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Reveillon e O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário uma família, um apartamento, quarenta anos de intervalo Adélia Nicolete Dramaturga, mestre e doutora em Artes Cênicas pela ECA-USP com pesquisa sobre dramaturgia Um dos temas mais abordados no teatro, os conflitos familiares, em suas mais diversas configurações, estiveram presentes desde os primórdios dessa arte, correspondendo a um contexto ou lançando sobre ele as luzes do entendimento. Longe de traçar um panorama, pretende-se nesse artigo esboçar um estudo comparativo de dois textos brasileiros que tratam da temática familiar, bem como assinalar, nas diferenças entre eles, algumas das transformações por que passou a dramaturgia no interregno de quarenta anos que os distancia no tempo. O primeiro texto, Reveillon, foi escrito em 1974 por Flávio Márcio. Estreou naquele ano no Rio de Janeiro e, no ano seguinte, em São Paulo, obtendo grande sucesso de público e de crítica. O segundo, O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário, veio à cena em 2014 na capital paulista, com dramaturgia textual e direção de Evill Rebouças para pesquisa coletiva da Cia Artehúmus de Teatro. Nas duas peças, pai, mãe e um casal de filhos dividem com a morte um apartamento de classe média na metrópole. Flávio Márcio nasceu nas Minas Gerais em 1945, transferindo-se, ainda jovem, para o eixo Rio-São Paulo, onde atuou como jornalista, publicitário e dramaturgo até o falecimento, em 1979, aos 34 anos. Sua dramaturgia, sempre de autoria individual e levada à cena nos moldes convencionais, deu-se entre os anos de 1960 e 1970, período em que o Brasil, ao mesmo tempo em que passava pelos rigores da ditadura militar, começava a desenvolver práticas horizontalizadas de criação. Contra a ditadura do diretor e do autor, a chamada criação coletiva propunha a desierarquização das funções e atendeu tanto ao engajamento político de esquerda quanto a iniciativas tidas, na época, como “alienadas” 1 . Na obra 1 Sobre a criação coletiva e as duas principais vertentes citadas ver GARCIA, Silvana. Teatro da militância. São Paulo: Perspectiva, 1990, e FERNANDES, Sílvia. Teatro de grupos anos 1970. Campinas: Unicamp, 2000.

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Reveillon e O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário – uma família, um apartamento, quarenta anos de intervalo

Adélia NicoleteDramaturga, mestre e doutora em Artes Cênicas pela ECA-USP

com pesquisa sobre dramaturgia

Um dos temas mais abordados no teatro, os conflitos familiares, em suas mais diversas configurações, estiveram presentes desde os primórdios dessa arte, correspondendo a um contexto ou lançando sobre ele as luzes do entendimento. Longe de traçar um panorama, pretende-se nesse artigo esboçar um estudo comparativo de dois textos brasileiros que tratam da temática familiar, bem como assinalar, nas diferenças entre eles, algumas das transformações por que passou a dramaturgia no interregno de quarenta anos que os distancia no tempo.

O primeiro texto, Reveillon, foi escrito em 1974 por Flávio Márcio. Estreou naquele ano no Rio de Janeiro e, no ano seguinte, em São Paulo, obtendo grande sucesso de público e de crítica. O segundo, O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário, veio à cena em 2014 na capital paulista, com dramaturgia textual e direção de Evill Rebouças para pesquisa coletiva da Cia Artehúmus de Teatro. Nas duas peças, pai, mãe e um casal de filhos dividem com a morte um apartamento de classe média na metrópole.

Flávio Márcio nasceu nas Minas Gerais em 1945, transferindo-se, ainda jovem, para o eixo Rio-São Paulo, onde atuou como jornalista, publicitário e dramaturgo até o falecimento, em 1979, aos 34 anos. Sua dramaturgia, sempre de autoria individual e levada à cena nos moldes convencionais, deu-se entre os anos de 1960 e 1970, período em que o Brasil, ao mesmo tempo em que passava pelos rigores da ditadura militar, começava a desenvolver práticas horizontalizadas de criação. Contra a ditadura do diretor e do autor, a chamada criação coletiva propunha a desierarquização das funções e atendeu tanto ao engajamento político de esquerda quanto a iniciativas tidas, na época, como “alienadas”1. Na obra autoral de Flávio Márcio, a repressão vivida pelo país naquele momento, parece ter encontrado reflexos e correspondência no âmbito familiar de composição tradicional, o que pode ser verificado em Réveillon, em À moda da casa e em Tiro ao alvo, textos pertencentes à trilogia Família à moda da casa.

Evill Rebouças, filho dos anos 1960 – assim como alguns dos atores da Cia Artehúmus –, cresceu e fez os primeiros anos de sua formação escolar no ABC paulista, sob a ditadura. Nas duas décadas seguintes, o fortalecimento do teatro amador, grande parte das vezes lançando mão de princípios da criação coletiva, em fábricas, nas igrejas e nas escolas, garantiu o acesso de muitos jovens às diversas funções do fazer teatral. Daí ser bastante comum encontrarmos entre os artistas daquela geração e daquele local, quem se desdobre na dramaturgia, na direção, na interpretação ou em outras áreas, caso de Evill. A partir de meados dos anos 1980, fase da abertura política nacional, a região do ABC, em especial a cidade de Santo André, pode contar com a oferta de oficinas livres de artes, além de cursos formais nos recém criados Centros Comunitários, Escolas Municipais de Iniciação Artística e Escola Livre de Teatro. Tais iniciativas contribuíram, se não para o

1 Sobre a criação coletiva e as duas principais vertentes citadas ver GARCIA, Silvana. Teatro da militância. São Paulo: Perspectiva, 1990, e FERNANDES, Sílvia. Teatro de grupos anos 1970. Campinas: Unicamp, 2000.

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aumento do número de grupos amadores, ao menos para a capacitação de artistas que, a partir de então, buscaram a atuação profissional em teatro, ideia praticamente inconcebível em períodos anteriores.

O enredo

Reveillon transcorre no último dia de 1973. À medida que o relógio anuncia, com seu tique-taque, o final do ano aproximar-se, os quatro membros de uma família desfilam suas incapacidades e frustrações, suas derrotas e a mesmice de uma vida que se arrasta de modo solitário, ainda que em grupo.

Desde a primeira cena a morte ronda o apartamento, sob as mais diversas formas. Porém, é próximo ao final que o leitor/espectador percebe com clareza a intenção dos personagens: dar fim à própria existência, antes que o próximo ano chegue e a morte em vida recomece. O jovem Guima, poeta insipiente, abre a peça preparando o laço de uma forca enquanto sua mãe, Adélia, mostra-se incapaz de compreendê-lo. Logo de início é possível notar, na tentativa de diálogo entre eles, a falência da comunicação, cada vez mais comprometida ao longo da trama. O diálogo inaugural da peça dá o tom do que virá a seguir:

“GUIMA (lendo, reflexivamente, no caderno ao lado): “Não a face dos mortos...”ADÉLIA (impaciente, mas tentando ser compreensiva): Dá dinheiro isso, meu filho?GUIMA (continuando, indiferente): “... nem a face dos que não coram aos açoites da vida.”ADÉLIA (continuando): Passar o dia inteiro com um pedaço de papel e um lápis na mão escrevendo coisinhas... Responde!GUIMA (continuando com a leitura do poema): “Mas a face lívida dos que resistem pelo espanto.”ADÉLIA (irritada): Dá dinheiro, por acaso? Dinheiro coisa nenhuma!GUIMA (voltando à realidade): Quê que tem? Que que a senhora disse?”

O desejo poético não encontra lugar em uma casa já sem alma – em um país cujo desejo político foi solapado –, o que leva Guima a fugir, na tentativa de livrar-se da morte anunciada.

Murilo, o pai de família, tendo dificuldade de se fazer ouvido pelos demais, passa o dia tentando finalizar uma autobiografia pífia, elaborando a lista de agradecimentos que é praticamente uma despedida. Ele pouco fala e suas palavras têm importância nenhuma no curso das ações. Por vezes parece que o peso da realidade “lá fora” (fora das quatro paredes ou fora do “eu”) é permanentemente evitado pelo casal. A filha, Janete, a protagonista, encarrega-se de ser e de trazer para dentro da casa uma verdade incômoda: a de sustentar a casa como prostituta. Naquela noite fatídica, a moça chega do trabalho e junta-se à mãe no preparo da última ceia que, à semelhança da relação entre as duas, acaba desandando. Durante toda a ação da peça, Janete debate-se entre a banalidade e o cansaço do presente e o passado romântico, lembrando-se do amor impossível, num desespero que justifica seu gesto final.

Fora da órbita familiar gravita Fernando, antigo pretendente de Janete. Não se sabe ao certo se ele é real ou se existiu apenas na imaginação e no desejo da moça. Embora a troca dialógica entre os dois esteja menos comprometida, a comunicação não se dá plenamente, pois o amor é incapaz de superar as diferenças: Janete considera-se indigna do namorado. No ápice do desassossego, cada personagem encontra a maneira mais

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apropriada de se libertar do peso da existência. Guima morre de forma misteriosa, fora de cena – tantos pereceram dessa forma na época. Adélia enforca-se, interrompendo a profusão da fala, enquanto Murilo usa o revólver. Janete é a última. Atende um Fernando imaginário que vem propor casamento, mas já é tarde. Atira-se e às ilusões pela janela.

Em Reveillon, a incomunicabilidade é apenas uma das consequências da deterioração de relações familiares, em especial daquelas fundadas nos moldes tradicionais. Flávio Márcio traduz essa fratura por meio de interrupções de fala e pensamento, de elipses, de diálogos breves permeados por circunlóquios e pelo uso abundante de reticências. A criação individual do texto e a desvinculação entre autor e sala de ensaio, característicos de boa parte da dramaturgia do período, favoreceram o detalhamento das rubricas, que, não apenas sugerem a intenção dos personagens, mas estendem-se à determinação precisa de cenário e objetos, do figurino, da movimentação dos atores e de recursos audiovisuais.

A revisão do enredo

A trama de Reveillon é relativamente simples em relação a algumas propostas atuais. O teatro contemporâneo tem-se desprendido cada vez mais da ideia de enredo como o arranjo de ações em fluxo causal, algo que durante séculos norteou a composição dramatúrgica. À noção de uma história facilmente reproduzível contrapõe-se uma tessitura polifônica de palavras, ações, situações e temas, resultando em um tipo de escrita em que a identificação de uma fábula torna-se difícil ou mesmo impossível. É assim com O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário.

A recusa em apontar um caminho interpretativo começa pelo título. Trata-se de uma metáfora referente não só ao conteúdo, mas ao percurso do público pelas águas do espetáculo, em busca de um sentido para a cena ou, se preferir, para a vida na “modernidade líquida”2 em que nos encontramos.

A família, aqui, não é mais a de composição clássica. Pai e mãe dividem o apartamento com dois filhos legítimos, mas sabe-se que existe uma ex-mulher e uma outra filha, eventualmente citadas. Longe de ser mero detalhe, esse arranjo figura em parte o quadro familiar contemporâneo, e os conflitos nele gerados, ainda que semelhantes aos convencionais em alguns de seus efeitos, são de outra ordem, sobretudo econômica e emocional.

Se um apartamento, pago em infinitas prestações, era o sonho dourado da classe média retratada por Flávio Márcio, o condomínio figurado em O desvio do peixe... é, muitas vezes, o sonho possível no neo-liberalismo. Atende, qual fortificação medieval, ao anseio por segurança, intensificando-se o medo daquilo que corre além das muralhas e das cercas elétricas. É preciso sentir-se protegido e vigiado para sentir-se livre.

Nesse contexto, é Téo, o filho morto, quem recebe o espectador a fim de apresentar a família. Mas, se em Reveillon, foi a angústia pela não-comunicação e pela negação da vida o que conduziu os personagens ao suicídio (visto, inclusive, como metáfora da falência de certo modus vivendi), em O desvio do peixe... a morte ocorre de modo absolutamente involuntário. Tom, o peixe do aquário, é morto por uma bala perdida que atravessa a janela; o filho da diarista, detido num abrigo de menores, leva um tiro, e Téo,

2 O termo é utilizado aqui no sentido proposto por Zygmunt Bauman em Modernidade líquida. Trad. De P. Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar.

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o anfitrião, não morre de nada, conforme ele mesmo esclarece:

“Eu morri de nada, simplesmente deitei, dormi e não acordei mais. Mas isso era tão pouco, tão simples que não fazia sentido... Sentido teria se eu tivesse morrido de bala perdida... levar um tiro no meio da testa, igual ao filho da diarista... Mas não, eu não morri de febre, de úlcera, de cistite, de convulsão... (...)”

A revelação de Téo esconde a ironia de um tempo em que a morte natural caiu em desuso. Paradoxalmente, o menino morto parece mais vivo que seus pais e sua irmã. Téo é o espírito que retorna e tenta compreender aqueles cuja alma está prestes a desvanecer. João Paulo, seu pai, “o provedor” – assim definindo na dramatis personae –, passa a vida tentando desincumbir-se de tarefas prosaicas – o trabalho que não lhe dá prazer, o pagamento de contas, uma pesquisa para seu curso supletivo e a reflexão sobre a peregrinação dos atuns – lamentando-se por não conseguir relacionar-se em profundidade com os filhos. Seu drama é comum à maioria dos provedores, a quem cabe trabalhar cada vez mais para manter um padrão de vida familiar, e de quem se cobra uma presença muitas vezes impossível.

Dalva, “mulher com estrela, mas sem céu”, é a mãe que se preocupa em cumprir o que é esperado dela, o que é recomendado pelos anúncios comerciais, pelos artigos das revistas e programas de televisão. Alguém encarregado de amar e de dedicar-se, preferencialmente, ao outro. Um fragmento da relação entre o casal é capaz de ilustrar a crise da comunicação e, por consequência, do diálogo interpessoal no teatro contemporâneo:

“JOÃO PAULO O cartão de crédito estourou. DALVA Te amo.JOÃO PAULO Também... te amo.DALVA Teu dia? Como foi?JOÃO PAULO (OLHANDO PARA O PRATO) Às vezes me coloco

fazendo o percurso dos atuns... Um atum, antes de chegar ao meu prato, andou mais enquanto nadou no mar ou na lata que foi embalada? – me pergunto, mas somente às vezes...

DALVA Como foi teu dia? JOÃO PAULO Bom.DALVA Te liguei. Você não atendeu.JOÃO PAULO Te amo. Eu também te liguei.DALVA Também te amo.JOÃO PAULO Você não retornou.DALVA To sem crédito. (O CELULAR DELA TOCA). Oi... (...).

Não. Não. Sim. Obrigado. (DESLIGA).”

Longe de levar a ação adiante ao expressar pensamentos e intenções plenos de sentido, como preconiza a forma dramática tradicional, esse tipo de troca dialógica assemelha-se muito mais à conversação. Essa última é marcada pela desarticulação, pela imprevisibilidade e por certa inconsequência, o que abre espaço ás preocupações cotidianas, ao bate-papo recheado de repetições e a falhas de toda ordem (NICOLETE, 2013, p. 173). Sem a contundência da palavra-ação, a conversa busca o sentido por meio de recursos para linguísticos. Segundo Jean-Pierre Ryngaert, o trunfo da conversação é

“deixar vastos espaços para que a interpretação se precipite nelas: (…) os enunciados são tão insignificantes que é preciso confiar em tudo que lhes permita aparecer e,

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portanto, nas implicações não verbais. A situação, também bastante insignificante, só apresenta interesse na medida em que a fala introduz nela defasagens ínfimas que se revelarão explosivas”. (1998, p. 142).

Tais trunfos são potencializados nos casos em que dramaturgo e diretor são a mesma pessoa, em que os atores participam do projeto desde as pesquisas iniciais, propondo cenas em sala de ensaio, conforme veremos mais adiante.

De volta à apresentação dos personagens, a irmã de Téo, Anamélia, é “aquela que espera”. Tal como Janete, de Reveillon, fantasia um namorado, de quem sabemos apenas ter ido para a Colômbia e comunicar-se com a moça pela internet. A moça permanece recolhida em seu quarto, vindo à tona nas lembranças de Téo ou falando sobre si mesma e sobre sua paixão. A relação amorosa virtual é mais um elemento que diferencia as duas peças, permitindo a’O desvio do peixe... reflexões acerca da contemporaneidade3.

O personagem estranho a esse quadro é Clóvis, o porteiro do condomínio. Na dramatis personae, é definido como alguém “que conhece o panóptico de Foucault”, o que a ação se encarrega de comprovar: Clóvis vigia o condomínio durante o expediente e fora dele, já que mora no alto do morro ao lado. A convivência estreita com o menino Téo permite que este, ao retornar, exerça um olhar distanciado e crítico com relação à família e ao mundo. O porteiro era quem estabelecia o contato de Téo vivo com o ambiente externo ao apartamento – tal como Fernando faz com Janete. Clóvis, proibido de ter contato com os condôminos, é o amigo “invisível” de Téo, e Fernando, suposto namorado de Janete, também é “invisível” aos demais, permanecendo como elemento de cumplicidade entre a protagonista e o público.

As pistas do processo

Conforme visto, nas duas peças a incomunicabilidade é traduzida, sobretudo, nas falhas do diálogo interpessoal. No entanto, existe uma diferença fundamental entre elas, originada nos procedimentos de criação. A primeira foi criada por um único autor, no comando de todo o processo, desde a gênese até a conclusão da dramaturgia textual. Criações como essa garantem, de certa forma, o que podemos identificar como “unidade”, expressa, por exemplo, pela delimitação da trama, pela condução regular dos personagens e pela forma adotada: cenas, rubricas detalhadas, cenário realista definido, diálogos padronizados, bem como uma linha de ação direta a garantir o fluxo causal. Já o segundo texto aqui analisado, e também o espetáculo, deram-se por meio do processo colaborativo4. Tal procedimento, na quase totalidade das ocorrências, tende a gerar uma obra dialógica, polifônica.

As cenas de O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário são fruto de pesquisa teórica e de investigação realizada pelo grupo em condomínios, portanto, desde o nascedouro, foram muitas as vozes que contribuíram para a criação. As pesquisas e discussões geraram personagens e cenas que, mediante versões muitas vezes testadas na prática, resultaram num primeiro esboço, a que Evill Rebouças deu tratamento dramatúrgico,

3 Sobre o tema, consultar ILLOUS, Eva. O amor nos tempos do capitalismo. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.4 Sobre as possíveis origens e as características do processo colaborativo consultar NICOLETE, Adélia. Da cena ao texto : dramaturgia em processo colaborativo. São Paulo, 2005. Dissertação (Mestrado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27139/tde-28092009-092332/pt-br.php

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levando em conta as sugestões de encenação. Decorre desse processo a dificuldade de tomar o texto verbal por si só, em detrimento da cena. Em O desvio do peixe... e nos outros espetáculos da Cia. Artehúmus, a busca de sentido por parte do espectador/leitor não pode contar apenas com os signos linguísticos – como é possível em Reveillon. Assim, às eventuais pistas do texto enunciado terão de se conjugar a interpretação dos atores, a disposição espacial não realista, a troca dialógica com o público, além da sequência cronológica alterada e de vários outros elementos não determinados pelas rubricas, resultando daí a tessitura polifônica da cena.

Características formais

Embora Reveillon tenha sido escrita e montada em moldes convencionais, há nela uma série de recursos capazes de distanciá-la da forma dramática canônica. Tais recursos são a semente do que viria a se radicalizar décadas depois. Um exemplo é a fragmentação, responsável pela não linearidade espaço-temporal da peça: encadeados na ação estão o presente cênico, o passado de Janete e seu delírio, localizados em três cômodos do apartamento e na rua, debaixo de chuva. Além disso, o dramaturgo lançou mão de projeção de imagens que dialogam com a narrativa biográfica de Murilo. Os dois exemplos citados repetem-se em O desvio do peixe... radicalizados pelo tempo.

Aqui, a fragmentação ultrapassa a esfera fabular no momento em que o espetáculo é “interrompido” para a confraternização entre elenco e público – as aspas asseguram a relatividade dessa interrupção, ou seja, embora seja previsto como um momento de improviso dos atores, o intervalo pressupõe uma carga de sentido que, em nome do fluxo maior da proposta, não deve ser descartada.

Da maneira como são utilizadas pela Artehúmus, os recursos audiovisuais adquirem qualidade épica superior com relação a Reveillon. Lá, antigas fotografias eram projetadas no fundo da cena durante a leitura autobiográfica do personagem, a ilustrar um passado desconhecido pelo espectador. Em O desvio do peixe..., as projeções são operadas pela atriz que conduz a cena, às vistas do público. São frases soltas, utilizadas para prantear o filho morto, o que acrescenta outras leituras à dor daquela mãe. E quando, ao final da exibição, a própria personagem revela ter copiado sua performance de um videoclipe norte-americano, ocorre uma verdadeira reversão de expectativas, obrigando o público a recapitular e a readequar o sentido, tornando-se co-criador da cena. Mesmo buscando caracterizar a dificuldade de comunicação, em Reveillon as falas eram todas endereçadas a um destinatário certo. Poderiam até não ser consideradas, ser interrompidas, mas eram destinadas a um interlocutor definido. Embora o destinatário final de qualquer enunciado feito em cena seja o público, n’O desvio do peixe..., a destinação de algumas falas não está determinada na rubrica, ficando a critério do ator enunciá-las a outro personagem, ao espectador, a si próprio ou a todos. A questão do endereçamento no teatro contemporâneo, sobretudo nas formas monologadas (e há longos trechos na peça em questão) chega a colocar em pauta as próprias fronteiras da ficção. Um exemplo disso é dado pelo personagem do pai, João Paulo, logo nas primeiras cenas:

“Eu e a minha mulher não terminamos os estudos na época que devia daí a gente ta correndo atrás indo estudar agora agora me pediram uma lição de casa falaram para eu definir o que é ausência pra mim bom eu fiquei pensando horas e não cheguei a lugar nenhum... mas é que essa coisa de fazer lição de casa pra mim sempre foi muito doloroso e ao mesmo tempo sempre tive muita preguiça de fazer lição de casa acho que por isso eu fiquei diversas vezes de recuperação na escola e repeti dois anos uma vez fui expulso mas é assim mesmo nasci assim agora que eu já passei da

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idade e tenho que frequentar aula é muito mais difícil mudar mas vamos lá o que é a ausência pra mim...”

A quem ele endereça o misto de narrativa e reflexão? Se a fala permanece interna à cena, ela porta um sentido diferente daquele suscitado pelo olho-no-olho com o público. E se o ator fita o vazio, a quem ele se dirige? São decisões capazes de abrir ou fechar possibilidades interpretativas ao espectador.

Note-se a ausência de pontuação no trecho acima – a não ser pelas reticências. Ela indica um outro recurso, adotado por muitos dramaturgos atuais: deixar que o leitor/ator pontue o texto de acordo com seus próprios critérios. Flávio Márcio chegava às minúcias na condução de sua escrita, indicando ações, reações, estados de ânimo e mudanças de tom numa mesma frase. O controle do dramaturgo visava a que seu texto chegasse à cena o mais próximo possível do que havia imaginado. Pressupunha-se uma determinação de funções até certo ponto rígida, isto é, impermeável. Ao autor cabia escrever, colocar em cena cabia ao diretor, e aos atores competia a execução dos papéis, de preferência conforme as indicações do texto e da direção.

A ausência de pontuação em certos fragmentos monologados d’O desvio do peixe... indica, a princípio, algumas pistas de um processo diferente daquele de Reveillon. Em primeiro lugar, a diluição de fronteiras entre os criadores: o responsável pelo texto verbal não estabelece grades de sentido nem aos demais artífices nem ao público. A diluição ocorre também pelo fato de o ator, em geral, ser o criador ou, ao menos, o propositor da enunciação. Essa última pista revela uma apropriação da fala que é diferente daquela feita pelo intérprete de um texto alheio. Apropriação que pode dispensar a pontuação definida e que indica, no caso de alguns trechos d’O desvio do peixe..., o fluxo verbal característico do personagem ou a verborragia pós-moderna, presente na cena contemporânea.

Se Reveillon, na época em que foi escrita, pedia uma encenação próxima do realismo, O desvio do peixe..., desde sua composição, afasta-se da mimese representacional. Há na trivialidade de algumas falas o desejo profundo de que sejam inverossímeis, embora saibam-se repetidas milhares de vezes em cada um dos apartamentos, de cada um dos condomínios, de todas as cidades do planeta. Além disso, a inexistência de móveis, objetos e paredes que definam realisticamente o espaço, torna a encenação d’O desvio mais próxima da performance e da dança, ou seja, agregam-se códigos outros à fruição do espetáculo. O vaivém dos personagens, por vezes sem rumo, pelo apartamento; os peixes de Brueghel, citados pelo jovem Téo, remetem não só aos personagens, mas ao público, presos que estão na caixa-aquário-lata de sardinha do teatro e, quiçá, de um certo modo de viver.

Considerações finais

É importante registrar, nessa análise do intervalo de quarenta nos que separa Reveillon de O desvio do peixe..., que o processo colaborativo brotou no terreno árido do neoliberalismo econômico implantado no país a partir dos anos 1990. Naquele período, a isenção do Estado com relação à saúde, à educação e à cultura foi fortemente marcada pelas privatizações e pelo fortalecimento do terceiro setor, encarregado de atender às demandas desassistidas. Foram criadas leis de renúncia fiscal a fim de que empresas pudessem patrocinar iniciativas diversas, dentre as quais a produção de espetáculos – meio indireto de utilização do dinheiro público. Longe de minimizar as dificuldades de

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produção, as leis corresponderam a um ambiente de todo favorável à mercantilização da cultura: só recebe patrocínio o que interessa ao patrocinador, ou seja, o que vende, o que atrai público, o que agrega valor à marca. Portanto, projetos que destoassem de determinados padrões tornavam-se praticamente inviáveis. Foi assim com o teatro, o cinema, a música, as artes visuais e diversas outras áreas. Todas buscaram na coletivização o caminho para a criação, a viabilização e a distribuição de seu trabalho. No coletivo criador e produtor, retoma-se a horizontalização e a permeabilização de funções, resultando no processo colaborativo. Nesse contexto, despontou em 1998 em São Paulo o movimento Arte Contra a Barbárie, que alcançou, entre outras conquistas, uma lei de fomento à cultura, modelo para outros estados e cidades.

A Cia Artehúmus de Teatro é, desde o seu nascedouro, um coletivo criador e seus trabalhos, alguns deles beneficiados pelas leis de fomento, têm exercitado o olhar crítico sobre a sociedade, desviando-se do fluxo contínuo, porém, vicioso das leis de mercado. Portanto, se a dramaturgia de Flávio Márcio usava do texto verbal para criticar a sociedade de seu tempo e lugar, O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário representa um projeto crítico. O posicionamento político do grupo – o que não implica em política partidária – dá-se desde a escolha do tema, passando pela pesquisa-ação que dá voz aos moradores de condomínios diversos e leva-a para a cena, não de modo compartimentado, mas em colaboração permanente. Dá-se no controle do processo como um todo, na troca dialógica com o público e no compartilhamento dos meios de produção, por meio de ensaios abertos e dessa publicação.

Referências:

MÁRCIO, Flávio. Reveillon. In: Família à moda da casa. Rio de Janeiro: Espaço Produções Artísticas, 1981. p. 59-102.

NICOLETE, Adélia. Ateliês de dramaturgia: experiências de escrita a partir da integração artes visuais-texto-cena. São Paulo, 2013. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.

REBOUÇAS, Evill. O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário. Texto digitalizado.

RYNGAERT, J.-P. Ler o teatro contemporâneo. Tradução de Andréa S. M. da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

SARRAZAC, J.-P. (Org.) Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. de André Telles. São Paulo : Cosak e Naify, 2012.