Revista Ethnic No 16
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CONTEÚDO DESTA EDIÇÃO
01. Espaço de Escuta Interdisciplinar como Ferramenta para Promoção e Apoio à Saúde da Família. Risoleyde de Almeida Matos ................... P.02 02. A Personalidade Entendida À Luz Da Psicologia Humanista-Existencial. Ieda Tinoco Boechat ...................................................... P.16
03. REFLEXÕES SOBRE O USO DE PSICOFÁRMACOS: Recurso terapêutico ou meio de resolver as dificuldades da vida? Patricia Elizabeth Sanz de Alvarez. .................................................................. P.39
04. Os Psicofármacos na Perspectiva da Psicologia Fenomenológico-Existencial. Ieda Tinoco Boechat ........................................................ P.50
Revista Ethnic. No 16. Ano 08. Dez. 2011 ISSN 1983-
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ESPAÇO DE ESCUTA INTERDISCIPLINAR COMO FERRAMENTA PARA PROMOÇÃO E APOIO À SAÚDE DA FAMÍLIA
Risoleyde de Almeida Matos1
RESUMO
Este artigo busca contribuir apresentando o “Espaço de Escuta Interdisciplinar”, - entre tantas soluções -, como uma das respostas, principalmente no que tange à família atual e seus conflitos internos, tais como desestruturações, agressões familiares, agressões sociais, frustrações pela ausência de recursos financeiros ou pela busca exagerada deste, desordem social, fracassos por não conseguir seguir o modismo e outras indagações enumeradas no decorrer deste estudo, antes que estes problemas se solidifiquem ou eclodam. Assim, se reconhece que o “Espaço de Escuta Interdisciplinar” pode ser apontado como um meio que elucide e apresente recursos à família a fim de que esta não entre no caos ou até mesmo possa sair deste. Para isso, aponta contribuições de algumas disciplinas afins como psicologia, serviço social e sociologia, entre 1 Risoleyde de Almeida Matos – Psicóloga Clínica e Organizacional – Especialista em Pedagogia Empresarial. Mestranda da Faculdade Etnia no curso Psicologia Clínica e do Aconselhamento da Universidade Autônoma de Lisboa.
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outras, trabalhando concomitantemente no auxílio e compreensão dos fatores que têm afetado o equilíbrio familiar e como conseqüência, as distorções comportamentais sociais como um todo, buscando oferecer apoio ou amparo a esta primeira fatia de grupo social, assessorando e facilitando a abertura de um canal de diálogo a esse grupo, minimizando essas dificuldades. O enfoque parte da família como base e se estende para fins de compreensão a outras situações mais abrangentes. Reconhece, deste modo, que o trabalho interdisciplinar possui melhor condição de resposta quando realizado junto do que em separado. Palavras-chave: Interdisciplinaridade, conflitos, espaço, saúde.
INTRODUÇÃO
A humanidade tem exigido novas formas de inserção de espaço
psicólogo; na realidade, inovações nas atitudes, na visão e nas aplicações.
Portanto, necessitando de profissionais mais empenhados com o contexto
social. A significação clínica, em razão disso, não pode mais se limitar a
um consultório e sua clientela; refere-se, especialmente, a uma postura
frente à pessoa humana e sua realidade social, impondo,
conseqüentemente, ao psicólogo e áreas afins da saúde, uma capacidade
reflexiva continuamente exercitada em relação à própria prática, da qual
se origine um posicionamento ético e político (Dutra, 2004).
Em meio, muitas vezes, de um mundo caótico, existe uma avalanche
de situações conflitantes que nem mesmo sabe-se nomear onde começam
e onde terminam.
Encontra-se adolescentes desconexos de sua faixa etária, adultos
ainda vivendo a adolescência; famílias desestruturadas; suicídios,
agressões familiares; agressões sociais; frustrações pela ausência de
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recursos financeiros ou pela busca exagerada deste; desordem social,
desilusões por não conseguir seguir o modismo; angústias profundas pelas
perdas inesperadas; depressão devido ao desemprego, excessivo
autoritarismo; disputas incontroladas de poderes; barganha sobre
barganha, diferentes e variadas culturas em desencontro e problemas de
interpretações em decorrência das diferentes subjetividades e muitos
outros. Com isso, gera-se na família violências de todos os modos.
Pessoas surtam, pessoas desestruturam-se, entram em vícios e assim
sucessivamente, deste modo, não sabendo a onde ir buscar apoio.
Segundo Alba Zaluar (1997), a violência em toda sua generalidade
(psicológica, física, sexual, patrimonial e moral) hoje em dia, está em toda
parte. Na mesma, já não se consegue distinguir seus atores sociais
permanentes reconhecíveis, tão pouco as suas causas de delimitação clara,
perceptível e até mesmo compreensível. Nesse aspecto as próprias
relações pessoais e interpessoais através dos milhares tipos de frustrações
podem também ser definidas como violência. Pois, tudo aquilo que agride
o bem estar humano e sua saúde, aos poucos o vai violentando. A família
é a mais atingida em sua gênese.
Questiona-se o que acontece antes de se chegar a este ponto? Como a
psicologia clínica, social, política e áreas afins podem contribuir com
prevenções e intervenções? Como chegar à raiz do problema? Qual a
participação dos profissionais da saúde, e em que, suas contribuições
afetam e podem gerar soluções?
INTERDISCIPLINARIEDADE E O ESPAÇO DE ESCUTA
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De acordo com JAPIASSU (1976) “a interdisciplinaridade
caracteriza-se pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau
de interação real das disciplinas no interior de um mesmo projeto”.
- Como o espaço de escuta interdisciplinar pode contribuir na
educação familiar? - É possível uma política de intervenção?
- A atitude sistêmica: Como a interdisciplinaridade através de um
trabalho sistêmico familiar, pode apontar ou oferecer meios e recursos de
visão amplificada em meio ao caos instalado?
Como afirma Zaluar (1997) fica extremamente difícil nomear a
origem dessas conflitivas, mas há em comum um contexto que se
encaminha para reflexões; as nossas primeiras vivências. Quase em sua
totalidade começam no ambiente familiar, e, é deste que se encaminha
para os demais ambientes sociais. Nesse aspecto, a intervenção ou a
prevenção para ajustes sociais, também necessitam começar por este
ambiente.
Quando uma pessoa chega a ponto de se desestruturar e surtar, esta
pessoa já passou pelo ambiente familiar em primeiro lugar. É claro que
aqui não se está descartando os problemas genéticos e neuropsicológicos
(endógenos ou exógenos), mas se está delimitando um dos campos que
muito tem participação nas mudanças da sociedade: as relações
familiares.
Desse modo, como o espaço de escuta interdisciplinar pode contribuir
na educação familiar? É possível re-educar uma família? Se sim, como?
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De acordo com RAPIZO (1998) define-se família como instituição,
um sistema, levando em consideração não apenas um complexo de
relações palpáveis, mas também um rede simbólica possuindo
representações de seus membros, os lugares que devem ocupar, os limites
que devem respeitar e as prática que devem desenvolver. Nesse aspecto,
avalia-se a família, como um espaço de construção da identidade do
sujeito. Pois, por meio desta identificação, o individuo reconhece quem
ele é.
Para essa construção do sujeito, é preciso a família inteira perceber
como cada um está construindo-se e contribuindo na construção do outro.
Quais papéis cada membro tem desenvolvido. Desse modo, a Terapia
Sistêmica Familiar aparece como um contributo junto à intervenção
interdisciplinar. O foco da Teoria Sistêmica está nas relações, e a proposta
terapêutica é trabalhar com todos os membros da família conjuntamente,
entendendo a família como um sistema em interação, em que cada um dos
seus membros tem responsabilidades e funções a desempenhar, gerando
assim um movimento de interdependência e inter-relação, e
desmitificando a idéia de que somente um membro está ou é “doente”.
Através de um olhar interdisciplinar a família passaria para uma visão
ampliada dos papéis a serem atuados, e se estabeleceria a ordem, pois, de
acordo com (CALIL, 1987), “quando pai é pai, e filho é filho, quando o
irmão mais velho desempenha o papel de irmão mais velho e o mais novo
age de acordo com o papel de irmão mais novo, quando o marido é
realmente marido e a esposa é realmente a esposa, então, existe ordem".
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Um dos grandes conflitos existentes na família e na sociedade atual é
a confusão de papéis. Quando estes não são estabelecidos, a identidade se
fragmenta, os filhos não sabem quem são e nem como agir. Assim,
crescem as barganhas de poderes já no núcleo de aprendizagem do
indivíduo. Este quando cresce, passa a viver esses mesmos
comportamentos nas demais áreas de sua vida. Muitas vezes, com o
passar do tempo, quando se encontra as brigas de gangues, as disputas por
poderes públicos e outros, não se sabe onde isso começou. Pois, de
acordo com Freud (1976) nos mecanismos de defesas que cada indivíduo
utiliza, nada mais é do que esse mesmo indivíduo voltando a vivenciar
uma ou mais etapa de suas experiências infantis, na tentativa de sair do
conflito e buscar o prazer dessa etapa. São nesses aspectos que entra o
Espaço de Escuta Interdisciplinar.
Os estudos sociológicos, nesse sentido, apontariam com maior
eficácia, as conseqüências desses desarranjos na sociedade. A psicologia
comportamental cognitiva, por exemplo, elucidaria através da escuta
familiar, como isso foi se gerando e como alguns exercícios no seio da
família, amenizariam certos conflitos. Já os assistentes sociais apontariam
os meios à família de como esta teria maior apoio no sistema público,
para resolver principalmente as questões que estariam voltadas para esses
contextos, como no caso de emprego, saúde comprometida, direitos
adquiridos etc. em fim, aquilo que o próprio nome da profissão traz
consigo, interviriam com as assistências sociais que a família
necessitasse.
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Ao conduzir à família a reeducação “pensante”, se apontaria que ao
invés de nomear “um doente” na família, e que a responsabilidade é
apenas de um, se mostraria que a responsabilidade é de todos, se refletiria
de que “a família” inteira é responsável por si e pelo outro, e nessa
conjectura, a família inteira sararia ou melhoraria, como conseqüência, a
própria sociedade. O procedimento terapêutico interdisciplinar iniciaria
com a avaliação do sistema e a redefinição deste em seus papéis. Com
isso, buscar-se-ia a troca da percepção isolada de indivíduos, para a
percepção conjunta de pessoas-sistema. Assim, ao responsabilizar o
sistema, constroem-se a partir disso, novas possibilidades de mudanças no
eixo familiar (CALIL, 1987).
Uma família que possui um membro juvenil que entrou para algum
tipo de quadrilha, por exemplo, aqui, nesse caso, não se está falando em
apenas confinar um filho em um dos sistemas de proteção e “educação”,
como a Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao
Adolescente (CASA), anteriormente chamada Fundação Estadual para o
Bem Estar do Menor (FEBEM), ou isolar filhos para um lado e pais para
outro, ou encaminhamento ao Conselho Tutelar. Se está falando em um
espaço para escuta de toda a família.
Em um dos serviços desenvolvido por alguns municípios denominado
Núcleo de Apoio à Saúde da Família – NASF, até mesmo, pouco
divulgado a sociedade, na área de saúde mental, de acordo com
(STARFIELD, 2004) mostra que a Atenção Primária à Saúde é complexa
e demanda uma intervenção ampla em diversos aspectos para que se
possa ter efeito positivo sobre a qualidade de vida da população, necessita
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de um conjunto de saberes para ser eficiente, eficaz e resolutiva. É
definida como o primeiro contato na rede assistencial dentro do sistema
de saúde, caracterizando-se, principalmente, pela continuidade e
integralidade da atenção, além da coordenação da assistência dentro do
próprio sistema, da atenção centrada na família, da orientação e
participação comunitária e da competência cultural dos profissionais.
O mesmo ao esclarecer sobre este serviço explica as modalidades
existentes de NASF: o NASF 1 que deverá ser composto por no mínimo
cinco das profissões de nível superior (Psicólogo; Assistente Social;
Farmacêutico; Fisioterapeuta; Fonoaudiólogo; Profissional da Educação
Física; Nutricionista; Terapeuta Ocupacional; Médico Ginecologista;
Médico Homeopata; Médico Acupunturista; Médico Pediatra; e Médico
Psiquiatra) vinculado de 08 a 20 Equipes Saúde da Família e o NASF 2
que deverá ser composto por no mínimo três profissionais de nível
superior de ocupações não-coincidentes (Assistente Social; Profissional
de Educação Física; Farmacêutico; Fisioterapeuta; Fonoaudiólogo;
Nutricionista; Psicólogo; e Terapeuta Ocupacional), vinculado a no
mínimo 03 Equipes Saúde da Família, fica vedada a implantação das duas
modalidades de forma concomitante nos Municípios e no Distrito Federal.
Porém, se já existe um serviço semelhante ao exposto neste artigo, o
que o diferencia? – A continuidade terapêutica interdisciplinar. Pois,
mesmo se utilizando este termo, o serviço em sua maioria é
multidisciplinar. As intervenções são de profissionais de áreas afins,
porém como espaço de escuta, não é gerido concomitantemente, mas em
paralelo.
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Nesse caso, a sugestão é a amplificação deste, além, é claro, de maior
divulgação do mesmo. Além disso, que os atendimentos não sejam
realizados após caos instalados, mas serem oferecidos de forma
preventiva, antes que a família sucumba.
Assim como um funcionário que não está bem para atuar em seu
trabalho e deve participar de algumas sessões terapêuticas e somente
posteriormente ser reavaliado em suas funções. De modo igual, as
famílias que se encontrarem em condições mencionadas nos modelos e
padrões iniciais deste estudo, também necessitam freqüentar algumas
sessões interdisciplinares de ajuda. Neste espaço não apenas composto
por psicólogos, mas com no mínimo, três diferentes áreas de saúde, que
juntos passam dialogar, conduzir a família ao diálogo – em sua maioria –
escasso na família, intervir, se for o caso, concomitantemente, apontando
meios de mudanças comportamentais, tanto para pais como de filhos.
A psicologia como um espaço de escuta, agregado com profissionais
das áreas de saúde afins, estariam voltados para uma re-educação que
levasse em conta: relacionamentos, limites, definições de papéis,
condições sociais e suas implicações, condições de saúde sócio-política
dentro da família e não apenas externa a esta.
Eficaz também seria que cada grávida passasse junto com esposo (no
caso da existência deste), por cursos de educação familiar, pois, nos dias
atuais as crianças com menos de dois anos já ditam as regras e as ordens
na casa ao invés dos pais. Ou seja, os espaços de limites necessitam ser
reavaliados.
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É possível uma política de intervenção?
Nas últimas décadas há um alargamento do entendimento da
violência, uma reconceitualização de suas peculiaridades pelos novos
significados que o conceito assume, “(...) de modo a incluir e a nomear
como violência acontecimentos que passavam anteriormente por práticas
costumeiras de regulamentação das relações sociais”, como a violência
intrafamiliar contra a mulher, jovens, pais ou as crianças, a violência
simbólica contra pessoas ou grupos, categorias sociais ou etnias, a
violência nas escolas etc. se encontram neste patamar.
De acordo com o Instituto Sangari, em trinta anos esse frenesi cresceu
mais que algumas guerras passadas. O estudo analisa e verifica profundas
mudanças nos padrões históricos. Aponta as principais características
dessa evolução nas 27 Unidades Federadas, 27 Capitais, 33 Regiões
Metropolitanas e nos 200 municípios com elevados níveis de violência.
(WAISELFISZ, 2012).
O ponto de partida dessa mobilização é a percepção da real dimensão do problema. É preciso reunir dados, confrontá-los, analisá-los, interpretá-los e apresentá-los à sociedade para que, de posse deles, ela possa agir com mais confiança. Somente com o triste fenômeno da violência devidamente dimensionado, pode-se realmente enfrentá-lo. Esse enfrentamento deverá, então, transcender a indignação e converter-se em ação, a qual, por sua vez, poderá gerar políticas públicas, como, aliás, já vem ocorrendo. (SANGARI, 2012.p.05)
É em busca de respostas para uma demanda tão grande de conflitos, que as intervenções necessitam ser mais imediatas. Com isso, a família necessita passar por orientações, se fazer uma reeducação dos papéis familiares desde como atuar como pai, como mãe, como filho. Não é ditar
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normas de condutas, mas, é contribuir para ajustar condutas. Pois, em meio a tantas informações, há muitos “educadores” apontando como as pessoas devem agir. Uma visão interdisciplinar conduzirá a família a pensar e repensar seus papéis, pelo meio das diversas confrontações de Atitudes X Conseqüências. Assim, através de um programa pré-estabelecido com técnicas psicológicas, assistenciais, sociológicas e encaminhamento adequado, conforme levantamento de necessidades, a família poderá ser acompanhada e reestruturada.
Mesmo fora de serviços governamentais, é que profissionais atuantes e mobilizados com a saúde da família e conseqüentemente com a sociedade, se engaja e estimula outros profissionais a se engajarem em ações pró-ativas.
A psicologia conta com ferramentas que potencialmente podem enfrentar os processos de exclusão social vividos por parcelas significativas da população: vínculo, escuta, cuidado, intervenções coletivas, aproximação com o território e com as redes/conexões estabelecidas pelos sujeitos enquanto suas estratégias de existência (ou seria resistência). Práticas pautadas por estes pressupostos certamente incidirão na produção de uma subjetividade cidadã – que desloque o sujeito de um lugar “assistido” para um lugar protagonista e de direitos -, articulação de redes sociais em defesa da vida, construindo entre si laços de solidariedade, na lógica da integralidade (Silvia Giugliani, Revista CRP). http://www6.ufrgs.br/e-psico/etica/temas_atuais/psico-pol-publicas-texto.html
O próprio espaço de escuta interdisciplinar, nesse caso, já se torna uma das redes de solidariedade social. É claro que não se está falando apenas de voluntariado assistencialista, pois, todo profissional merece e deve ser remunerado, mas aqui também se fala em contribuição voluntária desagregado de ganhos financeiros obrigatório.
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CONCLUSÃO:
Nesta consideração final, volta-se as questões pontuadas de forma
direta ou indireta neste artigo. Eu, você como profissional podemos fazer
a diferença na saúde de quem mais necessita.
A ação profissional-cidadã deve ser voltada muito mais para ética do
que para a técnica. Sabe-se que a necessidade de recursos para sustento é
em sua maioria uma necessidade geral da humanidade. Porém, em nome
dessas necessidades, não se pode ficar alheios as lutas e dificuldades dos
demais. O espaço de escuta interdisciplinar pode e necessita ser, uma rede
de conexão social protagonizadora de ações pró-ativas para a saúde básica
da família através da concomitância de conhecimentos. É preciso
engajamento de todos.
É necessária maior divulgação de serviços auxiliares da saúde
familiar. Que as próprias práticas acadêmicas em suas grades curriculares
vislumbre e agilizem as intervenções interdisciplinares, conquistando
cada vez mais os públicos acadêmicos para visões mais amplas do
conceito de saúde. Como propõe a teoria Rogeriana, todos podem atuar
como psicólogos. O que se precisa mesmo é de pessoas que saibam
escutar e motivar para a auto-eficácia, utilizando as três disposições
eficazes instrumentais de aperfeiçoamento da condição humana em
qualquer tipo de relacionamento, seja na educação entre professor e
aluno, no trabalho, na família, nas relações interpessoais.
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A responsabilidade e a incumbência com a saúde da coletividade
baseiam-se na conquista e no desafio de profissionais comprometidos
com a saúde e que almejam muito mais que conquistas financeiras, mas
de pessoas que gostem de pessoas, que gostem de trabalhar em grupos
interdisciplinares, que tenham multi-conhecimentos científicos querem
compartilhá-los e queiram aprender com os demais, pois, sempre se tem
algo a aprender. Que seja parte da solução e não parte do problema, que
tenha uma visão de saúde através de uma perspectiva biopsicossocial,
contribuindo na prevenção e na promoção desta.
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A PERSONALIDADE ENTENDIDA À LUZ DA
PSICOLOGIA HUMANISTA-EXISTENCIAL.
Ieda Tinoco Boechat
RESUMO
O presente artigo abordou a personalidade sob o enfoque humanista-existencial, que a compreende como constituindo-se na interação dialética da pessoa com seu meio, com outras pessoas e consigo mesma. A pessoa humana se faz enquanto existe, integrando presente, passado e futuro numa unidade temporal, experenciando o tempo e o espaço, adotando um modo de ser a partir da maneira como articula amplitude e restrição em seu existir, por meio de escolhas responsáveis, considerando os determinantes com os quais convive. Enfatizou-se o caráter relacional e processual da constituição da personalidade, bem como a possibilidade de mudança.
Palavras-Chave: personalidade; campo fenomênico; movimento dialético do existir; Psicologia Humanista-Existencial
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ABSTRACT
The current article talked about the personality under a humanist-existential focus, which comprehends it, as part of the dialectic interaction of the person with his/her social environment, with other people and with him/herself. The human being who builds up him/herself while living, integrating the present, the past and the future in a temporal unity, experiencing the time and the environment, adopting a way of being based on how that individual manages amplitude and restriction in his/her existence through reasonable choices, taking into consideration the determinants with the ones he/she lives. The relational and processual side was emphasized as far as the constitution of the personality is concerned as well as the possibility of change. Keywords: personality; phenomenal field; dialect movement of existing; Humanist – Existential Psychology.
1. INTRODUÇÃO
O artigo que ora é apresentado pretende dedicar-se ao estudo da
personalidade sob o enfoque da Psicologia Humanista-Existencial que,
por conceber o homem como alguém que escolhe quem quer ser,
considera-o responsável pelo seu devir, possuindo uma tendência para
experenciar sua plena realização, pela criação de possibilidades e
atualização de potencialidades, considerando e desafiando seus limites.
O corpo teórico dessa disciplina dirige-se à clínica psicológica
utilizando-se do método fenomenológico husserliano, que se coloca como
um modo de se aproximar do fenômeno e deixar que ele se mostre tal
como é, visando buscar compreendê-lo e descrevê-lo a partir de si
mesmo.
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Tem-se por principal objetivo elucidar como se entende a
personalidade sob o enfoque humanista-existencial, evidenciando seu
caráter relacional e processual, o que se justifica por existir não muitas
publicações a respeito do referido tema, o que pode favorecer uma nova
percepção do homem sobre si mesmo, além de contribuir para provocar
uma atualização das matrizes curriculares universitárias e do
embasamento teórico das demais ciências. Para tanto, faz-se uma revisão
de literatura, que se orienta pela contribuição de autores como Carl
Rogers, Jean-Paul Sartre, Martin Heidegger,Tereza Erthal, Yolanda
Forghieri, entre outros.
2. A CONSTITUIÇÃO DA PERSONALIDADE NO CAMPO FENOMÊNICO
O campo fenomênico faz referência ao conjunto de vivências que
uma pessoa experimenta, com as quais estabelece relação e que
influenciam-lhe o comportamento, em determinado momento. Nesse
campo, vai-se constituindo a personalidade humana.
Inicialmente, Rogers fala de um “campo fenomenal” como sendo a
base da organização da personalidade, o “sentido de ‘realidade’ da
pessoa”, dizem Morato; Mosqueira (2010): este campo inclui, além das
experiências – conscientes e as passíveis de o serem – vindas de
informações internas e externas, que estão ocorrendo no organismo num
dado momento; abrange também um processo de diferenciação no qual o
self se desenvolve por meio das percepções de “eu” e de “outros” e de
suas relações, bem como pela valoração dessas relações.
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Segundo Morato; Mosqueira (2010), quando Rogers se propõe a
investigar o modo pelo qual a pessoa percebe-se a si e ao mundo, ou seja,
a conhecer tal referencial interno, caminha rumo à disposição
fenomenológica e chama de “congruência interna” seu novo enfoque da
personalidade.
Embora Rogers estivesse atento à influência positivista sobre seu
olhar, o novo enfoque ainda estabelece uma comparação entre os
conteúdos da consciência e do organismo. Para compreender
fenomenologicamente a congruência, Gendlin a reformula recorrendo ao
conceito de dasein2 heideggeriano; a congruência, então, passa a ser o
modo do processo de experenciando,
a condição básica para a criação de significado, na medida em que reflete o ser-aí do homem como “sendo-no-mundo-aqui-com-os-outros”. Isso diz respeito ao modo de apreensão do ser humano como um corpo sentindo situações de maneira pré-verbal e pré-conceitual. Nesse processo, essa corporeidade sente ao mesmo tempo em que compreende: pode articular esse sentir, diferenciando-o e especificando-o (MORATO; MOSQUEIRA, 2010, p.88).
Sendo o homem um ser de relações, comunica verbalmente o
significado do que sente, significado este que se diferencia e se torna
específico, já que o ser humano estabelece novas relações entre o que
sente, compreende e articula, e o que virá a ser: “o experenciando é,
portanto, um processo referente ao sentido existencial do viver humano:
situações, sentimentos, pensamentos e linguagem enquanto ações”
2 Heidegger, “com esta designação, pretende substituir a palavra sujeito, que implica um conceito que tende para o fechamento, por um termo que caracteriza o ser em relação, portanto, abertura” (FEIJOO, 2000, p. 73).
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(MORATO; MOSQUEIRA, 2010, p.89). Esse processo refere-se ao como
ele se faz enquanto existe no mundo, refere-se aos modos de relação que
o humano adota em sua experiência vivida.
A família – consanguínea e/ou afetiva – apresenta o mundo à
criança, é seu cicerone cultural. Inicialmente, os valores da criança, suas
crenças, ações e reações, seus gestos e vocabulário, sua forma de pensar,
agir e sentir, mostram onde nasceu e com quem convive. Essa construção
se dá de maneira imediata, pré-reflexiva na interação com seus
cuidadores, não cabendo, portanto, a naturalização dos fenômenos que aí
se experimenta.
Os vínculos estabelecidos na interação social garantem-lhe
emocionalmente o sentido de pertencimento e interação, tão necessários a
sua constituição psíquica. Aprende aí modos de relação e adota padrões
de comportamento e os repete, pois é o que até então conhece e considera
como adequados, pois se reconhece neles, por neles reconhecer os seus, o
que lhe confere identidade com o grupo e identidade própria.
Da sua identidade pessoal participa em significativa medida a
identidade social, pois “um homem nunca é um singular individual; seria
melhor chamá-lo um singular universal; totalizado e, em virtude disso,
universalizado por sua época, ele a retotaliza como uma singularidade”
(SARTRE, 1981 apud ERTHAL, 2010, p. 208, 209).
À medida que existe, a criança experencia seu próprio grupo familiar
ir-se modificando, amplia suas relações, interage com outros grupos e tem
a oportunidade de conhecer e participar de outros modos de relacionar-se.
Visita outros ambientes, ouve novas ideias, conhece novos costumes, e
abre-se ou não a esse novo.
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O homem, “o dasein ou pre-sença é o ente cuja essência é o existir.
É o ente que, sendo, se responsabiliza e assume seu próprio ser” (FEIJJO,
2000, p.77). O homem é abertura pré-compreensiva, mas pode dar-se em
fechamento, não se constituindo no tempo, quando “a pre-sença fecha-se,
privando-se da abertura que lhe é própria. Foge de si mesma e busca-se a
si mesma, ao mesmo tempo” (FEIJOO, 2000, p. 85).
“Só o homem existe. As pedras são, mas não existem. Os anjos são,
mas não existem. Deus é, mas não existe. Só para o homem tem sentido
algo como existir” (HEIDEGGER apud PENHA, 2001, p. 31). Existir
significa, aqui, movimento para fora, diz Penha (2001): o tempo é a
dimensão essencial do ser humano; é através da existência, da
temporalidade, que o dasein adquire sua essência.
Tempo é vida: enquanto existe, a criança, o adolescente, tecem sua
essência e se fazem influenciados pelas situações e acontecimentos.
Crescem interagindo com sua herança genética, com as tradições de sua
cultura e regras de sua sociedade, com as exigências econômicas e os
imperativos de sua história, não necessariamente submetendo-se a estes,
mas ora adaptando-os ora adaptando-se, ora transcendendo, buscando
uma adequação possível.
A jovem pessoa não precisa mais ser um “continuador passivo” de
sua proto-história. Pode ultrapassá-la ou conservá-la, pois “não
encontramos nela nenhum comportamento, tão complexo e elaborado
quanto deve parecer, que não é originariamente a ultrapassagem de uma
determinação internalizada” (SARTRE, 1981 apud ERTHAL, 2010, p.
210).
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As vivências da criança e do adolescente não precisam mais delinear
o trajeto da vida adulta, o que requer não necessariamente um
rompimento, mas uma atualização: podem deixar o que precisa ser
deixado, abraçar o que precisa ser abraçado e trilhar com fé um caminho
novo, por mais estranho que possa parecer, já que “no hay caminos se
hace el camino al andar” (MACHADO apud ERTHAL, 2010, p. 198).
Construir um caminho traz estranheza para quem supunha estar o
caminho pronto a trilhar. Há estranheza, pois é novo, é diferente, é espaço
de criação. Há estranheza, pois, nesse processo, a pessoa vai
conhecendo(-se) e transformando(-se) para se (re)conhecer nesse novo,
que estava fora de seu repertório existencial, de seus recursos tidos como
disponíveis.
Quem antes agia muito mais intuitivamente, pela reflexão, torna o
diferente, o novo ou o desconhecido, conhecido; pela vivência, dele se
apropria, experenciando o “estar-em-situação”. Esse espaço de liberdade
de escolha, de autocriação, pode angustiar e, então, segundo Sartre,
algumas pessoas optam por agir de “má-fé”, adotando
a atitude característica de quem finge escolher sem na verdade escolher, é um “autoengano”. Imagina que seu destino já está traçado; aceita as verdades exteriores, “mente” para si mesmo [...] dissimula para si mesmo, com o objetivo de evitar fazer uma escolha pela qual deva se responsabilizar (ARANHA & MARTINS, 2009, p. 243).
Numa proposta husserliana, Forghieri (2002) esclarece: a
consciência é intencional, isto é, dirige-se a algo, atribuindo-lhe um
significado e um sentido orientador.
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Assim, a pessoa estabelece relação com aquilo que escolhe,
apropriando-se de si, tornando mais pessoal suas relações, sua vida, vida
essa que se ela não fizer, ninguém (ou alguém) fará por ela. Percebendo-
se responsável por sua essência, menos chances terá de vivenciar o
equívoco de uma vida conduzida pelo determinismo e pela causalidade.
Desde cedo, a pessoa pode se perceber sintonizada com a totalidade
de seu ser, plenamente consciente de que a qualidade de sua vida passa
em boa medida pela forma como se coloca em suas relações e não por
algo do qual não sabe ou não pode mudar, e que vai passar a vida inteira
tentando descobrir, em vez de experenciar sua temporalidade: fazer-se e
des-envolver-se enquanto se relaciona, em atitude, hoje, aqui e agora.
Popularmente, diz-se que “filho de peixe, peixinho é”, mas a criança
não é um clone de seus genitores ou cuidadores. Para os animais, o
sentido está dado. Eles agem por instinto, movidos por algo do qual não
têm consciência, seres determinados que são, “seres simplesmente
dados”. Diferentemente, o homem é “o ente que pergunta pelo sentido do
Ser [...] o homem existe e então define o que deverá ser” (PENHA, 2001,
p. 30,31).
A história de Hachiko, um cão da raça akita, conhecida por sua
lealdade, é contada no filme Sempre ao Seu Lado. Hachi, como era
afetuosamente chamado por Parker, esperou seu dono retornar do trabalho
por quase dez anos após sua morte em frente à estação ferroviária, onde
todas as manhãs o professor embarcava e no fim do dia desembarcava.
Hachi morreu ali esperando por ele.
Inteligente e perceptivo, Hachi escolhe, “faz o que tem que fazer”,
mas não escolhe escolher, não pergunta pelo sentido do ser, repete seu
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comportamento sem questionar. Algumas pessoas tentam demovê-lo de
sua escolha, mas, em sua lealdade inquestionável, Hachi permanece
convicto em sua espera, certo de que a qualquer momento Parker poderia
surgir. Uma atitude assim não é esperada do humano, que pode refletir e
questionar(-se) em suas convicções e posicionamentos e assumir uma
responsabilidade. Diz Kierkegaard que
a fé não oferece qualquer certeza intelectual, certamente, mas oferece mais para aliviar a condição humana: ter fé é assumir os riscos que derivam das possibilidades da existência. Ora, aqui está a verdadeira escolha diante da existência: não é escolher isso ou aquilo, cair na angústia ou no desespero, mas assumir os riscos da existência pela fé ou não. A esse respeito, Kierkegaard diz que não se trata de escolher isso ou aquilo, mas “escolher querer”, ou seja, em primeiro lugar assumir uma responsabilidade (LE BLANC, 2003, p. 51, 52).
É, então, nessa linha de intelecção, que Forghieri (2002) propõe o
“enfoque fenomenológico da personalidade”, para fazer referência às
características básicas do existir do homem, que, constituindo uma
totalidade, são tomadas e descritas tais como a pessoa as percebe e
compreende em sua vivência cotidiana imediata, tendo por fundamento
seus aspectos fenomenológicos precípuos. Tais características são: ser-no-
mundo, o que implica o mundo circundante (fauna, flora, clima,
temperatura, relevo, corpo), o mundo humano (relações interpessoais) e o
mundo próprio (autoconhecimento e autotranscendência); maneiras
preocupada, sintonizada e racional de existir; temporalizar; espacializar e
escolher.
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Consoante Erthal (2010), o self-fenomenal3 é ao mesmo tempo self-
como-objeto (experiências próprias) e self-como-processo (agente que
promove o comportamento). O eu-processo é o que designa os processos
psicológicos do eu-atributo. As ações expressam quem é a pessoa, mas o
valor dela não está posto somente na sua produção, mas em si mesma
enquanto produtora das ações, enquanto agente.
Um currículo, por exemplo, descreve os atributos do agente que vive
as relações ali apresentadas. Um feito pode dizer algo a respeito de seu
autor, mas jamais pode representá-lo sumariamente. Alicia Fernándes,
psicopedagoga argentina, relata que um dos motivos que a levou a
publicar suas ideias foram suas dificuldades para escrever, por receios,
dentre os quais, “pelo que concluam do que eu disse (como se eu fosse
somente isso)” (FERNÁNDES, 1990, p. 13); a autora diz ter colocado
suas dificuldades num espaço transicional para se lançar.
3. A CONSTITUIÇÃO DA PERSONALIDADE NO MOVIMENTO DIALÉTICO DO EXISTIR
Diferentemente da dialética hegeliana, que é o “processo do
consenso”, a evolução na lógica, a dialética kierkegaardiana não é feita de
sínteses consensuais, mas de rupturas; tem a intenção de mostrar o
paradoxo, a impossibilidade de conciliar os termos opostos como forma
de uma verdade superior, tal como apresenta Le Blanc (2003).
Para Kierkegaard, “o eu se constitui na dialética de finito e infinito,
do possível e necessário e de eterno e temporal. O existente resulta de
3 O self-fenomenal “significa o campo fenomenológico – conjunto de experiências que influenciam o comportamento – que o indivíduo experimenta como parte de si mesmo” (ERTHAL, 2010, p. 69).
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uma lógica provocada pela tensão entre os contrários e encontrar o eu
consiste muito mais em aceitá-los do que em eliminá-los” (FEIJOO,
2000, p. 58). Existir implica transitar pelos paradoxos da existência.
A criança é um ser total e pode estar inteira em suas relações desde
sempre, se assim lhe permitirem, pois “o movimento dialético do existir
humano, o ‘ir e vir’, é que constitui o eu. O eu é, portanto atividade,
eterno movimento” (FEIJOO, 2000, p. 113).
Tal como o adulto, a criança é síntese kierkegaardiana de
necessidade e possibilidade, eterno e temporal, finito e infinito: mesmo
sentindo a ameaça do externo, não se justifica no não fazer, mas lança-se
aos possíveis, sem perder-se na fantasia de que nada a detém; sabendo-se
eterna, submete-se às exigências do temporal, sem evitar a vida; sem abrir
mão do imaginário, atua e realiza, desejando “criar coisas novas e não
simplesmente repetir o que as outras gerações fizeram” (PIAGET).
É na convivência, seja autêntica ou inautêntica, que na infância se
inicia a constituição de seu eu no movimento dialético do existir, que não
tem data para terminar. Esperar que ela cresça para só, então, interagir
com ela em tais bases é adiar-lhe o que lhe é próprio, é negar-lhe o
peculiarmente humano.
De acordo com Pompeia; Sapienza (2004), alguns estudiosos
consideram infância e adolescência como fases que precisam ir sendo
superadas para se chegar à maturidade. Os comportamentos inadequados
ou doentios seriam, então, entendidos como regressão às fases anteriores.
Por entenderem de forma diferente, ressaltam que o desenvolvimento
pode ser representado, não como uma reta, mas como
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um círculo que se amplia, tudo aquilo que fez parte do percurso, todo o já ‘sido’ não fica para trás nem para fora do círculo, mas permanece ali. Isso quer dizer que se ampliam as possibilidades, aparecem novas formas de relacionamento com o mundo, mas essas formas não competem com as anteriores. Formas consideradas infantis ou adolescentes de comportamento permanecem como possibilidades para o adulto (POMPEIA; SAPIENZA, 2004, p.122, 123).
Os autores supracitados complementam: “o modo de ser maduro é
uma possibilidade também para as crianças e adolescentes. Esse é um
modo de ser do Dasein e pode acontecer em momentos não previstos pela
nossa cultura” (POMPEIA; SAPIENZA, 2004, p. 123).
É no convívio que a criança e o adolescente constroem imagens das
coisas, das pessoas e de si. Tais imagens serão tanto mais distorcidas
quanto mais inautêntico for esse viver-com, o que poderá fazer com que
se embaracem nos laços da “própria” ilusão e experimentem
pseudopatologias, quiçá psicopatologias, engendradas nos entraves
relacionais no seio de sua própria família, que teme os perigos do mundo
externo e não percebe que eles podem estar mesmo ali.
A família, a igreja, o clube, a comunidade, a escola, a vizinhança são
espaços relacionais que podem facultar à criança e ao adolescente o
desenvolvimento de “raízes e asas”, pelo estabelecimento de vínculos
significativos e específicos.
Vínculos significativos e específicos dão a esses a exata noção de
serem importantes pelo simples fato de existirem na vida dos seus,
enquanto os libera do ressarcimento pelo investimento que fizeram neles.
E permitem que continuem pertencendo e interagindo com seu grupo sem
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que, para isso, diz Korczak (1981), tenham que aprender a mentir ou a
dissimular, anular-se e alienar-se, ou ainda adoecer.
Esses vínculos são como laços afetivos, que podem ser feitos e
refeitos, laços imprescindíveis que precisam ir-se modificando tal como
se modifica a vida de uma pessoa enquanto se des-envolve. A qualidade e
a natureza dos vínculos podem ser cuidadosamente eleitas, pois vínculos
libertam ou aprisionam, propiciam vida ou morte. E isso se pode escolher,
em atitude, hoje, aqui e agora.
A pessoa vai-se percebendo, olhando para si, por seus próprios olhos
e pelos olhos do outro; algumas vezes, esforçando-se para atender a essas
expectativas, outras reagindo severamente a elas, já que nem sempre se
pode conseguir tal intento. Em família, os pais se esforçam por adequar
seus filhos ao seu próprio jeito; na escola, os professores buscam ajustar
seus alunos (os filhos desses pais) ao seu jeito; a igreja e o clube, também
necessitam que essas pessoas respondam de um mesmo jeito; na
comunidade e na sociedade, um padrão de comportamento se impõe. Os
namorados querem seus enamorados como sonharam; cônjuges, idem; os
filhos também querem pais como desejam.
Os condicionamentos aos quais se está exposto ao longo da
existência, seja de ordem biológica, relacional, social, econômica,
psicológica ou cultural, podem exercer forte influência na personalidade
de alguém que se constitui na interação dialética, mas somente a
determina, na medida em que a pessoa escolhe se deixar determinar, pois
ela não se assemelha a um autômato nem é Gabriela4.
4 “Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim, vou ser sempre assim Gabriela, sempre Gabriela.” A Modinha para Gabriela (CAYMMI) inspirou, em Psicologia, a chamada Síndrome de Gabriela, que faz alusão ao estado adoecido do ser humano em não crer que pode alterar o curso de sua vida, criar possibilidades e adotar um novo modo de relação.
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Conforme Erthal (2010), a vivência imediata ou intuitiva, captada
pela consciência irreflexiva, pela reflexão, torna-se conhecida, passando
ao domínio da consciência reflexiva, o que proporciona ampliação da
autoconsciência para a realização de escolhas e tomada de decisões.
Então, ainda criança, ou quando adolescente ou adulto, em qualquer
tempo, é possível decidir entre manter a imagem para consumo público,
uma máscara que insiste em “proteger” ou deixar vir a imagem que reflete
o que se realmente é, o que se realmente pensa, o que se realmente faz.
Segundo Erthal (2010), manter ou mudar é uma questão de escolha; em
ambos os casos, há riscos, pois não há garantias quanto ao que se escolhe
viver.
Agindo irreflexivamente, algumas pessoas nutrem a impressão de
que se não fizerem uma escolha, se não propuserem mudança ou se
evitarem tomar uma decisão, eximem-se do risco de escolher e eximem-
se, também, da responsabilidade da decisão – é a má-fé sartriana. Pela
reflexão, porém, torna-se clarividente que evitar escolher, não sugerir
mudança e não decidir é também fazer uma escolha: escolhe-se não
escolher e arca-se, igualmente, com as consequências de tal escolha.
4. A MUDANÇA COMO POSSIBILIDADE
Se a plasticidade neuronal é possível, também o é a plasticidade
psíquica; é o que demonstram, somente agora, as pesquisas sobre
resiliência: “atualmente, conjectura-se a possibilidade de indivíduos
recobrarem o equilíbrio psicológico após a exposição a adversidades ou
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traumas, de forma análoga à neuroplasticidade em resposta a lesões
cerebrais” (TROSTER, 2011, p. 36).
Mudar-se, se for um desejo e/ou uma necessidade pessoal, é
possível. A mudança não somente é uma possibilidade concreta, mas
pode ser interessante, pois
há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas que já têm a forma do nosso corpo e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos (PESSOA).
O processo de mudança pessoal é, na verdade, um (re)encontro
consigo mesmo para liberar-se de condicionamentos que já não fazem
sentido e acolher-se em sua humanidade; é simples, mas pode ser difícil.
É simples, pois não raro se sabe exatamente em quê se deseja mudar, mas
pode não ser fácil conseguir mudar conceitos, crenças, modelos e hábitos
adquiridos e há muito vivenciados, repetidos sem reflexão.
Pretende-se, assim, uma mudança na autoimagem ou projeto original
sartriano, definido por Erthal (2010), como a escolha que a pessoa faz a
respeito de si, que origina as demais escolhas na vida: os modos de ser, o
comportamento, as atitudes e ações.
A autoimagem seria o núcleo estável do self-fenomenal: “aquelas
partes do campo fenomenal que o indivíduo diferenciou como
características definidas e relativamente estáveis de si” (SNYGG;
COMBS, 1949 apud ERTHAL, 2010, p. 69).
Logo, não é preciso temer a mudança pelo receio de se perder ou
perder-se no outro, já que “a ideia de que o ‘eu’ se desintegrará ante a
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reformulação do autoconceito é uma fantasia, pois em todo processo de
mudança existem elementos que evoluem e outros que permanecem
inalteráveis” (ERTHAL, 2010, p.77).
Assim, uma pessoa que escolhe ser perfeita, pode sentir-se altamente
ansiosa, e deixar que esses níveis inadequados de ansiedade interfiram
negativamente em seus relacionamentos, seu desempenho profissional,
social, sexual. Em vez de ficar tentando mudar tudo e todos a sua volta,
almejando que também sejam perfeitos e que tudo saia impecável, pode
mudar-se a si e perceber-se humana, menos perfeita e menos ansiosa.
Uma pessoa que se vê como um fracasso convive com sentimentos e
pensamentos que antecipam seu insucesso, “confirmando” sua auto-
imagem. Se estreitar o contato com suas vivências e ampliar sua
autoconsciência, com certeza deparar-se-á com aspectos de sua vida em
que obtém êxito e pode mudar a imagem que tem de si e adotar novos
modos de ser mais interessantes.
Uma pessoa ao supor que todos dependem dela, está fazendo sua
escolha sobre si mesma: a de ser imprescindível – sua autoimagem.
Alguém que assim se vê, poderá, por exemplo, tentar atender a todos, a
tempo e a hora, da melhor forma possível, já que realmente crê que as
pessoas – filhos, amigos, cônjuge, colegas de trabalho, vizinhos – não
prosseguirão sem sua ajuda, sua orientação, seu conselho, sua provisão.
Consequentemente, assoberba-se, cansa-se, frustra-se, deprime-se, pois
humana, escolhe-se super-humana.
Alguém que passa a vida sendo “um bom menino”, com medo de
diferenciar-se e decepcionar, com medo de assumir responsabilidades e
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de sustentar as próprias decisões, medo de posicionar-se, vendo-se
completamente dependente da opinião alheia, não ousa ser.
Essas são apenas algumas vivências que nos fazem pensar e sentir
que o lugar mais confortável de se estar parece ser mesmo o da
humanidade: aceitar errar e acertar; ora atender às demandas ora não; ser
perfeito hoje, imperfeito amanhã; um fracasso em um aspecto, um
sucesso em outro; de vez em quando um “mau” menino bom para si,
experenciando-se no movimento dialético do existir humano.
Temple Grandin, psicóloga autista, aprendeu a prosseguir sempre
com sua mãe, que não se ateve ao diagnóstico médico e rejeitou a
indicação de institucionalizar a filha. Enfrentando suas limitações e
investindo em suas possibilidades, quando a situação parecia
intransponível, Grandin repetia para si mesma que ela era diferente, mas
não inferior. Apropriando-se da autoimagem escolhida e encorajada, em
especial, pela mãe, tia e professor, ia imaginativamente além de si mesma
e, numa atitude autêntica, experimentava a autotranscendência.
A “cura” parece não passar, aqui, necessariamente pela remissão de
sintomas ou pela abolição de medicação. “A ‘cura’ é, então, a própria
autenticidade: é a aceitação plena da condição humana; é a expansão
própria da existência autêntica” (ERTHAL, 2010, p. 93).
Eis a imagem saudável de si, uma interessante escolha que se pode
fazer sobre si mesmo sem medo de ser original ou distinguir-se, pois a
humanidade é plural e “no homem, a alteridade, que ele partilha com tudo
o que existe, e a distinção, que ele partilha com tudo o que vive, tornam-
se unicidade, e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres
únicos” (ARENDT, 2010, p.220).
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Observem-se as vivências da senhora M.C.5, que apresenta uma
“personalidade conturbada”, expressando um “comportamento
desviante”, através da agressividade, euforia, ansiedade, angústia,
momentos de extremo desespero, hiperatividade e falta de concentração,
impulsividade, “sintomas” agravados, ainda, por atitudes nada confiáveis
devido a trapaças, mentiras e dissimulações.
A vida prossegue, as circunstâncias mudam. Novas vivências vieram
favorecer seu desprendimento de alguns legados familiares e a
ressignificação de valores e crenças nos quais se abrigava.
Aos sessenta anos, a senhora M.C. contraria sua subcultura familiar
– que cultua o etnocentrismo; que acredita que os problemas têm de ser
resolvidos em família, especialmente as influências espirituais, para as
quais apenas aceita auxílio dos comungantes da mesma crença religiosa;
que abomina o uso de medicamentos, evitando ao máximo recorrer a
médicos, a psicólogos jamais – e procura ajuda terapêutica.
Após dois anos de tratamento médico, diz convicta que “tudo aquilo
era só depressão; sofri tanto tempo por ignorância. Depressão tem
tratamento e tem cura!”. Por mais alguns anos, o prazer de viver
iluminou-lhe a face e fez brilhar seus olhos. A alegria, a afetividade, a
calma foram suas companheiras até o túmulo. A qualidade das relações
interpessoais mudou significativamente. Seu comportamento não era mais
desviante, sua personalidade, agora, não mais adoecida e conturbada.
Importa salientar que nem todas as pessoas vivem essa feliz
experiência, obviamente porque cada existência é única e, mesmo
possuindo a oportunidade de atualizar potencialidades e criar
5 As vivências mencionadas no relato são inerentes a uma situação fática e não a um caso clínico.
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possibilidades em cada momento de vida, precisa lidar também com todos
os fatores determinantes e condicionantes que lhe atravessam. Saliente-se,
também, que nem toda mudança passa necessariamente por um processo
terapêutico.
A Psicologia Humanista-Existencial, por conceber o homem como
alguém que escolhe quem quer ser, “apoia-se no reconhecimento
existencial de que o ser humano é responsável pelo seu devir e no
postulado humanista de que este mesmo ser possui uma tendência para
experenciar sua plena realização, testando a todo momento seus próprios
limites” (ERTHAL, 2010, p. 60).
A psicoterapia talvez possa ajudar. Se necessária e/ou desejada,
pretende-se vivencial, já que o principal valor humanista é “o enfoque na
relação: a existência humana se realiza em um contexto interpessoal”
(ERTHAL, 2010, p. 54). A atitude do terapeuta privilegiará, então,
aquelas sugeridas por Rogers (1989): consideração incondicional positiva,
compreensão empática e congruência. A psicoterapia terá, assim, por
tarefa
proporcionar uma maximização de autoconsciência para favorecer um aumento do potencial de escolha; proporcionar uma ajuda efetiva ao cliente no sentido de descobrir o seu poder de autocriação; ajudá-lo a aceitar os riscos de suas próprias decisões responsáveis. Enfim, de aceitar a liberdade de ser capaz de utilizar suas próprias capacidades para existir (ERTHAL, 2010, p. 28).
Como a fenomenologia procura abordar o fenômeno diretamente,
interrogando-o, procurando descrevê-lo e captar sua essência, a partir dele
mesmo, e não explicá-lo a partir de referenciais teóricos (conceitos
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prévios, crenças ou afirmações), a personalidade não recebe diagnóstico
baseado numa classificação nosográfica, mas é compreendida a partir dos
modos de relação que a pessoa estabelece no mundo.
Esse entendimento tem suas raízes no fato de que os sintomas
elencados numa dada classificação diagnóstica podem até arregimentar
algumas características que a pessoa apresenta em certo momento,
fazendo menção, então, a apenas alguns atributos do self-como-objeto,
escapando-lhe outros e, o que é mais sério, não alcança o agente que
promove a articulação desses atributos, qual seja, o self-como-processo.
Não abarca, portanto, o self-fenomenal.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As vivências infantis tendem a deixar importantes impressões,
condicionando mesmo o comportamento da criança, se considerados seu
modo próprio de perceber e de relacionar-se com as experiências vividas;
a coesão e rigidez do grupo familiar e social, onde pode não encontrar vez
nem voz, por ainda ser criança; o nível de exigência e as expectativas que
se têm a respeito dela, além de outros fatores anteriormente sugeridos,
outros não mencionados e outros, ainda, não imaginados. No entanto, tais
vivências somente determinam a personalidade da pessoa, na medida em
que ela assim escolher.
A personalidade, na abordagem humanista-existencial, é entendida
como tecida na interação dialética com os aspectos do mundo, na relação
que a pessoa estabelece com o outro e consigo mesma, uma essência que
se faz enquanto existe, ao fazer escolhas e ao experenciar o tempo e o
espaço com familiaridade ou estranheza, com amplitude ou restrição, com
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distanciamento ou proximidade, de forma sintonizada, racional e/ou
preocupada, onde passado, presente e futuro são vividos numa unidade
temporal.
Esse processo que se inicia na infância e só termina com a morte,
perpassa e é perpassado por aspectos biológicos e ambientais,
psicológicos e culturais, sócio-históricos e político-econômicos, aspectos
que precisam ser considerados, na medida em que tenham um significado
para o existente e lhe confiram um sentido na vida.
Cabe à pessoa, se assim desejar, refletir sobre suas vivências,
apropriar-se de si e des-prender-se para abrir-se às próprias
possibilidades, aceitando e enfrentando os paradoxos e restrições da
existência, para, com autonomia, liberdade e responsabilidade, ter a
coragem de se dar aquilo de que precisa, no momento em que precisa,
pelo tempo que for necessário.
AGRADECIMENTOS
Aos seres singulares – pais e irmãos, cunhados e cuidadora, amigos e
colegas de profissão, alunos e mestres, clientes e terapeutas – que
participam da minha plural unicidade, agradeço.
REFERÊNCIAS
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REFLEXÕES SOBRE O USO DE PSICOFÁRMACOS:
Recurso terapêutico ou meio de resolver as dificuldades da vida?
Patricia Elizabeth Sanz de Alvarez6
RESUMO
As pessoas em sofrimento psicológico procuram os profissionais da saúde buscando a cura para os seus sintomas e alívio para o seu mal-estar. Embora identifiquem esse mal estar como advindo das condições de vida e de existência percebe-se grande dificuldade em reconhecer a sua própria implicação no sofrimento. Em geral, se colocam nas mãos de médicos que aderem à terapêutica psicofarmacológica. O presente artigo traz reflexões sobre as implicações psicológicas, sociais, culturais e políticas relacionadas a o uso e prescrição de psicofármacos. Ressalta-se a necessidade de oferecer outras possibilidades de tratamentos ou atenção psicossocial as pessoas em sofrimento psicológico.
6 Psicóloga. Especialista em Saúde Mental no contexto multidisciplinar. Pós-graduanda em Psicologia da saúde: desenvolvimento e hospitalização (UFRN). Mestranda em Psicologia Clínica (ETNIA-UAL).
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Palavras-Chave: recurso terapêutico, psicofármacos, sofrimento psicológico.
ABSTRACT
People in psychological distress seeking health professionals seeking the cure for your symptoms and relief to your discomfort. Although identifying who this malaise as arising of living and existence realizes itself in great difficulty in recognizing their own implication in the suffering. In General, if put in the hands of doctors who adhere to psychofarmacological therapy. This article brings reflections on psychological implications, social, cultural and related policies on the use and prescription of psychiatric drugs. Emphasized the need to offer other possibilities of treatment or psychosocial attention people in psychological distress.
Keywords: therapeutic resource, psychotropic, psychic suffering.
INTRODUÇÃO
Os primeiros psicofármacos entraram no mercado em nível mundial,
após a II Guerra Mundial, num período de grande expansão da
indústria farmacêutica. Nas décadas seguintes, observou-se o
crescimento acelerado do consumo desses medicamentos, não
somente por pacientes portadores de transtornos mentais, mas
também por pessoas angustiadas e insatisfeitas (NASCIMENTO,
2003).
Coincidentemente, neste período, adverte-se uma
modificação nas praticas da psiquiatria. O que outrora se voltava
exclusivamente ao tratamento da loucura passa a dedicar-se ao
tratamento de qualquer manifestação de sofrimento psíquico,
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inclusive de pessoas em perfeito estado de saúde mental, através da
prescrição de psicofármacos (GENTIL; ZILBERMAN; LOBO;
HENNA; MORENO & GORENSTEIN, 2007).
Em sendo o elevado índice de doenças mentais um problema
de saúde pública mundial atinge todas as classes sociais e
econômicas. Dentre as causas prováveis para tal aumento na
incidência, se responsabiliza o aumento nas exigências que a vida
moderna provoca nos indivíduos e a forma em que estes se adaptam
de modo a poder responder-lhes melhor, provocaria estresse,
ansiedade, sintomas depressivos e perturbações de sono, entre outros
(FALCÃO; MONSANTO; NUNES; MARU & FALCÃO, 2003).
A necessidade da terapêutica com psicofármacos é defendida
na maioria dos casos de distúrbios mentais, seja para diminuir os
sintomas, reduzirem incapacidades, abreviarem o curso da doença ou
prevenir as recorrências; agindo dentre outros alcances como
calmante, estimulante, antidepressivos ou antipsicóticos (FALCÃO
et al). Por outro lado, existe o risco da banalização do consumo e do
uso indiscriminado de psicotrópicos no Brasil, que por causa do
controle precário poderá acabar ocasionando riscos à saúde da
população (GALDURÓZ; NOTO; NAPPO & CARLINI, 2001),
(NASCIMENTO, 2003).
Pesquisas mostram que o Brasil ocupa o segundo lugar no
ranking de consumo de psicofármacos, seguindo dos Estados Unidos
e precedendo a Argentina. Esses foram os resultados, divulgados em
2008, pela Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes
(JIFE,) de acordo com as Nações Unidas (2009) esclarecendo que
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dita posição supera o abuso de cocaína e heroína. Simultaneamente a
JIFE informa que entre 2004/2007 nos Estados Unidos a substância
com maior índice de abuso foi a benzodiazepina, e no relatório do
ano de 2009 a JIFE recomenda aos Governos adotar medidas que
visem controlar o abuso de psicotrópicos e promovam o uso racional
dos mesmos (NACIONES UNIDAS, 2009).
AS IMPLICAÇÕES PSICOLÓGICAS, SOCIAIS, CULTURAIS E POLÍTICAS DA TERAPÊUTICA PSICOFARMACOLOGICA
Ignácio e Nardi (2007) se posicionam sobre o que eles
consideram uma pratica do consumo de psicofármacos materializada
nos corpos. Entendem que tal pratica anunciaria a existência de um
roteiro de separação e isolamento em que o sujeito nem sofre nem
goza. Letargiado, anestesiado não consegue se preocupar nem por si
mesmo nem pelos outros, pelo qual o consumo de psicofármacos
constituiria ao mesmo tempo um modo de vida individualizante e
totalizante.
Neste aspecto, a prescrição de psicofármacos acalma a mente
e adormece desejos e esperanças, num mundo em constante
transformação, carente de encontros e cheio de desencontros. Na
atualidade, existe uma grande tendência de psiquiatrizar e
medicalizar (FERRAZA; LUZIO; ROCHA & SANCHES, 2010)
eventos do cotidiano, o que tem contribuído bastante para usos
abusivos de psicotrópicos, em diversas faixas etárias.
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A eficácia de alguns psicofármacos no tratamento de doenças
mentais, já foi aceita pela ciência médica moderna e, portanto, negar
seu acesso ou usá-los indevidamente constitui a exclusão dos
pacientes a um tratamento que pode melhorar sua qualidade de vida
(MORAES, 2005). No entanto, é preciso perceber que, em muitos
casos clínicos, o motivo principal da prescrição são os distúrbios
menores de ansiedade, fobias e depressão emergindo como
principais prescritores os especialistas em Clínica Médica e
Ginecologia (NASCIMENTO, 2003).
De acordo com Nascimento (2003) a ênfase na bioquímica
cerebral desconsidera ou minimiza a subjetividade produzida a partir
de problemas familiares e sociais. De modo que, a tentativa de
resolução desses problemas poderia estar sendo encaminhada,
através do consumo de medicação adequada para tal fim.
Em sendo os psicofármacos responsáveis por mudanças no
comportamento das pessoas, entende-se que estariam sendo
utilizados por estas, de forma a ajustar e adaptar as personalidades,
de acordo as exigências sociais. Esse recurso de enfrentamento
caberia às mais diversas situações do cotidiano, para as que não
estaríamos preparados.
Desde os desajustados estéticos representados pelo aumento
de peso, até os desajustados comportamentais traduzidos como
ansiosos e depressivos, dentre outros, esperam de braços abertos a
chegada milagrosa dos transformadores de personalidade, no caso da
fluoxetina, sibutramina e/ou diazepam, para acabar com seus
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sofrimentos e ser finalmente, bem recebidos e aceitos pela sociedade
da qual fazem parte.
Aponta Nascimento (2003) que as correntes de pensamento
biologicista, reduzem o sofrimento psíquico a fatores genéticos e
bioquímicos. Por exemplo, pensar que uma pessoa obesa sofre pela
condição herdada da sua obesidade, ou porque é geneticamente
desfavorecido e lábil a distúrbios ou transtornos psíquicos é
simplificar. É reduzir e desconsiderar as dimensões que determinam
modelos, já que são as dimensões socioeconômicas e culturais as que
resultam indispensáveis para compreender o processo, dialético, de
construção de identidades (BOCK, 2004).
Assim sendo, o reducionismo próprio do modelo biomédico,
também deixa de lado em suas considerações e analise questões
políticas que incidem diretamente sobre as necessidades e
oportunidades das pessoas alcançarem ideais estrategicamente
desenhados. Nessa linha de pensamento Ogdem (2004) refere à
Rosenstoch quem enfatiza sobre a importância das crenças no
Modelo de Crenças de Saúde (MCS) e aborda a Teoria da Atribuição
e conceitos de lócus de controle interno e externo, otimismo
irrealista e o modelo das fases de mudança de comportamento para
subsidiar a compreensão dos comportamentos de saúde, os
comportamentos de doença e os comportamentos de doente que
descreveram Kasl e Cobb.
Dessa forma, o MCS encontra embasamento nos modelos
cognitivos, já que estes consideram que o comportamento resulta da
forma racional em que são processadas as informações. Embora
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Ogdem (2004) enfatiza que as cognições individuais adquirem
destaque, por cima do contexto social que promove tais cognições.
Nessa lógica de pensamento não podemos considerar que o
sofrimento psíquico resulte de um erro interno-individual no
processamento de informações. Devendo ser destacado o papel das
informações externo-coletivas, que estão sendo veiculadas
constantemente com fins ideológicos.
Em consonância com o MCS, Nascimento (2003) considera
responsável ao Modelo Familiar, na aprendizagem de
comportamentos que levam as pessoas a procurar nos medicamentos
a solução dos seus problemas de saúde. Mas, é possível favorecer a
compreensão desse fenômeno, através da perspectiva de pensamento
Social Crítico em interface com a Psicologia da Saúde, entendendo à
família como um sistema, inserido num determinado contexto
Social, Econômico, Político e Cultural,
Os Determinantes Sociais da Saúde (DSS) consideram essas
dimensões e incluem, todavia, fatores étnico-raciais ao analisar as
influências sobre ocorrências de problemas de saúde e seus fatores
de risco na população (De Marco, 2006). Problemas de saúde, dentre
os quais se devem incluir o sofrimento psicológico, a partir do
momento em que este é descomposto em diferentes distúrbios e
transtornos, e codificado para poder compor os manuais diagnósticos
(DSM-IV e CID-10), podem ser analisados em vista dos DSS.
Contudo, a dependência aos psicofármacos é associada por
Nascimento (2003) ao efeito de paliativo químico que proporcionam
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os psicofármacos, que impede a pessoa adquirir o equilíbrio a partir
da elaboração das verdadeiras causas do seu sofrimento psíquico.
Em sendo comprovado as deficiências na rede de apoio que
apresentam estas pessoas, alguns autores discutem sobre a
necessidade de apontar a intervenções que visem potenciar as redes
de apoio das pessoas com morbidade psíquica. Outro aspecto
relevante tratado pelos mesmos autores se refere ao
desconhecimento que se tem sobre o isolamento social ser causa ou
consequência da morbidade psíquica (RICCI-CABELLO, RUIZ-
PÉREZ, PLAZAOLA-CASTAÑO & MONTARO-PIÑAR, 2010).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo buscou-se uma melhor compreensão sobre a
terapêutica de prescrição e consumo de psicofármacos. O tema
abordado permite compreender a necessidade dos profissionais da
saúde refletirmos sobre as implicações da terapêutica
psicofarmacológica superando uma visão biologicista e considerando
também as dimensões sócio-histórico-politico e cultural relacionadas
a prescrição e consumo de psicofármacos.
Embora as pessoas possam ter clareza sobre causas e/ou
condicionantes do seu sofrimento, depressão ou ansiedade, podem
oferecer resistências a se adentrar e aprofundar nesses escuros
caminhos. Por medo, ficam na passividade, assumem o papel de
doente: frágil e vulnerável, sem perceber em si mesmos o potencial
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para autogerenciar suas melhoras. Melhoras que em muitos dos
casos tem a ver com mudanças da ordem social e econômica.
Sem perceber sua própria parcela de responsabilidade nesses
aspectos algumas pessoas em sofrimento psicológico encaminham
um pedido de socorro para quem acreditam que melhor sabe
socorrer. Nesse caso os médicos, investidos no papel de socorristas,
que durante séculos sua formação foi aprimorada para diagnosticar e
curar doenças realizam suas práticas da melhor maneira que
aprenderam. Aprender a ouvir e considerar as variáveis sócio-
económico-político- culturais, são aspectos pouco considerados na
formação dos médicos. Igualmente, eles exercem a hegemonia da
prescrição de medicamentos, e espera-se a responsabilidade de todos
e cada um deles pelo uso criterioso desse privilegio.
Para finalizar é preciso destacar que certamente alguns
transtornos como, por exemplo, o de ansiedade, não deveria ser
motivo para que o usuário recebesse exclusivamente a prescrição de
algum psicofármacos. Sabe-se que, em muitos casos clínicos, os
psicofármacos poderiam ser evitados, ressaltando a necessidade de
oferecer outras possibilidades de tratamentos ou atenção psicossocial
as pessoas em sofrimento psicológico.
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OS PSICOFÁRMACOS NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL.
Uma discussão perpassada pelo diagnóstico baseado na classificação psiquiátrica de doenças.
Ieda Tinoco Boechat
RESUMO
O presente artigo discutiu as relações da psicofarmacologia com a psicopatologia entendida segundo os pressupostos da Psicologia Fenomenológico-Existencial, com a questão da classificação diagnóstica psiquiátrica e com outros campos do saber. Teve por objetivo propor uma reflexão a respeito do uso de psicofármacos, sua prescrição e sua significação na vida da pessoa que os utiliza. A pesquisa se tratou de uma revisão de literatura, a fim de favorecer a compreensão a respeito do uso de medicamentos psicotrópicos.
Palavras-Chave: psicofarmacologia; Psicologia Fenomenológico-Existencial; medicina; psicopatologia.
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ABSTRACT
This article discussed the relations between psychopathology and psychopharmacology understood according to the principles of Phenomenological-Existential Psychology, with the psychiatric diagnostic classification and other fields of knowledge. It intents to propose a reflection on the use of medicines, it’s prescription and what do they mean to the people who use them. This is a literature review that seeks to promote understanding about the use of psychotropic medications.
Keywords: psychopharmacology; Phenomenological-Existential Psychology; medicine; psychopathology
1. INTRODUÇÃO
A presente pesquisa dispõe-se a estudar as relações da
psicofarmacologia com a psicopatologia entendida segundo os
pressupostos da Psicologia Fenomenológico-Existencial, com a
questão da classificação diagnóstica da psiquiatria e com outras
disciplinas. Tem, portanto, o objetivo de propor uma reflexão a
respeito do uso de psicofármacos, sua prescrição e sua significação
na vida da pessoa que os utiliza.
O estudo justifica-se por trazer à discussão um tema de
interesse tanto para a Medicina quanto para a Psicologia
Fenomenológico-Existencial, disciplinas que têm especificidades
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quanto ao entendimento e prática no que tange à classificação
diagnóstica e à prescrição medicamentosa da psiquiatria.
Pretende, assim, debruçar-se sobre a revisão de literatura
para cumprir tal intento, a partir da contribuição de autores como
Machado; Sadock, Sadock, Sussman; Pompeia, Sapienza.
2. A PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL, A PSICOPATOLOGIA E O USO DE PSICOFÁRMACOS
Pode-se entender o homem pelo seu modo de ser-no-mundo. O
modo de ser-doente, pela Psicologia Fenomenológico-Existencial,
pode ser compreendido, analisando-se o modo de ser-sadio, pois
“[...] todo modo de ser-doente representa um aspecto privativo de
determinado modo de ser-são” (BOSS apud FORGHIERI, 2002, p.
52). Para se alcançar um entendimento da psicopatologia a partir
desse referencial teórico, faz-se necessário compreender-lhe o
significado.
A compreensão do significado da psicopatologia implica contextualizá-la na existência. [...] Importa compreender o existente com perturbação mental a partir dos diferentes modos como a sua consciência se relaciona com o mundo, com os outros e consigo próprio ou, pelo contrário, como tenta fugir ou evitar a angústia que resulta do seu confronto com a sua liberdade e responsabilidade (TEIXEIRA, 2006, p. 293, 294).
A liberdade de conduzir sua própria vida, a liberdade de
escolher e decidir gera angústia. “O homem está condenado à
liberdade” (SARTE apud ERTHAL, 2010), ele tem o poder de
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autocriação e cabe a ele escolher e escolher-se, cabe-lhe decidir
como deseja ser e viver, a fim de dar um sentido à sua existência.
Mas, o homem, às vezes, evita escolher escolher. Segundo
Erthal (2010), o ser humano evita escolher para não ter de se
responsabilizar pelas consequências de suas escolhas, numa atitude
que Sartre denomina má-fé. Prefere repetir o que outros fazem e
reproduzir modos de vida a que está acostumado, a correr o risco de
fazer escolhas próprias e pessoais e ter de responder por isso. Pelo
medo de ser original, abre mão de sua liberdade, sua condição mais
essencial, e pode mesmo adoecer.
O homem é essencialmente necessitado de ajuda, por estar sempre em perigo de se perder, de não conseguir lidar consigo. Este perigo é ligado à liberdade do homem. Toda a questão do ser-doente está ligada à imperfeição de sua essência. Toda doença é uma perda de liberdade, uma limitação da possibilidade de viver (HEIDEGGER apud NOGUEIRA, 2007, p. 446).
Então, limitando seu existir, ao evitar viver e se lançar, o homem
escolhe fechar-se e não enfrentar os desafios da vida. Como a vida é
dinâmica, não previsível e não oferece garantias, pautar-se em um
comportamento que não está em conformidade com esse caráter dinâmico
da vida, é escolher não participar dela de forma satisfatória e coerente, de
modo autêntico, é, em última instância, escolher adoecer. Nesse sentido, a
chamada psicopatologia acomete o homem quando escolhe permanecer
na sua não liberdade e não-ser.
Dessa maneira, o que denominamos por sintomas em psicopatologia poderiam ser considerados como possibilidades
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escolhidas: ao escolher não se confrontar diretamente com a ansiedade associada aos conflitos existenciais, o indivíduo poderia perturbar-se mentalmente. Isto é, os sintomas derivariam de escolhas não autênticas que, não reduzindo a ansiedade associada aos dados da existência, apareceria sob a forma de ansiedade neurótica (TEIXEIRA, 2006, p. 293)
A psicopatologia não está relacionada a questões
intrapsíquicas apenas. A denominada neurose “não é concebida mais
apenas pelo fator neurotizante sexual ou biológico; ganha uma
concepção mais ampla, pois é sempre, no fundo, ‘sociose’ ou
‘synethose’, devido a qualquer causa de inadaptação social” (VAN
ACKER)7.
Na concepção de May, neurose refere-se, na verdade, a uma
adaptação, a um método usado para a preservação da existência,
“uma maneira de aceitar não-ser, se me permite tal expressão, a fim
de que possa preservar-se algum ser, ainda que restrita”(MAY apud
ERTHAL, 2010, p.100).
As relações que a pessoa estabelece com tudo aquilo que a
cerca são fundamentais, especialmente as relações interpessoais: “as
relações com outras pessoas são de importância tão primordial nesse
contexto que a psicopatologia pode ser chamada a ciência da solidão
ou do isolamento” (VAN DEN BERG, 2000, p. 93).
A experiência psicótica, dizem Pompeia; Sapienza (2004),
não se resume simplesmente a um desequilíbrio bioquímico. O que
distingue o paciente psicótico, que experimenta delírios e
alucinações, de pessoas religiosas que também ouvem vozes e se
7 Leonardo van Acker no prefácio da obra O Paciente Psiquiátrico de J. H. van den Berg.
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comunicam com entidades, não está no contexto, no fato de haver ou
não uma crença ou de estar o psicótico fora da realidade, porque isso
não se sabe, mas no fato de que a experiência do psicótico se
estrutura de tal forma que reduz drasticamente o âmbito de sua
existência: ele “perdeu a liberdade na relação com o resto da
experiência dele. Ele está preso numa estereotipia, e essa é a marca
da doença [...] Estereotipia, redução da liberdade e estreitamento
caracterizam a doença” (POMPEIA; SAPIENZA, 2004, p. 200,
201).
Como sugere Van den Berg (2000), somos um corpo e temos
um corpo. Por vezes, a intimidade é tal com esse corpo que ele é
sentido na experiência toda e, por vezes, este mesmo corpo se faz
estranho e é percebido como algo externo à pessoa, como alguma
coisa que se possui: no estado pré-reflexivo, homem e corpo estão
estreitamente entrelaçados; a reflexão cria uma distinção: a diferença
entre o corpo que temos – aquele dos livros de anatomia – e o corpo
que somos – aquele da vida não-gnóstica e pré-reflexiva.
Algumas pessoas resistem severamente ao uso da medicação
prescrita. Pompeia; Sapienza (2004) consideram o medo que podem
sentir em relação aos efeitos colaterais ou à dependência, mas trazem
uma questão ainda muito mais relevante. A pessoa, apesar de
beneficiada pelos efeitos da medicação, não quer mais prolongar o
uso do antidepressivo, antipsicótico ou ansiolítico, porque
ela não quer ser alguém cujos sentimentos só dependam da química. Ela fica com a questão: o que sinto, o que penso que as coisas significam, isso sou eu ou é efeito do remédio? O próprio fato de um remédio funcionar tão bem facilita que a
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pessoa desacredite do sentido da vida. Como saber o que na verdade as coisas significam para ela? Isso representa, então, um esvaziamento de significados (POMPEIA; SAPIENZA, 2004, p. 187).
Quando a pessoa consegue integrar os significados do que foi
vivido no surto ou na crise com aquilo que sente e pensa, ou seja,
com sua experiência toda, recupera a estrutura do sentido e pode
deixar de resistir à medicação, pois vê que sua vida tem, num outro
plano, um sentido a ser considerado, além da área bioquímica onde
atua o remédio, e pode também voltar a investir em suas relações e
projetos, ensinam Pompeia; Sapienza (2004).
O presente entendimento problematiza a questão da
medicação não no sentido de se administrar ou não medicamentos,
mas de se observar a diferença entre o valor de referência para o
médico e para o psicólogo.
3. A PSICOPATOLOGIA E A ATUAÇÃO MÉDICA E PSICOLÓGICA
Segundo Pompeia e Sapienza, “na medicina, o valor de
referência é a vida [...] A referência para o psicoterapeuta é o sentido
da vida, o significado” (POMPEIA; SAPIENZA, 2004, p. 174,175).
O modelo médico se orienta pelo paradigma cartesiano, que
centra sua atenção no conhecimento da doença, seu diagnóstico e
tratamento. Miranda-Sá (apud NUNES FILHO, 2001, p. 25), ressalta
que “em medicina, diagnosticar sempre foi reconhecer a natureza de
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um transtorno através de seus sintomas, sinais, origem, evolução ou
outras características diferenciadoras”.
Para a medicina, tal entendimento vem subsidiar a prática
médica, pois de acordo com Nunes Filho (2001, p. 27), “o
diagnóstico é a pedra de toque da avaliação psiquiátrica global, que
irá determinar a intervenção terapêutica e permitir a compreensão
psicológica do problema avaliado”.
O psicólogo, na orientação fenomenológico-existencial,
orienta-se pelo paradigma holista, centrando sua atenção na pessoa,
considerando-lhe o contexto biopsicossocial e cultural, portanto,
embora considere o diagnóstico psiquiátrico, não o terá como
norteador de sua intervenção, por ser qualitativamente diferente.
O psicólogo entra em relação com o cliente, buscando
apreendê-lo em sua experiência toda, apreender seu modo de ser no
mundo, mantendo-se no sentido que ele mesmo traz. “O
psicoterapeuta compreende o outro e isto consiste em captar a
interpretação de mundo que o outro é. Abre, então, possibilidades
para o próprio se questionar em seu ser mais próprio” (FEIJOO,
2000, p. 104).
A classificação diagnóstica muitas vezes pode se mostrar
determinista e reducionista, não atendendo aos pressupostos da
Psicologia Fenomenológico-Existencial, pois, como enfatiza Erthal
(2010), seria um contrassenso tentar enquadrar o ser humano dentro
de um rótulo, quando se acredita que ele escolhe quem quer ser, que
ele escolhe o “molde” sobre o qual decide se (re)fazer, alguém que
pode atualizar potencialidades e criar possibilidades ao experimentar
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adaptação e transcendência na sua relação no mundo, consigo
mesmo, com os outros.
Inobstante, muitos pensem que a medicina objetiva rotular,
Nunes Filho (2001) chama à atenção para o fato de que, a medicina
ao diagnosticar, não pretende rotular, o que se pode entender dada a
natureza da prática médica. No entanto, o que se confirma na
vivência cotidiana da clínica psicológica é que muitas pessoas se
apresentam sob um diagnóstico, tomando-o mesmo como
identificado a si, seja pela vitimização, eximindo-se da
responsabilidade e participação ativa no restabelecimento da saúde;
pela apropriação indevida do diagnóstico, considerando-o quase uma
definição de si, fazendo perpetuar o adoecimento; pela sensação
impactante de impotência diante de algo que acomete a pessoa; seja
pela passividade, vista na acomodação e não procura por possíveis
soluções ou pela paralisação ante uma sentença dada pela crença de
alguns que uma psicopatologia não tem cura.
A atuação psicológica não tem, então, como fio condutor a
classificação diagnóstica, já que expressaria apenas algumas das
características que o cliente apresenta naquele momento, uma faceta
de sua vida, não podendo jamais ser o “ponto de partida”, o foco da
atenção do psicoterapeuta.
A diretividade como método de intervenção, ensina Rogers
(2005), também não parece adequada, já que pouco promove o
desenvolvimento, a independência, a autonomia e o crescimento para
a maturidade.
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4. A PSICOFARMACOLOGIA E A MEDICINA
O fato de a medicina centrar sua atenção na compreensão e
tratamento da doença e ter seu modelo apoiado no paradigma
cartesiano, faz com que o diagnóstico não se apresente como um
rótulo, se se entende que ele parece estar estreitamente relacionado à
especificidade da tarefa. Importa investigar e conhecer para intervir
de modo o mais preciso possível, uma vez que se pretende
administrar o medicamento certo para a moléstia certa. Para cada
doença há um tipo específico de medicação: o analgésico usado para
cólicas menstruais não é o mesmo indicado para cefaleias e
neuralgias.
Segundo Machado (2000), a descoberta de drogas que agem
por interferência no metabolismo das monoaminas, como a
dopamina, a noradrenalina e a serotonina, deram a tais drogas, que
atuam no sistema nervoso central e influenciam as atividades
psíquicas, um papel fundamental na psicofarmacologia.
Por exemplo, entendendo-se que os sintomas psíquicos
manifestados na esquizofrenia resultam de uma hiperatividade na via
dopaminérgica mesolímbica, ou seja, de alterações na transmissão
dopaminérgica no sistema límbico e no córtex pré-frontal, a droga
administrada que mostra efeito benéfico vem bloquear os receptores
dopaminérgicos, como relata Machado (2000). Seria um equívoco,
então, administrar uma droga que não produzisse tal efeito.
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No entanto, quando se opta pelo tratamento medicamentoso,
deve-se observar criteriosamente sua eleição, considerando três
fatores, segundo Sadock; Sadock; Sussman (2007): o medicamento,
o paciente e o conhecimento e a avaliação do médico que receita. A
prescrição medicamentosa exige rigoroso cuidado, pois o
medicamento age no organismo (farmacodinâmica) e o organismo
atua sobre o medicamento (farmacocinética); as indicações e
contraindicações devem ser consideradas, bem como as interações
medicamentosas e os efeitos adversos.
Por exemplo, quando se administra um ISRS8, o que se
pretende é diminuir a recaptação de serotonina pelo neurônio pré-
sináptico e alcançar efeito antidepressivo, mas este medicamento
apresenta como efeito colateral mais comum a disfunção sexual; se
esta for intolerável para o paciente, o médico recorrerá à substituição
do medicamento (o que pode ocorrer por mais de uma vez) ou
associar a ele um agente pró-sexual. Além disso, importa considerar
que “os efeitos ativadores do ISRS aumentam modestamente o risco
de ativar os impulsos suicidas em pessoas com tendência para o
suicídio” (SADOCK; SADOCK; SUSSMAN, 2007, p. 45).
Tradicionalmente, apontam Sadock, Sadock; Sussman
(2007), costumava-se tratar a psicose com antipsicóticos, a depressão
com antidepressivos, o transtorno bipolar com estabilizadores de
humor e os estados ansiosos com ansiolíticos. No entanto, tal
categorização foi-se mostrando menos válida, já que
8 ISRS (inibidores seletivos da recaptação de serotonina), como sertralina, fluoxetina, paroxetina, citalopram.
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(1) vários medicamentos de uma classe agora são utilizados para tratar problemas anteriormente atribuídos a outra classe. Por exemplo, muitos medicamentos antidepressivos são também utilizados para tratar uma ampla faixa de transtornos de ansiedade; (2) medicamentos introduzidos como tratamento para esquizofrenia, agentes como os antagonistas da serotonina-dopamina (ASD), são também usados para o controle do transtorno bipolar e também parecem ter alguma atividade antidepressiva; (3) medicamentos de todas as outras quatro categorias são utilizados para tratar sintomas e distúrbios tais como insônia, transtornos da alimentação, transtornos de conduta associados a demência e transtornos do controle de impulsos; (4) medicamentos como a clonidina, o propranolol, a verapamil, o modafinil e a gabapentina podem tratar com eficiência uma gama de transtornos psiquiátricos e não se encaixam facilmente na classificação tradicional de medicamentos; (5) finalmente, alguns termos psicofarmacológicos descritivos são arbitrários e se superpõem em significados. Por exemplo, os ansiolíticos reduzem a ansiedade, os sedativos produzem efeito calmante ou relaxante, e os hipnóticos produzem sono. Entretanto, a maioria dos ansiolíticos são sedativos e, em doses elevadas, podem ser utilizados como hipnóticos, e todos os hipnóticos em doses baixas podem ser utilizados para sedação diurna (SADOCK; SADOCK; SUSSMAN, 2007, p. 29).
Tal apreciação lança luzes sobre a complexidade do
organismo humano à semelhança da complexidade das vivências
humanas. Definitivamente, uma psicopatologia não pode ser vista
apenas em termos de desequilíbrio neuroquímico. Muitas vezes, o
estilo de vida que a pessoa segue, o modelo de comportamento que
adota, os modos de relação que estabelece, o padrão de interação ou
de comunicação que mantém, podem gerar “pseudopatologias” ou
mesmo psicopatologias; os aspectos socioeconômicos, histórico-
culturais, políticos e étnicos não podem ser ignorados, se favorecem
a restrição de sentidos.
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Muitos “transtornos de conduta” ou “comportamentos
desviantes” são produzidos nas relações interpessoais e intergrupais
e poderiam ser vistos até mesmo como saudáveis dada sua coerência
e pertinência, se considerados à luz do contexto mais amplo que se
vive.
A pessoa, quando não consegue harmonizar sentimento e
pensamento, e manter sintonia e envolvimento com seu sofrimento,
atribuindo-lhe significado em sua existência, experimenta o
adoecimento existencial que “acontece quando as limitações e
conflitos não são reconhecidos e enfrentados pela pessoa, à luz de
suas múltiplas possibilidades, passando, então, a se tornar
exageradamente ampliados e dominantes em sua vida”
(FORGHIERI, 2002, p. 53).
Pode a pessoa expor-se ao risco de recorrer ao suicídio ou
pode experimentar delírios e/ou alucinações, ao perder a liberdade
com o resto de sua experiência toda e criar uma realidade adaptativa
para sobreviver ao que, no momento, parece-lhe inaceitável. A
medicação não deve representar, então, uma ameaça nem algo a ser
evitado a qualquer custo. Também não deve ser considerada a
solução cabal. Ela participa como coadjuvante ao restabelecer o
equilíbrio neuroquímico que foi alterado, e talvez possa ir
gradativamente sendo retirada, sempre sob a orientação médica, à
medida que a pessoa recupera a ampliação da autoconsciência e
recobra o sentido na vida, auxiliada pela psicoterapia (ou não).
A medicação que pode alienar e matar é a mesma que pode
salvar uma vida. A questão não parece estar em se usar ou não a
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medicação, mas em ser administrada na hora certa, na dosagem
adequada e pelo período de tempo necessário, observando-se os
aspectos já mencionados.
5. A PSICOFARMACOLOGIA NO CONTEXTO MAIS AMPLO
Lupton (2003) baseia seus estudos na sociologia médica de
saúde e doença, história da medicina e antropologia médica,
visitando as contribuições dos movimentos feministas, estudos
culturais e análise de discurso para discutir amplamente a questão da
saúde-doença nas sociedades ocidentais contemporâneas.
Consoante Lupton (2003), os estruturalistas críticos ou
economistas políticos propõem que fatores políticos, econômicos e
históricos delineiam saúde, doença e tratamento; segundo eles, há
uma relação simbiótica entre capitalismo e cuidado médico. A má
saúde seria gerada por fatores econômicos que são resultados do
capitalismo, que, por sua vez, obscurece essas origens e demanda o
consumo de bens para afiançar o processo curativo, que o aceita.
Dedicam-se, portanto, ao tratamento de sintomas com drogas e
tecnologias.
A indústria de psicofármacos atende a interesses do setor
econômico das sociedades capitalistas, sendo seu uso e
comercialização atravessados, ainda, por significados e
interpretações culturais, discursos sociais, interesses políticos e
representações sociais, construções essas que se modificam
historicamente ao longo do tempo e em função do lugar.
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Marroni (2007) salienta, numa visão antropológica, que os
fatores sociais e culturais medeiam as formas de pensar e agir em
relação à saúde e doença, sendo, portanto, as noções de risco,
causalidade, prevenção e tratamento, e tudo o mais que a estas se
relaciona, fenômenos culturalmente construídos e interpretados.
Assim, a antropologia da saúde oferece uma concepção de saúde-
doença que “ultrapassa os limites da biomedicina. Ela reconhece as
angústias, os medos, os sofrimentos, as questões filosóficas e
culturais que afetam o ser humano” (MARRONI, 2007, p. 103).
Há, ainda, que se observar, consoante Boechat Cabral (2011),
o fenômeno da humanização das ciências, cujo objeto de estudo é a
pessoa e as emanações da dignidade humana, que não prescinde do
cumprimento do dever de informação. Sob esse imperativo que se
baseia fundamentalmente no respeito à pessoa, cumpre destacar o
consentimento informado como elemento essencial à
psicofarmacologia. Trata-se de um ato pelo qual o médico fornece ao
sujeito – e não mais ao paciente – o máximo possível de informação
sobre o medicamento a ser adotado, os efeitos colaterais, o
prognóstico e os resultados esperados. Em seguida, obtém da pessoa
o consentimento expresso para intervenção em sua esfera psicofísica,
se ela assim o desejar.
A importância e a expressão da psicofarmacologia requerem
uma discussão interdisciplinar que venha favorecer o entendimento
da produção, administração e utilização de medicamentos
psicoativos, a fim de desmitificar, não banalizar e também não
supervalorizar tais recursos terapêuticos.
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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A psicopatologia, à luz da Psicologia Fenomenológico-
Existencial, precisa ser compreendida a partir do modo de ser do
homem em suas relações com o mundo, com os outros e consigo
mesmo; é preciso compreender-lhe o significado e contextualizá-la
na existência. Para a medicina, a psicopatologia deve ser
precisamente diagnosticada para que o tratamento seja adequado e a
medicação prescrita seja eficaz.
A psicofarmacologia procura, então, produzir a droga que
atue no sistema nervoso da forma mais eficaz possível; importa
considerar, então, ao prescrevê-la, rigoroso critério e observar todos
os fatores relacionados à droga em si, ao seu uso e à pessoa que a
utilizará.
O diagnóstico baseado na classificação psiquiátrica
tradicional encontra na prática médica lugar central, mas não na
psicoterapia fenomenológico-existencial, pois deve o psicólogo
encontrar-se com a pessoa em sua experiência toda e auxiliá-la na
ressignificação de vivências que estejam favorecendo a restrição de
sentidos, o que poderá favorecer a remissão de sintomas e diminuir a
necessidade da medicação.
Quando se discute saúde e doença, terapias e recursos
terapêuticos, interessante se mostra a disposição à reflexão e ao
diálogo com outros campos do saber, levando-se em conta os
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significados e interpretações culturais, discursos sociais, interesses
político-econômicos e representações sociais, bem como a
historicidade que perpassa tais construções.
AGRADECIMENTOS
A Deus, autor e consumador da minha fé.
REFERÊNCIAS
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POMPEIA, João Augusto; SAPIENZA, Bilê Tatit Na presença do sentido: uma aproximação fenomenológica a questões existenciais básicas. São Paulo: EDUC; Paulus, 2004. ROGERS, Carl R. Psicoterapia e consulta psicológica 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. SADOCK, Benjamin; SADOCK, Virginia; SUSSMAN, Norman Manual de Farmacologia Psiquiátrica de Kaplan e Sadock Porto Alegre: Artmed, 2007. TEIXEIRA, José A. Carvalho Introdução à Psicoterapia Existencial in Análise Psicológica Jul/2006 vol.24 no3 Disponível em http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/aps/v24n3/v24n3a03.pdf Acesso em 20 set. 2012.