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  • Breve Histria de um Mercado Futuro

    Ricardo Luiz Cruz

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.

    Orientador: Federico Neiburg

    Rio de Janeiro Fevereiro de 2005

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    Breve Histria de um Mercado Futuro

    Ricardo Luiz Cruz

    Orientador: Federico Neiburg

    Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.

    Aprovada por:

    ____________________________ - Orientador Presidente Prof. Federico Neiburg

    ____________________________

    Prof. Carlos Fausto

    ____________________________

    Prof. Amir Geiger

    Rio de Janeiro Fevereiro de 2005

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    Cruz, Ricardo Luiz Breve Histria de um Mercado Futuro/ Ricardo Luiz Cruz. Rio de Janeiro: UFRJ/ Museu Nacional, 2005.

    100 f. Orientador: Federico Neiburg Dissertao (mestrado) UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de

    Ps-graduao em Antropologia Social, 2005. Referncias Bibliogrficas: f. 98-100

    1. Mercados Financeiros 2. Etnografia. 3.Mercados Derivativos. I. Neiburg, Federico II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Ps-graduao em Antropologia Social III. Breve Histria de um Mercado Futuro

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    Agradecimentos

    Aos meus pais e irmo agradeo pelo apoio incondicional durante esses dois anos de

    mestrado. A companhia de meus velhos amigos de So Paulo e dos novos do Rio ao longo

    desse perodo fez as coisas ficarem ainda mais fceis. O programa de Ps-graduao em

    Antropologia Social do Museu Nacional proporcionou um ambiente no qual meus

    devaneios puderam florescer, a orientao do professor Federico Neiburg permitiu que

    essas especulaes tomassem forma e com ele que compartilho os acertos dessa

    dissertao. As deficincias aqui contidas so de minha total responsabilidade.

    Agradeo tambm CAPES pela bolsa concedida durante os dois anos de mestrado.

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    Resumo

    Breve Histria de um Mercado Futuro

    Ricardo Luiz Cruz

    Orientador: Federico Neiburg

    Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.

    Esta dissertao busca fornecer algumas pistas para um melhor entendimento da eficcia social de um ideal chave na organizao da vida econmica contempornea: o ideal do mercado auto-regulado. Ao apresentar as prticas e agentes que sustentam as representaes em torno de um mercado organizado com base nesse ideal, o presente trabalho se insere numa tradio da antropologia preocupada em compreender a fora social das idias. O ideal em questo se realiza hoje de modo exemplar naqueles mercados financeiros conhecidos como mercados futuros ou derivativos, e so justamente esses mercados o objeto aqui enfocado.

    Rio de Janeiro Fevereiro de 2005

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    Abstract

    Short History of a Future Market

    Ricardo Luiz Cruz

    Orientador: Federico Neiburg

    Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.

    This dissertation inteds to contribute with some clues for a better understand of the social efficacy of a key ideal in contemporary economic life: the ideal of the self-regulated market. At showing the practices and agents tha sustain the representations about a market organizaed by this ideal the present work makes it part of an anthropological tradition preoccupied with the understanding of the social force of ideas. The ideal here taken into consideration realizes itself nowadays in a cleary way in that finacial markets know as the derivatives or futures markets and this are the object of the present study. .

    Rio de Janeiro Fevereiro de 2005

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    Sumrio

    Introduo ................................................................................. p. 8

    Captulo I Breve histria dos mercados derivativos ................ p. 18

    Captulo II As negociaes dos contratos e suas garantias ....... p. 47

    Captulo III - Sobre a liquidao de um contrato futuro .............. p. 69

    Concluso .................................................................................... p. 92

    Sumrio ..... ............................................................................... p. 98

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    Introduo

    Esta dissertao busca fornecer algumas pistas para um melhor entendimento da

    eficcia social de um ideal chave na organizao da vida econmica contempornea: o ideal

    do mercado auto-regulado. Ao apresentar as prticas e agentes que sustentam as

    representaes em torno de um mercado organizado com base nesse ideal, o presente

    trabalho se insere numa tradio da antropologia preocupada em compreender a fora social

    das idias1. O ideal em questo se realiza hoje de modo exemplar naqueles mercados

    financeiros conhecidos como mercados futuros ou derivativos, e so justamente esses

    mercados o objeto aqui enfocado.

    Ao longo dos ltimos anos os jornais e outros meio de comunicao em massa

    foram palcos de um debate pblico em torno daquilo que se convencionou chamar de

    neoliberalismo. Um dos lados desse debate pautou sua retrica numa linguagem de fundo

    econmico e basicamente defendeu a difuso de formas competitivas de socialidade como

    caminho para o desenvolvimento. O outro lado se definiu contra esse suposto movimento

    neoliberal e levantou a bandeira em torno das formas solidrias de socialidade.

    Independentemente de termos simplificado aqui o debate, o que importa chamar

    ateno para a dicotomia a presente: do lado liberal a busca dos interesses individuais

    leva ao desenvolvimento coletivo e do lado anti-utilitarista a solidariedade que deve

    organizar as trocas.

    1 O trabalho de Bronislaw Malinowski (1984) sobre a crena nos espritos Baloma e aquele de Marcel Mauss

    (2003) sobre a eficcia da magia certamente inauguram essa tradio.

  • 9

    Desde pelo menos o Ensaio sobre a ddiva de Marcel Mauss a antropologia vem

    tratando de maneira simtrica o intercmbio de bens. A considerao do carter hbrido de

    toda transao (ou da presena de interesse e desinteresse em qualquer intercmbio), abre

    uma nova chave discursiva no debate entre liberais e anti-utilitaristas. Afinal, a renda

    mnima, o teto salarial e o preo justo so questes de moral ou economia? Do ponto de

    vista antropolgico a anlise deve considerar a construo da confiana em torno desses

    valores ou aquilo que Appadurai (1986) chamou de polticas do valor. O que equivale

    dizer que o debate em questo poltico, isto , moral, econmico, esttico, cientfico,

    religioso e tudo mais que os sujeitos lanam mo para persuadir sua audincia. O domnio

    de uma esfera sobre as demais uma construo social que deve ser explicada como tal

    (Neiburg, 2004).

    O modelo de competio perfeita (BM&F, 2004 p. 10) a tnica dos discursos

    dos organizadores dos mercados derivativos sobre como estes devem funcionar. O que est

    em jogo nesse modelo a transparncia (idem) das negociaes e a conduo das

    mesmas de modo que nenhum dos participantes poder influenciar o preo a seu favor

    (idem). No plano discursivo isso significa que diante dessas condies possvel uma

    formao de preos o mais justa possvel (idem). Nesse sentido, a presente dissertao

    procura investigar de perto essas condies que garantem a formao desses preos justos

    aos olhos dos participantes desses mercados. Fazem parte dessas condies os agentes

    autorizados, tecnologias, ambientes e prticas que isolam as relaes de compra e venda de

    outras relaes sociais identificadas com o monoplio e a falta de transparncia.

    Derivativo basicamente um contrato financeiro cujo preo deriva de um outro

    preo ligado a um objeto ou ativo. Esse preo de referncia pode ser o preo de um taxa

    de juros, de uma taxa de cmbio, da arroba da carne bovina, da saca de caf, de um

  • 10

    conjunto de aes na forma de um ndice ou quaisquer instrumentos financeiros aceito para

    ser negociado. No contexto econmico brasileiro atual (de baixa inflao e elevada taxa

    bsica de juros), onde grande parte das instituies financeiras detm ttulos pblicos e

    privados corrigidos por taxas de juros, o mercado derivativo de taxas de juros da bolsa de

    futuros brasileira (Bolsa de Mercadorias & futuros - BM&F) vem sendo usado por essas

    instituies para transferir os riscos da variao futura dessas taxas para aqueles agentes

    financeiros interessados em especular com essa variao. No primeiro dia de julho de 2004,

    por exemplo, o mercado de taxas de juros da BM&F movimentou aproximadamente 60

    bilhes de reais, algo em torno de trs quartos do volume total de negcios registrados pela

    bolsa nesse dia.

    A relao da bolsa com o poder pblico brasileiro realizada atravs do Banco

    Central e da Comisso de Valores Mobilirios (CVM). Enquanto uma regulao

    distncia, nas prprias palavras da BM&F (BM&F, 2004 p. 12), essa relao

    extensamente detalhada na Instruo 283/98 (CVM). Nela a bolsa de futuros definida

    como uma entidade auto-reguladora responsvel por prever em seu regulamento os

    mtodos que utiliza para prevenir e corrigir situaes que coloquem em risco o

    funcionamento regular e ordenado do mercado sob sua gesto, bem como controles internos

    que permitam a imediata verificao do cumprimento de suas determinaes (art 2o). A

    bolsa se relaciona com as negociaes transcorridas em suas dependncias tambm atravs

    do princpio de no interferir no andamento das mesmas. Cabe bolsa apenas oferecer

    uma infra-estrutura (espao de prego) adequada para que o mercado acontea (BM&F

    2004, p. 10), sem participar diretamente (idem) das relaes de compra e venda nesse

    mercado. Atravs dessa infra-estrutura qualquer participante do mercado teria acesso s

    informaes dos negcios que l ocorrem (como num leilo), dessa maneira, a formao

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    dos preos seria a mais justa possvel (idem) na medida em que a oferta e a procura se

    relacionam sem qualquer mediao (elas se encontram), no havendo nenhuma

    possibilidade de distoro de preos (idem).

    A cmara de registro, compensao e liquidao (o departamento da BM&F

    responsvel pela garantia do cumprimento dos contratos) se coloca como contraparte em

    todas as negociaes da bolsa, mas de maneira alguma essa cmara pretende participar da

    formao dos preos. Compete a ela apenas o gerenciamento de risco de todos os

    participantes dos mercados, pois para negociarem o risco das variaes futuras nos preos

    os investidores tm que ter certeza de que os preos esperados negociados no variem aps

    a negociao. O clculo das margens de garantia que cada investidor deve prover e a

    liquidao de todos os contratos (nas condies e no prazo estabelecidos) so as

    atividades que fazem parte desse gerenciamento de risco. Para realizar essas atividades a

    bolsa pode se associar com outras instituies. Por exemplo, a liquidao financeira nos

    contratos derivativos agropecurios feita atravs dos convnios da BM&F com a Escola

    Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (para os contratos de boi gordo, acar e soja) e

    com a Fundao Getlio Vargas (para os contratos de milho). Essas instituies so

    encarregadas de produzir indicadores de preo dos mercados vista dessas commodities

    agropecurias, os quais so usados para referenciar a liquidao financeira dos contratos

    agropecurios2.

    Como anotou Karl Polanyi (2000 p. 92), um mercado auto-regulvel exige, no

    mnimo, a separao institucional da sociedade em esferas econmica e polticas. Em

    segundo lugar, como tambm colocou Polanyi, um mercado auto-regulvel antes que

    2 O contrato tambm pode ser liquidado atravs da entrega da mercadoria (bastando os interessados

    informarem a bolsa antes do vencimento dos contratos, caso contrrio os contratos sero automaticamente liquidados com base nos indicadores).

  • 12

    mais nada uma construo do que uma descrio feita com base na teoria econmica. Na

    BM&F, o modelo de competio perfeita no realizado apenas atravs da infra-estrutura

    (material e normativa) usada pela bolsa na construo do prego:

    Atualmente o papel das bolsas no se restringe apenas a oferecer infra-estrutura s negociaes, mas tambm em desenvolver mercados. A BM&F, por exemplo, conta com duas equipes tcnicas, uma voltada para os mercados agropecurios e outra para os mercados financeiros, que congregam diversas categorias de profissionais empenhados no estudo do funcionamento dos mercados, renovando os contratos j existentes e lanando novos produtos que possam ampliar a eficincia econmica desses mercados. As bolsas, dentro de seu papel institucional devem alcanar dois objetivos: funcionar como um centro de liquidez de negcios e ao mesmo tempo um centro de formao justa de preos.(BM&F, 2004 p. 11)

    Essa renovao ou padronizao (como tambm conhecida) dos contratos a

    mediao entre a liquidez dos negcios e a formao justa de preos. A facilidade de

    transferncia de um contrato (ou sua liquidez) abre espao para uma situao em que h

    muitos compradores e vendedores, pois desta forma todos os participantes sero tomadores

    de preo, ou seja, nenhum deles poder influenciar o preo a seu favor.(idem p. 10)

    Quanto melhor padronizado um contrato, maior o nmero de agentes capazes de se

    interessar por esse contrato e maior a liquidez de seu mercado. Um contrato mal

    padronizado afasta os investidores de seu mercado, mesmo que estes investidores tenham

    todo o interesse em negociar o preo futuro do ativo do qual o contrato deriva. Segundo um

    especialista em mercados derivativos, padronizam-se os contratos para que eles se

    assemelhem a uma moeda: intercambiveis, de alta liquidez (grande facilidade de serem

    transferidos para outras pessoas) e, em decorrncia disto, aplicveis a um grande nmero de

    indivduos (Neto, 1995 p. 61).

    As prticas e as representaes em torno da padronizao do contrato futuro de boi

    gordo da BM&F constituem a breve histria de um mercado futuro da qual trata essa

  • 13

    dissertao. Boi gordo o animal (criado em fazenda) pronto para o abate (em um

    frigorfico). O boi aparecia aos investidores como uma das poucas opes de investimento

    atraente no cenrio econmico brasileiro durante os sucessivos planos econmicos. Os

    baixos custos de manuteno dos animais nos pastos, se comparados com os custos de

    manuteno da carne congelada, resultavam na estocagem desses animais nas fazendas.

    Com isso, o mercado futuro de boi gordo poderia interessar aos detentores desses animais,

    na medida em que disponibilizava a esses investidores instrumentos (na forma de contratos)

    capazes de transferirem os riscos da variao futura nos preos desses seus ativos (os

    bois).

    Por outro lado, os especuladores (fundamentais para o funcionamento dos

    mercados derivativos, j que so para eles que os riscos de variao futura dos preos so

    transferidos) se mantinham afastados desse mercado futuro dado possibilidade de no

    conseguirem se livrar dos contratos antes do vencimento destes. No caso dos investidores

    interessados em especular com o contrato futuro de boi gordo, seus clculos esto

    vinculados liquidao por reverso da posio e no liquidao por entrega. No

    primeiro caso, a liquidao pode ser feita a qualquer momento entre o incio da operao de

    compra ou venda de contratos e o vencimento destes, bastando o investidor comunicar ao

    seu corretor a inteno de compra (para quem estiver vendido) ou de venda (para quem

    estiver comprado) de contratos para o mesmo vencimento3. Caso sejam feitos negcios, a

    liquidao efetuada pelo correspondente nmero de contratos revertidos. No caso de

    comprar ou vender todos os contrato necessrios, a posio totalmente liquidada e

    cessam as obrigaes do interessado com a bolsa. Mas num mercado que no apresenta

    liquidez, isto , onde difcil comprar ou vender os contratos, um investidor pode no

    3 Quem vende contratos est numa posio vendida e quem os compra est numa posio comprada.

  • 14

    conseguir se desfazer desses contratos at o vencimento. Se a nica opo de liquidao

    desse contrato no vencimento por entrega da mercadoria, ento o investidor ter que

    proceder dessa maneira. Tendo isso em vista, a soluo encontrada para atrair os

    investidores interessados nos contratos futuros de boi gordo foi introduzir a liquidao

    financeira. Mas o problema dessa forma de liquidao que ela precisa de um ndice de

    preos do mercado a vista desse animal como referncia.

    Em dezembro de 1993, a BM&F formalizou um convnio com a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ) [ligada Universidade de So Paulo] para a elaborao de um indicador de preos dirios tanto de boi como de bezerro. Aps trs meses de estudos e montagem de metodologia, o indicador de preos de boi gordo passou a ser divulgado diariamente para a imprensa e para o mercado. Agora, depois de nove meses de divulgao e alguns ajustes, a cmara do boi gordo e a rea tcnica da BM&F decidiram elaborar um novo contrato futuro, onde a liquidao no vencimento hbrida, ou seja, pode ser por entrega fsica do boi ou por liquidao financeira pela mdia dos ltimos cinco dias do indicador de preos. Mas s haver entrega fsica se for vontade de ambas as partes. Se uma delas no quiser receber, a BM&F liquidar as posies pelo indicador de preos. Com isso, a BM&F espera atrair para este mercado investidores comuns e institucionais que, hoje, esto afastados, pois temem sofrer um corner na poca do vencimento. (Resenha BM&F, 1994 p.48).

    O corner uma situao na qual um investidor que no conseguiu se desfazer do

    contrato antes do vencimento (devido baixa liquidez do mercado) obrigado a entregar o

    produto para um outro investidor que estrategicamente monopolizou o produto. O

    investidor, obrigado a entregar o produto, deve pagar o preo que o outro investidor pedir

    por ele para cumprir com suas obrigaes. Mas se eliminar a entrega do animal do

    horizonte dos investidores implica na adoo de um indicador de preos, preciso que os

    participantes desse mercado aceitem esse indicador. Nesse sentido, um consenso desses

    participantes em torno da validade desse indicador garante a realizao do ideal do mercado

    perfeito.

  • 15

    * * *

    A literatura antropolgica e sociolgica sobre os mercados financeiros recente e

    ainda relativamente pouco sedimentada para se formular a partir dela problemas especficos

    de investigao4. Nesse sentido, a questo inicial de a pesquisa era bastante genrica: tratar

    esses mercados enquanto fatos sociais. A sada encontrada para entrar nesse mundo social

    foi comear por me matricular num curso para profissionais que trabalham nos mercados

    financeiros, j que dificilmente alguma firma de investimentos se interessaria em contratar

    um bacharel em cincias sociais5. Mas os mercados financeiros so muitos, e os cursos

    disponveis sempre especficos. O Curso de Formao de Profissionais em Mercados

    Derivativos da Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) acabou sendo aquele escolhido

    para minha aproximao ao mundo das finanas.

    O propsito do curso era apresentar aos alunos o funcionamento dos mercados

    derivativos, a formao dos preos nesses mercados e as estratgias bsicas de negociao

    com seus contratos (uma segunda etapa do curso, da qual no participei, trataria das

    estratgias avanadas de negociao). Assim sendo, diariamente em aulas de quatro

    horas, durante quase trs meses, fomos introduzidos s prticas usuais de um operador de

    mercados derivativos, s prticas usuais de organizao desses mercados e a um modelo de

    4 Em junho de 2000 fundada, em Paris, a Associao de Estudos Sociais das Finanas. Em novembro

    desse mesmo ano realizado em Bielefeld (Alemanha) um encontro intitulado The Culture(s) of Financial Markets. A partir de 2001 uma sesso em torno dos Estudos Sociais das Finanas vai fazer parte das reunies anuais da Sociedade para o Estudo Social das Cincias e Tecnologias. Uma conferncia em torno dos estudos sociais das finanas acontece em maio e 2002 e em maio de 2003 acontece de novo em Bilefeld uma reunio em torno desse tema. Em outubro de 2004 lanada uma coletnea intitulada The Sociology of Financial Markets (organizada por Karin Knorr Cetina e Alex Preda), na qual esto reunidos os trabalhos de alguns dos participantes desses diversos encontros ocorridos nos anos anteriores. 5 Um trabalho de campo nessas firmas era invivel, pois estas possuem contratos nos quais suas operaes

    nos mercados financeiros no podem ser divulgadas para terceiros na medida em que lidam com informaes caras a seus respectivos clientes.

  • 16

    formao de preos que orientava ambas as prticas. Mas a realizao desse modelo no

    qual apenas a relao entre uma oferta e uma demanda regule o preo s possvel atravs

    do trabalho dos organizadores desses mercados em recortar essa relao de outras relaes

    com as quais forma uma totalidade. Esse trabalho define qual relao de negociao os

    participantes dos mercados devem levar em conta quando forem calcular suas estratgias

    de negociao. A certeza quanto relao envolta na formao de preos permite que

    estes fechem ou terminem seus clculos. A partir disso foi possvel a formulao de um

    problema de investigao que permitisse examinar com um foco especfico a perspectiva

    geral de tratar os mercados derivativos como fato social. O objeto de estudo a breve

    histria do mercado futuro de boi gordo - apareceu durante uma aula sobre mercados

    derivativos agropecurios6.

    A dimenso emprica da pesquisa comeou com uma visita a uma corretora de

    valores, na qual foi possvel realizar uma entrevista com o responsvel por essa empresa.

    Este, um ex-presidente do Banco Central do Brasil, nos forneceu uma viso acurada da

    dinmica dos mercados financeiros, crucial para nossa mobilidade nesse meio. Diversas

    visitas foram feitas Bolsa de Mercadorias e Futuros no centro de So Paulo e ao centro de

    pesquisas responsvel pelo indicador de preo do boi gordo. Trechos das entrevistas

    conduzidas com os pesquisadores desse centro esto transcritas nessa dissertao.

    O primeiro captulo dessa dissertao reconstri brevemente a histria dos mercados

    derivativos. Atravs dessa reconstruo possvel perceber que esse modelo do mercado

    auto-regulvel s aparece num momento posterior dessa histria e, para acompanhar esse

    processo de perto, analiso as mudanas de significado em torno da liquidao dos contratos

    6 Nesta aula ficou evidente a relao mutuamente constitutiva entre um mercado futuro e um instituto de

    pesquisas. Foi essa relao que atraiu minha ateno. Para uma reflexo em torno da relao entre economistas e economia ver Bourdieu (1997).

  • 17

    negociados, mudanas essas que refletem a reorganizao destes com base nesse modelo. O

    captulo seguinte discute os mercados derivativos contemporneos a partir da recente

    literatura antropolgica e sociolgica sobre eles. De alguma maneira ou de outra esses

    trabalhos acabaram esbarrando numa das duas tecnologias usadas na organizao desses

    mercados. O prego e a cmara de compensao, registro e liquidao participam

    ativamente do controle das negociaes, a partir deles uma infinidade de relaes se

    conecta a esses mercados de modo a permitir que seus participantes levem em considerao

    nas negociaes apenas os preos dos contratos. O terceiro e ltimo captulo se concentra

    na histria do mercado futuro de boi gordo. A partir das mudanas em torno da liquidao

    dos contratos negociados nesse mercado, o captulo reconstri algumas dimenses da

    complexa trama de agentes e tecnologias que fazem dele, aos olhos desses agentes, uma

    realizao do modelo do mercado perfeito.

  • 18

    Captulo I Breve histria dos mercados derivativos

    Chicago financial derivatives markets have sprung up around the globe, copying and adapting Chicagos products, its trading procedures, its technical systems, and even its culture (Mackenzie & Millo, 2003 p. 136)

    O presente captulo uma reconstituio da historia dos mercados derivativos

    interessada em destacar as mudanas de significado em torno de uma dimenso central

    desses mercados: a liquidao dos contratos. Outrora parte importante na legitimao dos

    mercados derivativos e nos clculos de seus participantes, a liquidao por entrega vai

    passar em determinado momento a ser associada ineficincia na transferncia dos riscos.

    A proeminncia atual da liquidao financeira nos contratos derivativos tem como pano de

    fundo a idia de que a entrega do produto deve ser abstrada na medida em que suas

    condies de realizao no correspondem quelas do modelo de competio perfeita.

  • 19

    A Chicago Board of Trade7

    A histria dos mercados derivativos coincide com a histria da primeira bolsa de

    futuros do mundo: a Chicago Board of Trade8. Essa coincidncia no fortuita na medida

    em que a natureza padronizada dos contratos negociados nesses mercados requer uma

    instituio responsvel por esta padronizao9. A origem desses contratos padronizados de

    liquidao futura acontece em meados do sculo XIX na cidade de Chicago. Na verdade, o

    cenrio mais amplo no qual os mercados derivativos surgem situa-se na vasta regio a oeste

    dos Grandes Lagos da Amrica do Norte habitada por fazendeiros de ascendncia europia

    que, no decorrer do sculo XIX, e ao contrario dos indgenas tambm situados nesse

    espao, vo destinar parte de sua produo agrcola aos mercados das cidades de Saint

    Louis e Chicago. O transporte desses produtos em geral gros - era ento

    majoritariamente feito atravs dos rios presentes na paisagem adjacente a essas cidades, nas

    quais incontveis trabalhadores carregavam em seus ombros as sacas que desembarcavam

    em direo aos mercados. Para a maioria das fazendas em Illinois e Iowa, os mercados mais

    7 No premiado livro Natures Metropoils: Chicago and the Great West, escrito por William Cronon (1991),

    podemos encontrar em um de seus captulos a histria da criao da primeira bolsa de futuros do mundo: a Chicago Board of Trade. O tema do livro, nas prprias palavras do autor, a relao entre a cidade de Chicago (EUA) e aquela grande regio em torno da mesma (o Grande Oeste). O que segue sobre a criao desta bolsa nada mais do que o resumo deste captulo. 8 As bolsas de valores existem desde pelo menos o incio do sculo XVII. Para uma descrio da origem das

    bolsas ver Braudel (1998). 9 Antes da constituio dos mercados derivativos eram negociados h muito mais tempo contratos a termo

    (forward contracts ou to arrive contracts). Os contratos a termo, ainda freqentes nos dias de hoje, so acordos privados de compra e venda de um produto para liquidao em uma data futura por um preo determinado. Ao contrrio de um contrato futuro com estrutura previamente padronizada por regulamentao de uma bolsa (estabelecendo limites quanto especificao do produto, qualidade, locais e meses de entrega, embalagem, meios de transporte e formas de liquidao e pagamento), as especificaes dos contratos a termo so de responsabilidade das partes contratantes. De qualquer maneira, como ficar claro mais frente, a criao dos contratos futuros pressupe a existncia desses contratos.

  • 20

    fceis de alcanar estavam rio abaixo, em Saint Louis ou, mais remotamente, New Orleans,

    de onde os gros seguiam para a costa leste ou Europa. Mas com a extenso da malha

    ferroviria a oeste de Chicago, os migrantes para esses dois estados deixam de privilegiar

    os vales fluviais prximos a Saint Louis, e se mudam rapidamente para esse novo corredor

    de escoamento da produo. Conseqentemente, como era de se esperar, houve uma

    exploso na entrada de gros em Chicago. Em 1855 Saint Louis era deixada para trs

    enquanto destino privilegiado do trigo apenas cinco anos antes ela recebia o dobro de

    trigo que Chicago - e o mesmo ocorrendo com o milho, logo aps a abertura do Canal de

    Michigan e Illinois em 1848. Entre 1850 e 1854, a rota atravs dos Grandes Lagos (via

    Chicago) se consolida como a passagem principal dos gros em direo costa leste,

    desbancando a posio antes ocupada por New Orleans.

    Com o aumento da velocidade no trigo remetido a Chicago tendo em vista o retorno

    tambm rpido do capital investido nesse complexo ferrovirio, os trabalhadores que at

    ento descarregavam em seus ombros as sacas desse gro, se tornaram obsoletos. Esse

    rpido descarregamento foi possvel atravs da adoo, pelos comerciantes de Chicago, de

    um elevador de gros movido a vapor, o qual fora inventado em 1842 e difundido nessa

    cidade ao longo dos anos de 1850 (em 1857 havia doze elevadores em Chicago, capazes de

    armazenarem mais trigo do que Saint Louis poderia embarcar durante esse mesmo ano).

    Mas a adoo dessa tecnologia armazns de vrios andares divididos em numerosos

    receptculos verticais contendo diferentes lotes de gros - colocara em questo os padres

    correntes de medida do trigo, at ento baseados no volume, e que diante do novo

    mecanismo tambm ficaram obsoletos. Transportados at o topo do elevador dentro de

    baldes atados a uma esteira movida a vapor, os gros eram ento pesados em balanas

  • 21

    afuniladas antes de serem despejados atravs de uma rampa controlada por um operador -

    num receptculo, de onde deslizariam at um trem ou navio.

    A nova tecnologia permitiu uma diminuio nos custos do desembarque dos gros,

    uma vantagem na briga com Saint Louis, mas a maximizao do uso dessa mesma

    tecnologia obrigava aqueles que embarcavam seus gros nesses elevadores a se desfazer

    das sacas nas quais esses gros vinham embalados, misturando-os com outros gros de

    propriedade alheia. No complexo de transporte anterior aos trens e elevadores, os laos de

    propriedade entre o fazendeiro e seu produto estavam inscritos na prpria saca, e a mistura

    de gros de propriedades diferentes s acontecia por meio do consumidor. A soluo desse

    problema em torno da propriedade dos gros ficou nas mos da Cmara de Comrcio de

    Chicago (Chicago Board of Trade CBOT), uma instituio privada fundada em maro de

    1848 por 82 comerciantes de ocupaes as mais diversas e que, a princpio, tinha como

    objetivo apenas representar os interesses dos comerciantes perante a cidade.

    Em 1854 a CBOT d incio a uma presso em cima dos comerciantes para que

    substituam o antigo sistema de volume usado para medir os gros, por um outro baseado no

    peso dos mesmos10. A medida acabou sendo facilmente aceita, com apenas algumas

    divergncias em torno de quantas libras teria um alqueire (bushel) de gro, mas o consenso

    em torno desse tpico no demorou a ser alcanado. No entanto, a negociao de gros em

    Chicago continuara sendo feita de maneira descentralizada, com mercadores efetuando suas

    transaes nos mais diversos escritrios, armazns e ruas espalhadas pela cidade. Porm,

    com a Guerra da Crimia estourando na Europa, a demanda dos gros de Chicago por parte

    do Velho Mundo, atravs de seus intermedirios localizados nessa cidade, vai comprimir

    espacialmente as negociaes na medida em que estes ltimos passam a se concentrar nas

    10 Sobre a relao entre sistemas de medida e mercados ver Witold Kula (1980)

  • 22

    dependncias da Cmara (doravante conhecida como a Bolsa). Em 1856 a CBOT, ento

    cercada de um maior prestgio em relao quele que detinha nos seus anos iniciais, adota

    padres uniformes para os gros comercializados na cidade como um todo, reestruturando

    assim esse mercado de uma maneira jamais vista.

    A soluo para o dilema da propriedade do trigo enfrentado pelos operadores dos

    elevadores se deu em 1856, atravs da adoo de trs categorias de trigo (trigo primavera,

    trigo vermelho e trigo inverno) difundidas pela CBOT em Chicago, cada uma

    representando um padro de qualidade diferente. A partir disso, os elevadores passaram a

    emitir recibos especificando tanto a quantidade do produto depositado quanto a categoria

    do mesmo. Todavia, alguns fazendeiros passaram a embarcar seus gros junto de inmeras

    impurezas as quais aumentariam o peso do produto, prticas essas que acabaram refletindo

    em Nova Iorque, com a substituio da demanda dos agora gros sujos de Chicago por

    aqueles mais limpos de Milwaukee. Tendo em vista a melhora na reputao do trigo de

    Chicago, a CBOT adota entre 1857 e 1858 novas reformas em seu mercado: no primeiro

    ano, o trigo primavera vai dar lugar a trs categorias de trigo (Club Spring, No.1 Spring e

    No. 2 Spring) de maior e menor qualidades respectivamente, mas no ano seguinte uma nova

    categoria (rejeitado) vai ser adicionada (em 1866 vo estar em vigor 10 diferentes

    categorias de trigo), sendo a melhor categoria referente ao gro mais puro, limpo,

    rechonchudo, seco e pesado que os demais. Ainda em 1857 a CBOT vai escalar um

    inspetor encarregado de julgar a qualidade dos gros dentro dos armazns, trs anos depois

    esse inspetor autorizado a contratar e treinar uma equipe de assistentes capazes de o

    auxiliar dentro dos depsitos, na verificao da correspondncia da categoria dos gros

    encontrados nos receptculos com a classificao feita pelos controladores do elevador. As

    acusaes de fraude supostamente cometidas pelos inspetores no deslegitimariam a

  • 23

    CBOT, justamente por esta ser uma organizao cujos membros incluam tanto vendedores

    quanto compradores de gros, que em conjunto teriam um interesse claro numa

    classificao honesta.

    Em 1859 o estado de Illinois reconhece a CBOT como um corpo poltico e

    associado, capaz de adotar inspetores e medidas cujos julgamentos sobre a qualidade dos

    gros teriam peso de lei diante de seus membros, que na ocasio eram a grande maioria dos

    comerciantes de gros de Chicago. Alm disso, nas disputas entre seus membros em torno

    de algum descumprimento dos termos dos contratos, um comit da CBOT teria o poder de

    arbitrar entre as partes contratantes. O comrcio de gros da cidade passara dessa maneira a

    ser regulado por uma entidade quase-judicial com substanciais poderes legais, que junto do

    sistema de classificao de gros e dos elevadores constituiriam uma revoluo no

    comrcio de gros, ao instaurar um novo mercado em cima dos recibos emitidos por estes

    armazns.

    A existncia de um sistema classificatrio padro dos gros mais uma rede

    telegrfica (em Chicago desde 1848) permitiu que este mesmo mercado se estendesse a

    outras cidades e continentes, visto que a padronizao garantida pela CBOT eliminara de

    vez a necessidade da inspeo de amostras do produto. Assim, criaram-se tambm

    condies para a negociao de um tipo de contrato denominado to arrive (a entregar),

    transacionado em pequena escala nas cidades de Buffalo e Chicago, entre outras, desde

    1840, que com o telgrafo e o sistema de classificao ganhariam uma popularidade sem

    precedentes. A unio desses contratos to arrive com os recibos padronizados dos

    elevadores deram incio aos mercados futuros.

    Os contratos to arrive permitiam queles que embarcassem seus gros nos

    elevadores e recebessem os recibos, se proteger das possveis quedas nos preos ao se

  • 24

    comprometerem a entregar certa quantia do produto numa data futura a um preo pr-

    determinado. Atravs desses contratos tambm era possvel aos que no tivessem a

    mercadoria, especular sobre o preo futuro da mesma, pois poderiam a qualquer momento

    adquiri-la nos elevadores antes de exercerem suas obrigaes contratuais. Por exemplo,

    assumindo um compromisso de vender gros que ainda no tivesse, algum poderia

    especular esperando um preo menor do gro no final do contrato em relao ao preo que

    o comprador do contrato se comprometeu em pagar. O grande volume de recibos dos

    elevadores em circulao garantia uma margem de segurana para a estratgia desse

    especulador.

    Mas no decorrer da segunda metade da dcada de 1860, ao lado desse mercado de

    recibos de elevador onde se negociavam gros realmente presentes na cidade, crescia um

    mercado de contratos para a entrega futura de gros que talvez nem existissem. Nesse novo

    contrato com entrega futura padronizada de quantidades fixas de uma categoria tambm

    padronizada de gro, s partes contratantes s restava definir o nmero de contratos a serem

    transacionados e os preos que incidiriam sobre os mesmos. Dado que na prtica a entrega

    nunca acontecia, nesse mercado se negociava no gros em si, mas seus preos: se o

    comprador do contrato no desejasse receber os gros (opo mais comum da em diante),

    bastaria s duas partes, no final do contrato, intercambiar a diferena entre o preo do gro

    definido no contrato e o preo corrente do mesmo no mercado nesse momento.

    No perodo que segue o final da Guerra Civil Norte Americana, os interesses

    especulativos acabam dominando cada vez mais as negociaes na Bolsa. Em 1875 o

    mercado fsico de gros negociara em torno de US$ 200 milhes, enquanto as transaes no

    futuro atingiam um volume de US$ 2 bilhes no final deste mesmo ano (uma dcada depois

    essa montante seria quinze vezes maior que o negociado no fsico).

  • 25

    Os corners

    Mas por mais tnue que possa parecer, a relao entre o mercado fsico e o futuro

    jamais se desfaria, alis, estava inscrita na prpria data de expirao dos contratos, pois

    mesmo a liquidao destes se dando quase que na sua totalidade pela diferena de preos

    entre tais mercados, a entrega dos gros no vencimento dos contratos (em datas

    padronizadas, geralmente no ltimo dia de certos meses) forava a convergncia dos

    preos. As situaes onde essa relao ficava mais patente se davam quando um grupo de

    especuladores, sorrateiramente comprava contratos futuros que expirariam um pouco antes

    da nova colheita, quando as ofertas estavam as mais baixas possveis, e ao mesmo tempo

    estes especuladores compravam gros, na esperana de controlar a maior parte da oferta do

    produto quando os contratos vencessem (situao essa de monoplio denominada desde

    ento como corner). Dado que suas estratgias ltimas visavam manipular o mercado e

    ludibriar desavisados especuladores comprometidos com a venda futura de gros, suas

    compras deveriam ser feitas da maneira mais invisvel possvel, tomando todo cuidado para

    que esses outros especuladores no se desfizessem de seus contratos de compra at a data

    de vencimento dos mesmos. Ao demandarem a entrega do produto, foravam os

    vendedores dos contratos a adquirirem os gros no mercado fsico, monopolizados pelos

    praticantes do corner, e nessa ocasio vendidos a preos exorbitantes. Aqueles que se

    recusassem a cumprir o contrato diante de tais preos, estariam sujeitos s penalidades

    previstas no estatuto da Bolsa, ou seja, poderiam no s perder suas reputaes como

  • 26

    tambm serem levados falncia ou mesmo priso. Nessas circunstncias as somas de

    dinheiro que trocavam de mos atingiam cifras na casa dos milhes de dlares.

    A inovao operada no mercado de gros de Chicago possibilitara simplificar a

    diversidade de um gro em categorias capazes de permitir a compra e venda do mesmo

    enquanto abstraes homogneas, criando fronteiras entre as classes de gros que esto na

    raiz do contrato futuro e do corner. Essa padronizao dos contratos futuros permite, ao

    contrario das especificaes presentes nos contratos to arrive, a transferncia dos contratos

    futuros entre os diversos participantes desses mercados derivativos. Categorias diversas de

    um mesmo gro resolveram em certa medida as questes relacionadas qualidade, pois

    reduziram a diversidade dos gros encontrada nos mercados que comercializavam esses

    produtos na sua forma fsica e, dessa maneira, poderiam servir como referncia a um

    nmero grande de negcios. Mas por outro lado, segmentaram o mercado na medida em

    que um gro de uma classe X no poderia ser usado no cumprimento das obrigaes

    referentes a um da classe Y, o que tornara plausvel a prtica do corner. Nesse sentido, tal

    prtica no deve ser pensada como resultado apenas dos contratos futuros, mas tambm

    como conseqncia da categorizao dos gros e dos elevadores. A soluo para o

    problema do corner e de outras controvrsias ligadas liquidao por entrega dos produtos

    s ser alcanada mais de um sculo depois da criao dos contratos futuros, atravs da

    adoo dos preos desses produtos nos seus mercados fsicos (ou vista) como referncia

    para a liquidao dos contratos futuros. De qualquer maneira, um mesmo movimento duplo

    de desentranhamento dos contratos (da diversidade dos gros e, mais tarde, dos prprios

  • 27

    gros) e emaranhamento dos contratos (nos clculos dos investidores interessados ou no

    na entrega dos produtos) est presente ao longo da histria dos mercados derivativos11.

    No final da dcada de 1860 as questes relativas s fronteiras de um gro unem

    fazendeiros e membros da CBOT na luta contra as prticas dos operadores dos elevadores.

    A classe na qual o produto de uma famlia plantadora de trigo deveria ser colocado era um

    problema que refletia na prpria reproduo dessa famlia, da a enxurrada de disputas e

    reclamaes que chegavam aos armazns em torno dessas fronteiras e definies. Acontece

    que esse sistema de classificao da CBOT se apia numa conveno ficcional de que o

    gro seria uniforme dentro das classes, mas o gro fsico continuaria varivel como sempre.

    Dado o carter contnuo da qualidade e a natureza discreta das categorias, o trabalho dos

    operadores dos elevadores era apenas manter as variedades do trigo e suas categorias

    separadas. Por exemplo, um trigo primavera n.1 teria de ter mais de 59 libras por alqueire, o

    n.2 entre 56 e 59, e os abaixo de 56 seria rejeitado (teriam mercado, mas com preos

    bastante reduzidos). Mas estes agentes passaram a misturar os gros trazendo-os o mais

    prximo da fronteira mais baixa de uma categoria, capturando assim o valor escondido nas

    variaes entre as categorias, causando a ira dos fazendeiros desconfiados de que tal atitude

    os privava de dividendos seus por direito. Outra reclamao contra os armazns e que

    tambm recaia sobre os administradores ferrovirios, tinha a ver com as abusivas taxas

    cobradas pelos elevadores, as quais s cairiam, segundo seus crticos, quando o monoplio

    sobre os trens e elevadores terminasse (ambos atuavam de maneira associada). As

    11 Para Appadurai (1986) um bem pode estar mercantilizado, passar a estar desmercantilizado e depois

    remercantilizar. Thomas (1991) aprofunda essa idia de mercantilizao e fala da necessidade da dissociao de algo de outros objetos e pessoas para que este algo entre numa transao mercantil, pois caso esse algo se mantenha emaranhado numa rede de coisas e pessoas, aquele que o receber nunca estar quite e no poder escapar dessa rede de relaes. Para Callon (2002) so as qualificaes e re-qualificaes de um produto que levam individualizao das propriedades que fazem dele calculvel pelo seu consumidor, da a compra ser considerada por Callon como um processo de vinculao do produto ao mundo (social e tecnolgico) do consumidor.

  • 28

    informaes referentes aos interiores dos armazns tambm deveriam ser pblicas, pois

    privilegiavam os que atuavam tanto dentro do armazm quanto no mercado de gros. Os

    fazendeiros e a prpria CBOT ganharam a simpatia dos grandes jornais de Chicago e da

    classe poltica estadual e federal, e em 1877 a Suprema Corte do pas tornou os elevadores

    propriedades de interesse pblico, sujeitas assim regulao do Estado.

    Mas a relao das autoridades e da imprensa de Chicago com esse novo interesse

    pblico vai permanecer ambivalente. Se de um lado, foram os elevadores de gros que

    permitiram a existncia, pela primeira vez na histria, de um mercado anual de gros que

    transcendesse o carter sazonal desses produtos, regulando a oferta e a procura nos seus

    perodos de safra e entressafra, por outro lado, os operadores dessa tecnologia continuariam

    visados enquanto sujeitos que aproveitariam qualquer brecha ou ambigidade nas fronteiras

    entre os mercados para benefcio prprio. Os membros da CBOT tambm continuariam

    sendo visto ora como aqueles parasitas do trigo alheio, ora como aqueles dos quais os

    fazendeiros dependiam para negociar suas colheitas.

    Dessa maneira, a notabilidade da cidade de Chicago transitaria entre sua capacidade

    em lidar, atravs de suas ferrovias, elevadores e portos, com uma enxurrada de gros que

    passavam pelos mesmos, e a igualmente notvel capacidade de uma infinidade de agentes

    de redefinio do sentido dos gros dentro de uma complexa teia de fices mercantis,

    abstraindo e simplificando estes para facilitar seus movimentos no como objetos fsicos,

    mas enquanto mercadorias, o que tornara o mercado de Chicago algo de irreal para aqueles

    situados fora dele.

    Mas a ambivalncia em torno dos gros era algo anterior comercializao do

    mesmo na cidade, apesar de nesta sua abstrao ter sido amplificada. J no campo, o

    outrora complexo ecossistema anterior s plantaes de gros sofrera brutais intervenes

  • 29

    em prol de uma dieta de razes europias. Mas a diversidade que emanava das pradarias

    encontrava no sistema antigo de transporte e comercializao dos gros, caminhos atravs

    dos quais essas distines prprias do campo permanecessem diante da relao

    indissocivel que as sacas produziam entre o produtor e seu o produto. Mas essa ligao

    no permitia a maximizao da nova tecnologia dos elevadores, o que fez com que certas

    decises de natureza pragmtica entrassem em jogo. Porm, as conseqncias imprevistas

    dessas decises se deram num plano propriamente simblico, atravs da criao de uma

    nova ordem de significados em torno do trigo no mercado de Chicago, que o distanciava do

    trigo encontrado nas fazendas.

    A no utilizao das sacas nos elevadores fez com que o comrcio de gros se

    transferisse para dentro de um edifcio (a Bolsa), onde pedaos de papel substituam os

    prprios gros. Com a categorizao padronizada destes, os pedaos de papel no mais

    representariam os gros propriamente ditos, mas sim certas convenes abstratas cuja

    homogeneidade era a condio que faria estes papeis intercambiveis. Tal

    intercambialidade foi o que permitiu a venda de gros no apenas atravs de enormes

    distncias espaciais, mas tambm atravs de largos perodos de tempo, tudo isso a partir do

    novo sentido que os agentes sociais envolvidos na Bolsa conferiram aos gros. Comentando

    o desfecho dessa histria apresentada por Cronon, Theodore Porter ressalta:

    No final, burocratas e negociantes lograram em criar o que jamais existira nas fazendas e muito menos na natureza: categorias uniformes de produtos. Da em diante, o trigo poderia ser comprado e vendido na bolsa de Chicago por negociantes que o jamais tivessem visto e que jamais o veriam que no conseguiriam distinguir trigo de aveia. Estes poderiam at comprar e vender mercadorias que ainda no existissem. Assim, uma rede reguladora criou um espao para informao, no sentido moderno do termo. Um negociante de trigo de sucesso no mais teria que gastar seu tempo em fazendas, portos, e terminais julgando a qualidade do produto de cada fazendeiro. Por volta de 1860 o conhecimento necessrio para negociar trigo fora separado do trigo e da palha. Agora consistiria nos dados referentes ao preo e a produo, os quais deveriam ser encontrados em documentos impressos produzidos minuto a minuto. claro que a necessidade de contatos pessoais e fontes

  • 30

    privadas no desaparecera. Cada vez mais, todavia, at rumores originavam-se onde a ao acontecia no nas fazendas, mas no prego da bolsa. (Porter, 1995 p. 48)12

    A padronizao dos gros nos contratos futuros era a o que facilitava a transferncia

    desses contratos entre os participantes do mercado futuro, a qualquer momento, o que

    tornavam esses contratos semelhantes s moedas. Mas a criao de um mercado financeiro

    em torno dos produtos agrcolas no eliminara de vez a relao entre o universo financeiro

    e o rural: enquanto contratos futuros de entrega de produtos agrcolas, estes negociavam o

    preo futuro de determinado produto, cujo recebimento ou entrega fazia parte do horizonte

    do contrato, mesmo sendo de interesse de uma nfima minoria dos detentores dos contratos.

    Mas tais relaes de entrega ou recebimento poderiam envolver aqueles agentes que, por

    determinados motivos, no conseguissem se desfazer de seus contratos antes destes

    vencerem13.

    A proliferao dos mercados derivativos

    Em 1874 criada a Chicago Produce Exchage, centrada na comercializao de

    manteiga, ovos, aves e outros produtos agrcolas perecveis (Hull, 1996 p. 3) Os

    12 Esta e todas as outras tradues presentes na dissertao so de minha autoria.

    13 Mas claro que o gro fsico no desaparecera do mercado de Chicago, por mais que as varias fices em

    torno do mesmo obscurecessem sua presena. O sucesso ou fracasso das colheitas e as necessidades de alimentao das pessoas ao redor do mundo, permaneceriam sendo as condies ultimas das ofertas e demandas que estariam por debaixo desse mercado. Os maiores problemas enfrentados pela Chicago Board of Trade sempre ocorreram nas fronteiras onde suas fices mercantis intercederam com o mundo real. Quando especuladores aplicavam um corner nos mercado futuros, estes obtinham sucesso, pois os investidores encurralados deveriam justamente promover o encontro dos contratos vencidos com os gros fsicos. Os fazendeiros acreditavam que Chicago estava os roubando porque as categorias padro realmente obscureciam as diferenas legtimas no valor dos gros embarcados nos elevadores, de tal modo que criava novas oportunidades de roubo. As pessoas discutiam sobre categorizao, mistura, e troca porque as abstraes do mercado de Chicago finalmente se conectavam com o mundo real. Gro enquanto colheita e gro enquanto mercadoria mantinham uma difcil trgua nas dependncias da Bolsa, um trgua que refez o horizonte agrcola do Grande Oeste. (Cronon, 1991 p. 147)

  • 31

    comerciantes de manteiga e ovos abandonam essa bolsa para formar, em 1898, a Chicago

    Butter and Egg Board, a qual em 1919 vai passar a se chamar Chicago Mercantil Exchange

    (CME) e que hoje, depois da introduo de diversos outros contratos ao longo dos anos,

    como o de toucinho (1961), boi gordo (1964), suno vivo (1966), bezerro (1971), moedas

    ou cmbio (1972) e ndice de aes (1982), veio a se colocar como a segundo maior bolsa

    de futuros do mundo, negociando um total de 530.989.007 contratos em 2003 (ver Sntese

    de Dado, maio de 2004 p.27), seguida de perto pela CBOT, terceira maior, com

    373.669.290 contratos negociados (idem).

    Em 1975, a Chicago Board of Trade, arqui-rival da CME (Roberts, 1999 p. 57),

    havia lanado o primeiro contrato futuro de taxas de juros. Esses ltimos mercados de

    derivativos financeiros criados a partir do incio da dcada de 70 e expandidos ao longo dos

    anos 80 e 90 (em meados desta dcada vo estar funcionando 65 bolsas de futuros ao redor

    do mundo14), atingem no ano de 1997 a espantosa cifra de US$40,9 trilhes em valores

    negociados (idem). Para Roberts (idem), o aumento da volatilidade das moedas (ou

    diminuio da estabilidade cambial), aps o fim do sistema Bretton Woods (1944-73) de

    taxas de cmbio fixas entre os pases centrais (Estados Unidos, Comunidade Econmica

    Europia e Japo), provocou a demanda por um instrumento que permitisse s empresas,

    aos bancos e a outros agentes fazerem um seguro contra o risco cambial. As taxas de juros e

    os preos tambm tinham se tornado muito mais volteis em conseqncia do aumento dos

    preos do petrleo, em 1973, e de outros fatores desestabilizadores (idem). A partir de

    1980 comeam a surgir as primeiras liquidaes financeiras de contratos futuros, as quais

    visavam eliminar de vez a entrega e o recebimento fsico do horizonte desses contratos.

    14 Em 1997 criada a europia Eurex, a bolsa com o maior volume de contratos (668.650.028 em 2003)

    negociados atualmente (ver Sntese de Dados, maio de 2004 p.27)

  • 32

    A preponderncia dos contratos financeiros (derivativos de aes, taxas de juros,

    taxas de cmbio, etc) sobre os contratos agrcolas (derivados agropecurios) hoje uma

    realidade de qualquer bolsa de futuros, o que muda o percentual da participao de cada

    modalidade de contrato. Na CME, onde a participao dos contratos agrcolas bem

    expressiva se comparada, por exemplo, com a bolsa de futuros brasileira, 20% dos

    contratos negociados so agrcolas (ou de commodities). J na Bolsa de Mercadorias e

    Futuros (BM&F), no mais do que 2% dos contratos negociados derivam desses produtos

    (o restante so derivados de produtos financeiros).

    Inspirada na CME, segundo Lozardo (1998), fundada no dia 4 de julho, em So

    Paulo, a Bolsa Mercantil & de Futuros (BM&F). Em 1983 alguns membros da Bolsa de

    Valores de So Paulo (BOVESPA) haviam iniciado um projeto de criao de mercados

    futuros organizados, o qual resultara na criao da BM&F em julho de 1985, sendo que

    esses ento membros da BOVESPA vo acabar se desligando da mesma e, dessa maneira,

    transformando essa nova bolsa numa instituio financeira prpria (idem). No seu primeiro

    prego, que data do dia 31 de janeiro de 1986, vo ser negociados apenas contratos futuros

    de ouro e, no ms seguinte, aparecem os contratos futuros sobre o ndice de Aes da

    BOVESPA. Ao longo de 1987 vo ser lanados os contratos de frango, porco e boi gordo,

    sendo que apenas este ltimo permanece sendo negociado hoje. Em julho desse mesmo ano

    a BM&F contava com 71,5% do mercado de futuros do Brasil (Rochele, 1997),

    participao essa que se consolidaria com a incorporao da Bolsa de Mercadorias de So

    Paulo em maio de 1991, objetivando impulsionar o desenvolvimento dos mercados de

  • 33

    agropecurios (Lozardo, 1998 p.19), o que leva a uma mudana no nome da instituio,

    passando a se chamar da em diante Bolsa de Mercadorias & Futuros15.

    A eliminao dos riscos de preo e a criao de outros riscos

    A viso corrente hoje em dia sobre os mercados derivativos tal como aparece em

    livros (como os de Hull 1996, Lozardo 1998, Marques & Mello 1999) e cursos de

    introduo a esses mercados (como o Curso de Formao de Profissionais em Mercados

    Derivativos da BM&F, cuja 56 - entre abril e junho de 2004 pude participar), de que

    estes existem para proteger determinado agente econmico, denominado hedger, dos riscos

    da variao futura nos preos dos ativos (conjunto de valores representado pelas

    aplicaes de patrimnio e de capital de uma empresa ou pessoa, segundo o dicionrio

    Houaiss 2004) que possua ou que vai possuir, como moedas estrangeiras, ttulos pblicos,

    aes e commodities agrcolas (caf, boi, soja, trigo). Alguns especialistas chegam a afirmar

    que nos mercados futuros s se negocia uma nica mercadoria, o risco, e da decorrer o fato

    de que quem procura uma bolsa de futuros est interessado em comprar ou vender risco.

    nesse sentido que os contratos futuros so encarados como veculos para a transferncia

    de risco: de algum interessados em se livrar do risco para algum interessado em especular

    com esse risco.

    So quatro os instrumentos usados para se atuar ou operar nesses mercados: os

    contratos a termo, os contratos futuros, as opes de compra e de venda e os swaps. Estes

    15 No incio de 1997 a BM&F vai incorporar a pioneira Bolsa Brasileira de Futuros, fundada pela Bolsa de

    Valores do Rio de Janeiro, no incio dos anos 80. (Lozardo, 1998 p. 19)

  • 34

    dois ltimos instrumentos (opes e swaps) so os mais recentes, sendo negociados desde o

    incio da dcada de 1980. Os primeiros contratos de swap foram negociados em 1981 e,

    desde ento, seu mercado tem crescido com muita rapidez, com centenas de bilhes de

    dlares movimentados a cada ano. Tradicionalmente empregados enquanto acordos

    privados entre duas empresas para a troca futura de fluxo de caixa (isto , para converter as

    exposies de mercado dessas empresas relativas a um emprstimo, um ttulo, uma moeda

    ou uma taxa de juros em outras exposies diferentes), os swaps so utilizados tambm

    pelos bancos centrais na obteno de moeda estrangeira para intervir no mercado cambial

    mediante acordos recprocos de crdito de curto prazo.16 As opes (negociadas

    inicialmente a partir de 1982) so contratos que do a seu detentor o direito, no a

    obrigao (ao contrrio dos contratos a termo e futuro), de comprar ou vender um ativo em

    determinada data por certo preo. As opes de compra (calls) so usadas para reduzir o

    risco de que os preos de um ativo tenham subido quando tiver que ser adquirido em algum

    momento futuro, alm de tambm serem utilizadas para especular com a perspectiva de

    aumento de preo. As opes de venda (puts) so usadas para reduzir o risco de queda de

    preos de ativos para seus detentores. Tambm so usadas para especular com quedas de

    preo17. Os contratos a termo (assim como os swaps) podem ou no ser negociados em

    bolsa, ao contrrio dos contratos futuros e das opes que s existem nesses ambientes. A

    BM&F, por exemplo, se coloca como mediadora das negociaes de contratos a termo e

    swaps, garantindo os compromissos acertados nesses contratos.

    16 Os swaps mais comuns envolvem taxas de juros e moedas. Num swap de taxas de juros, uma parte

    concorda em pagar outra juros a uma taxa fixa sobre um principal (o capital de uma dvida, em contraposio aos juros) terico por determinado nmero de anos. Em troca, ela recebe juros a uma taxa flutuante sobre o mesmo principal terico pelo mesmo perodo de tempo. Num swap de moedas, uma parte concorda em pagar juros sobre o principal numa moeda. Em troca, ela recebe juros sobre o principal em outra moeda. (Hull, 1996 p .173) 17

    Como a histria central do presente trabalho envolve um mercado de contrato futuro, no se estender aqui a discusso sobre mercados ligados a outros instrumentos.

  • 35

    O mercado focalizado nessa dissertao o mercado futuro de boi gordo da BM&F

    no qual, desde 1987, so negociados contratos futuros de boi gordo, isto , de animais

    criados em fazendas e prontos para o abate em frigorficos. O procedimento de negociao

    desses contratos similar ao encontrado em outros mercados futuros. Um hedger vendedor

    de contratos futuros aquele que, geralmente, detm o produto fsico como, por exemplo,

    os produtores rurais, e que dessa maneira procura atravs desses contratos se assegurar

    contra uma eventual baixa de preos em uma data especfica no futuro (como a data da

    comercializao da safra agrcola). Ocupam no mercado uma posio chamada de posio

    vendida (short), contraria queles em posio comprada (long), ocupada por um exportador

    de caf ou frigorfico, por exemplo, que busca se proteger de uma eventual alta nos preos

    dos produtos que ir receber. Ambos (long e short hedgers), porm, operam nesse mercado

    atravs de uma corretora de mercadorias que deve ser membro da bolsa de futuros,

    credenciada por esta instituio a participar, atravs de seus operadores, do prego que

    ocorre nas dependncias da bolsa18. Apesar de participar ativamente da organizao dos

    mercados (o que ser mais bem ressaltado frente), a bolsa no compra nem vende

    contratos, sua receita deriva majoritariamente da venda de licenas para operao e de

    outras taxas operacionais.

    Outro agente de destaque nesses mercados o especulador, cuja importncia tem a

    ver com a equalizao da oferta e demanda, dado que nem sempre o volume de hedgers

    procurando proteo contra queda de preos iguala o volume de hedgers procurando

    18 Alm de executarem as ordens de seus clientes, as corretoras tambm acompanham as posies e contas

    destes junto cmara de registro, compensao e liquidao (Clearing House). Nesta ltima, so feitos depsitos de garantia intitulados margem de garantia, variveis de contrato para contrato, que geralmente oscilam ao redor de dois ou trs dias de ajustes dirios, ou ao redor de 3 a 5% por contrato e so usadas caso o cliente no honre seu compromisso de depsito de ajuste dirio, que consiste no recebimento ou pagamento dirio, casos os preos se movimentem contrariamente ou favoravelmente posio assumida. No captulo seguinte as atribuies da Clearing House so exploradas mais extensamente.

  • 36

    proteo contra alta de preos: ou seja, esse agente proporciona a liquidez dos negcios,

    permitindo que os contratos sejam vendidos ou comprados a qualquer momento.

    Conceitualmente os especuladores no tm nenhum interesse pela mercadoria fsica, mas

    apenas em auferir ganhos com a compra e venda de contratos, aceitando os riscos da

    variao dos preos das mercadorias fsicas transferidos pelos hedgers. Na verdade, no

    conjunto os especuladores no lucram com a atividade, e do ponto de vista individual,

    estudos mostram que talvez a maior motivao do especulador esteja na oportunidade de

    alavancagem, representada pela possibilidade de conseguir um substancial volume de

    ganhos financeiros com base num relativamente pequeno investimento.(Marques & Mello,

    1999 p. 68)

    Uma estratgia muito utilizada nesses mercados, a qual visa lucrar com as

    diferenas de preos de um produto nos mercados a vista e futuro ou entre dois mercados

    futuros diferentes, numa operao isenta de riscos e que garante a convergncia dos preos

    desses mercados, conhecida pelo nome de arbitragem, o que leva a alguns apontar o

    arbitrador como outro agente fundamental no funcionamento desses mercados. A incerteza

    dos agentes com relao convergncia de preos entre esses mercados mina a

    caracterstica principal dos mercados futuros enquanto mecanismos de gesto racional de

    risco, da a necessidade de se estabelecer determinadas condies para que este risco de

    no convergncia seja eliminado19. A idia por detrs das prticas de arbitragem de que

    se os preos do mercado futuro e do mercado vista de determinado ativo forem diferentes,

    os agentes econmicos iriam comprar naquele mercado mais barato e vender no mercado

    19No mercado futuro as possibilidades de arbitragem ocorrem quando o preo a vista do ativo, somado os

    custos incorridos para entreg-lo no futuro esto abaixo do preo. De acordo com a teoria da arbitragem, o mercado futuro deve ter seus preos alinhados com os preos do mercado fsico. Se por acaso essa condio no for satisfeita, haver possibilidade de obter ganhos atravs da compra do ativo em questo no mercado vista e venda imediata no mercado futuro(BM&F, 2004 P. 53).

  • 37

    mais caro. Mas o problema que os custos dessa operao podem ser to elevados que

    esses agentes no se sintam encorajados de arbitrar entre esses dois mercados. Dessa

    maneira cabe bolsa criar as condies de convergncia dos preos, atravs da

    reformulao das condies de entrega e recebimento das mercadorias ou introduzindo a

    liquidao financeira no contrato.

    A eliminao dos riscos de base e a criao de indicadores de preos

    A construo das condies de realizao da teoria da arbitragem conhecida nos

    mercados futuros como a eliminao do risco de base. A base a diferena entre o preo

    de um ativo no mercado fsico e a cotao para o mesmo no mercado futuro. Teoricamente,

    a medida que se aproxima a data do vencimento de um contrato, a base vai diminuindo20.

    No acontecendo a convergncia, sero abertas possibilidades de arbitragem, e as aes dos

    arbitradores reconduziro o processo de convergncia de preos. Sempre que o preo a

    vista de um ativo mais o custo de carregamento do mesmo (armazenagem, transporte,

    seguros e financiamento) for diferente de seu preo futuro, os arbitradores teoricamente

    atuaro restaurando a igualdade e garantindo a convergncia dos preos vista e futuro.

    Sendo o risco do hedging caracterizado pelo risco de base, quanto mais a base variar,

    menor ser a utilidade dos mercados futuros como veculo de transferncia de riscos.

    20 Num hedging perfeito, que na prtica dificilmente acontece, a diferena entre o preo a vista em um local

    especfico e o preo de um contrato futuro em particular zero.

  • 38

    (Rochele, 1997 p. 6) Ainda segundo Rochele, a base para commodities (produtos agrcolas)

    estocveis comporta-se diferentemente da base para commodities no-estocveis21.

    Antes do encerramento de um contrato de commodity estocvel, se um agente

    percebe que a diferena entre os preos a vista e futuro da commodity maior que o custo

    de carregamento, este pode lucrar arbitrando entre esses dois mercados. Com o preo a

    vista menor que o futuro, esse agente compra o produto no mercado fsico, toma posio

    vendida no contrato futuro e liquida o mesmo por entrega. Transaes dessa natureza

    tendem a elevar o preo a vista e reduzir o futuro, promovendo assim a convergncia entre

    ambos. O oposto ocorreria se o preo a vista estivesse maior que o futuro. Mas o

    arbitramento com commodities no-estocveis mais complexo, como o caso das

    dificuldades de padronizao dos lotes de animais vivos no mercado fsico, dado a

    heterogeneidade encontrada entre eles. Considerando tambm os custos relativos

    transmisso de doena, mortalidade, diferenas de qualidade, peso, sexo, raa, transporte e

    manuseio (devido ao volume do produto envolvido) e mudanas fisiolgicas que ocorrem

    21 Para commodities estocveis, a diferena entre os preos a vista e futuro depende do custo de

    carregamento (custo de armazm mais o juro para financiar o ativo, menos o rendimento obtido com o mesmo), que por sua vez depende das taxas de juros e dos custos de armazenagem e transporte, que variam em funo das condies de oferta e demanda. Contudo, o preo futuro no exceder o preo a vista de uma quantia maior do que o custo de carregamento, pois caso isso ocorra, haver possibilidade de arbitragem entre mercados a vista e futuro, forando os preos no sentido de igualar a diferena entre eles ao custo de carregamento. Considerando que fatores que compe esse custo so relativamente estveis, a base para commodities estocveis tambm o . Nesse caso, o mercado futuro tem provado ser um mecanismo efetivo de transferncia de risco para tais commodities. No caso de commodities no-estocveis, a teoria sobre a base no est to bem desenvolvida. Para animais vivos, a relao entre os preos a vista e futuro no to estvel como para commodities estocveis, porque aqueles so continuamente produzidos e distribudos, sem uma oferta fixa ou formao de estoques. Uma vez que a oferta no fixa, os preos futuros de commodities no-estocveis devem representar uma antecipao do preo a vista para uma data no futuro. Como essa antecipao do preo da commodity para uma data no futuro feita com base nas informaes disponveis no mercado a vista, a chegada de novas informaes faz com que a base se torne mais instvel para commodities no-estocveis do que para as estocveis. Alm disso, as operaes de arbitragem tornam-se mais difceis para contratos de animais vivos, devido dificuldade de padronizar os lotes e os demais custos relacionados ao deslocamento destes. necessrio que a diferena entre os preos a vista e futuro seja suficientemente grande para compensar as despesas com entrega da mercadoria e ainda incentivar as operaes de arbitragem. Assim, a convergncia entre os preos a vista e futuro esperada durante o ms de vencimento do contrato pode no ocorrer. (idem)

  • 39

    com a maturidade do animal, impossvel supor que as arbitragens sempre sero capazes

    de corrigir as diferenas de preos entre a vista e futuro de animais vivos, especialmente

    pequenas imperfeies de curto prazo (Rochele, 1997 p. 9)22

    A eliminao do risco de base relacionado entrega de animais vivos se d atravs

    da introduo da liquidao financeira nos contratos que negociam esses animais23. Essa

    modalidade de liquidao provavelmente foi utilizada pela primeira vez pela bolsa de

    Quioto que, em 1526, seria fechada pelo governo japons, o qual argumentava que esta

    forma de liquidao era contrria s intenes originais desses mercados (Frick, 1999 p.

    34). Nos Estados Unidos, no final da dcada de 1970, as bolsas de futuros desse pas

    demandam s autoridades federais a autorizao para a introduo da liquidao financeira

    nos contratos futuros (Millo, 2002). O problema todo em torno dessa inovao nos

    contratos decorria do fato de que na dcada de 1890 a Chicago Board of Trade -

    argumentando contra a existncia de diversas lojas (bucket shops) na cidade de Chicago

    que negociavam contratos futuros no liquidados por entrega associou a liquidao

    financeira dos contratos futuros aos jogos de azar. O argumento da CBOT convenceu as

    22 A liquidao dos contratos futuros por entrega soma aos custos e problemas relacionados ao mercado

    fsico, custos adicionais relativos ao mercado futuro, que incluem a emisso de aviso de entrega, inspeo e certificao da commodity e registro de transferncia. Assim, os custos relacionados entrega da mercadoria para liquidar o contrato prejudicam a convergncia dos preos, ampliando o risco de base. Outro problema que surge com a liquidao fsica que esta ocorre sempre atravs da entrega da mercadoria com padres mnimos estabelecidos no contrato, ou seja, o hedger com posio vendida (short hedger) procurar entregar a mercadoria com os mnimos padres de qualidade de terminados no contrato. Por sua vez, o hedger com posio comprada (long hedger) poder recusar tal mercadoria se consider-la inferiror s especificaes ou exigir um desgio no preo para receb-la. Esses atritos levam as bolsas a designar um rbitro para verificar a qualidade da mercadoria e resolver o impasse. Porm, todo esse procedimento gera incertezas e custos adicionais aos participantes, elevando o riso de base. (idem)

    23 A liquidao financeira apresenta-se como uma alternativa liquidao fsica, que elimina os fatores que

    prejudicam a convergncia dos preos a vista e futuro. Os custos e os problemas relacionados entrega da mercadoria, os atritos causados pela entrega e recebimento do produto, os movimentos antecipados de oferta e demanda pela commodity objeto do contrato, prximo data de vencimento, so eliminados. Na liquidao financeira, o contrato ajustado por um ndice que representa o preo da commodity no mercado a vista. (idem)

  • 40

    autoridades federais (e a opinio pblica desse pas notadamente avessa aos jogos de azar) e

    estas autoridades acabaram determinando o fechamento dessas lojas (ento concorrentes da

    CBOT)24. No final da dcada de 1970 as bolsas de futuros norte-americanas propem a

    criao de contratos derivativos de ndices de aes. Mas estes contratos s poderiam

    existir, segundo estas entidades, se fossem liquidados financeiramente. O argumento usado

    a favor da liquidao financeira era de que esses contratos, quando liquidados, iriam causar

    uma sbita demanda por aes, levando a uma abrupta elevao nos preos dessas aes.

    Foi evitando essas situaes de desequilbrio no mercado acionrio que as entidades

    reguladoras autorizaram a introduo da liquidao financeira nos contratos futuros (idem).

    Assim, a partir do incio da dcada de 1980 que a questo da liquidao financeira

    ganha relevo, diante de dois novos instrumentos que seriam usados como referncia de

    contratos: ndices de aes e taxa de juros. Como aponta Frick:

    No primeiro caso, era bvia a dificuldade de liquidar por entrega a cesta de aes de um ndice, respeitando-se suas propores (por exemplo, sua estrutura de ponderao). Quanto aos segundo, o problema surgiu com o pedido de aprovao, em 1981, por trs bolsas americanas (Chicago Board of Trade, International Monetary Market e New York Futures Exchange), de contratos futuros baseados em depsitos de dlares, ou eurodlares, realizados fora do sistema bancrio dos Estados Unidos da Amrica. A dificuldade de admitir a entrega desses depsitos no vencimento levou implementao, do primeiro contrato futuro com liquidao financeira do mundo.(Frick, 1999 p. 34)25

    Se os contratos futuros baseados em moedas estrangeiras e em eurodlares poderiam ser

    liquidados tanto por entrega fsica quanto por liquidao financeira, isso estava ligado

    qualidade dos preos destes ativos no mercado a vista. A natureza desses mercados

    facilitava a construo de um indicador de preos para eles, ao contrrio do que acontecia

    24 claro que neste convencimento o lobby dessa bolsa junto a estas autoridades foi fundamental (Millo, 2002

    p. 18). 25

    Os eurodlares so depsitos em dlar realizados em bancos que operam fora dos EUA e usados para fazer emprstimos em dlar fora dos EUA (Roberts, 2000 p. 48).

  • 41

    em outros mercados. O principal problema com a liquidao financeira dos contratos

    futuros de bovinos e sunos, nos Estados Unidos, foi a obteno de informaes no

    mercado, para desenvolver um ndice de preos a vista confivel. Comentando a situao

    desses mercados, Rochele ressalta:

    A maior parte dos animais vendida particularmente, sem registros pblicos e os principais grupos no so observadores autnomos. Eles tomam posies nos mercados futuros, o que torna difcil a verificao dos preos. A crescente concentrao das industrias processadoras apenas agrava esse problema. Dados histricos, que poderiam ser teis para compor um ndice, geralmente no esto disponveis por parte das industrias processadoras. Alm disso, calcular um ndice baseado nos valores de carcaa pode gerar problemas similares quanto confiabilidade e ao potencial para manipulao, por parte daqueles que detm as informaes originais. Nesse caso, a liquidao financeira pode minar o processo de descoberta de preos e tornar a base menos previsvel para muitos produtores, elevando o risco do hedging. (Rochele, 1997 p. 14)

    Mesmo diante desse cenrio, em setembro de 1986 a Chicago Mercantile Exchange

    (CME) introduz a liquidao financeira como forma obrigatria de liquidao do contrato

    futuro de boi magro26. Segundo Rochele, os motivos que levaram a CME a adotar a

    liquidao financeira nesse contrato foram as disputas associadas ao padro da mercadoria

    a ser entregue, os desgios para as mercadorias fora das especificaes estavam

    freqentemente desalinhados com os diferenciais de preo do mercado a vista, elevados

    custos de entrega, mltiplos locais de entrega, gerando incerteza dos long hedgers em

    relao ao local de recebimento da mercadoria, enfim, o elevado risco de base.

    No Brasil, mais precisamente na BM&F, a liquidao por entrega de contratos financeiros tambm propiciou vrias solues, entre as quais a adotada para os contratos de dlar, em que a inexistncia de um mercado livre de taxa de cmbio dificultava o procedimento de entrega. Outro exemplo foram os primeiros contratos de taxa de juro, sobre Certificados de Depsito Bancrio, que permitiram, simultaneamente, a coexistncia das liquidaes fsica e financeira. A possibilidade de liquidar por ambas as modalidades reapareceu no contrato futuro de bezerro, no incio da dcada de 90. Depois de ser aberto negociao como um

    26 Boi Magro animal de reposio que determinadas fazendas compram para engord-los.

  • 42

    contrato clssico, passou a admitir a liquidao financeira segundo um preo mdio apurado pela prpria BM&F. Em 1994, o contrato futuro de boi gordo da BM&F foi modificado para definir a liquidao financeira como norma e limitar a entrega a casos especiais. Outros contratos agrcolas, como soja e acar, tambm foram lanados com modalidades semelhantes. (Frick, 1999 p. 34-35)

    A introduo da liquidao financeira no contrato futuro de boi gordo

    No caso do mercado futuro de boi gordo da BM&F, antes da introduo da

    liquidao financeira, especuladores e investidores, que propiciam liquidez ao mercado,

    sentiam-se pouco vontade para operar nesse mercado, pois temiam pela possibilidade de

    no conseguir encerrar suas posies antes do vencimento ou sofre um corner nessa data

    (Rochele, 1997 p. 17) praticado por outros especuladores27. A introduo da liquidao

    financeira referenciada num indicador de preo eliminaria as incertezas desses agentes

    quanto ao cenrio de liquidao dos contratos. Nesse sentido, o clculo uma prtica

    coletiva complexa que vai alm das competncias cognitivas individuais, ele tambm inclui

    os objetos que mantm esses cenrios (Callon, 1998). A possibilidade de ficarem

    espremidos (squeezed) diante da entrega ou recebimento dos animais certamente foi,

    segundo Rochelle (1997 p. 19), o que afastou os investidores do mercado futuro de boi

    gordo, mesmo no perodo onde as aplicaes nesses mercados foram mais incentivadas

    (como foi o caso dos Fundos de Investimento em Commodities criados em 1992). Foi

    justamente a partir da amplificao das controvrsias em torno desse mercado, com o

    crescente interesse pelo mesmo a partir de 1992, que a BM&F resolve reorganiz-lo. Desde

    27 O encerramento de uma posio no mercado futuro se d atravs de uma operao de natureza inversa

    original. Tendo comprado um contrato, se vende outro contrato igual (e vice-versa). Dessa forma o participante estar transferindo seus direitos e haveres para outro participante. O corner a compra de um ativo em volume to elevado, que faz com que o comprador passe a deter controle sobre os preos.

  • 43

    a introduo da nova maneira de liquidar seus contratos, o mercado futuro de boi gordo no

    para de crescer28.

    O fato social do indicador de preos de fundamental importncia no entendimento

    da organizao dos mercados futuros. Ancorados no ideal ou modelo de competio

    perfeita, esses mercados dependem de condies sociais especficas para se realizarem. A

    interdependncia entre esses mercados e as prticas dos economistas responsveis pelos

    indicadores de preos marca aquilo que Michel Callon (1998) chamou do embebimento

    (embeddednes) dos mercados econmicos na cincia econmica. Essa interdependncia

    estabelecida atravs de mediadores como o indicador de preos elaborados pelos

    economistas. A excluso das relaes de entrega e recebimento do horizonte dos contratos

    futuros atravs da introduo da liquidao financeira corresponde a uma padronizao

    ainda maior desses contratos.

    Desde sempre o nmero dos contratos liquidados por entrega correspondeu a um

    percentual mnimo (entre dois a cinco por cento) do nmero de contratos liquidados pelas

    bolsas de futuros. A grande maioria dos contratos sempre foi liquidada por reverso da

    posio.29 De qualquer maneira, nas primeiras dcadas de existncia dos mercados

    derivativos, a liquidao por entrega tinha um papel crucial nos torneios de valor

    (Appadurai, 1986) existentes nesses mercados:

    28 A Bolsa de Mercadorias & Futuros atingiu 1,05 milho de contratos agrcolas negociados no ano passado,

    superando em 35% o volume de 2003. Esses contratos movimentaram US$ 7,85 bilhes, com alta de 68% em relao ao volume financeiro de 2003. Caf e boi gordo foram responsveis por 81% das negociaes agrcolas no mercado futuro da BM&F. Os contratos com caf somaram 621 mil, 30% a mais do que em 2003; os com boi gordo, 225 mil -mais 98%.(Folha de S. Paulo, 5 de janeiro de 2005) 29

    Sobre a liquidao por reverso da posio: Pode ser feita a qualquer momento entre o incio da operao de compra ou venda de contratos e o vencimento dos contratos. O interessado deve comunicar ao seu corretor a inteno de compra (para quem estiver vendido) ou de venda (para quem estiver comprado) de contratos para o mesmo vencimento. Caso sejam feitos negcios, a liquidao feita pelo correspondente nmero de contratos revertidos. No caso de comprar ou vender todos os contratos necessrios, a posio totalmente liquidada e cessam as obrigaes do interessado com a Bolsa (Marques & Mello, 1999 p. 83).

  • 44

    In the second half of the nineteenth century, the wheat pit (the Grain Exchange) in Chicago was obviously the scene of the making and breaking of individual reputations, of intense and obsessive competitions between specific individuals, and of hubristic efforts on the part of particular men to corner the market. () As I suggested earlier, many societies create specialized areas for tournaments of value, in which specialized commodity tokens are traded, and such trade, through the economics of status, power, or wealth, affects more mundane commodity flows. (idem p. 50)30

    Mas com o crash da Bolsa de Nova Iorque em 1929, a especulao nos mercados

    derivativos perde legitimidade diante da opinio pblica norte-americana.

    The 1929 crash and the subsequent Great Depression reignited hostility to speculation in derivatives that looked like wagers on prices movement. Even as late as the 1960, market regulators such as the Securities and Exchange Commission (SEC; founded directly in response to the excess and abuses of the 1920s) remained deeply suspicious of derivatives. (Mackenzie e Millos 2003 p.113).

    A partir da dcada de 1960, a estagnao dos mercados derivativos norte-

    americanos, decorrente segundo Mackenzie e Millos (2003 p. 112-113), da forte regulao

    governamental nos preos mnimos dos produtos agrcolas e da intensa oferta desses

    produtos, leva os organizadores desses mercados a apostarem suas fichas no lanamento de

    derivativos financeiros como soluo para tirar esses mercados da estagnao. Diante da

    interveno governamental e da oferta expressiva dos produtos agrcolas, no fazia sentido

    os produtores e consumidores de grande escala (como frigorficos e industrias alimentcias,

    por exemplo) usarem os mercados derivativos para se protegeram das variaes futuras nos

    30 Como aponta Cronon sobre o papel dos corners durante boa parte da histria dos mercados derivativos:

    Although members sometimes invoked Board rules to try to close out corners once they had been run, few grain traders expected corners to disappear altogether. Indeed, their emotions about corners were an odd mixture of fear and admiration. A corner operator was a gamblers gambler. Whether one saw such people as heroes or as villains, one still had to admire their daring: tales of great corners and their operators become the stuff of Board legend. (Cronon, 1991 p. 131)

  • 45

    preos desses produtos. Por outro lado, h muitas dcadas as bolsas de futuros viam os

    ndices de aes como a chave para subscrever uma quantidade ilimitada de aes nos

    contratos (Millo, 2002 p. 21), mas a proibio em cima da liquidao financeira barrava a

    realizao dessa ambio (idem). Como apontam Mackenzie e Millo:

    The most attractive foundation for a derivatives exchange was a futures contract on a stock market index such as the Dow Jones Industrial Average. That idea, however, fell foul of how the moral distinction between gambling and legitimate futures trading had been crystallized early in the 20th-century United States. A future contract was legal, the Supreme Court ruled in 1905, if it could be settled by physical delivery of a commodity such as grain. If it could be settled only in cash, it was an illegal wager. Since index was an abstraction, there was no straightforward way in which an index future could be settled other than in cash. (idem p. 113).

    Os ndices costumavam, at ento, servir de indicadores dos mercados em geral, e

    da que a abrangncia de um ndice estava apenas relacionada sua validade, isto ,

    capacidade de refletir um mercado como um todo (Millo, 2002 p. 21)31. Do ponto de vista

    das bolsas de futuros, a abrangncia dos ndices era vista como um possvel indicador da

    capacidade de comercializao dos contratos (idem p. 20). Quanto mais abrangente um

    ndice, aponta Millo, maior o nmero de compradores em potencial se interessarem por

    um contrato baseado nesse ndice (idem). A soluo encontrada para introduzir a

    liquidao financeira nos contratos futuros referenciados em ndices se deu atravs da

    legitimao dessa forma de liquidao com base no perigo que a liquidao por entrega

    das aes subscritas nesses contratos representaria para o mercado acionrio: esses

    contratos, quando liquidados, iriam causar uma sbita demanda por aes, levando a uma

    abrupta elevao nos preos dessas aes (idem p. 19).

    31O ndice Dow Jones Industrial considerado o primeiro ndice do mercado acionrio, publicado pela primeira vez em 1884 enquanto uma mdia aritmtica dos preos de 11 aes escolhidas pelo industrial Charles Henry Dow entre as mais representativas do mercado acionrio norte-americano (Leite & Sanvicente, 1995 p. 12-13).

  • 46

    A relao entre a padronizao de um contrato e o nmero de agentes que dele pode

    se servir uma correlao constante nos mercados derivativos desde a criao dos

    primeiros contratos futuros. A adoo de ndices de preos como referenciais de contratos

    faz parte das estratgias das bolsas de futuros que buscam atrair um nmero maior de

    participantes para seus mercados. Mas enquanto produtos criados por instituies externas

    s bolsas, esses ndices estabelecem uma certa interdependncia entre as bolsas e essas

    instituies. Na verdade, em mercados marcados pela presena de artefatos tcnicos e

    fatos cientficos,