Ricardo Luiz Cruz
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Breve Histria de um Mercado Futuro
Ricardo Luiz Cruz
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.
Orientador: Federico Neiburg
Rio de Janeiro Fevereiro de 2005
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Breve Histria de um Mercado Futuro
Ricardo Luiz Cruz
Orientador: Federico Neiburg
Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.
Aprovada por:
____________________________ - Orientador Presidente Prof. Federico Neiburg
____________________________
Prof. Carlos Fausto
____________________________
Prof. Amir Geiger
Rio de Janeiro Fevereiro de 2005
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Cruz, Ricardo Luiz Breve Histria de um Mercado Futuro/ Ricardo Luiz Cruz. Rio de Janeiro: UFRJ/ Museu Nacional, 2005.
100 f. Orientador: Federico Neiburg Dissertao (mestrado) UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de
Ps-graduao em Antropologia Social, 2005. Referncias Bibliogrficas: f. 98-100
1. Mercados Financeiros 2. Etnografia. 3.Mercados Derivativos. I. Neiburg, Federico II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Ps-graduao em Antropologia Social III. Breve Histria de um Mercado Futuro
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Agradecimentos
Aos meus pais e irmo agradeo pelo apoio incondicional durante esses dois anos de
mestrado. A companhia de meus velhos amigos de So Paulo e dos novos do Rio ao longo
desse perodo fez as coisas ficarem ainda mais fceis. O programa de Ps-graduao em
Antropologia Social do Museu Nacional proporcionou um ambiente no qual meus
devaneios puderam florescer, a orientao do professor Federico Neiburg permitiu que
essas especulaes tomassem forma e com ele que compartilho os acertos dessa
dissertao. As deficincias aqui contidas so de minha total responsabilidade.
Agradeo tambm CAPES pela bolsa concedida durante os dois anos de mestrado.
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Resumo
Breve Histria de um Mercado Futuro
Ricardo Luiz Cruz
Orientador: Federico Neiburg
Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.
Esta dissertao busca fornecer algumas pistas para um melhor entendimento da eficcia social de um ideal chave na organizao da vida econmica contempornea: o ideal do mercado auto-regulado. Ao apresentar as prticas e agentes que sustentam as representaes em torno de um mercado organizado com base nesse ideal, o presente trabalho se insere numa tradio da antropologia preocupada em compreender a fora social das idias. O ideal em questo se realiza hoje de modo exemplar naqueles mercados financeiros conhecidos como mercados futuros ou derivativos, e so justamente esses mercados o objeto aqui enfocado.
Rio de Janeiro Fevereiro de 2005
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Abstract
Short History of a Future Market
Ricardo Luiz Cruz
Orientador: Federico Neiburg
Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.
This dissertation inteds to contribute with some clues for a better understand of the social efficacy of a key ideal in contemporary economic life: the ideal of the self-regulated market. At showing the practices and agents tha sustain the representations about a market organizaed by this ideal the present work makes it part of an anthropological tradition preoccupied with the understanding of the social force of ideas. The ideal here taken into consideration realizes itself nowadays in a cleary way in that finacial markets know as the derivatives or futures markets and this are the object of the present study. .
Rio de Janeiro Fevereiro de 2005
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Sumrio
Introduo ................................................................................. p. 8
Captulo I Breve histria dos mercados derivativos ................ p. 18
Captulo II As negociaes dos contratos e suas garantias ....... p. 47
Captulo III - Sobre a liquidao de um contrato futuro .............. p. 69
Concluso .................................................................................... p. 92
Sumrio ..... ............................................................................... p. 98
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Introduo
Esta dissertao busca fornecer algumas pistas para um melhor entendimento da
eficcia social de um ideal chave na organizao da vida econmica contempornea: o ideal
do mercado auto-regulado. Ao apresentar as prticas e agentes que sustentam as
representaes em torno de um mercado organizado com base nesse ideal, o presente
trabalho se insere numa tradio da antropologia preocupada em compreender a fora social
das idias1. O ideal em questo se realiza hoje de modo exemplar naqueles mercados
financeiros conhecidos como mercados futuros ou derivativos, e so justamente esses
mercados o objeto aqui enfocado.
Ao longo dos ltimos anos os jornais e outros meio de comunicao em massa
foram palcos de um debate pblico em torno daquilo que se convencionou chamar de
neoliberalismo. Um dos lados desse debate pautou sua retrica numa linguagem de fundo
econmico e basicamente defendeu a difuso de formas competitivas de socialidade como
caminho para o desenvolvimento. O outro lado se definiu contra esse suposto movimento
neoliberal e levantou a bandeira em torno das formas solidrias de socialidade.
Independentemente de termos simplificado aqui o debate, o que importa chamar
ateno para a dicotomia a presente: do lado liberal a busca dos interesses individuais
leva ao desenvolvimento coletivo e do lado anti-utilitarista a solidariedade que deve
organizar as trocas.
1 O trabalho de Bronislaw Malinowski (1984) sobre a crena nos espritos Baloma e aquele de Marcel Mauss
(2003) sobre a eficcia da magia certamente inauguram essa tradio.
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Desde pelo menos o Ensaio sobre a ddiva de Marcel Mauss a antropologia vem
tratando de maneira simtrica o intercmbio de bens. A considerao do carter hbrido de
toda transao (ou da presena de interesse e desinteresse em qualquer intercmbio), abre
uma nova chave discursiva no debate entre liberais e anti-utilitaristas. Afinal, a renda
mnima, o teto salarial e o preo justo so questes de moral ou economia? Do ponto de
vista antropolgico a anlise deve considerar a construo da confiana em torno desses
valores ou aquilo que Appadurai (1986) chamou de polticas do valor. O que equivale
dizer que o debate em questo poltico, isto , moral, econmico, esttico, cientfico,
religioso e tudo mais que os sujeitos lanam mo para persuadir sua audincia. O domnio
de uma esfera sobre as demais uma construo social que deve ser explicada como tal
(Neiburg, 2004).
O modelo de competio perfeita (BM&F, 2004 p. 10) a tnica dos discursos
dos organizadores dos mercados derivativos sobre como estes devem funcionar. O que est
em jogo nesse modelo a transparncia (idem) das negociaes e a conduo das
mesmas de modo que nenhum dos participantes poder influenciar o preo a seu favor
(idem). No plano discursivo isso significa que diante dessas condies possvel uma
formao de preos o mais justa possvel (idem). Nesse sentido, a presente dissertao
procura investigar de perto essas condies que garantem a formao desses preos justos
aos olhos dos participantes desses mercados. Fazem parte dessas condies os agentes
autorizados, tecnologias, ambientes e prticas que isolam as relaes de compra e venda de
outras relaes sociais identificadas com o monoplio e a falta de transparncia.
Derivativo basicamente um contrato financeiro cujo preo deriva de um outro
preo ligado a um objeto ou ativo. Esse preo de referncia pode ser o preo de um taxa
de juros, de uma taxa de cmbio, da arroba da carne bovina, da saca de caf, de um
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conjunto de aes na forma de um ndice ou quaisquer instrumentos financeiros aceito para
ser negociado. No contexto econmico brasileiro atual (de baixa inflao e elevada taxa
bsica de juros), onde grande parte das instituies financeiras detm ttulos pblicos e
privados corrigidos por taxas de juros, o mercado derivativo de taxas de juros da bolsa de
futuros brasileira (Bolsa de Mercadorias & futuros - BM&F) vem sendo usado por essas
instituies para transferir os riscos da variao futura dessas taxas para aqueles agentes
financeiros interessados em especular com essa variao. No primeiro dia de julho de 2004,
por exemplo, o mercado de taxas de juros da BM&F movimentou aproximadamente 60
bilhes de reais, algo em torno de trs quartos do volume total de negcios registrados pela
bolsa nesse dia.
A relao da bolsa com o poder pblico brasileiro realizada atravs do Banco
Central e da Comisso de Valores Mobilirios (CVM). Enquanto uma regulao
distncia, nas prprias palavras da BM&F (BM&F, 2004 p. 12), essa relao
extensamente detalhada na Instruo 283/98 (CVM). Nela a bolsa de futuros definida
como uma entidade auto-reguladora responsvel por prever em seu regulamento os
mtodos que utiliza para prevenir e corrigir situaes que coloquem em risco o
funcionamento regular e ordenado do mercado sob sua gesto, bem como controles internos
que permitam a imediata verificao do cumprimento de suas determinaes (art 2o). A
bolsa se relaciona com as negociaes transcorridas em suas dependncias tambm atravs
do princpio de no interferir no andamento das mesmas. Cabe bolsa apenas oferecer
uma infra-estrutura (espao de prego) adequada para que o mercado acontea (BM&F
2004, p. 10), sem participar diretamente (idem) das relaes de compra e venda nesse
mercado. Atravs dessa infra-estrutura qualquer participante do mercado teria acesso s
informaes dos negcios que l ocorrem (como num leilo), dessa maneira, a formao
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dos preos seria a mais justa possvel (idem) na medida em que a oferta e a procura se
relacionam sem qualquer mediao (elas se encontram), no havendo nenhuma
possibilidade de distoro de preos (idem).
A cmara de registro, compensao e liquidao (o departamento da BM&F
responsvel pela garantia do cumprimento dos contratos) se coloca como contraparte em
todas as negociaes da bolsa, mas de maneira alguma essa cmara pretende participar da
formao dos preos. Compete a ela apenas o gerenciamento de risco de todos os
participantes dos mercados, pois para negociarem o risco das variaes futuras nos preos
os investidores tm que ter certeza de que os preos esperados negociados no variem aps
a negociao. O clculo das margens de garantia que cada investidor deve prover e a
liquidao de todos os contratos (nas condies e no prazo estabelecidos) so as
atividades que fazem parte desse gerenciamento de risco. Para realizar essas atividades a
bolsa pode se associar com outras instituies. Por exemplo, a liquidao financeira nos
contratos derivativos agropecurios feita atravs dos convnios da BM&F com a Escola
Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (para os contratos de boi gordo, acar e soja) e
com a Fundao Getlio Vargas (para os contratos de milho). Essas instituies so
encarregadas de produzir indicadores de preo dos mercados vista dessas commodities
agropecurias, os quais so usados para referenciar a liquidao financeira dos contratos
agropecurios2.
Como anotou Karl Polanyi (2000 p. 92), um mercado auto-regulvel exige, no
mnimo, a separao institucional da sociedade em esferas econmica e polticas. Em
segundo lugar, como tambm colocou Polanyi, um mercado auto-regulvel antes que
2 O contrato tambm pode ser liquidado atravs da entrega da mercadoria (bastando os interessados
informarem a bolsa antes do vencimento dos contratos, caso contrrio os contratos sero automaticamente liquidados com base nos indicadores).
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mais nada uma construo do que uma descrio feita com base na teoria econmica. Na
BM&F, o modelo de competio perfeita no realizado apenas atravs da infra-estrutura
(material e normativa) usada pela bolsa na construo do prego:
Atualmente o papel das bolsas no se restringe apenas a oferecer infra-estrutura s negociaes, mas tambm em desenvolver mercados. A BM&F, por exemplo, conta com duas equipes tcnicas, uma voltada para os mercados agropecurios e outra para os mercados financeiros, que congregam diversas categorias de profissionais empenhados no estudo do funcionamento dos mercados, renovando os contratos j existentes e lanando novos produtos que possam ampliar a eficincia econmica desses mercados. As bolsas, dentro de seu papel institucional devem alcanar dois objetivos: funcionar como um centro de liquidez de negcios e ao mesmo tempo um centro de formao justa de preos.(BM&F, 2004 p. 11)
Essa renovao ou padronizao (como tambm conhecida) dos contratos a
mediao entre a liquidez dos negcios e a formao justa de preos. A facilidade de
transferncia de um contrato (ou sua liquidez) abre espao para uma situao em que h
muitos compradores e vendedores, pois desta forma todos os participantes sero tomadores
de preo, ou seja, nenhum deles poder influenciar o preo a seu favor.(idem p. 10)
Quanto melhor padronizado um contrato, maior o nmero de agentes capazes de se
interessar por esse contrato e maior a liquidez de seu mercado. Um contrato mal
padronizado afasta os investidores de seu mercado, mesmo que estes investidores tenham
todo o interesse em negociar o preo futuro do ativo do qual o contrato deriva. Segundo um
especialista em mercados derivativos, padronizam-se os contratos para que eles se
assemelhem a uma moeda: intercambiveis, de alta liquidez (grande facilidade de serem
transferidos para outras pessoas) e, em decorrncia disto, aplicveis a um grande nmero de
indivduos (Neto, 1995 p. 61).
As prticas e as representaes em torno da padronizao do contrato futuro de boi
gordo da BM&F constituem a breve histria de um mercado futuro da qual trata essa
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dissertao. Boi gordo o animal (criado em fazenda) pronto para o abate (em um
frigorfico). O boi aparecia aos investidores como uma das poucas opes de investimento
atraente no cenrio econmico brasileiro durante os sucessivos planos econmicos. Os
baixos custos de manuteno dos animais nos pastos, se comparados com os custos de
manuteno da carne congelada, resultavam na estocagem desses animais nas fazendas.
Com isso, o mercado futuro de boi gordo poderia interessar aos detentores desses animais,
na medida em que disponibilizava a esses investidores instrumentos (na forma de contratos)
capazes de transferirem os riscos da variao futura nos preos desses seus ativos (os
bois).
Por outro lado, os especuladores (fundamentais para o funcionamento dos
mercados derivativos, j que so para eles que os riscos de variao futura dos preos so
transferidos) se mantinham afastados desse mercado futuro dado possibilidade de no
conseguirem se livrar dos contratos antes do vencimento destes. No caso dos investidores
interessados em especular com o contrato futuro de boi gordo, seus clculos esto
vinculados liquidao por reverso da posio e no liquidao por entrega. No
primeiro caso, a liquidao pode ser feita a qualquer momento entre o incio da operao de
compra ou venda de contratos e o vencimento destes, bastando o investidor comunicar ao
seu corretor a inteno de compra (para quem estiver vendido) ou de venda (para quem
estiver comprado) de contratos para o mesmo vencimento3. Caso sejam feitos negcios, a
liquidao efetuada pelo correspondente nmero de contratos revertidos. No caso de
comprar ou vender todos os contrato necessrios, a posio totalmente liquidada e
cessam as obrigaes do interessado com a bolsa. Mas num mercado que no apresenta
liquidez, isto , onde difcil comprar ou vender os contratos, um investidor pode no
3 Quem vende contratos est numa posio vendida e quem os compra est numa posio comprada.
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conseguir se desfazer desses contratos at o vencimento. Se a nica opo de liquidao
desse contrato no vencimento por entrega da mercadoria, ento o investidor ter que
proceder dessa maneira. Tendo isso em vista, a soluo encontrada para atrair os
investidores interessados nos contratos futuros de boi gordo foi introduzir a liquidao
financeira. Mas o problema dessa forma de liquidao que ela precisa de um ndice de
preos do mercado a vista desse animal como referncia.
Em dezembro de 1993, a BM&F formalizou um convnio com a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ) [ligada Universidade de So Paulo] para a elaborao de um indicador de preos dirios tanto de boi como de bezerro. Aps trs meses de estudos e montagem de metodologia, o indicador de preos de boi gordo passou a ser divulgado diariamente para a imprensa e para o mercado. Agora, depois de nove meses de divulgao e alguns ajustes, a cmara do boi gordo e a rea tcnica da BM&F decidiram elaborar um novo contrato futuro, onde a liquidao no vencimento hbrida, ou seja, pode ser por entrega fsica do boi ou por liquidao financeira pela mdia dos ltimos cinco dias do indicador de preos. Mas s haver entrega fsica se for vontade de ambas as partes. Se uma delas no quiser receber, a BM&F liquidar as posies pelo indicador de preos. Com isso, a BM&F espera atrair para este mercado investidores comuns e institucionais que, hoje, esto afastados, pois temem sofrer um corner na poca do vencimento. (Resenha BM&F, 1994 p.48).
O corner uma situao na qual um investidor que no conseguiu se desfazer do
contrato antes do vencimento (devido baixa liquidez do mercado) obrigado a entregar o
produto para um outro investidor que estrategicamente monopolizou o produto. O
investidor, obrigado a entregar o produto, deve pagar o preo que o outro investidor pedir
por ele para cumprir com suas obrigaes. Mas se eliminar a entrega do animal do
horizonte dos investidores implica na adoo de um indicador de preos, preciso que os
participantes desse mercado aceitem esse indicador. Nesse sentido, um consenso desses
participantes em torno da validade desse indicador garante a realizao do ideal do mercado
perfeito.
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A literatura antropolgica e sociolgica sobre os mercados financeiros recente e
ainda relativamente pouco sedimentada para se formular a partir dela problemas especficos
de investigao4. Nesse sentido, a questo inicial de a pesquisa era bastante genrica: tratar
esses mercados enquanto fatos sociais. A sada encontrada para entrar nesse mundo social
foi comear por me matricular num curso para profissionais que trabalham nos mercados
financeiros, j que dificilmente alguma firma de investimentos se interessaria em contratar
um bacharel em cincias sociais5. Mas os mercados financeiros so muitos, e os cursos
disponveis sempre especficos. O Curso de Formao de Profissionais em Mercados
Derivativos da Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) acabou sendo aquele escolhido
para minha aproximao ao mundo das finanas.
O propsito do curso era apresentar aos alunos o funcionamento dos mercados
derivativos, a formao dos preos nesses mercados e as estratgias bsicas de negociao
com seus contratos (uma segunda etapa do curso, da qual no participei, trataria das
estratgias avanadas de negociao). Assim sendo, diariamente em aulas de quatro
horas, durante quase trs meses, fomos introduzidos s prticas usuais de um operador de
mercados derivativos, s prticas usuais de organizao desses mercados e a um modelo de
4 Em junho de 2000 fundada, em Paris, a Associao de Estudos Sociais das Finanas. Em novembro
desse mesmo ano realizado em Bielefeld (Alemanha) um encontro intitulado The Culture(s) of Financial Markets. A partir de 2001 uma sesso em torno dos Estudos Sociais das Finanas vai fazer parte das reunies anuais da Sociedade para o Estudo Social das Cincias e Tecnologias. Uma conferncia em torno dos estudos sociais das finanas acontece em maio e 2002 e em maio de 2003 acontece de novo em Bilefeld uma reunio em torno desse tema. Em outubro de 2004 lanada uma coletnea intitulada The Sociology of Financial Markets (organizada por Karin Knorr Cetina e Alex Preda), na qual esto reunidos os trabalhos de alguns dos participantes desses diversos encontros ocorridos nos anos anteriores. 5 Um trabalho de campo nessas firmas era invivel, pois estas possuem contratos nos quais suas operaes
nos mercados financeiros no podem ser divulgadas para terceiros na medida em que lidam com informaes caras a seus respectivos clientes.
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formao de preos que orientava ambas as prticas. Mas a realizao desse modelo no
qual apenas a relao entre uma oferta e uma demanda regule o preo s possvel atravs
do trabalho dos organizadores desses mercados em recortar essa relao de outras relaes
com as quais forma uma totalidade. Esse trabalho define qual relao de negociao os
participantes dos mercados devem levar em conta quando forem calcular suas estratgias
de negociao. A certeza quanto relao envolta na formao de preos permite que
estes fechem ou terminem seus clculos. A partir disso foi possvel a formulao de um
problema de investigao que permitisse examinar com um foco especfico a perspectiva
geral de tratar os mercados derivativos como fato social. O objeto de estudo a breve
histria do mercado futuro de boi gordo - apareceu durante uma aula sobre mercados
derivativos agropecurios6.
A dimenso emprica da pesquisa comeou com uma visita a uma corretora de
valores, na qual foi possvel realizar uma entrevista com o responsvel por essa empresa.
Este, um ex-presidente do Banco Central do Brasil, nos forneceu uma viso acurada da
dinmica dos mercados financeiros, crucial para nossa mobilidade nesse meio. Diversas
visitas foram feitas Bolsa de Mercadorias e Futuros no centro de So Paulo e ao centro de
pesquisas responsvel pelo indicador de preo do boi gordo. Trechos das entrevistas
conduzidas com os pesquisadores desse centro esto transcritas nessa dissertao.
O primeiro captulo dessa dissertao reconstri brevemente a histria dos mercados
derivativos. Atravs dessa reconstruo possvel perceber que esse modelo do mercado
auto-regulvel s aparece num momento posterior dessa histria e, para acompanhar esse
processo de perto, analiso as mudanas de significado em torno da liquidao dos contratos
6 Nesta aula ficou evidente a relao mutuamente constitutiva entre um mercado futuro e um instituto de
pesquisas. Foi essa relao que atraiu minha ateno. Para uma reflexo em torno da relao entre economistas e economia ver Bourdieu (1997).
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negociados, mudanas essas que refletem a reorganizao destes com base nesse modelo. O
captulo seguinte discute os mercados derivativos contemporneos a partir da recente
literatura antropolgica e sociolgica sobre eles. De alguma maneira ou de outra esses
trabalhos acabaram esbarrando numa das duas tecnologias usadas na organizao desses
mercados. O prego e a cmara de compensao, registro e liquidao participam
ativamente do controle das negociaes, a partir deles uma infinidade de relaes se
conecta a esses mercados de modo a permitir que seus participantes levem em considerao
nas negociaes apenas os preos dos contratos. O terceiro e ltimo captulo se concentra
na histria do mercado futuro de boi gordo. A partir das mudanas em torno da liquidao
dos contratos negociados nesse mercado, o captulo reconstri algumas dimenses da
complexa trama de agentes e tecnologias que fazem dele, aos olhos desses agentes, uma
realizao do modelo do mercado perfeito.
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Captulo I Breve histria dos mercados derivativos
Chicago financial derivatives markets have sprung up around the globe, copying and adapting Chicagos products, its trading procedures, its technical systems, and even its culture (Mackenzie & Millo, 2003 p. 136)
O presente captulo uma reconstituio da historia dos mercados derivativos
interessada em destacar as mudanas de significado em torno de uma dimenso central
desses mercados: a liquidao dos contratos. Outrora parte importante na legitimao dos
mercados derivativos e nos clculos de seus participantes, a liquidao por entrega vai
passar em determinado momento a ser associada ineficincia na transferncia dos riscos.
A proeminncia atual da liquidao financeira nos contratos derivativos tem como pano de
fundo a idia de que a entrega do produto deve ser abstrada na medida em que suas
condies de realizao no correspondem quelas do modelo de competio perfeita.
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A Chicago Board of Trade7
A histria dos mercados derivativos coincide com a histria da primeira bolsa de
futuros do mundo: a Chicago Board of Trade8. Essa coincidncia no fortuita na medida
em que a natureza padronizada dos contratos negociados nesses mercados requer uma
instituio responsvel por esta padronizao9. A origem desses contratos padronizados de
liquidao futura acontece em meados do sculo XIX na cidade de Chicago. Na verdade, o
cenrio mais amplo no qual os mercados derivativos surgem situa-se na vasta regio a oeste
dos Grandes Lagos da Amrica do Norte habitada por fazendeiros de ascendncia europia
que, no decorrer do sculo XIX, e ao contrario dos indgenas tambm situados nesse
espao, vo destinar parte de sua produo agrcola aos mercados das cidades de Saint
Louis e Chicago. O transporte desses produtos em geral gros - era ento
majoritariamente feito atravs dos rios presentes na paisagem adjacente a essas cidades, nas
quais incontveis trabalhadores carregavam em seus ombros as sacas que desembarcavam
em direo aos mercados. Para a maioria das fazendas em Illinois e Iowa, os mercados mais
7 No premiado livro Natures Metropoils: Chicago and the Great West, escrito por William Cronon (1991),
podemos encontrar em um de seus captulos a histria da criao da primeira bolsa de futuros do mundo: a Chicago Board of Trade. O tema do livro, nas prprias palavras do autor, a relao entre a cidade de Chicago (EUA) e aquela grande regio em torno da mesma (o Grande Oeste). O que segue sobre a criao desta bolsa nada mais do que o resumo deste captulo. 8 As bolsas de valores existem desde pelo menos o incio do sculo XVII. Para uma descrio da origem das
bolsas ver Braudel (1998). 9 Antes da constituio dos mercados derivativos eram negociados h muito mais tempo contratos a termo
(forward contracts ou to arrive contracts). Os contratos a termo, ainda freqentes nos dias de hoje, so acordos privados de compra e venda de um produto para liquidao em uma data futura por um preo determinado. Ao contrrio de um contrato futuro com estrutura previamente padronizada por regulamentao de uma bolsa (estabelecendo limites quanto especificao do produto, qualidade, locais e meses de entrega, embalagem, meios de transporte e formas de liquidao e pagamento), as especificaes dos contratos a termo so de responsabilidade das partes contratantes. De qualquer maneira, como ficar claro mais frente, a criao dos contratos futuros pressupe a existncia desses contratos.
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fceis de alcanar estavam rio abaixo, em Saint Louis ou, mais remotamente, New Orleans,
de onde os gros seguiam para a costa leste ou Europa. Mas com a extenso da malha
ferroviria a oeste de Chicago, os migrantes para esses dois estados deixam de privilegiar
os vales fluviais prximos a Saint Louis, e se mudam rapidamente para esse novo corredor
de escoamento da produo. Conseqentemente, como era de se esperar, houve uma
exploso na entrada de gros em Chicago. Em 1855 Saint Louis era deixada para trs
enquanto destino privilegiado do trigo apenas cinco anos antes ela recebia o dobro de
trigo que Chicago - e o mesmo ocorrendo com o milho, logo aps a abertura do Canal de
Michigan e Illinois em 1848. Entre 1850 e 1854, a rota atravs dos Grandes Lagos (via
Chicago) se consolida como a passagem principal dos gros em direo costa leste,
desbancando a posio antes ocupada por New Orleans.
Com o aumento da velocidade no trigo remetido a Chicago tendo em vista o retorno
tambm rpido do capital investido nesse complexo ferrovirio, os trabalhadores que at
ento descarregavam em seus ombros as sacas desse gro, se tornaram obsoletos. Esse
rpido descarregamento foi possvel atravs da adoo, pelos comerciantes de Chicago, de
um elevador de gros movido a vapor, o qual fora inventado em 1842 e difundido nessa
cidade ao longo dos anos de 1850 (em 1857 havia doze elevadores em Chicago, capazes de
armazenarem mais trigo do que Saint Louis poderia embarcar durante esse mesmo ano).
Mas a adoo dessa tecnologia armazns de vrios andares divididos em numerosos
receptculos verticais contendo diferentes lotes de gros - colocara em questo os padres
correntes de medida do trigo, at ento baseados no volume, e que diante do novo
mecanismo tambm ficaram obsoletos. Transportados at o topo do elevador dentro de
baldes atados a uma esteira movida a vapor, os gros eram ento pesados em balanas
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afuniladas antes de serem despejados atravs de uma rampa controlada por um operador -
num receptculo, de onde deslizariam at um trem ou navio.
A nova tecnologia permitiu uma diminuio nos custos do desembarque dos gros,
uma vantagem na briga com Saint Louis, mas a maximizao do uso dessa mesma
tecnologia obrigava aqueles que embarcavam seus gros nesses elevadores a se desfazer
das sacas nas quais esses gros vinham embalados, misturando-os com outros gros de
propriedade alheia. No complexo de transporte anterior aos trens e elevadores, os laos de
propriedade entre o fazendeiro e seu produto estavam inscritos na prpria saca, e a mistura
de gros de propriedades diferentes s acontecia por meio do consumidor. A soluo desse
problema em torno da propriedade dos gros ficou nas mos da Cmara de Comrcio de
Chicago (Chicago Board of Trade CBOT), uma instituio privada fundada em maro de
1848 por 82 comerciantes de ocupaes as mais diversas e que, a princpio, tinha como
objetivo apenas representar os interesses dos comerciantes perante a cidade.
Em 1854 a CBOT d incio a uma presso em cima dos comerciantes para que
substituam o antigo sistema de volume usado para medir os gros, por um outro baseado no
peso dos mesmos10. A medida acabou sendo facilmente aceita, com apenas algumas
divergncias em torno de quantas libras teria um alqueire (bushel) de gro, mas o consenso
em torno desse tpico no demorou a ser alcanado. No entanto, a negociao de gros em
Chicago continuara sendo feita de maneira descentralizada, com mercadores efetuando suas
transaes nos mais diversos escritrios, armazns e ruas espalhadas pela cidade. Porm,
com a Guerra da Crimia estourando na Europa, a demanda dos gros de Chicago por parte
do Velho Mundo, atravs de seus intermedirios localizados nessa cidade, vai comprimir
espacialmente as negociaes na medida em que estes ltimos passam a se concentrar nas
10 Sobre a relao entre sistemas de medida e mercados ver Witold Kula (1980)
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dependncias da Cmara (doravante conhecida como a Bolsa). Em 1856 a CBOT, ento
cercada de um maior prestgio em relao quele que detinha nos seus anos iniciais, adota
padres uniformes para os gros comercializados na cidade como um todo, reestruturando
assim esse mercado de uma maneira jamais vista.
A soluo para o dilema da propriedade do trigo enfrentado pelos operadores dos
elevadores se deu em 1856, atravs da adoo de trs categorias de trigo (trigo primavera,
trigo vermelho e trigo inverno) difundidas pela CBOT em Chicago, cada uma
representando um padro de qualidade diferente. A partir disso, os elevadores passaram a
emitir recibos especificando tanto a quantidade do produto depositado quanto a categoria
do mesmo. Todavia, alguns fazendeiros passaram a embarcar seus gros junto de inmeras
impurezas as quais aumentariam o peso do produto, prticas essas que acabaram refletindo
em Nova Iorque, com a substituio da demanda dos agora gros sujos de Chicago por
aqueles mais limpos de Milwaukee. Tendo em vista a melhora na reputao do trigo de
Chicago, a CBOT adota entre 1857 e 1858 novas reformas em seu mercado: no primeiro
ano, o trigo primavera vai dar lugar a trs categorias de trigo (Club Spring, No.1 Spring e
No. 2 Spring) de maior e menor qualidades respectivamente, mas no ano seguinte uma nova
categoria (rejeitado) vai ser adicionada (em 1866 vo estar em vigor 10 diferentes
categorias de trigo), sendo a melhor categoria referente ao gro mais puro, limpo,
rechonchudo, seco e pesado que os demais. Ainda em 1857 a CBOT vai escalar um
inspetor encarregado de julgar a qualidade dos gros dentro dos armazns, trs anos depois
esse inspetor autorizado a contratar e treinar uma equipe de assistentes capazes de o
auxiliar dentro dos depsitos, na verificao da correspondncia da categoria dos gros
encontrados nos receptculos com a classificao feita pelos controladores do elevador. As
acusaes de fraude supostamente cometidas pelos inspetores no deslegitimariam a
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CBOT, justamente por esta ser uma organizao cujos membros incluam tanto vendedores
quanto compradores de gros, que em conjunto teriam um interesse claro numa
classificao honesta.
Em 1859 o estado de Illinois reconhece a CBOT como um corpo poltico e
associado, capaz de adotar inspetores e medidas cujos julgamentos sobre a qualidade dos
gros teriam peso de lei diante de seus membros, que na ocasio eram a grande maioria dos
comerciantes de gros de Chicago. Alm disso, nas disputas entre seus membros em torno
de algum descumprimento dos termos dos contratos, um comit da CBOT teria o poder de
arbitrar entre as partes contratantes. O comrcio de gros da cidade passara dessa maneira a
ser regulado por uma entidade quase-judicial com substanciais poderes legais, que junto do
sistema de classificao de gros e dos elevadores constituiriam uma revoluo no
comrcio de gros, ao instaurar um novo mercado em cima dos recibos emitidos por estes
armazns.
A existncia de um sistema classificatrio padro dos gros mais uma rede
telegrfica (em Chicago desde 1848) permitiu que este mesmo mercado se estendesse a
outras cidades e continentes, visto que a padronizao garantida pela CBOT eliminara de
vez a necessidade da inspeo de amostras do produto. Assim, criaram-se tambm
condies para a negociao de um tipo de contrato denominado to arrive (a entregar),
transacionado em pequena escala nas cidades de Buffalo e Chicago, entre outras, desde
1840, que com o telgrafo e o sistema de classificao ganhariam uma popularidade sem
precedentes. A unio desses contratos to arrive com os recibos padronizados dos
elevadores deram incio aos mercados futuros.
Os contratos to arrive permitiam queles que embarcassem seus gros nos
elevadores e recebessem os recibos, se proteger das possveis quedas nos preos ao se
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comprometerem a entregar certa quantia do produto numa data futura a um preo pr-
determinado. Atravs desses contratos tambm era possvel aos que no tivessem a
mercadoria, especular sobre o preo futuro da mesma, pois poderiam a qualquer momento
adquiri-la nos elevadores antes de exercerem suas obrigaes contratuais. Por exemplo,
assumindo um compromisso de vender gros que ainda no tivesse, algum poderia
especular esperando um preo menor do gro no final do contrato em relao ao preo que
o comprador do contrato se comprometeu em pagar. O grande volume de recibos dos
elevadores em circulao garantia uma margem de segurana para a estratgia desse
especulador.
Mas no decorrer da segunda metade da dcada de 1860, ao lado desse mercado de
recibos de elevador onde se negociavam gros realmente presentes na cidade, crescia um
mercado de contratos para a entrega futura de gros que talvez nem existissem. Nesse novo
contrato com entrega futura padronizada de quantidades fixas de uma categoria tambm
padronizada de gro, s partes contratantes s restava definir o nmero de contratos a serem
transacionados e os preos que incidiriam sobre os mesmos. Dado que na prtica a entrega
nunca acontecia, nesse mercado se negociava no gros em si, mas seus preos: se o
comprador do contrato no desejasse receber os gros (opo mais comum da em diante),
bastaria s duas partes, no final do contrato, intercambiar a diferena entre o preo do gro
definido no contrato e o preo corrente do mesmo no mercado nesse momento.
No perodo que segue o final da Guerra Civil Norte Americana, os interesses
especulativos acabam dominando cada vez mais as negociaes na Bolsa. Em 1875 o
mercado fsico de gros negociara em torno de US$ 200 milhes, enquanto as transaes no
futuro atingiam um volume de US$ 2 bilhes no final deste mesmo ano (uma dcada depois
essa montante seria quinze vezes maior que o negociado no fsico).
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Os corners
Mas por mais tnue que possa parecer, a relao entre o mercado fsico e o futuro
jamais se desfaria, alis, estava inscrita na prpria data de expirao dos contratos, pois
mesmo a liquidao destes se dando quase que na sua totalidade pela diferena de preos
entre tais mercados, a entrega dos gros no vencimento dos contratos (em datas
padronizadas, geralmente no ltimo dia de certos meses) forava a convergncia dos
preos. As situaes onde essa relao ficava mais patente se davam quando um grupo de
especuladores, sorrateiramente comprava contratos futuros que expirariam um pouco antes
da nova colheita, quando as ofertas estavam as mais baixas possveis, e ao mesmo tempo
estes especuladores compravam gros, na esperana de controlar a maior parte da oferta do
produto quando os contratos vencessem (situao essa de monoplio denominada desde
ento como corner). Dado que suas estratgias ltimas visavam manipular o mercado e
ludibriar desavisados especuladores comprometidos com a venda futura de gros, suas
compras deveriam ser feitas da maneira mais invisvel possvel, tomando todo cuidado para
que esses outros especuladores no se desfizessem de seus contratos de compra at a data
de vencimento dos mesmos. Ao demandarem a entrega do produto, foravam os
vendedores dos contratos a adquirirem os gros no mercado fsico, monopolizados pelos
praticantes do corner, e nessa ocasio vendidos a preos exorbitantes. Aqueles que se
recusassem a cumprir o contrato diante de tais preos, estariam sujeitos s penalidades
previstas no estatuto da Bolsa, ou seja, poderiam no s perder suas reputaes como
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tambm serem levados falncia ou mesmo priso. Nessas circunstncias as somas de
dinheiro que trocavam de mos atingiam cifras na casa dos milhes de dlares.
A inovao operada no mercado de gros de Chicago possibilitara simplificar a
diversidade de um gro em categorias capazes de permitir a compra e venda do mesmo
enquanto abstraes homogneas, criando fronteiras entre as classes de gros que esto na
raiz do contrato futuro e do corner. Essa padronizao dos contratos futuros permite, ao
contrario das especificaes presentes nos contratos to arrive, a transferncia dos contratos
futuros entre os diversos participantes desses mercados derivativos. Categorias diversas de
um mesmo gro resolveram em certa medida as questes relacionadas qualidade, pois
reduziram a diversidade dos gros encontrada nos mercados que comercializavam esses
produtos na sua forma fsica e, dessa maneira, poderiam servir como referncia a um
nmero grande de negcios. Mas por outro lado, segmentaram o mercado na medida em
que um gro de uma classe X no poderia ser usado no cumprimento das obrigaes
referentes a um da classe Y, o que tornara plausvel a prtica do corner. Nesse sentido, tal
prtica no deve ser pensada como resultado apenas dos contratos futuros, mas tambm
como conseqncia da categorizao dos gros e dos elevadores. A soluo para o
problema do corner e de outras controvrsias ligadas liquidao por entrega dos produtos
s ser alcanada mais de um sculo depois da criao dos contratos futuros, atravs da
adoo dos preos desses produtos nos seus mercados fsicos (ou vista) como referncia
para a liquidao dos contratos futuros. De qualquer maneira, um mesmo movimento duplo
de desentranhamento dos contratos (da diversidade dos gros e, mais tarde, dos prprios
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gros) e emaranhamento dos contratos (nos clculos dos investidores interessados ou no
na entrega dos produtos) est presente ao longo da histria dos mercados derivativos11.
No final da dcada de 1860 as questes relativas s fronteiras de um gro unem
fazendeiros e membros da CBOT na luta contra as prticas dos operadores dos elevadores.
A classe na qual o produto de uma famlia plantadora de trigo deveria ser colocado era um
problema que refletia na prpria reproduo dessa famlia, da a enxurrada de disputas e
reclamaes que chegavam aos armazns em torno dessas fronteiras e definies. Acontece
que esse sistema de classificao da CBOT se apia numa conveno ficcional de que o
gro seria uniforme dentro das classes, mas o gro fsico continuaria varivel como sempre.
Dado o carter contnuo da qualidade e a natureza discreta das categorias, o trabalho dos
operadores dos elevadores era apenas manter as variedades do trigo e suas categorias
separadas. Por exemplo, um trigo primavera n.1 teria de ter mais de 59 libras por alqueire, o
n.2 entre 56 e 59, e os abaixo de 56 seria rejeitado (teriam mercado, mas com preos
bastante reduzidos). Mas estes agentes passaram a misturar os gros trazendo-os o mais
prximo da fronteira mais baixa de uma categoria, capturando assim o valor escondido nas
variaes entre as categorias, causando a ira dos fazendeiros desconfiados de que tal atitude
os privava de dividendos seus por direito. Outra reclamao contra os armazns e que
tambm recaia sobre os administradores ferrovirios, tinha a ver com as abusivas taxas
cobradas pelos elevadores, as quais s cairiam, segundo seus crticos, quando o monoplio
sobre os trens e elevadores terminasse (ambos atuavam de maneira associada). As
11 Para Appadurai (1986) um bem pode estar mercantilizado, passar a estar desmercantilizado e depois
remercantilizar. Thomas (1991) aprofunda essa idia de mercantilizao e fala da necessidade da dissociao de algo de outros objetos e pessoas para que este algo entre numa transao mercantil, pois caso esse algo se mantenha emaranhado numa rede de coisas e pessoas, aquele que o receber nunca estar quite e no poder escapar dessa rede de relaes. Para Callon (2002) so as qualificaes e re-qualificaes de um produto que levam individualizao das propriedades que fazem dele calculvel pelo seu consumidor, da a compra ser considerada por Callon como um processo de vinculao do produto ao mundo (social e tecnolgico) do consumidor.
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informaes referentes aos interiores dos armazns tambm deveriam ser pblicas, pois
privilegiavam os que atuavam tanto dentro do armazm quanto no mercado de gros. Os
fazendeiros e a prpria CBOT ganharam a simpatia dos grandes jornais de Chicago e da
classe poltica estadual e federal, e em 1877 a Suprema Corte do pas tornou os elevadores
propriedades de interesse pblico, sujeitas assim regulao do Estado.
Mas a relao das autoridades e da imprensa de Chicago com esse novo interesse
pblico vai permanecer ambivalente. Se de um lado, foram os elevadores de gros que
permitiram a existncia, pela primeira vez na histria, de um mercado anual de gros que
transcendesse o carter sazonal desses produtos, regulando a oferta e a procura nos seus
perodos de safra e entressafra, por outro lado, os operadores dessa tecnologia continuariam
visados enquanto sujeitos que aproveitariam qualquer brecha ou ambigidade nas fronteiras
entre os mercados para benefcio prprio. Os membros da CBOT tambm continuariam
sendo visto ora como aqueles parasitas do trigo alheio, ora como aqueles dos quais os
fazendeiros dependiam para negociar suas colheitas.
Dessa maneira, a notabilidade da cidade de Chicago transitaria entre sua capacidade
em lidar, atravs de suas ferrovias, elevadores e portos, com uma enxurrada de gros que
passavam pelos mesmos, e a igualmente notvel capacidade de uma infinidade de agentes
de redefinio do sentido dos gros dentro de uma complexa teia de fices mercantis,
abstraindo e simplificando estes para facilitar seus movimentos no como objetos fsicos,
mas enquanto mercadorias, o que tornara o mercado de Chicago algo de irreal para aqueles
situados fora dele.
Mas a ambivalncia em torno dos gros era algo anterior comercializao do
mesmo na cidade, apesar de nesta sua abstrao ter sido amplificada. J no campo, o
outrora complexo ecossistema anterior s plantaes de gros sofrera brutais intervenes
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em prol de uma dieta de razes europias. Mas a diversidade que emanava das pradarias
encontrava no sistema antigo de transporte e comercializao dos gros, caminhos atravs
dos quais essas distines prprias do campo permanecessem diante da relao
indissocivel que as sacas produziam entre o produtor e seu o produto. Mas essa ligao
no permitia a maximizao da nova tecnologia dos elevadores, o que fez com que certas
decises de natureza pragmtica entrassem em jogo. Porm, as conseqncias imprevistas
dessas decises se deram num plano propriamente simblico, atravs da criao de uma
nova ordem de significados em torno do trigo no mercado de Chicago, que o distanciava do
trigo encontrado nas fazendas.
A no utilizao das sacas nos elevadores fez com que o comrcio de gros se
transferisse para dentro de um edifcio (a Bolsa), onde pedaos de papel substituam os
prprios gros. Com a categorizao padronizada destes, os pedaos de papel no mais
representariam os gros propriamente ditos, mas sim certas convenes abstratas cuja
homogeneidade era a condio que faria estes papeis intercambiveis. Tal
intercambialidade foi o que permitiu a venda de gros no apenas atravs de enormes
distncias espaciais, mas tambm atravs de largos perodos de tempo, tudo isso a partir do
novo sentido que os agentes sociais envolvidos na Bolsa conferiram aos gros. Comentando
o desfecho dessa histria apresentada por Cronon, Theodore Porter ressalta:
No final, burocratas e negociantes lograram em criar o que jamais existira nas fazendas e muito menos na natureza: categorias uniformes de produtos. Da em diante, o trigo poderia ser comprado e vendido na bolsa de Chicago por negociantes que o jamais tivessem visto e que jamais o veriam que no conseguiriam distinguir trigo de aveia. Estes poderiam at comprar e vender mercadorias que ainda no existissem. Assim, uma rede reguladora criou um espao para informao, no sentido moderno do termo. Um negociante de trigo de sucesso no mais teria que gastar seu tempo em fazendas, portos, e terminais julgando a qualidade do produto de cada fazendeiro. Por volta de 1860 o conhecimento necessrio para negociar trigo fora separado do trigo e da palha. Agora consistiria nos dados referentes ao preo e a produo, os quais deveriam ser encontrados em documentos impressos produzidos minuto a minuto. claro que a necessidade de contatos pessoais e fontes
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privadas no desaparecera. Cada vez mais, todavia, at rumores originavam-se onde a ao acontecia no nas fazendas, mas no prego da bolsa. (Porter, 1995 p. 48)12
A padronizao dos gros nos contratos futuros era a o que facilitava a transferncia
desses contratos entre os participantes do mercado futuro, a qualquer momento, o que
tornavam esses contratos semelhantes s moedas. Mas a criao de um mercado financeiro
em torno dos produtos agrcolas no eliminara de vez a relao entre o universo financeiro
e o rural: enquanto contratos futuros de entrega de produtos agrcolas, estes negociavam o
preo futuro de determinado produto, cujo recebimento ou entrega fazia parte do horizonte
do contrato, mesmo sendo de interesse de uma nfima minoria dos detentores dos contratos.
Mas tais relaes de entrega ou recebimento poderiam envolver aqueles agentes que, por
determinados motivos, no conseguissem se desfazer de seus contratos antes destes
vencerem13.
A proliferao dos mercados derivativos
Em 1874 criada a Chicago Produce Exchage, centrada na comercializao de
manteiga, ovos, aves e outros produtos agrcolas perecveis (Hull, 1996 p. 3) Os
12 Esta e todas as outras tradues presentes na dissertao so de minha autoria.
13 Mas claro que o gro fsico no desaparecera do mercado de Chicago, por mais que as varias fices em
torno do mesmo obscurecessem sua presena. O sucesso ou fracasso das colheitas e as necessidades de alimentao das pessoas ao redor do mundo, permaneceriam sendo as condies ultimas das ofertas e demandas que estariam por debaixo desse mercado. Os maiores problemas enfrentados pela Chicago Board of Trade sempre ocorreram nas fronteiras onde suas fices mercantis intercederam com o mundo real. Quando especuladores aplicavam um corner nos mercado futuros, estes obtinham sucesso, pois os investidores encurralados deveriam justamente promover o encontro dos contratos vencidos com os gros fsicos. Os fazendeiros acreditavam que Chicago estava os roubando porque as categorias padro realmente obscureciam as diferenas legtimas no valor dos gros embarcados nos elevadores, de tal modo que criava novas oportunidades de roubo. As pessoas discutiam sobre categorizao, mistura, e troca porque as abstraes do mercado de Chicago finalmente se conectavam com o mundo real. Gro enquanto colheita e gro enquanto mercadoria mantinham uma difcil trgua nas dependncias da Bolsa, um trgua que refez o horizonte agrcola do Grande Oeste. (Cronon, 1991 p. 147)
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comerciantes de manteiga e ovos abandonam essa bolsa para formar, em 1898, a Chicago
Butter and Egg Board, a qual em 1919 vai passar a se chamar Chicago Mercantil Exchange
(CME) e que hoje, depois da introduo de diversos outros contratos ao longo dos anos,
como o de toucinho (1961), boi gordo (1964), suno vivo (1966), bezerro (1971), moedas
ou cmbio (1972) e ndice de aes (1982), veio a se colocar como a segundo maior bolsa
de futuros do mundo, negociando um total de 530.989.007 contratos em 2003 (ver Sntese
de Dado, maio de 2004 p.27), seguida de perto pela CBOT, terceira maior, com
373.669.290 contratos negociados (idem).
Em 1975, a Chicago Board of Trade, arqui-rival da CME (Roberts, 1999 p. 57),
havia lanado o primeiro contrato futuro de taxas de juros. Esses ltimos mercados de
derivativos financeiros criados a partir do incio da dcada de 70 e expandidos ao longo dos
anos 80 e 90 (em meados desta dcada vo estar funcionando 65 bolsas de futuros ao redor
do mundo14), atingem no ano de 1997 a espantosa cifra de US$40,9 trilhes em valores
negociados (idem). Para Roberts (idem), o aumento da volatilidade das moedas (ou
diminuio da estabilidade cambial), aps o fim do sistema Bretton Woods (1944-73) de
taxas de cmbio fixas entre os pases centrais (Estados Unidos, Comunidade Econmica
Europia e Japo), provocou a demanda por um instrumento que permitisse s empresas,
aos bancos e a outros agentes fazerem um seguro contra o risco cambial. As taxas de juros e
os preos tambm tinham se tornado muito mais volteis em conseqncia do aumento dos
preos do petrleo, em 1973, e de outros fatores desestabilizadores (idem). A partir de
1980 comeam a surgir as primeiras liquidaes financeiras de contratos futuros, as quais
visavam eliminar de vez a entrega e o recebimento fsico do horizonte desses contratos.
14 Em 1997 criada a europia Eurex, a bolsa com o maior volume de contratos (668.650.028 em 2003)
negociados atualmente (ver Sntese de Dados, maio de 2004 p.27)
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A preponderncia dos contratos financeiros (derivativos de aes, taxas de juros,
taxas de cmbio, etc) sobre os contratos agrcolas (derivados agropecurios) hoje uma
realidade de qualquer bolsa de futuros, o que muda o percentual da participao de cada
modalidade de contrato. Na CME, onde a participao dos contratos agrcolas bem
expressiva se comparada, por exemplo, com a bolsa de futuros brasileira, 20% dos
contratos negociados so agrcolas (ou de commodities). J na Bolsa de Mercadorias e
Futuros (BM&F), no mais do que 2% dos contratos negociados derivam desses produtos
(o restante so derivados de produtos financeiros).
Inspirada na CME, segundo Lozardo (1998), fundada no dia 4 de julho, em So
Paulo, a Bolsa Mercantil & de Futuros (BM&F). Em 1983 alguns membros da Bolsa de
Valores de So Paulo (BOVESPA) haviam iniciado um projeto de criao de mercados
futuros organizados, o qual resultara na criao da BM&F em julho de 1985, sendo que
esses ento membros da BOVESPA vo acabar se desligando da mesma e, dessa maneira,
transformando essa nova bolsa numa instituio financeira prpria (idem). No seu primeiro
prego, que data do dia 31 de janeiro de 1986, vo ser negociados apenas contratos futuros
de ouro e, no ms seguinte, aparecem os contratos futuros sobre o ndice de Aes da
BOVESPA. Ao longo de 1987 vo ser lanados os contratos de frango, porco e boi gordo,
sendo que apenas este ltimo permanece sendo negociado hoje. Em julho desse mesmo ano
a BM&F contava com 71,5% do mercado de futuros do Brasil (Rochele, 1997),
participao essa que se consolidaria com a incorporao da Bolsa de Mercadorias de So
Paulo em maio de 1991, objetivando impulsionar o desenvolvimento dos mercados de
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agropecurios (Lozardo, 1998 p.19), o que leva a uma mudana no nome da instituio,
passando a se chamar da em diante Bolsa de Mercadorias & Futuros15.
A eliminao dos riscos de preo e a criao de outros riscos
A viso corrente hoje em dia sobre os mercados derivativos tal como aparece em
livros (como os de Hull 1996, Lozardo 1998, Marques & Mello 1999) e cursos de
introduo a esses mercados (como o Curso de Formao de Profissionais em Mercados
Derivativos da BM&F, cuja 56 - entre abril e junho de 2004 pude participar), de que
estes existem para proteger determinado agente econmico, denominado hedger, dos riscos
da variao futura nos preos dos ativos (conjunto de valores representado pelas
aplicaes de patrimnio e de capital de uma empresa ou pessoa, segundo o dicionrio
Houaiss 2004) que possua ou que vai possuir, como moedas estrangeiras, ttulos pblicos,
aes e commodities agrcolas (caf, boi, soja, trigo). Alguns especialistas chegam a afirmar
que nos mercados futuros s se negocia uma nica mercadoria, o risco, e da decorrer o fato
de que quem procura uma bolsa de futuros est interessado em comprar ou vender risco.
nesse sentido que os contratos futuros so encarados como veculos para a transferncia
de risco: de algum interessados em se livrar do risco para algum interessado em especular
com esse risco.
So quatro os instrumentos usados para se atuar ou operar nesses mercados: os
contratos a termo, os contratos futuros, as opes de compra e de venda e os swaps. Estes
15 No incio de 1997 a BM&F vai incorporar a pioneira Bolsa Brasileira de Futuros, fundada pela Bolsa de
Valores do Rio de Janeiro, no incio dos anos 80. (Lozardo, 1998 p. 19)
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dois ltimos instrumentos (opes e swaps) so os mais recentes, sendo negociados desde o
incio da dcada de 1980. Os primeiros contratos de swap foram negociados em 1981 e,
desde ento, seu mercado tem crescido com muita rapidez, com centenas de bilhes de
dlares movimentados a cada ano. Tradicionalmente empregados enquanto acordos
privados entre duas empresas para a troca futura de fluxo de caixa (isto , para converter as
exposies de mercado dessas empresas relativas a um emprstimo, um ttulo, uma moeda
ou uma taxa de juros em outras exposies diferentes), os swaps so utilizados tambm
pelos bancos centrais na obteno de moeda estrangeira para intervir no mercado cambial
mediante acordos recprocos de crdito de curto prazo.16 As opes (negociadas
inicialmente a partir de 1982) so contratos que do a seu detentor o direito, no a
obrigao (ao contrrio dos contratos a termo e futuro), de comprar ou vender um ativo em
determinada data por certo preo. As opes de compra (calls) so usadas para reduzir o
risco de que os preos de um ativo tenham subido quando tiver que ser adquirido em algum
momento futuro, alm de tambm serem utilizadas para especular com a perspectiva de
aumento de preo. As opes de venda (puts) so usadas para reduzir o risco de queda de
preos de ativos para seus detentores. Tambm so usadas para especular com quedas de
preo17. Os contratos a termo (assim como os swaps) podem ou no ser negociados em
bolsa, ao contrrio dos contratos futuros e das opes que s existem nesses ambientes. A
BM&F, por exemplo, se coloca como mediadora das negociaes de contratos a termo e
swaps, garantindo os compromissos acertados nesses contratos.
16 Os swaps mais comuns envolvem taxas de juros e moedas. Num swap de taxas de juros, uma parte
concorda em pagar outra juros a uma taxa fixa sobre um principal (o capital de uma dvida, em contraposio aos juros) terico por determinado nmero de anos. Em troca, ela recebe juros a uma taxa flutuante sobre o mesmo principal terico pelo mesmo perodo de tempo. Num swap de moedas, uma parte concorda em pagar juros sobre o principal numa moeda. Em troca, ela recebe juros sobre o principal em outra moeda. (Hull, 1996 p .173) 17
Como a histria central do presente trabalho envolve um mercado de contrato futuro, no se estender aqui a discusso sobre mercados ligados a outros instrumentos.
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O mercado focalizado nessa dissertao o mercado futuro de boi gordo da BM&F
no qual, desde 1987, so negociados contratos futuros de boi gordo, isto , de animais
criados em fazendas e prontos para o abate em frigorficos. O procedimento de negociao
desses contratos similar ao encontrado em outros mercados futuros. Um hedger vendedor
de contratos futuros aquele que, geralmente, detm o produto fsico como, por exemplo,
os produtores rurais, e que dessa maneira procura atravs desses contratos se assegurar
contra uma eventual baixa de preos em uma data especfica no futuro (como a data da
comercializao da safra agrcola). Ocupam no mercado uma posio chamada de posio
vendida (short), contraria queles em posio comprada (long), ocupada por um exportador
de caf ou frigorfico, por exemplo, que busca se proteger de uma eventual alta nos preos
dos produtos que ir receber. Ambos (long e short hedgers), porm, operam nesse mercado
atravs de uma corretora de mercadorias que deve ser membro da bolsa de futuros,
credenciada por esta instituio a participar, atravs de seus operadores, do prego que
ocorre nas dependncias da bolsa18. Apesar de participar ativamente da organizao dos
mercados (o que ser mais bem ressaltado frente), a bolsa no compra nem vende
contratos, sua receita deriva majoritariamente da venda de licenas para operao e de
outras taxas operacionais.
Outro agente de destaque nesses mercados o especulador, cuja importncia tem a
ver com a equalizao da oferta e demanda, dado que nem sempre o volume de hedgers
procurando proteo contra queda de preos iguala o volume de hedgers procurando
18 Alm de executarem as ordens de seus clientes, as corretoras tambm acompanham as posies e contas
destes junto cmara de registro, compensao e liquidao (Clearing House). Nesta ltima, so feitos depsitos de garantia intitulados margem de garantia, variveis de contrato para contrato, que geralmente oscilam ao redor de dois ou trs dias de ajustes dirios, ou ao redor de 3 a 5% por contrato e so usadas caso o cliente no honre seu compromisso de depsito de ajuste dirio, que consiste no recebimento ou pagamento dirio, casos os preos se movimentem contrariamente ou favoravelmente posio assumida. No captulo seguinte as atribuies da Clearing House so exploradas mais extensamente.
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proteo contra alta de preos: ou seja, esse agente proporciona a liquidez dos negcios,
permitindo que os contratos sejam vendidos ou comprados a qualquer momento.
Conceitualmente os especuladores no tm nenhum interesse pela mercadoria fsica, mas
apenas em auferir ganhos com a compra e venda de contratos, aceitando os riscos da
variao dos preos das mercadorias fsicas transferidos pelos hedgers. Na verdade, no
conjunto os especuladores no lucram com a atividade, e do ponto de vista individual,
estudos mostram que talvez a maior motivao do especulador esteja na oportunidade de
alavancagem, representada pela possibilidade de conseguir um substancial volume de
ganhos financeiros com base num relativamente pequeno investimento.(Marques & Mello,
1999 p. 68)
Uma estratgia muito utilizada nesses mercados, a qual visa lucrar com as
diferenas de preos de um produto nos mercados a vista e futuro ou entre dois mercados
futuros diferentes, numa operao isenta de riscos e que garante a convergncia dos preos
desses mercados, conhecida pelo nome de arbitragem, o que leva a alguns apontar o
arbitrador como outro agente fundamental no funcionamento desses mercados. A incerteza
dos agentes com relao convergncia de preos entre esses mercados mina a
caracterstica principal dos mercados futuros enquanto mecanismos de gesto racional de
risco, da a necessidade de se estabelecer determinadas condies para que este risco de
no convergncia seja eliminado19. A idia por detrs das prticas de arbitragem de que
se os preos do mercado futuro e do mercado vista de determinado ativo forem diferentes,
os agentes econmicos iriam comprar naquele mercado mais barato e vender no mercado
19No mercado futuro as possibilidades de arbitragem ocorrem quando o preo a vista do ativo, somado os
custos incorridos para entreg-lo no futuro esto abaixo do preo. De acordo com a teoria da arbitragem, o mercado futuro deve ter seus preos alinhados com os preos do mercado fsico. Se por acaso essa condio no for satisfeita, haver possibilidade de obter ganhos atravs da compra do ativo em questo no mercado vista e venda imediata no mercado futuro(BM&F, 2004 P. 53).
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mais caro. Mas o problema que os custos dessa operao podem ser to elevados que
esses agentes no se sintam encorajados de arbitrar entre esses dois mercados. Dessa
maneira cabe bolsa criar as condies de convergncia dos preos, atravs da
reformulao das condies de entrega e recebimento das mercadorias ou introduzindo a
liquidao financeira no contrato.
A eliminao dos riscos de base e a criao de indicadores de preos
A construo das condies de realizao da teoria da arbitragem conhecida nos
mercados futuros como a eliminao do risco de base. A base a diferena entre o preo
de um ativo no mercado fsico e a cotao para o mesmo no mercado futuro. Teoricamente,
a medida que se aproxima a data do vencimento de um contrato, a base vai diminuindo20.
No acontecendo a convergncia, sero abertas possibilidades de arbitragem, e as aes dos
arbitradores reconduziro o processo de convergncia de preos. Sempre que o preo a
vista de um ativo mais o custo de carregamento do mesmo (armazenagem, transporte,
seguros e financiamento) for diferente de seu preo futuro, os arbitradores teoricamente
atuaro restaurando a igualdade e garantindo a convergncia dos preos vista e futuro.
Sendo o risco do hedging caracterizado pelo risco de base, quanto mais a base variar,
menor ser a utilidade dos mercados futuros como veculo de transferncia de riscos.
20 Num hedging perfeito, que na prtica dificilmente acontece, a diferena entre o preo a vista em um local
especfico e o preo de um contrato futuro em particular zero.
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(Rochele, 1997 p. 6) Ainda segundo Rochele, a base para commodities (produtos agrcolas)
estocveis comporta-se diferentemente da base para commodities no-estocveis21.
Antes do encerramento de um contrato de commodity estocvel, se um agente
percebe que a diferena entre os preos a vista e futuro da commodity maior que o custo
de carregamento, este pode lucrar arbitrando entre esses dois mercados. Com o preo a
vista menor que o futuro, esse agente compra o produto no mercado fsico, toma posio
vendida no contrato futuro e liquida o mesmo por entrega. Transaes dessa natureza
tendem a elevar o preo a vista e reduzir o futuro, promovendo assim a convergncia entre
ambos. O oposto ocorreria se o preo a vista estivesse maior que o futuro. Mas o
arbitramento com commodities no-estocveis mais complexo, como o caso das
dificuldades de padronizao dos lotes de animais vivos no mercado fsico, dado a
heterogeneidade encontrada entre eles. Considerando tambm os custos relativos
transmisso de doena, mortalidade, diferenas de qualidade, peso, sexo, raa, transporte e
manuseio (devido ao volume do produto envolvido) e mudanas fisiolgicas que ocorrem
21 Para commodities estocveis, a diferena entre os preos a vista e futuro depende do custo de
carregamento (custo de armazm mais o juro para financiar o ativo, menos o rendimento obtido com o mesmo), que por sua vez depende das taxas de juros e dos custos de armazenagem e transporte, que variam em funo das condies de oferta e demanda. Contudo, o preo futuro no exceder o preo a vista de uma quantia maior do que o custo de carregamento, pois caso isso ocorra, haver possibilidade de arbitragem entre mercados a vista e futuro, forando os preos no sentido de igualar a diferena entre eles ao custo de carregamento. Considerando que fatores que compe esse custo so relativamente estveis, a base para commodities estocveis tambm o . Nesse caso, o mercado futuro tem provado ser um mecanismo efetivo de transferncia de risco para tais commodities. No caso de commodities no-estocveis, a teoria sobre a base no est to bem desenvolvida. Para animais vivos, a relao entre os preos a vista e futuro no to estvel como para commodities estocveis, porque aqueles so continuamente produzidos e distribudos, sem uma oferta fixa ou formao de estoques. Uma vez que a oferta no fixa, os preos futuros de commodities no-estocveis devem representar uma antecipao do preo a vista para uma data no futuro. Como essa antecipao do preo da commodity para uma data no futuro feita com base nas informaes disponveis no mercado a vista, a chegada de novas informaes faz com que a base se torne mais instvel para commodities no-estocveis do que para as estocveis. Alm disso, as operaes de arbitragem tornam-se mais difceis para contratos de animais vivos, devido dificuldade de padronizar os lotes e os demais custos relacionados ao deslocamento destes. necessrio que a diferena entre os preos a vista e futuro seja suficientemente grande para compensar as despesas com entrega da mercadoria e ainda incentivar as operaes de arbitragem. Assim, a convergncia entre os preos a vista e futuro esperada durante o ms de vencimento do contrato pode no ocorrer. (idem)
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com a maturidade do animal, impossvel supor que as arbitragens sempre sero capazes
de corrigir as diferenas de preos entre a vista e futuro de animais vivos, especialmente
pequenas imperfeies de curto prazo (Rochele, 1997 p. 9)22
A eliminao do risco de base relacionado entrega de animais vivos se d atravs
da introduo da liquidao financeira nos contratos que negociam esses animais23. Essa
modalidade de liquidao provavelmente foi utilizada pela primeira vez pela bolsa de
Quioto que, em 1526, seria fechada pelo governo japons, o qual argumentava que esta
forma de liquidao era contrria s intenes originais desses mercados (Frick, 1999 p.
34). Nos Estados Unidos, no final da dcada de 1970, as bolsas de futuros desse pas
demandam s autoridades federais a autorizao para a introduo da liquidao financeira
nos contratos futuros (Millo, 2002). O problema todo em torno dessa inovao nos
contratos decorria do fato de que na dcada de 1890 a Chicago Board of Trade -
argumentando contra a existncia de diversas lojas (bucket shops) na cidade de Chicago
que negociavam contratos futuros no liquidados por entrega associou a liquidao
financeira dos contratos futuros aos jogos de azar. O argumento da CBOT convenceu as
22 A liquidao dos contratos futuros por entrega soma aos custos e problemas relacionados ao mercado
fsico, custos adicionais relativos ao mercado futuro, que incluem a emisso de aviso de entrega, inspeo e certificao da commodity e registro de transferncia. Assim, os custos relacionados entrega da mercadoria para liquidar o contrato prejudicam a convergncia dos preos, ampliando o risco de base. Outro problema que surge com a liquidao fsica que esta ocorre sempre atravs da entrega da mercadoria com padres mnimos estabelecidos no contrato, ou seja, o hedger com posio vendida (short hedger) procurar entregar a mercadoria com os mnimos padres de qualidade de terminados no contrato. Por sua vez, o hedger com posio comprada (long hedger) poder recusar tal mercadoria se consider-la inferiror s especificaes ou exigir um desgio no preo para receb-la. Esses atritos levam as bolsas a designar um rbitro para verificar a qualidade da mercadoria e resolver o impasse. Porm, todo esse procedimento gera incertezas e custos adicionais aos participantes, elevando o riso de base. (idem)
23 A liquidao financeira apresenta-se como uma alternativa liquidao fsica, que elimina os fatores que
prejudicam a convergncia dos preos a vista e futuro. Os custos e os problemas relacionados entrega da mercadoria, os atritos causados pela entrega e recebimento do produto, os movimentos antecipados de oferta e demanda pela commodity objeto do contrato, prximo data de vencimento, so eliminados. Na liquidao financeira, o contrato ajustado por um ndice que representa o preo da commodity no mercado a vista. (idem)
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autoridades federais (e a opinio pblica desse pas notadamente avessa aos jogos de azar) e
estas autoridades acabaram determinando o fechamento dessas lojas (ento concorrentes da
CBOT)24. No final da dcada de 1970 as bolsas de futuros norte-americanas propem a
criao de contratos derivativos de ndices de aes. Mas estes contratos s poderiam
existir, segundo estas entidades, se fossem liquidados financeiramente. O argumento usado
a favor da liquidao financeira era de que esses contratos, quando liquidados, iriam causar
uma sbita demanda por aes, levando a uma abrupta elevao nos preos dessas aes.
Foi evitando essas situaes de desequilbrio no mercado acionrio que as entidades
reguladoras autorizaram a introduo da liquidao financeira nos contratos futuros (idem).
Assim, a partir do incio da dcada de 1980 que a questo da liquidao financeira
ganha relevo, diante de dois novos instrumentos que seriam usados como referncia de
contratos: ndices de aes e taxa de juros. Como aponta Frick:
No primeiro caso, era bvia a dificuldade de liquidar por entrega a cesta de aes de um ndice, respeitando-se suas propores (por exemplo, sua estrutura de ponderao). Quanto aos segundo, o problema surgiu com o pedido de aprovao, em 1981, por trs bolsas americanas (Chicago Board of Trade, International Monetary Market e New York Futures Exchange), de contratos futuros baseados em depsitos de dlares, ou eurodlares, realizados fora do sistema bancrio dos Estados Unidos da Amrica. A dificuldade de admitir a entrega desses depsitos no vencimento levou implementao, do primeiro contrato futuro com liquidao financeira do mundo.(Frick, 1999 p. 34)25
Se os contratos futuros baseados em moedas estrangeiras e em eurodlares poderiam ser
liquidados tanto por entrega fsica quanto por liquidao financeira, isso estava ligado
qualidade dos preos destes ativos no mercado a vista. A natureza desses mercados
facilitava a construo de um indicador de preos para eles, ao contrrio do que acontecia
24 claro que neste convencimento o lobby dessa bolsa junto a estas autoridades foi fundamental (Millo, 2002
p. 18). 25
Os eurodlares so depsitos em dlar realizados em bancos que operam fora dos EUA e usados para fazer emprstimos em dlar fora dos EUA (Roberts, 2000 p. 48).
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em outros mercados. O principal problema com a liquidao financeira dos contratos
futuros de bovinos e sunos, nos Estados Unidos, foi a obteno de informaes no
mercado, para desenvolver um ndice de preos a vista confivel. Comentando a situao
desses mercados, Rochele ressalta:
A maior parte dos animais vendida particularmente, sem registros pblicos e os principais grupos no so observadores autnomos. Eles tomam posies nos mercados futuros, o que torna difcil a verificao dos preos. A crescente concentrao das industrias processadoras apenas agrava esse problema. Dados histricos, que poderiam ser teis para compor um ndice, geralmente no esto disponveis por parte das industrias processadoras. Alm disso, calcular um ndice baseado nos valores de carcaa pode gerar problemas similares quanto confiabilidade e ao potencial para manipulao, por parte daqueles que detm as informaes originais. Nesse caso, a liquidao financeira pode minar o processo de descoberta de preos e tornar a base menos previsvel para muitos produtores, elevando o risco do hedging. (Rochele, 1997 p. 14)
Mesmo diante desse cenrio, em setembro de 1986 a Chicago Mercantile Exchange
(CME) introduz a liquidao financeira como forma obrigatria de liquidao do contrato
futuro de boi magro26. Segundo Rochele, os motivos que levaram a CME a adotar a
liquidao financeira nesse contrato foram as disputas associadas ao padro da mercadoria
a ser entregue, os desgios para as mercadorias fora das especificaes estavam
freqentemente desalinhados com os diferenciais de preo do mercado a vista, elevados
custos de entrega, mltiplos locais de entrega, gerando incerteza dos long hedgers em
relao ao local de recebimento da mercadoria, enfim, o elevado risco de base.
No Brasil, mais precisamente na BM&F, a liquidao por entrega de contratos financeiros tambm propiciou vrias solues, entre as quais a adotada para os contratos de dlar, em que a inexistncia de um mercado livre de taxa de cmbio dificultava o procedimento de entrega. Outro exemplo foram os primeiros contratos de taxa de juro, sobre Certificados de Depsito Bancrio, que permitiram, simultaneamente, a coexistncia das liquidaes fsica e financeira. A possibilidade de liquidar por ambas as modalidades reapareceu no contrato futuro de bezerro, no incio da dcada de 90. Depois de ser aberto negociao como um
26 Boi Magro animal de reposio que determinadas fazendas compram para engord-los.
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contrato clssico, passou a admitir a liquidao financeira segundo um preo mdio apurado pela prpria BM&F. Em 1994, o contrato futuro de boi gordo da BM&F foi modificado para definir a liquidao financeira como norma e limitar a entrega a casos especiais. Outros contratos agrcolas, como soja e acar, tambm foram lanados com modalidades semelhantes. (Frick, 1999 p. 34-35)
A introduo da liquidao financeira no contrato futuro de boi gordo
No caso do mercado futuro de boi gordo da BM&F, antes da introduo da
liquidao financeira, especuladores e investidores, que propiciam liquidez ao mercado,
sentiam-se pouco vontade para operar nesse mercado, pois temiam pela possibilidade de
no conseguir encerrar suas posies antes do vencimento ou sofre um corner nessa data
(Rochele, 1997 p. 17) praticado por outros especuladores27. A introduo da liquidao
financeira referenciada num indicador de preo eliminaria as incertezas desses agentes
quanto ao cenrio de liquidao dos contratos. Nesse sentido, o clculo uma prtica
coletiva complexa que vai alm das competncias cognitivas individuais, ele tambm inclui
os objetos que mantm esses cenrios (Callon, 1998). A possibilidade de ficarem
espremidos (squeezed) diante da entrega ou recebimento dos animais certamente foi,
segundo Rochelle (1997 p. 19), o que afastou os investidores do mercado futuro de boi
gordo, mesmo no perodo onde as aplicaes nesses mercados foram mais incentivadas
(como foi o caso dos Fundos de Investimento em Commodities criados em 1992). Foi
justamente a partir da amplificao das controvrsias em torno desse mercado, com o
crescente interesse pelo mesmo a partir de 1992, que a BM&F resolve reorganiz-lo. Desde
27 O encerramento de uma posio no mercado futuro se d atravs de uma operao de natureza inversa
original. Tendo comprado um contrato, se vende outro contrato igual (e vice-versa). Dessa forma o participante estar transferindo seus direitos e haveres para outro participante. O corner a compra de um ativo em volume to elevado, que faz com que o comprador passe a deter controle sobre os preos.
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a introduo da nova maneira de liquidar seus contratos, o mercado futuro de boi gordo no
para de crescer28.
O fato social do indicador de preos de fundamental importncia no entendimento
da organizao dos mercados futuros. Ancorados no ideal ou modelo de competio
perfeita, esses mercados dependem de condies sociais especficas para se realizarem. A
interdependncia entre esses mercados e as prticas dos economistas responsveis pelos
indicadores de preos marca aquilo que Michel Callon (1998) chamou do embebimento
(embeddednes) dos mercados econmicos na cincia econmica. Essa interdependncia
estabelecida atravs de mediadores como o indicador de preos elaborados pelos
economistas. A excluso das relaes de entrega e recebimento do horizonte dos contratos
futuros atravs da introduo da liquidao financeira corresponde a uma padronizao
ainda maior desses contratos.
Desde sempre o nmero dos contratos liquidados por entrega correspondeu a um
percentual mnimo (entre dois a cinco por cento) do nmero de contratos liquidados pelas
bolsas de futuros. A grande maioria dos contratos sempre foi liquidada por reverso da
posio.29 De qualquer maneira, nas primeiras dcadas de existncia dos mercados
derivativos, a liquidao por entrega tinha um papel crucial nos torneios de valor
(Appadurai, 1986) existentes nesses mercados:
28 A Bolsa de Mercadorias & Futuros atingiu 1,05 milho de contratos agrcolas negociados no ano passado,
superando em 35% o volume de 2003. Esses contratos movimentaram US$ 7,85 bilhes, com alta de 68% em relao ao volume financeiro de 2003. Caf e boi gordo foram responsveis por 81% das negociaes agrcolas no mercado futuro da BM&F. Os contratos com caf somaram 621 mil, 30% a mais do que em 2003; os com boi gordo, 225 mil -mais 98%.(Folha de S. Paulo, 5 de janeiro de 2005) 29
Sobre a liquidao por reverso da posio: Pode ser feita a qualquer momento entre o incio da operao de compra ou venda de contratos e o vencimento dos contratos. O interessado deve comunicar ao seu corretor a inteno de compra (para quem estiver vendido) ou de venda (para quem estiver comprado) de contratos para o mesmo vencimento. Caso sejam feitos negcios, a liquidao feita pelo correspondente nmero de contratos revertidos. No caso de comprar ou vender todos os contratos necessrios, a posio totalmente liquidada e cessam as obrigaes do interessado com a Bolsa (Marques & Mello, 1999 p. 83).
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In the second half of the nineteenth century, the wheat pit (the Grain Exchange) in Chicago was obviously the scene of the making and breaking of individual reputations, of intense and obsessive competitions between specific individuals, and of hubristic efforts on the part of particular men to corner the market. () As I suggested earlier, many societies create specialized areas for tournaments of value, in which specialized commodity tokens are traded, and such trade, through the economics of status, power, or wealth, affects more mundane commodity flows. (idem p. 50)30
Mas com o crash da Bolsa de Nova Iorque em 1929, a especulao nos mercados
derivativos perde legitimidade diante da opinio pblica norte-americana.
The 1929 crash and the subsequent Great Depression reignited hostility to speculation in derivatives that looked like wagers on prices movement. Even as late as the 1960, market regulators such as the Securities and Exchange Commission (SEC; founded directly in response to the excess and abuses of the 1920s) remained deeply suspicious of derivatives. (Mackenzie e Millos 2003 p.113).
A partir da dcada de 1960, a estagnao dos mercados derivativos norte-
americanos, decorrente segundo Mackenzie e Millos (2003 p. 112-113), da forte regulao
governamental nos preos mnimos dos produtos agrcolas e da intensa oferta desses
produtos, leva os organizadores desses mercados a apostarem suas fichas no lanamento de
derivativos financeiros como soluo para tirar esses mercados da estagnao. Diante da
interveno governamental e da oferta expressiva dos produtos agrcolas, no fazia sentido
os produtores e consumidores de grande escala (como frigorficos e industrias alimentcias,
por exemplo) usarem os mercados derivativos para se protegeram das variaes futuras nos
30 Como aponta Cronon sobre o papel dos corners durante boa parte da histria dos mercados derivativos:
Although members sometimes invoked Board rules to try to close out corners once they had been run, few grain traders expected corners to disappear altogether. Indeed, their emotions about corners were an odd mixture of fear and admiration. A corner operator was a gamblers gambler. Whether one saw such people as heroes or as villains, one still had to admire their daring: tales of great corners and their operators become the stuff of Board legend. (Cronon, 1991 p. 131)
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preos desses produtos. Por outro lado, h muitas dcadas as bolsas de futuros viam os
ndices de aes como a chave para subscrever uma quantidade ilimitada de aes nos
contratos (Millo, 2002 p. 21), mas a proibio em cima da liquidao financeira barrava a
realizao dessa ambio (idem). Como apontam Mackenzie e Millo:
The most attractive foundation for a derivatives exchange was a futures contract on a stock market index such as the Dow Jones Industrial Average. That idea, however, fell foul of how the moral distinction between gambling and legitimate futures trading had been crystallized early in the 20th-century United States. A future contract was legal, the Supreme Court ruled in 1905, if it could be settled by physical delivery of a commodity such as grain. If it could be settled only in cash, it was an illegal wager. Since index was an abstraction, there was no straightforward way in which an index future could be settled other than in cash. (idem p. 113).
Os ndices costumavam, at ento, servir de indicadores dos mercados em geral, e
da que a abrangncia de um ndice estava apenas relacionada sua validade, isto ,
capacidade de refletir um mercado como um todo (Millo, 2002 p. 21)31. Do ponto de vista
das bolsas de futuros, a abrangncia dos ndices era vista como um possvel indicador da
capacidade de comercializao dos contratos (idem p. 20). Quanto mais abrangente um
ndice, aponta Millo, maior o nmero de compradores em potencial se interessarem por
um contrato baseado nesse ndice (idem). A soluo encontrada para introduzir a
liquidao financeira nos contratos futuros referenciados em ndices se deu atravs da
legitimao dessa forma de liquidao com base no perigo que a liquidao por entrega
das aes subscritas nesses contratos representaria para o mercado acionrio: esses
contratos, quando liquidados, iriam causar uma sbita demanda por aes, levando a uma
abrupta elevao nos preos dessas aes (idem p. 19).
31O ndice Dow Jones Industrial considerado o primeiro ndice do mercado acionrio, publicado pela primeira vez em 1884 enquanto uma mdia aritmtica dos preos de 11 aes escolhidas pelo industrial Charles Henry Dow entre as mais representativas do mercado acionrio norte-americano (Leite & Sanvicente, 1995 p. 12-13).
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A relao entre a padronizao de um contrato e o nmero de agentes que dele pode
se servir uma correlao constante nos mercados derivativos desde a criao dos
primeiros contratos futuros. A adoo de ndices de preos como referenciais de contratos
faz parte das estratgias das bolsas de futuros que buscam atrair um nmero maior de
participantes para seus mercados. Mas enquanto produtos criados por instituies externas
s bolsas, esses ndices estabelecem uma certa interdependncia entre as bolsas e essas
instituies. Na verdade, em mercados marcados pela presena de artefatos tcnicos e
fatos cientficos,