melancolia. O grande tema da moda presente emManon Lescaut, bem como
em tantas pginas de Goethe, para mencionar s alguns exemplos combina
seduo e caducidade, eros, artifcio e instabilidade tornados substncia do vivi-
do. Por esse caminho surgiro obras-primas da literatura romanesca e universal,
de O vermelho e o negro a Niels Lyhne, deA educao sentimentala Oblomov,
odisseias extraordinrias do indivduo moderno expatriado da transcendncia
e sujeito a um tempo que no chega a cumprir-se, a uma vida que um mero
dissipar da vida mesma.
O romance tambm impensvel sem a nova funo do dinheiro, que nascecom a ascenso da burguesia. O dinheiro se torna um protagonista da literatura,
especialmente narrativa; o grande romance ingls setecentista para dar um exem-
plo apenas articula sua aventura tambm levando em conta a nova qualidade do
a existncia, elimina fronteiras e ergue outras, rompe e forja grilhes. O dinheiro
parece escorrer como sangue nas veias, at confundir-se com a vida, com as pulses
do indivduo liberto da tradio e entregue ao mundo, que o eleva ou avilta.
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Em uma passagem do Fausto goethiano, Marx via uma das primeiras expres-
ses da nova natureza demonaca do dinheiro e uma das primeiras intuies da
essncia do capitalismo, no qual o dinheiro no se limita a oferecer bens, mastransforma a pessoa, torna-se um modo de ser e torna-se sobretudo instrumento
de uma permutabilidade universal, que pode converter uma coisa tambm afetos
e valores em outra qualquer. De Defoe a Goethe ou a Balzac, para citar apenas
alguns nomes, o dinheiro e os seus diversos, at opostos, empregos o consumo,
o investimento, a especulao so inseparveis do quadro de seduo e violncia
que a literatura com sentimentos e opinies diversos, de acordo com os autores,
as pocas e as situaes traa, narrando a vida, o encontro e o desencontro entre
o indivduo e a realidade.
A nova concepo do dinheiro indissolvel do gnero literrio por exce-
lncia que narra essa modernidade capitalista, o romance. Este ltimo se torna
inclusive um protagonista do mercado, com bestsellers (impensveis em pocas
precedentes) comoAs aventuras de Robinson Crusoou Os sofrimentos do jovem
Werther, mas, acima de tudo, assume e interioriza o mercado na prpria estrutura.
A literatura austraca constitui um caso parte. Nela, esse sentido do dinheiro
est quase ausente e a economia embora cultivada, com resultados excepcio-
nais, por grandes escolas de pensamento, da era teresiana ao sculo nunca
se torna uma Weltanschauung, uma viso de mundo, mas permanece apesar
arte de equilibrar os balanos, arte requintada a ser aprendida com rigor e ne-
cessria, mas para criar as premissas que tornam possvel a realizao de valores
que no pertencem economia. Na literatura austraca do sculo o dinheiro
exorcizado, gasto na taberna, recebido como aposentadoria, imobilizado na
propriedade agrria; nunca investido, nunca se torna uma substncia vital,
como para as personagens de Balzac ou para Fausto, com sua emancipatria e
devastadora atividade empresarial.
No por acaso que a literatura austraca oitocentista, grande em outros g-neros, quase no conhea o romance. A cultura austraca, que no sculo ,
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dade, permeadas pela f no progresso imanente histria, torna-se uma cultura de
em crise. A cultura austraca torna-se, ento, um posto avanado e um sismgrafo
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dir Karl Kraus , um laboratrio da interminvel anlise que decompe cada
unidade, a comear pelo prprio indivduo; um observatrio da incerteza, da in-
determinao, do caos probabilstico que marcam a civilizao contempornea.A literatura austraca ter ento grandes romances-antirromance; no afrescos
sociais, mas afrescos da desintegrao do tecido social e de toda unidade, inclusive
atentssima fenomenologia do moderno, tanto mais quanto menos aceita suas
pretenses globais; ningum entendeu como Karl Kraus, por exemplo, o poder
miditico e a transformao dos meios de informao, mas exatamente por isso
aquela civilizao relutava a crer que a leitura dos jornais pudesse substituir a prece
da manh, como queria Hegel, mesmo quando acabava de proferir aquelas preces ou
no mais soubesse a quem as enderear. Exatamente por isso, a cultura austraca foi
da realidade que com frequncia absolutiza a realidade presente, considerando-a
a nica imaginvel contraps-se, com Musil, o sentido da possibilidade, o pensa-
mento de que as coisas tambm poderiam muito bem ser de outro modo.
Mesmo esse romance radicalmente inovador e destruidor das estruturas narra-
tivas impensvel sem a transformao do real e mais ainda da subjetividade que
surge no mundo moderno; sem o processo de fragmentao e decomposio
que invadiu todos os campos e sobretudo o eu, tornado uma anarquia de tomos
(Nietzsche), um outro (Rimbaud), um homem sem qualidades (Musil), ou
um conjunto de qualidades sem o homem. Todo nosso ser, escreve Musil, no
passa de um delrio de muitos.
Na Teoria do romance obra-prima ensastica ainda fundamental para enten-
der o que ocorreu vida e narrativa da vida nos ltimos dois sculos , Lukcs
mostra como o romance move-se em um mundo no qual, diferena do universo
da pica, o sentido no mais dado, imanente s coisas, ainda que latente, masdeve ser construdo quando no se mostra a impossibilidade de constru-lo,
como ocorrer progressivamente. No frontispcio do romance moderno parece
estar, como epgrafe recapitulativa, aquela frase terrvel de Ibsen segundo a qual
pretender viver viver verdadeiramente para megalmanos. Naturalmente,
Ibsen queria dizer que tal megalomania, a busca da verdadeira vida, necessria,
mas que somente a conscincia do quanto ela seja temerria e difcil pode permitir
aproximar-se dessa vida verdadeira.
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O romance a peripcia dessa busca, a odisseia de sua desiluso ou chegada,
apesar de tudo, plenitude de sentido; nascido da desagregao da pica, ele
principalmente o grande romance oitocentista tambm reconstruo de umaqualidade dela, de uma totalidade de vida.
O romance-epopeia no nasce da prosa do mundo como queria Hegel, de
concebida em termos mtico-religiosos; ou seja, nasce de uma civilizao agrria
ou at pr-burguesa, pr-industrial. A pica moderna, ou seja, a arte capaz de
alcanar o todo unitrio da vida acima das cises, no se reconcilia com a prosa
social, mas a refuta e a transcende. O grande flego de Tolsti, que condensa a lei
do todo na mazurca de Natasha, est enraizado em uma totalidade natural, ou seja,
em uma sociedade e em uma ideologia que lhe correspondem.Na literatura americana, para dar um outro exempo, a totalidade pica no
expressa pelo novel, que se concentra na esfera social, mas pelo romance, afas-
tado da verossimilhana realista-social ou psicolgica e aberto viso intuitiva
e potica do mundo, como a pequena Pearl emA letra escarlate, de Hawthorne.
Epopeia no o romance burgus, mas o romance mtico-fantstico, livre dizia
Henry James da sujeio casualidade, vulgaridade e ao prosaico cotidiano
e insubordinado no apenas s determinaes sociais, mas tambm aos proble-
mas extremos e s coisas ltimas, s interrogaes sobre o destino, a culpa e a
liberdade.
Essa pica, ainda prxima da natureza e ainda no fagocitada pela segunda
natureza da tcnica e das relaes sociais, frequentemente incompleta, deixa o
telhado para o futuro como diz Melville porque tateia em busca de um sentido
ltimo para a vida; no o possui de incio, como o epos da tradio, mas o procura
rompendo todo limite social prosaico. Esse epos pode narrar, comoMoby Dick ou,
mais tarde, os livros de Faulkner, a aniquilao da vida, mas no a extino de seu
epos desenvolve-se contra o romance, s
margens ou fora da civilizao burguesa: na narrativa sul-americana, por exemplo,Grande serto: veredas, do brasileiro
Joo Guimares Rosa, epopeia de uma vida errante no serto que nunca perde, no
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das relaes de trabalho, tampouco a negao subversiva, irnico-vanguardista,
em um universal que une o mltiplo.
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O romance um paradoxo, uma lana de Aquiles que fere e cura; tecido
com as laceraes do moderno e simultaneamente abarca-o em uma nova
totalidade. De Hugo a Dickens, a Tolsti ou a Dostoivski o romance, nascidocomo fragmento da desagregao da pica, parece produzir aquela unidade e
totalidade de vida que o moderno, de quem ele provm como Eva da costela
de Ado, tende a despedaar; celebra ideais e narra paixes, debate grandes
questes sociais, mas tambm fornece informaes e notcias, um mapa de
fantasia e at de conhecimento. Ou ele exaspera a negatividade (categoria subs-
tancialmente criada pelo moderno), a dissociao entre o indivduo e a vida,
a sua incompatibilidade.
O romance do eu, desdeAnton Reiser, de Moritz, o romance da negao do
eu, de sua represso e de sua anulao: alguns dos maiores heris do romance
moderno ou melhor, daqueles que vivem e representam a crise da modernidade
com m maisculo, de seus projetos de domnio da terra e da Histria so, de
algum modo e de diferentes formas, de acordo com os perodos e os contextos
culturais, personagens sem mundo e sem histria, de Frdric Moreau a Oblomov,
de Niels Lyhne ao escrivo Bartleby, de Josef K. a Peter Kien. Grande mundo pico
e isolado fragmento inacessvel convivem por vezes no mesmo autor, como em
Melville, que escreveuMoby Dick mas tambm Bartleby, o escrivo.
Nada e ningum escrutou a fundo o abismo, o impasse, Cila e Carbdes sem
remisso do moderno como o romance; o riso de Zeno, que s pode provir
de um romance, a derradeira praia, tanto mais trgica quanto mais irnica e
elusiva, do niilismo ocidental. Sem este ltimo, o romance europeu ao menos
como o conhecemos no existiria; seu protagonista, sob tantas, to diferentes e
antitticas mscaras, o super-homem nietzschiano, o sujeito que se est trans-
formando em uma mutao antropolgica radical. Mas o super-homem, como
dizia o prprio Nietzsche, est intimamente associado ao homem do subsolo de
Dostoivski. Como Nietzsche, este ltimo efetivamente divisa em seu tempo e no
futuro um futuro que, em parte, ainda o para ns, mas, em parte, j nosso
a diferena que, para Nietzsche, como lembra Vittorio Strada, trata-se de uma
libertao a ser festejada e para Dostoivski, de uma doena a ser combatida. Em
Dostoivski, em Tolsti e em tantos outros grandes autores do romance (ainda
que no apenas do romance, obviamente, mas da literatura em geral) este ltimo
o cenrio do advento do niilismo, fato da modernidade; de seu triunfo, de sua
catstrofe e da resistncia a ele.
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Alm disso, no romance, a realidade moderna constitui a prpria estrutura
experimental, tentacular como ela:
No damos, portanto, especial importncia ao nome da cidade. Como toda metrpole,
era constituda de irregularidades, alternncias, precipitaes, intermitncias, choques
de coisas e de eventos e, de permeio, momentos de silncio abissal; de trilhos e de
terras virgens, de uma grande pulsao rtmica e do eterno desencontro e confuso
de todos os ritmos; e no conjunto assemelhava-se a uma bexiga pulsante posta em
um recipiente formado de casas, leis, regulamentos e tradies histricas.
Essa estrutura mltipla caracteriza tambm o protagonista de O homem sem qua-lidades, o grande romance interminvel da ilimitada realidade contempornea.
Em muitos romances de Berlin Alexanderplatzs obras de Dos Passos e tantos
outros exemplos a complexidade, a organizao, a desconexo e o caleidoscpio
da vida na metrpole tornam-se montagem e colagem narrativa, estilo e respiro da
narrao. Em Karl e o sculo vinte, Rudolf Brunngraber transforma em romance
O romance no s mimese do mundo moderno mas tambm se ps como
e
avanada que a literatura alcanou , escritores como Musil, Joyce, Proust, Sve-
vo, Mann, Broch, Faulkner e outros exigiram da narrativa um conhecimento do
elas, com sua especializao extrema que tornava cada uma inacessvel aos cultores
de todas as outras e mais ainda ao homem mdio, despedaaram todo sentido de
mostrando como os homens vivem o mundo desagregado, poderia e pode alcanaro sentido da realidade e de sua dissoluo, imitada mas tambm obtida e dominada
por intermdio das mesmas formas experimentais do narrar, da desagregao e
recriao das estruturas narrativas.
impossvel imaginar o romance sem o mundo moderno? uma pergunta
absurda, cuja resposta, absurdamente, corre o risco de distender-se em um pa-
norama e uma histria do romance moderno. Hoje, uma outra questo posta
em seu lugar, talvez com maior legitimidade e sobretudo com mais inquietao:
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o mundo moderno, a modernidade com m maisculo, acabou ou est acabando,
em uma guinada histrica de enormes dimenses, que s pode ser comparada ao
Por quase dois sculos, a mais alta literatura ocidental ps-se, nos confrontos
da histria, como o outro lado da lua, como a zona deixada sombra do devir e do
uma grande ausncia na vida e na histria, era a exigncia de algo irredutivelmente
outro, de um resgate messinico e revolucionrio, alis, negado por toda revoluo
historicamente ocorrida. Desde seu nascimento ou seja, desde o romantismo
, a literatura contempornea marcada pelo sen-
impedindo-o de realizar plenamente a prpria personalidade em acordo com aevoluo social e fazendo-o sentir a impossibilidade e a ausncia da vida verdadeira,
o exlio dos deuses e a fragmentao de sua prpria existncia. O progresso social,
absolutamente desprezado pela grande literatura inovadora, ao contrrio do que
ocorre com as nostalgias reacionrias de um romantismo amaneirado, evidenciava
ainda mais o mal-estar e a incerteza do nico.
O romance a literatura em geral foi essa voz do moderno, a sua poesia, o seu
nveis suplantou toda utopia e toda revoluo e, como previra Nietzsche, o prprio
homem est mudando radicalmente. uma mudana que acontece em perodos
muito curtos e no mais em milnios como no passado. Em um mundo onde a
onde a virtualidade substitui a suposta realidade, onde os imateriais bits como
so chamados substituem os tomos, o que pode fazer ou ser o romance?
Por enquanto, genericamente, parece que reluta em tomar conhecimento dessa
inverso e antes parece recuar em relao s grandes experimentaes narrativas do
no plano quantitativo, na absoluta ignorncia do mundo e de sua transformao, notranquilo desconhecimento da realidade; a maior parte dos romances assemelha-
se a aparelhos antiquados e obsoletos. Nesse sentido, o romance mdio cada vez
mais se assemelha tambm na ptina nobre de sentimentos perenemente huma-
nos ostentados e garantidos como se nada ocorresse queles gneros literrios
envelhecidos e antiquados que o grande romance moderno, ao irromper violen-
tamente em cena, havia varrido. Nesse recuo ou regresso h uma capitulao
potncia estril do existente enquanto tal, como escrevia Lukcs nas notas para o
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livro inacabado sobre Dostoivski, em cujas obras em sua opinio, no se trata
em absoluto de romances ele via e esperava o surgimento de um novo mundo
resgatado da iniquidade (de que o escritor russo teria sido o Homero e o Dante)e de um novo modo de narr-lo.
No lugar desse novo epos utpico, um sculo aps essa pgina de Lukcs, parece
triunfar um supermercado poltico-social, no qual os romances com frequncia
remakes da tradio so produtos secundrios, mas respeitados e vendveis.
Talvez o romance termine em uma autopardia involuntria. Mas esta, como dizia
Kipling, uma outra histria.
15 O romance concebvel sem o mundo moderno?
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