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1 RICARDO REIS Ricardo Reis é o poeta clássico, da serenidade epicurista, que aceita, com calma lucidez, a relatividade e a fugacidade de todas as coisas. "Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio", "Prefiro rosas, meu amor à pátria" ou "Segue o teu destino" são poemas que nos mostram que este discípulo de Caeiro aceita a antiga crença nos deuses, enquanto disciplinadora das nossas emoções e sentimentos, mas defende, sobretudo, a busca de uma felicidade relativa alcançada pela indiferença à perturbação (ataraxia). A filosofia de vida de Ricardo Reis é a de um epicurismo triste, pois defende o prazer do momento, o carpe diem, como caminho da felicidade, mas sem ceder aos impulsos dos instintos. Apesar deste prazer que procura e da felicidade que deseja alcançar, considera que nunca se consegue a ataraxia (a verdadeira calma, ou seja, a tranquilidade sem qualquer perturbação). Sente que tem de viver em conformidade com as leis do destino, indiferente à dor e ao desprazer, numa verdadeira ilusão da felicidade, conseguida pelo esforço estóico lúcido e disciplinado. Pessoa afirma que os próprios deuses "sobre quem pesa o fado" não têm a calma, a liberdade e a felicidade. Ricardo Reis recorre à ode e a uma ordenação estética marcadamente clássica. Pessoa escreveu: "pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental". A sua poesia intelectual faz a apologia da indiferença do homem diante do arbítrio e do poder dos deuses e faz renascer o objectivismo helénico reencarnando uma reexperimentação de pensamento e de estética que se distancia de Pessoa, mas que o configura. Em Ricardo Reis há a apatia face ao mistério da vida mas também se encontra o mundo de angústias que afecta Pessoa. Este heterónimo pessoano é um poeta contemplativo que procura a serenidade, livre de afectos e de tudo o que possa perturbar o seu espírito. É, também, um estóico, apesar de, aparentemente, resignado. Há, no seu pensamento, uma tensão, uma atitude de luta contra tudo o que lhe tire o desassossego. É uma atitude vital na busca do entendimento da felicidade e da liberdade a que tende o homem, obrigado a viver num meio social adverso. Caeiro propunha-nos o saber ver; a obra de Reis sugere-nos o saber contemplar, ou seja, ver intelectualmente a realidade: "Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo". Para Reis é necessário saber apreciar, muito consciente e tranquilamente, o prazer das coisas, sem qualquer esforço ou preocupação. É preciso viver a vida em conformidade com as leis do destino, indiferente à dor e ao desprazer: "Segue o teu destino. / Rega as tuas plantas. Ama as tuas rosas. / O resto é a sombra / De árvores alheias." Há na sua poesia, tal como há em Caeiro, a aurea mediocritas, a apologia do sossego do campo, o fascínio pela natureza, onde o eu poético busca uma felicidade relativa.

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RICARDO REIS Ricardo Reis é o poeta clássico, da serenidade epicurista, que aceita, com calma

lucidez, a relatividade e a fugacidade de todas as coisas. "Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio", "Prefiro rosas, meu amor à pátria" ou "Segue o teu destino" são poemas que nos mostram que este discípulo de Caeiro aceita a antiga crença nos deuses, enquanto disciplinadora das nossas emoções e sentimentos, mas defende, sobretudo, a busca de uma felicidade relativa alcançada pela indiferença à perturbação (ataraxia).

A filosofia de vida de Ricardo Reis é a de um epicurismo triste, pois defende o prazer do momento, o carpe diem, como caminho da felicidade, mas sem ceder aos impulsos dos instintos.

Apesar deste prazer que procura e da felicidade que deseja alcançar, considera que nunca se consegue a ataraxia (a verdadeira calma, ou seja, a tranquilidade sem qualquer perturbação). Sente que tem de viver em conformidade com as leis do destino, indiferente à dor e ao desprazer, numa verdadeira ilusão da felicidade, conseguida pelo esforço estóico lúcido e disciplinado. Pessoa afirma que os próprios deuses "sobre quem pesa o fado" não têm a calma, a liberdade e a felicidade.

Ricardo Reis recorre à ode e a uma ordenação estética marcadamente clássica. Pessoa escreveu: "pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental". A sua poesia intelectual faz a apologia da indiferença do homem diante do arbítrio e do poder dos deuses e faz renascer o objectivismo helénico reencarnando uma reexperimentação de pensamento e de estética que se distancia de Pessoa, mas que o configura. Em Ricardo Reis há a apatia face ao mistério da vida mas também se encontra o mundo de angústias que afecta Pessoa.

Este heterónimo pessoano é um poeta contemplativo que procura a serenidade, livre de afectos e de tudo o que possa perturbar o seu espírito. É, também, um estóico, apesar de, aparentemente, resignado. Há, no seu pensamento, uma tensão, uma atitude de luta contra tudo o que lhe tire o desassossego. É uma atitude vital na busca do entendimento da felicidade e da liberdade a que tende o homem, obrigado a viver num meio social adverso.

Caeiro propunha-nos o saber ver; a obra de Reis sugere-nos o saber contemplar, ou seja, ver intelectualmente a realidade: "Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo".

Para Reis é necessário saber apreciar, muito consciente e tranquilamente, o prazer das coisas, sem qualquer esforço ou preocupação. É preciso viver a vida em conformidade com as leis do destino, indiferente à dor e ao desprazer: "Segue o teu destino. / Rega as tuas plantas. Ama as tuas rosas. / O resto é a sombra / De árvores alheias."

Há na sua poesia, tal como há em Caeiro, a aurea mediocritas, a apologia do sossego do campo, o fascínio pela natureza, onde o eu poético busca uma felicidade relativa.

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O neopaganismo Reis cultiva a mitologia greco-latina e a crença nos deuses antigos. Considera que o

paganismo morreu, sendo substituído pelo cristianismo, o que impede a verdadeira visão intelectual da verdade que aquele representa. Segundo ele próprio, "a crença nos deuses é uma crença especial, que só quem verdadeiramente a tem, hoje, verdadeiramente a compreende". Para Reis, "a crença nos deuses é uma fé duma espécie inteiramente diferente da fé cristã.

Recebendo de Caeiro este ensinamento da reconstrução integral da essência do paganismo, Reis afirma uma crença nos deuses e nas presenças quase-divinas que habitam todas as coisas. No Prefácio a Odes, diz "nasci acreditando nos deuses, criei-me nessa crença, e, querendo eles, nessa crença morrerei. Sei o que é o sentimento pagão. Só me pesa não poder explicar realmente o quão absolutamente e incompreensivelmente diverso ele é de todos os nossos sentimentos. Mesmo a nossa calma, e o vago estoicismo que entre nós alguns têm, não são coisas que se parecem com a calma antiga e o estoicismo grego".

Ricardo Reis aceita o destino com naturalidade, considerando que os deuses estão acima do homem por uma questão de grau, mas que acima dos deuses, no sistema pagão, se encontra o Fado, que tudo submete:

Só esta liberdade nos concedem Os deuses: submetermo-nos Ao seu domínio por vontade nossa. Mais vale assim fazermos Porque só na ilusão da liberdade A liberdade existe. Nem outro jeito os deuses, sobre quem O eterno fado pesa, Usam para seu calmo e possuído Convencimento antigo De que é divina e livre a sua vida. Nós, imitando os deuses, Tão pouco livres como eles no Olimpo, Como quem pela areia Ergue castelos para encher os olhos, Ergamos nossa vida E os deuses saberão agradecer-nos O sermos tão como eles.

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Os deuses são uma metáfora do mundo. Indiferentes, mas omnipresentes, confundem-se connosco sempre que os imitamos. Não são senão homens mais perfeitos ou aperfeiçoados. "Só esta liberdade nos concedem / Os deuses: submetermo-nos / Ao seu domínio por vontade nossa".

Pagão por carácter, que resulta da acumulação de experiências e da sua formação helénica e latina, há, nos seus poemas, uma postura ética e um constante diálogo entre o passado e o presente, escrevendo odes inspiradas nas doutrinas epicuristas de Horácio (poeta latino, 65 a. C.-8 a. C.).

O Epicurismo e o estoicismo O epicurismo consiste na filosofia moral de Epicuro (341-270 a. C.), que defendia o

prazer como caminho da felicidade. Mas para que a satisfação dos desejos seja estável, sem desprazer ou dor, é necessário um estado de ataraxia, ou seja, de tranquilidade e sem qualquer perturbação. O poeta romano Horácio seguiu de perto este pensamento da defesa do prazer do momento, ao considerar o carpe diem como necessário à felicidade.

O estoicismo é uma corrente filosófica que considera ser possível encontrar a felicidade, desde que se viva em conformidade com as leis do destino que regem o mundo, permanecendo indiferente aos males e às paixões (não cedendo ao impulso dos instintos), que são perturbações da razão . O ideal ético é, pois, a apatia, que se define como ausência de paixão e permite a liberdade, mesmo sendo escravo.

Ricardo Reis propõe uma filosofia moral de acordo com estes princípios do Epicurismo à mistura com a filosofia estóica.

O núcleo da sabedoria epicurista consiste numa espécie de fatalismo, ou melhor, no aceitar o destino inelutável, desfrutando os prazeres e sofrendo a inevitável dor, pois nada é duradouro. Apesar de todo o sentido trágico do fatum (fado), cabe ao homem, viver a vida com a lucidez dos "grandes indiferentes". Não podemos nem devemos opor-nos ao destino, mas antes aceitá-lo com naturalidade, à semelhança da água que segue o curso do rio, sem lhe resistir. "Segue o teu destino", proclama Ricardo Reis. Cada um deve, pois, apenas buscar a calma e a tranquilidade, abstendo-se de todo o esforço e actividade inútil.

Em Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Fernando Pessoa afirma que a obra de Ricardo Reis apresenta um epicurismo triste, pois na vida, apesar do prazer e da felicidade que se deve buscar, nunca se encontra a calma e a tranquilidade. Diz ele que "devemos buscar dar-nos a ilusão da calma, da liberdade e da felicidade, coisas inatingíveis, porque, quanto à liberdade, os próprios deuses - sobre quem pesa o Fado - a não têm; quanto à felicidade, não a pode ter quem está exilado da sua fé e do meio onde a sua alma devia viver; e quanto à calma, quem vive na angústia complexa de hoje, quem vive sempre à espera da morte, dificilmente pode fingir-se calmo. A obra de Ricardo Reis, profundamente triste, é um esforço lúcido e disciplinado para obter uma calma qualquer".

Ricardo Reis é um poeta disciplinado, que procura o prazer nos limites do ser humano, face ao destino e à brevidade da vida. Daí fazer a apologia da indiferença solene

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diante do poder dos deuses e do destino inelutável. Considera que a verdadeira sabedoria de vida é viver de forma equilibrada e serena, "sem desassossegos grandes".

A apatia em Reis, ou indiferença céptica, é um acto de lucidez de quem sabe que tudo tem seu fim e de que tudo já está, fatalmente, traçado. Reis, muitas vezes, considera a inconsciência ou a distracção como a melhor forma de gozar o pouco que nos é dado. Aceita o fatum, de olhos atentos e, com calma lucidez, a relatividade e a fugacidade de todas as coisas. Procura ignorar tudo conscientemente, pensando apenas o momento, o gozo do instante. O sentimento do tempo leva-o a considerar o instante como a duração calculada da vivência, mas que flui continuamente. Note-se o que afirma no seguinte poema:

Pois que nada que dure, ou que, durando, Valha, neste confuso mundo obramos, E o mesmo útil para nós perdemos Connosco cedo, cedo, O prazer do momento anteponhamos A absurda cura do futuro, cuja Certeza única é o mal presente Com que o seu bem compramos. Amanhã não existe. Meu somente É o momento, eu só quem existe Neste instante, que pode o derradeiro Ser de quem finjo ser? Para Reis, só é real o presente e todo o futuro é uma incógnita; o que está para lá

dos limites do tempo é um mistério, "derradeiro". Há, nitidamente, uma consciência na fugacidade da vida e de tudo o que "neste mundo obramos". Daí a necessidade de antepor "O prazer do momento" às preocupações com o futuro.

Três conceitos a reter: - carpe diem (aproveitar a vida de cada dia) como caminho de felicidade; -ataraxia (buscar a felicidade com tranquilidade); - apatia (ausência da paixão, pois esta impede a liberdade, já que sobre ela apenas pesa o Fado).

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Classicismo (intelectual e erudito) São marcas do classicismo erudito de Reis não só o supra-referido recurso à

mitologia associados aos princípios da moral e da estética epicuristas e estóicas ou à tranquila resignação ao destino, como também, do ponto de vista formal, precisão verbal e um estilo rigoroso e denso, com preocupação de traduzir a ideia através de uma expressão perfeita. As estrofes apresentam-se regulares, com predominância dos versos decassílabos e hexassílabos. Nos seus versos, com frequentes construções eruditas e latinizantes, mediante o uso frequente do hipérbato, Reis recorre, frequentemente, ao gerúndio, ao imperativo e à subordinação. A nível estilístico, sobressaem nos seus poemas as metáforas, os eufemismos e as comparações.

Poeta clássico, da serenidade, Ricardo Reis privilegia a ode, o epigrama e a elegia. A sintaxe clássica latina, frequentemente com a inversão da ordem lógica, favorece o ritmo das suas ideias disciplinadas. É isso que observamos, por exemplo quando escreve:

Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive. A influência da Antiguidade Clássica faz-se sentir também, como vimos, ao nível da

filosofia de vida defendida por Ricardo Reis, que tem nos gregos o modelo da sabedoria, pois souberam aceitar o destino e fruir o bem da vida. Mas, apesar deste diálogo com a Antiguidade, há em Reis uma angústia ou tristeza marcadamente modernas, as mesmas que se reflectem no Pessoa ortónimo e em Campos.

Em suma, Reis é o heterónimo que projecta Pessoa para a Antiguidade da Grécia Clássica. À semelhança de Horácio, na Roma antiga, refugia-se na aparente felicidade pagã que lhe vela e esbate o desespero. Inteligente e disciplinado, Reis é clássico no estilo, no rigor e no estoicismo, na adopção do paganismo, na crença "real e verdadeira nos deuses da Grécia antiga", no exercício da razão, como escreve em Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação: "vi que tinha erguido uma teoria neoclássica, e que a ia desenvolvendo. Achei-a bela e calculei interessante se a desenvolvesse segundo princípios que não adopto nem aceito. Ocorreu-me a ideia de a tomar um neoclassicismo cientifico."