Revista subversa 5ª ed.
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Transcript of Revista subversa 5ª ed.
NEWTON CERQUEIRA | JULIANA BEN
EVANDRO DO CARMO CAMARGO | MORGANA RECH
DANIEL TOMAZ WASCHOWICS | PEDRO BELO CLARA
ADRIEL ALVES MAGALHÃES | TÂNIA ARDITO
5ª Edição | NOV 2014
WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA
@CANALSUBVERSA
SubVersa
| literatura luso-brasileira |
© originalmente publicado em Novembro de 2014 sob o título de
SubVersa ©
5ª Edição
Responsáveis técnicas:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como
autores desta obra.
Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos
ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.
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5ª Edição
Novembro de 2014
NEWTON CERQUEIRA | O QUE EU DESCOBRI NUM ABRAÇO | 4
EVANDRO DO CARMO CAMARGO | SEU FLORÊNCIO E A
JUMENTA PARIDA | 6
PEDRO BELO CLARA | OUTONAL |12
MORGANA RECH | SOBRE A INUTILIDADE DA LITERATURA | 13
DANIEL TOMAZ WASCHOWICS | A GRANDE RAINHA | 15
TÂNIA ARDITO | DO CINQUENTENÁRIO DE LUUANDA: ENTRE
APLAUSOS E POLÊMICAS | 16
ADRIEL ALVES MAGALHÃES | PEDIO QUENTE É QUASE MERDA |
23
JULIANA BEN | VIOLÊNCIA SUBLIMINAR | 26
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4
NEWTON CERQUEIRA
RIO DE JANEIRO, RIO DE JANEIRO, BRASIL.
deitei-me,
com os ouvidos
em seu peito.
sentia seu coração bater forte,
era rápido
era intenso.
tum-tum
tum-tum
O QUE EU DESCOBRI
NUM ABRAÇO
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5
tum-tum
mil vezes por segundo.
parecia ter vida própria,
pensar por si mesmo,
querendo escapar
dali de dentro.
quase dava para ouvir o sangue jorrar
raivoso
por entre as artérias e bater nas paredes
dos átrios
como ondas batem em pedras
no mar.
o quanto de sentimento caberia ali? – pensei.
e então, de repente,
tudo ficou mais claro:
descobri feliz
que ela me amava.
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SEU FLORÊNCIO
E A JUMENTA
PARIDA
ADRIEL ALVES MAGALHÃES
PARACURU, CEARÁ,, BRASIL
Seu Florêncio era um matuto brabo e tinha um amor adoidado
por sua jumenta, andava com ela pra cima e pra baixo, sem se
incomodar com a falação do povo alheio, passeava pelas ruas
acariciando a bicha e chamando ela de ―meu amor‖.
— Arriégua macho! Larga dessa jumenta e vai arranjá uma mulhé
de verdade! – aconselhava seu Jão, amigo de infância de Florêncio.
— Ôrre! Mais minha Florentina é muito mais mió di bão qui essas
muié qui só qué roubá nóis home!
— Má rapais, num tô dizendo mermo! Tu tá precisando é de um
médico pra cabeça!
— Nam! Ó o doido!
— Cunheci um cabra qui teve cinco fi com uma cabrita, lá nas
quebrada da Jurema, us fiote nascero tudo cum duas cabeça, uma di
cabra e uma di home. Horríve! – comentou Jaí, conhecido na cidade
por suas histórias de pescador.
— Eita mintira braba! Vá tomá vergonha na cara macho,
aprendê a contá verdade. Ei macho, diz uma coisa, comé qui eu
chego lá no sítio do Chico Pezão?
— Macho, é u siguinte, tu tá vendo aquele poste aculá? Poisé, tu
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droba ali à isquerda, aí pega aquela rua bem aculá, aí vai infrente, vai
indo, vai indo, vai indo, até tu chegá lá na burracharia do Lôro, aí tu
continua, vai indo, vai indo, vai indo, depois droba à isquerda, aí droba
à direita, aí droba di novo, aí tu vai, vai, vai, aí quando tu vê a praca
―cão brabo‖, aí tu pode entrá qui é lá, viu?
— Diabé isso macho, tendi foi nada ó! Faz u siguinte, amanhã nóis
vai lá, vô fazê umas compra.
Florêncio continuava caminhando pelo centro da cidadezinha, era dia
de feira e o furdúncio tava era grande.
— Ó o mói de chêro verde! Óia o chêro verde!
— Óia a panelada e o sarrabúi! Sarrabúi do bom, sinhô!
— Ó o pastel com cana! Cana muída na hora!
Seu Florêncio empacou com sua jumenta na quitanda da Dona
Francisca.
— Quá os preço das fruta hoje?
— O mermo de onte, tá ariado é? – questionou Dona Francisca
com a cara rechonchuda se contorcendo num olhar desconfiado.
— Nam, é qui cum essas infração toda aí nóis nunca sabe os
preço das coisa né? U di onte, num é mermo de antonte que num é o
mermo de hoje.
— Que é que tu qué macho? Diz logo.
— Bote aí… Uma penca di banana, mei quilo di maçã e duas
cibola. Bote aí no cadernin qui depois te pago!
— Ora, num tô dizendo mermo! Aqui num tem fiado não, num viu
a placa? – Francisca apontava para uma plaqueta que dizia: ―Fiado só
amanhã!‖.
— Ah diacho, assim eu choro – seu Florêncio então pagou, com
muita má vontade.
E assim se passaram vários dias na rotina de Florêncio, ia pra feira,
ia pra roça, ia pra budega e pro butequim. No entanto, algo estava
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deixando o matuto encucado, o bucho da Florentina ficava maior a
cada dia.
— Diabé isso Florentina, qui é qui tu tá comendo pra tá cum esses
bucho du tamanho du mundo!?
E a jumenta ainda respondia:
— Irrôôn!
— Égua macho, esse bicho é mais instiligente que tu ó! – zombou
Zé Maria, que estava fazendo uma visita na casa de Florêncio.
— Minha Frô é instiligente mermo, sabe até a tabuada.
Francisgleisson, o veterinário da cidade, passava na rua e viu
Florêncio e Zé Maria conversando na frente da casa, junto com a
jumenta; ele arregalou os zói quando viu o tamanho do bucho.
— Eeeeita macho, tua bicha tá é prenha, ó o tamanho do bucho!
— É u quê macho!? Tá abirobado!? Minha Frô é virge qui nem
virge Maria.
— Vixe, pois taí que eu acho que tu tá é com cegueira de chifre.
— Cegueira de quê macho!? Me respeite!
— Cegueira de chifre, dor de corno, home.
— Orre! Mais tu qué mermo é levá uma na cara, né não!?
Após muito bate-boca, Seu Florêncio disse pro Francisgleisson
provar pra ele que a jumenta tava buchuda e o veterinário explicou
mais de dez vezes pro matuto entender. A cara do bronco chega
murchou ao descobrir que tinham tirado o cabaço da virge Florentina.
— Mais cumé qui pode? Num tem jumento ninhum na minha
roça, é fi de quem? Do sprito santo!?
— Num sei não, mas que ela tá cum bucho tá.
Mais dias passavam e circulava o boato que o fi da jumenta era
do Seu Florêncio porque num tinha jumento nenhum nas redondezas da
casa do matuto. Tinha gente dizendo que era coisa do capiroto, que o
fi da jumenta era o próprio ―Lúcife‖, tinha ainda gente que dizia
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―Aquele lá trepa é cums bicho tudim da cidade!‖; tinha gente rezando
cem pai nosso e mil ave maria falando que era o fim do mundo. E a
putaria tava era grande.
O prefeito da cidade, como era dotado de muita
―instiligência‖,se aproveitou do boato pra movimentar a cidade toda e
declarou a criação do evento ―Jumenta Parideira‖, estendeu faixas por
toda a cidade, fez carros de som proclamarem por todas as ruas a
grande atração. O prefeito Cláudio Pitombeira, anunciou na rádio:
— Só aqui na cidade tem espetáculo desse porte! A primeira
jumenta a parir filhote de homem! É pura ciência meu povo, é uma
revolução cien… Cien! … Égua, como é que é mermo?… Ah sim,
cientrífica!
O ―Jumenta Parideira‖ estava oficialmente declarado e
marcado. Não se falava em mais nada nas ruelas da pequena cidade
de Jaburuticanga. As véia tudo fofocavam com as vizinhas e os bêbo
só balbuciavam isso nos bares de esquina.
Finalmente, o dia havia chegado, Florentina já estava sentindo as
fortes contrações no mei do bucho e a levaram pro mei da praça.
Armaram um presépio de palha, chamaram um pipoqueiro, armaram
um pula-pula e tinha até maçã do amor. Até o padre deixou de rezar a
missa pra ver o milagre da vida.
— Queridos cidadões Jaburuticanguenses! Chegou a hora! Se
aprumem! – o prefeito deu um sorriso pra si mesmo, orgulhoso por ter
conseguido falar uma palavra tão bonita – A jumenta Florentina vai dar
à luz ao primeiro jumento-home da história!
A população observava a jumenta ansiosamente e a bicha só
―irrôôn! Irrôôn!‖. Chegava uma hora que todo mundo ficava calado,
pensando que o filho da Florentina tava pra sair, mas era só impressão.
— Arriégua, essa porra num vai saí não!? – reclamou um cidadão.
Francisgleisson, o veterinário que estava monitorando todo o parto,
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aproximou-se mais da Florentina e pôs a mão no bucho da bicha, em
seguida abaixou-se para ver a região genital.
— É… Tá tendo contra…
PRÁÁÁ, a jumenta soltou um baita de um pum na cara do
coitado, que logo fez uma careta de dor e sofrimento.
— Tá tudo bem, é que a bicha tá fazendo muita força – disse
para o povo que observava, ria e mangava do pobre véi.
— Vixe, o bucho da bicha tá chei é di bosta! – exclamou um
papudim com uma garrafinha de cachaça na mão, acompanhado de
muitas gargalhadas.
— Ei macho véi, esse cumedorzin de rapadura vai saí ou num vai? A
panela do feijão vai já queimá lá em casa, nam!
— indignou-se Dona Francisca, a feirante.
— Calma pessoal, já vai sair! — gritou Francisgleisson ao ver a
placenta saindo.
— Vai sair, gente! – anunciou o prefeito no microfone – Bora fazer
a contagem!
―É um, é dois, é três!‖.
— Aêêê! – gritou em coro a população.
— Vala meu Deus! É o étê! — bradou um cidadão.
— Não macho véi, é as tripa — retrucou outro.
— Ô povo jumento! É as pracenta meu povo! — finalizou o
fazendeiro Chico Pezão.
O veterinário limpou o filhote e então disse:
— Pronto meu povo! O jumentim nasceu ó!
— Égua, é a cara do pai! — gritou alguém.
O filhote de Florentina gemia.
— Ah má! Mó paia ó! Me taquei lá das brenha pá cá só pá vê a
jumenta réa parí um fiote réi de jumento, putaria issaí ó. Pefreito réi fi de
quenga! Fi da maria três peito! – indignou-se um cidadão.
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As vaias começaram a aumentar quando todos se tocaram que
o fi da Florentina, na verdade era um jumento normal, nada de
―primeiro jumento-home da história‖.
— Ah fi de rapariga!
— Fi da Godzila!
— Vai cagá pefreito réi fulerage!
— Baitinga!
Foi um festival dos mais variados xingamentos.
— Danou-se! – proclamou o prefeito, indo simbora num piscar de
olhos.
— O fi é um jumento igual o pai ó – disse um homem, enquanto se
afastava da praça.
Florêncio furioso gritou:
— É mió sê um jumento i tê um pirocão qui sê um dispirocado qui
nem o sinhô!
A multidão se dispersou e tudo voltou à rotina. O veterinário
encarregou-se de cuidar da jumenta parida. Restou só ele e Seu
Florêncio.
— E agora home? – perguntou Francisgleisson.
— Agora é nóis – respondeu Florêncio.
No final das contas, ainda sobrou um mistério, ninguém sabia que
jumento era esse que tinha cruzado com Florentina, se era mesmo fi do
sprito santo ou não.
Mais tarde, quando estava a sós com Florentina, o matuto
resmungou sozinho:
— Égua Frô! Tu me traiu mermo né? Bicha réa senvergonha!
E a jumenta ainda revidou.— Irrôôôn!
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PEDRO BELO CLARA
LISBOA, PORTUGAL
Os sóbrios amieiros
são melancolia desfolhada
na elegia do vento.
Tudo foi o que não mais é.
As aves, que outrora
cobiçaram a safira dos céus
e o oiro das searas,
são outras em outras paragens.
Já os rios não cantam
o poema da canção estival.
Oh, ternura descomposta,
donde brotarás tu
agora que o peito embala
a súbita nudez das fragas?
OUTONAL
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MORGANA RECH
PORTO ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL
Não é preciso dizer que a literatura é inútil.
Se por um lado não se fala isso fora da Universidade porque é
culturalmente incorreto, dentro dela os teóricos não se cansam de dizer,
sem recalque algum: sim, a literatura é inútil.
Não estou escrevendo isso só para dizer o contrário, e provar que
a literatura é, ao fim e ao cabo, a única coisa que existe. Jamais faria
isso. Lembro-me de um louvado professor de uma honrada Universidade
que se prestou a viajar de Lisboa até ao Porto para dizer o mesmo.
Disse, depois levantou-se e foi embora. Deu o passo mais difícil para um
verdadeiro literato: reconhecer a inutilidade da literatura, sem véus, sem
ironias, sem vaidade e rancor ofendido.
Também não direi que se há alguma coisa que o homem
conhece sobre si é por causa da literatura. Há milhões de anos os
SOBRE A INUTILIDADE DA LITERATURA
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primatas souberam da sua capacidade concreta de produzir sons,
cadências, ferramentas sistematizadas de repetição e reprodução do
que bem entendessem e do que bem inventassem, sem a necessidade
direta de representação alguma.
Seria um absurdo maior ainda dizer que a literatura está à frente
no tempo, pois toda a arte está à frente no tempo. E isto, se me lembro
bem, até um jornalista famoso pelo seu charme, em Porto Alegre, foi
capaz de reconhecer.
Um escândalo se eu por acaso dissesse aqui que a literatura pode
nos aproximar da realidade à nossa volta, que pode nos apresentar, de
um modo nunca visto, a simplicidade das coisas essenciais da vida, que
é capaz de acalmar a nossa alma e nos tornar seres mais criativos e
generosos.
Mais inútil que isso, só se fosse para dizer que através da literatura
desenvolvemos no cérebro um mecanismo dinâmico de pontos de vista
e aprendemos coisas inexplicáveis sobre o fato de estar vivo no mundo,
de ter relações familiares e sociais, de conhecer mais profundamente a
existência imutável do conflito entre razão e emoção. Sobre nunca ser
possível solucioná-lo por completo. Sobre ser frequentemente vencido
pelo corpo. Ser frágil, pequeno e insignificante.
Em hipótese alguma isso seria possível. Muito menos aceitar que
através da literatura exercitamos a capacidade de nos colocar no lugar
de outra pessoa e, assim, a chance de amar profunda e
verdadeiramente.
Por isso e por diversas outras coisas é que eu repito, ao levar a
testa para trás e sentir o peso da estante de livros sobre a minha
cabeça, que a literatura realmente não tem utilidade alguma. E, só por
aporrinhação e para comprovar a veracidade desta tese, torço
diariamente para que o espírito inútil seja cada vez mais abundante e
interminável nas nossas vidas.
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A
GRANDE
RAINHA
DANIEL TOMAZ WACHOWICS
TABOÃO DA SERRA, SÃO PAULO, BRASIL
Sempre escorre de minhas mãos
Quando tento pegá-la.
Encontrá-la, de certa forma,
É sempre perdê-la.
Suas visitas são breves
E quando ela se vai,
Resta a Noite,
Que corta meu corpo
Feito lâmina afiada.
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TÂNIA ARDITO
SÃO PAULO – PORTO
Neste ano de 2014, comemoram-se os 50 anos da publicação de
Luuanda, do escritor Luandino Vieira, pseudônimo de José Vieira Mateus
da Graça. O escritor que foi apresentado ao público pela primeira vez
na revista angolana Cultura(1957), participou através da sua literatura e
como membro do MPLA 1 na luta pela independência de Angola.
Luandino esteve preso em Santiago de Cabo Verde, na colônia penal
Campo de Trabalho de Chão Bom entre 1961 e 1972, sobre acusação
de atividades anticolonialistas, desta época data a escrita das suas
principais obras, inclusive Luuanda, livro impresso e distribuído em
outubro de 1964. Mais tarde, em 1972, após passar por uma revisão feita
pelo próprio autor o livro foi publicado pela editora Edições 70, mas
1 MPLA: Movimento Popular de Libertação de Angola, foi inicialmente um movimento
de luta pela independência, passando a partido político após 1974 com a
descolonização. Governa o país desde 1975.
DO
CINQUENTENÁRIO
DE LUUANDA:
ENTRE
APLAUSOS
E POLÊMICAS
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não demorou para a publicação ser proibida e apreendida2. Em uma
entrevista a Margarida Calafate Ribeiro, Luandino conta como
Luuanda, um pouco a sua revelia chegou até o público e também ao
júri de um concurso:
“Quando escrevi Luuanda eu estava preso, em
1961/62. (…) A minha mulher, Linda, a quem o livro
é dedicado, dactilografou e mostrou a um amigo
que era jornalista no ABC, que era o jornal dos
democratas liberais portugueses. O Alfredo Bobela
Motta, angolano, escritor nosso amigo era, na
época, 1963, chefe da redacção. E decidiu logo
que se devia avançar e fazer o livro. O livro foi
então composto na tipografia do jornal. E o
tipógrafo tirou logo provas que depois circulavam
nos mussesques de Luanda. Esta foi a Edição que
veio para Portugal para o concurso da Sociedade
Portuguesa de Escritores. (VIEIRA, apud: RIBEIRO,
2002, p.23).
Luuanda foi vencedor de dois prêmios entre 1964-65, em Angola o
Prémio Mota Veiga3 e em Portugal, Grande Prémio de Novelística da
Sociedade Portuguesa de Escritores , este que após o seu anúncio
gerou uma grande polêmica, além de uma intensa campanha contra o
júri, a Sociedade Portuguesa de Escritores e ao autor do livro, que
estava à época isolado em Cabo Verde e sendo vítima de uma intensa
difamação. As consequências da polêmica mostraram mais uma vez a
repressão e o controle do regime salazarista aos orgãos oficiais e
também às instituições culturais. Os membros do júri que atribuiram o 2 Após o fim do regime salazarista, a publicação passa a circular normalmente. O livro
chega ao público brasileiro nos anos 80. 3 Prémio D. Maria José Abrantes Mota Veiga.
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prêmio, foram alvo de investigação e interrogatório, a Sociedade
Portuguesa de Escritores, foi extinta por despacho do Ministro da
Educação4 e alguns jornais não se cansaram de destacar que o autor
do livro premiado estava preso por ―terrorismo‖, gerando uma
enxurrada de cartas e telegramas, muitos deles insultuosos5, além de
outras retratações e desmentidos, como a da Fundação Calouste
Gulbenkian, que se propôs a rever a sua política de patrocínio a
prêmios6.
Porém, a polêmica não ficou apenas pela atribuição do prêmio,
a linguagem trabalhada por Luandino em Luuanda, também fez
esbravejar os puristas da língua, a par de alguns elogios à época e
outros tantos depois e hoje é reconhecidamente um marco na história
do desenvolvimento da literatura angolana. Destacamos entre os que
não reconheceram de imediato a importância da obra, um artigo
assinado por Rui Romano no Jornal de Angola:
Assim, escrita numa linguagem inaceitável,
embora pitoresca e arremendando o “crioulo” da
região de Luanda, a obra não atingirá os seus
objectivos e terá um significado restrito, passando
4 Diário de notícias. Lisboa. 22-V-1965, pp. 1 e 5. ― Por despacho do Ministério da
Educação Nacional foi extinta a Sociedade Portuguesa de Escritores […] « Determino,
nos termos do art.4º do decreto-lei nº39560, de 20 de Maio de 1954, a extinção da
Sociedade Portuguesa de Escritores», In, TOPA, Francisco. Luuanda há 50 anos: críticas,
prémios, protestos e silenciamento. Porto: Sombra pela Cintura, 2014, p.82. 5 Manchete do Diário de notícias. Lisboa. 20-V-1965, p.2 ― Um dos premiados foi
terrorista em Angola e está a cumprir pena pelos seus crimes. 6 Notícia do Diário de notícias. 21-V-1965. Pp. 1 e 2. ―A Fundação Gulbenkian vai rever
a sua política em matéria de patrocínio de prémios‖. Reprodução do comunicado da
Fundação Calouste Gulbenkian: […] ― tendo, porém, em atenção certas
ciscunstâncias vindas a público a propósito da atribuição, no ano corrente, de um dos
ditos prémios, a Fundação não deixará de rever a sua política em matéria de
patrocínio de prémios a atribuir por outras entidades, em ordem a evitar, se possível,
que a atribuição eventualmente se realize com desvio dos fins que ela teve em vista
ao patrociná-los.
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em breve a um modesto lugar puramente
cronológico, na galeria das muitas tentativas […]7
Não precisou de muito tempo para mostrar o engano do crítico,
Luuanda não teve um significado restrito e sim, passou a ser obra de
referência para o entendimento da formação de uma literatura
angolana, alvo de inúmeros estudos, teses acadêmicas e homenagens,
demonstrando desta forma a importância que ela ocupa dentro deste
cenário.8 E o ―arremendo de crioulo‖ de que fala Rui Romano, não foi
uma tentativa de reproduzir uma linguagem, como alías outros se
enganaram quando classificaram desta forma o trabalho de linguagem
feito por Luandino no texto, mas sim uma elaboração e exploração da
língua 9 , modificando sua sintaxe, acrescida de expressões em
quimbundo, no objetivo de tentar mostrar um outro universo cultural
7 Jornal de Angola, 1964-1965 – Número especial. Luanda. « Crítica Literária», p. 12. 8 Uma das provas desta importância é o Colóquio ― De Luuanda a Luandino: veredas‖
promovido na Faculdade de Letras da Universidade do Porto em homenagem aos 50
anos de Luuanda, que decorrerá entre os dias 10 e 11 de Novembro de 2014. 9 Luandino Vieira numa entrevista concedida a Michel Laban conta a influência de
Guimarães Rosa no seu trabalho com a língua: ―Eu estava a passar para um caderno
escolar a versão final da ‗Estória do papagaio‘ [um dos três longos contos de
LUUANDA]. E, na visita desse dia, a família trouxe-me este livro, que não era uma
oferta porque o dono do livro dizia: ‗Eu só tenho este exemplar, mas é pra você ler‘.
Era o SAGARANA de João Guimarães Rosa, que eu li uns meses mais tarde. E então
aquilo foi para mim uma revelação. Eu já sentia que era necessário aproveitar
literariamente o instrumento falado dos personagens, que eram aqueles que eu
conhecia, que reflectiam – no meu ponto de vista – os verdadeiros personagens a pôr
na literatura angolana. Eu só não tinha encontrado ainda era o caminho. Eu sabia
qual não era o caminho (…), que o registro naturalista de uma linguagem era um
processo, mas que não valia a pena esse processo porque, com certeza que um
gravador fazia melhor que eu. Eu só não tinha percebido ainda, e foi isso que João
Guimarães Rosa me ensinou, é que um escritor tem a liberdade de criar uma
linguagem que não seja a que seus personagens utilizam: um homólogo dessas
personagens, dessa linguagem deles. Quero dizer: o que eu tinha que aprender do
povo eram os mesmos processos com que ele constrói a sua linguagem, e que – se eu
fosse capaz, creio que não fui capaz –, mas se fosse capaz de, utilizando os mesmos
processos conscientes ou inconscientes de que o povo se serve para utilizar a língua
portuguesa, quando as suas estruturas lingüísticas são, por exemplo, quimbundas, que
o resultado literário seria perceptível porque não me interessavam só as deformações
fonéticas, interessava-me a estrutura da própria frase, a estrutura do próprio discurso, a
lógica interna desse discurso.‖ In, LABAN, Michel ET AL. LUANDINO: JOSÉ LUANDINO
VIEIRA E SUA OBRA. Lisboa: Edições 70, 1980, pp.27-28.
CANALSUBVERSA.com
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existente e esquecido em Luanda. Rompendo com a norma lusitana, o
texto, tenta refletir e fazer ver com a visão de mundo do dominado, isto
se faz até pela modificação no título do nome da cidade para
Luuanda, em que é criado um novo espaço para dar voz aos excluídos.
As personagens das três estórias10 de Luuanda estão envolvidas
nas busca e necessidade de organizar modos de sobrevivência, no
primeiro conto Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos, vemos a figura do
idoso, numa situação de abandono e solidão dentro do espaço urbano
e do jovem sem perspectivas. O neto Zeca Santos, desempregado,
todos os dias sai de casa à procura de emprego, mas sem sucesso.
Carregando não só a fome, mas todos os anseios próprios da idade,
como a vontade de ser visto com camisas bonitas para impressionar
principalmente Delfina o seu amor que está prester a trocá-lo por um
pretendente em melhores condições de vida. Entretanto, quando volta
a casa, questiona a avó sobre sobre o alimento, pois o ―bicho da fome
estava a lhe corroer a barriga‖ e revolta-se quando o único alimento
apresentado são raízes de plantas, mas a revolta não é com a avó e
sim um reflexo do sentimento de injustiça sofrida por aqueles que não
lhe dão possibilidades.
No segundo conto, Estória do Ladrão e do Papagaio,
encontramos um ladrão de patos, que junto com os seus companheiros
precisam praticar pequenos golpes para garantir o sustento próprio e
dos familiares, além de um ladrão de papagaio que é desprezado por
todos por ter um defeito físico, mas o que mais doe-lhe é o papagaio
Jacó merecer mais atenção e cuidados do que ele. Vale destacar
neste conto ― A parabóla do cajueiro‖, que transmite um ensinamento
de que apesar de todos os males, as personagens não devem
abandonar as suas raízes, valorizando as tradições e os costumes,
mantendo assim o ―fio da vida‖.
10 O autor prefere utilizar a designação estória
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No terceiro e último conto, Estória da Galinha e do Ovo, a
questão quase filosófica com que as personagens se debatem: ―de
quem é o ovo?‖, da dona da galinha ou da vizinha da qual o milho
servia de sustento.Encontramos neste conto as diversas formas de
convivência dentro do musseque e o papel de cada um dentro deste
sistema, o branco, as mulheres, o polícia, e as crianças que no
desenrolar dos acontecimentos mostram-se as únicas capazes de um
novo agir diante da opressão. Com um final que através de uma
belíssima imagem guarda uma mensagem de um novo futuro que está
por vir:
“De ovo na mão, Bina sorria. O vento veio
devagar e, cheio de cuidados e amizades,
soprou-lhe o vestido gasto contra o corpo novo.
Mergulhando no mar, o sol punha pequenas
escamas vermelhas lá em baixo nas ondas
mansas da Baía. Diante de toda a gente e nos
olhos admirados e monandengues de miúdo Xico,
a barriga redonda e rija de nga Bina, debaixo do
vestido, parecia era um ovo grande, grande…”
No final do segundo e terceiro contos, encontramos nos epílogos
das estórias a presença de um griot11, utilizando recursos da oratura e
marcando desta forma a ancestralidade do gênero (conto) das
estórias, este griot-narrador anuncia. ― Minha estória. Se é bonita, se é
feia, vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e estes casos
passaram nesta nossa terra de Luanda‖. Desta forma, deixando ao leitor
o julgamento não só da beleza do texto, mas principalmente da
consciência da situação das gentes do musseque.
11 Griot: Guardador da tradição oral, ocupa um lugar importante na estrutura social na
África Ocidental. Constituem uma casta e tem como função primordial, educar,
informar e entreter.
CANALSUBVERSA.com
22
Bibliografia
VIEIRA, Luandino. Luuanda: Estórias. Lisboa. Edições 70, 10º edição.
HAMILTON, Russell. Literatura africana, literatura necessária. Lisboa:
Ed. 70, 1984.
LABAN, Michel ET AL. LUANDINO: JOSÉ LUANDINO VIEIRA E SUA
OBRA. Lisboa: Edições 70, 1980.
LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & escritas nas literaturas africanas.
Lisboa: Edições Colibri, 1998.
PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da
ancestralidade na ficção angolana do século XX. Niterói: EdUFF, 1995.
RIBEIRO, Margarida Calafate. Luandino Vieira. In, UEA, Lisboa,
2002.
SANTILLI, Maria Aparecida. A ―LUUANDA‖ DE LUANDINO Vieira. In:
VÁRIOS. LUANDINO – José Luandino Vieira e sua obra. Lisboa: Edições
70, 1980.
TRIGO, Salvato. Luandino Vieira: o logoteta. Porto: Brasília, 1981.
TOPA, Francisco. Luuanda há 50 anos. Críticas, prémios, protestos
e silenciamento. Porto: Sombra Pela Cintura, 2014.
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EVANDRO DO CARMO CAMARGO
SÃO LUIS, MARANHÃO, BRASIL
A mão esquerda e uma parte grande do antebraço direito
latejam. Primeiro rolê no solzão do meio-dia depois da queda e das
escoriações. Preciso fumar. Os mercados estão fechados, dia dos
comerciários. Na padaria não tem. Nem na outra. Pergunto no boteco
estranho. Indica um bar logo acima. Mini Box Sousa. Uma mulher com
uma meia bege na cabeça bate palmas entre as grades de proteção
do bar/casa, chamando. ―Seu Luís!‖ ―Seu Luís!‖ Demora e vem um
homem de samba canção e sem camisa. Surpreendido em sua siesta,
ainda se espreguiça enquanto me ouve perguntar por cigarros. ―Tem
Klint‖, diz. Emudeço. ―É da Souza Cruz‖, enfatiza. ―Queria de outros…‖ Se
quero me envenenar, me reservo o direito de escolher o veneno.
―Segue aqui e logo ali na frente tem. Onde estão aqueles carros.‖
―Certo.‖
PEIDO QUENTE É QUASE MERDA
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Minha mão esquerda, apesar da tragédia da adolescência,
continua mesmo predominante. Na queda percebi: ela, já de si um
tanto precária, pois sem tato fino em parte e sempre algo dolorida e
canhestra, se antepôs à direita no gesto instintivo de defesa, e foi mais
arruinada por isso.
O calor intenso me faz buscar sombras nos cantos das calçadas,
mas não há sombras. 12h40. ―Ninguém está na sombra.‖ ―Ninguém está
na sombra.‖ Era a frase que me vinha repetidamente semanas atrás.
―Ninguém está na sombra.‖ Lateja. Tenho o coração na palma da mão
esquerda. Uma mulher muito baixa passa por mim rápido com um
uniforme de loja. Horário de almoço. Segunda. E as aulas… Olho pra
mão. A mão. No exato mesmo lugar onde os cacos do copo
penetraram quase 20 anos atrás houve agora a laceração mais funda.
E não sei as consequências disso. Perdi certa mobilidade, é verdade,
mas pode ser devido à dor do trauma. Que sei eu? Que exames posso
fazer para salvar minha mão? Nenhum. Nada. Aguarde cicatrização.
Aguarde. Espere. Seja paciente. É.
Tem gente que acha que é impossível cair segurando um copo,
ele quebrar e encher sua mão de cacos, espicaçando seus músculos e
nervos e artérias e veias da palma da mão, fazendo um lamaçal de
sangue e pondo todos em pânico. Mas era a mão esquerda. Justo.
Para um canhoto orgulhoso como eu, justo. Meses depois, duas
décadas se passaram. A mão voltou pra mim. Aos poucos.
Timidamente. Envergonhada. A acolhi, a ensinei, fizemos muitas coisas
boas e ruins juntos. Algumas bem vulgares, outras até nobres. Meu Deus,
perdão pelos horrores que perpetrei com esta mão. Não que… Eu
nunca… Mas… Oh! Pesadelos. Densos pesadelos.
Chego ao bar. Apresentável pros padrões. O bar, eu não. Dias
sem banho. Barba e unhas imundas de grandes. Shortão de jogar bola.
Havaianas ensebadas. Pergunto logo por Marlboro. Não tem. Entre
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Carlton e Hollywood, fico com este. E peço também uma lata de
cerveja, pro inferno com esses remédios. Sorvo em poucos, grandes e
profundos goles, enquanto dou generosas baforadas no meu Hollywood
recém-adquirido. Fico observando tudo. Pensando e, às vezes, olhando
pros ralados, pras crostas, pras profundezas rubras. Sentindo-os. Tenho
entre os dedos o cigarro que meu pai fumou por anos antes de morrer
de câncer. Lá fora, o sol inclemente. O ar parado. Troco rudimentos
com um gordão sentado bebendo. Sobre a queda com a bicicleta e
tal. Chego à conclusão, mais uma vez, de que reside em mim um
suicida frustrado, que não podendo me levar ao ato cabal, se contenta
em me fazer sofrer o mais possível, ou então que me persegue uma
corja de espíritos maus que se diverte em me dar rasteiras e
trambolhões, rindo alto de meus revezes, de minha falta de prumo, de
como sou desajeitado e fraco e espantadiço e mau. São raciocínios
bem razoáveis, penso. Absolutamente plausíveis. Talvez científicos. Sim.
Científicos. Volto pra casa fumando o segundo cigarro do dia enquanto
caminho sob o sol do fim de outubro. Ruas semidesertas. Vultos se
esvaem. Que mão me restará? Ando rápido pra evitar o sol. Calor e
movimento fazem minhas cicatrizes latejarem, lembrando a cada pulso
sua inexorável presença.
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JULIANA BEN
PORTO ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL
A galeria é a rua
É minha
E é tua
A contradição está nua
Ao pé do morro
E do gozo de ser rua
Estou descalça de mim nesta cidade
Azul de si
E de tantos dós
Que não escuto mais
Quero com urgência as seis notas sem dó
Porque não tenho mais dó
Eu tenho
Sol.
VIOLÊNCIA SUBLIMINAR
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Edição e revisão:
MORGANA RECH E TÂNIA ARDITO
Recepção de originais:
Diretrizes para publicação:
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