Rev Bra Est Ped_V._34 1960

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A Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos publica vários artigos sobre a educação brasileira de educadores renomados. Desta forma, contribui para uma análise histórica da trabalho educativo e a da mentalidade do pensamento educacional da época de 1960.

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  • REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGGICOS, rgo dos estudos e pesquisas do Ministrio da Educao e Cultura, publica-se sob a responsabilidade do Instituto Nacional de Estudos Pedaggicos, e tem por fim expor e discutir questes gerais da pedagogia e, de modo especial, os problemas da vida educacional brasileira. Para isso aspira congregar os estudiosos dos fatos educacionais do pas, e refletir o pensamento de seu magistrio. REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGGICOS publica artigos de colaborao, sempre solicitada; registra resultados de trabalhos realizados pelos diferentes rgos do Ministrio e pelas Secretarias Estaduais de Educao. Tanto quanto possa, REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGGICOS deseja contribuir para a renovao cientfica do trabalho educativo e para a formao de uma esclarecida mentalidade pblica em matria de educao.

    A Revista no endossa os conceitos emitidos em artigos nados e matria transcrita.

  • R E V I S T A

    B R A S I L E I R A DE ESTUDOS

    PEDAGGICOS

    PUBLICADA PELO INSTITUTO NACIONAL DE E S T U D O S P E D A G G I C O S MINISTRIO DA EDUCAO E CULTURA

    VOL. XXXIV JUL.-SET., 1960 N. 79

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  • INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS PEDAGGICOS

    CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISAS EDUCACIONAIS Rua Voluntrios da Ptria, 107 Botafogo

    Rio de Janeiro Brasil

    DIRETOR ANSIO SPNOLA TEIXEIRA

    Documentao e Informao Pedaggica PRICLES MADUREIRA DE PINHO Documentao e Intercmbio ELZA RODRIGUES MARTINS Inquritos e Pesquisas JOAQUIM MOREIRA DE SOUSA Organizao Escolar ELZA NASCIMENTO ALVES Orientao Educacional e Profissional ZENAIDE CARDOSO SCHULTZ Coordenao dos Cursos LCIA MARQUES PINHEIRO Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos PAULO ALBERTO MONTEIRO DE BARROS Secretaria ANTNIO LUS BARONTO

    Toda correspondncia relativa REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGGICOS dever ser endereada ao Diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedaggicos, Caixa Postal n. 1669, Rio de Janeiro, Brasil.

  • R E V I S T A B R A S I L E I R A DE ESTUDOS PEDAGGICOS

    Vol. XXXIV Julho-Setembro, 1960 N' 79

    S U M A R I O

    Estudos e debates:

    AZEVEDO., Fernando de A lio de um grande exemplo ................................................. 3' BARROS, Roque Spencer Maciel de Liberdade de ensino ............................................ 16 LOURENO FILHO, M. B. Lei de Diretrizes e Bases ................................................. 34 ROSSELLO, Pedro Especialistas em educao para a Amrica Latina 52

    Documentao:

    Discurso de Fosse do Ministro Fedro Paulo Penido ............................................................ 58 Diretrizes e Bases da Educao Nacional ......................................................................... 63 Emendas da 1 Conveno em Defesa da Escola Pblica ao Projeto de

    Diretrizes e Bases .................................................................................................. 87 Articulao do ensino no Brasil 1960 .............................................................................. 101

    NOTAS PARA A HISTRIA DA EDUCAO

    Manifesto dos Educadores 1932 ............................................................................... 108

    INFORMAO DO ESTRANGEIRO .................................................................................................................. 128

    LIVROS LIMA, Alceu Amoroso O espirito universitrio; MEDEIROS, Ethel Bauzer Jogos para recreao na escola primria; NERICI, Imideo Giuseppe Introduo didtica geral; SODR, Nelson Wer- neck O que se deve ler para conhecer o Brasil; UNESCO Faits et chiffres ............................................................................................................... 178

    REVISTAS Abreu, Jaime Ensino no Brasil; Almeida, Hlio de A sociedade da cincia e da tcnica na Unio Sovitica;- Almeida Jnior A. de Escola pblica e escola particular .Azevedo, Fernando de O projeto em acusao Cardoso, Fernando Henrique Educao para o desenvolvimento Fernandes, Florestan A

  • democratizao do ensino; Villalobos, Joo Eduardo R. Liber dade de Ensino Noronha, Antnio Alves Instruo e educao na U.R.S.S. Silva, Maurcio Joppert da O preparo de tcnicos na Unio Sovitica ......................................................................................................... 180

    JORNAIS Barros, Roque Spencer Maciel de Religio e Educao/ Carranca, Lus F. Ensino privado e ensino pblico -Carvalho, Antnio Pinto de Conceito de didtica ...................................................................... 263

    ATOS OFICIAIS Decreto n 47.997, de 4 de abril de 1960 Aprova o Re gulamento da Escola Nacional de Cincias Estatsticas; Decreto n mero 48.247, de 30 de maio de 1960 Cria a Escola Nacional de Flo restas e d outras providncias; Decreto n" 48.297, de 17 de junho de 1960 Dispe sobre a instituio da Fundao Educacional do Distrito Federal; Portaria n 193, de 25 de abril de 1960 (Instituto Nacional de Estudos Pedaggicos) Dispe sobre a concesso de blsas-de-estudo; Portaria n' 218, de 5 de abril de 1960 (Direto- ria do Ensino Secundrio) Aprova instrues relativas ao paga mento de blsas-de-estudo, custeadas pelo Fundo Nacional do Ensino Mdio; Portaria n 294, de 15 de junho de 1960 Dispe sobre a , estao de provas finais no ensino secundrio ......................................................... 285

  • Estudos e debateu

    A LIO DE UM GRANDE EXEMPLO

    FERNANDO DE AZEVEDO Da Universidade de S. Paulo.

    Dos artigos que reuniu Louis Jouvet em suas "Rflexions du Comdien", o primeiro que abre o livro e tem por ttulo "Ou va le thetre?", termina com o seguinte dilogo entre le e Pierre Renoir: "Estou com a ideia (diz Jouvet) de que no somos inovadores, creio que tens razo: somos ou seremos continuadores. Se queres, est bem. Mas, um inovador, que , na tua opinio ? um homem que detesta seus predecessores. No o meu caso, adianta Jouvet. E que detesta ainda mais seus sucessores", acrescenta Renoir. Embora, ao que consta do texto, tivesse parado a o dilogo, o grande homem de teatro podia ter ajuntado com razo: "No tambm meu caso." A questo posta, nesse rpido colquio, pelos dois interlocutores, faz-me pensar mais uma vez sobre a posio de A.F. de Almeida Jnior, que um dos mais autorizados lderes da educao nacional. Inovador ou continuador? Poder parecer um continuador, sob certos aspectos. Mas, na verdade, o que e tem sido esse eminente mestre, um inovador. Renovador, sim, que no rejeita o passado nem se inquieta com o futuro, no detesta seus predecessores nem se previne contra seus su-cessores, ou, se se preferir, um continuador de ideias progressistas e de vistas largas. Por sua lucidez e serenidade de esprito, por sua inteligncia a que o temperamento, longe de perturb-la ou de lhe criar embaraos, permite a atividade, na plenitude de suas foras, esse inovador tem um sentido muito exato da vida e pode ser contado entre aqueles que, possuindo-o vivamente, sabem no renegar as grandes tradies.

    No , de fato, Almeida Jnior um desencadeador de movimentos nem ter dado s suas obras um carter pioneiro. Pode mesmo ter provocado, nesse ou naquele momento, uma ao de freio. Mas um grande inovador sua maneira: sem impulsos e sem arrebatamentos, com um sentido extremamente vivo da relatividade das coisas, dirigindo-se com firmeza a seus fins.

    Do volume Figuras de meu convivio, a ser editado brevemente na coleo das Obras Completas do Prof. Fernando de Azevedo, retiramos o presente captulo que nos foi cedido por deferncia do autor.

  • No parece ter pressa em alcan-los. le sabe que "o tempo s respeita aquilo que no o esquece." , a certos respeitos, um contemporizador, no sentido de que joga com o tempo e aprendeu a dar tempo ao tempo. Como a precipitao vai frequentemente contra os nossos objetivos, pe-se sempre em guarda contra ela, evita-a sistematicamente, em parte por temperamento e em parte de caso pensado, pela confiana na prpria fora das coisas e na vitria, atravs de insucessos provisrios, do que justo e racional. Uma das lies que se desprendem de sua vida, to rica de ensinamentos, a de saber esperar, a da pacincia em face dos acontecimentos. No se entusiasma facilmente com os triunfos nem se desalenta com os insucessos. Pois no dia em que um recuo suficiente nos permitir ver os fatos sob sua verdadeira luz, a agitao que se produziu, as iniciativas que dela resultaram, as transformaes que. se operaram, em consequncia, no mundo das ideias e das reformas, aparecero como uma das situaes mais inesperadas, uma daquelas que ningum poderia ter previsto. Dos dias que esto por vir e se nos apresentam como que entre nvoas, per speculum in aenig-mate, na expresso paulina, tem le, no entanto, um pressentimento bastante vivo para esperar tranquilamente a atuao de foras socioculturais, criadoras e renovadoras, que trabalham na direo de suas ideias e de seus planos de ao.

    Se, em todas as pocas, foi importante o papel de um inovador dessa categoria, pertinaz, sim, mas calmo e refletido, que exerce a funo de um time-binder, um elo entre o passado e o futuro, entre a tradio e as aspiraes, muito mais o nas sociedades modernas em processo acelerado de transformao. Na poca atual, como observa Paul Valry, "o maravilhoso e o positivo firmaram uma espantosa aliana, e os dois antigos inimigos se conjuraram para envolver nossas existncias numa carreira indefinida de transformaes e de surpresas. Pode-se dizer que os homens se acostumaram a considerar todo conhecimento como transitivo, todo estado de suas indstrias e de suas relaes materiais como provisrio. Isto novo. O estatuto da vida geral deve ter cada vez mais em conta o inesperado. O real j no est nitidamente terminado. O lugar, o tempo, a matria admitem liberdades de que outrora no se tinha nenhum pressentimento". Nessas sociedades em mudana agitadas por descobertas cientficas e invenes tcnicas que se sucedem umas s outras, quase ininterruptamente; nesse estado de ebulio e efervescncia intelectual em que a seduo do novo domina os espritos e o tdio parece instalar-se quando tarda a surgir algo de inesperado e de sensacional, compreende-se o alcance do papel moderador dos que encarnam o bom-senso e, embora atrados pela ideia de progresso, amam o que slido e experimentado, e se do ao trabalho de separar, nas ideias novas, o essencial e

  • o acidental, o que fica, atravs do que passa, o durvel e o transitrio. "O mundo no vale seno pelos extremos e no dura seno pelos meios, como pondera, em outra passagem, Paul Valry. No vale seno pelos ultras e no dura seno pelos moderados."

    A averso ao exagero, aos excessos, uma das caractersticas de sua personalidade, uma fora que se disciplinou e se contm. Para le, "ce qui est exagger ne compte pas", conforme ensina um ditado francs. Olha, por isso, com ironia para certos agitadores que, como os petris, s se alegram no ar das tempestades. Observou-me Almeida Jnior certa vez, com uns toques de censura, que no vive nem gostaria de viver no estado de tenso permanente em que me via, nem de "viver perigosamente", segundo queria Nietzsche e lhe parecia ser tendncia muito de meu temperamento. No me disse mais nada a respeito, mas, se tivesse procurado uma imagem para ilustrar seu pensamento, no me compararia certamente a um planador que sobe a grandes alturas aproveitando a fora e a direo dos ventos, mas antes a um avio poderoso voando com dois motores em fogo... Retrado, discreto at a reserva, mas de uma sensibilidade viva que no lhe permite ocultar a delicadeza e generosidade de corao, tem o bom gosto de fugir a disputas e polmicas e, se fala pouco, to claro, seguro e convincente no que diz, que sempre, alm de til, um prazer ouvi-lo. Nele asso-ciam-se, numa mistura singular, ao domnio dos nervos e de si mesmo, inteireza moral, pertincia no trabalho, um cepticismo indulgente e motejador, certo ar de abandono e desencanto que subtraem s suas fortes qualidades morais tudo o que pudessem sugerir, de dureza e rigidez. Quando se julga molestado, num debate, por uma crtica injusta ou impertinente, recolhe-se em si mesmo para se dominar, e, se se dispe a uma rplica, de viva voz ou por escrito, com uma lucidez, firmeza e serenidade que lhe dobram a eficcia e a fora de persuaso.

    Desse conjunto de traos de carter, esprito e constituio j se podem deduzir, atravs de sua personalidade, e compreender melhor o tipo de profissional que se forjou e de que modelo, a sua vida e o seu sistema de reaes em face das coisas, das pessoas e dos acontecimentos. Almeida Jnior um desses raros que sabem ocupar as meias-distncias sem jamais se deixarem ganhar pela mediocridade. le estaria, a esse respeito, na linha de um Montaigne ou de Montesquieu, to bem apresentado por Jean Starobinski, em "Montesquieu por le mesmo". A moderao, tal como a prtica, no uma atitude de retraimento ou reduo. , ao contrrio, a que torna possvel a mais vasta perspectiva sobre o mundo, a mais fina receptividade e o mais largo acolhimento. No sei se foi por influncia de algum de seus mestres, nos anos de aprendizado, ou pelo contato com

  • a cultura francesa, desde sua mocidade, que se apuraram no grande professor que veio a ser, essa tolerncia, esse sentido de medida e de equilbrio, certo pudor dos sentimentos cujas razes emergem do fundo de seu temperamento e, portanto, de sua prpria natureza. Mas certo que um homem, que faz um largo crdito razo e a tem como equilbrio dos sentimentos, no se deixando estar merc de seus nervos, no pode chegar a esse estado nem manter-se nele seno por um constante esforo de autocrtica e auto-educao. Em suas reaes e atitudes, na continncia de suas palavras, na exatido de suas anlises como na construo de suas ideias, revela-se o homem que se encontrou a si mesmo e, tendo aprendido a governar-se, domina emoes e pensamento. Das duas espcies de direito, o que se dirige razo e o que fala ao corao, que so para le, como para ns, igualmente respeitveis, parece predominar em Almeida Jnior o primeiro, que d sempre o impulso, o estilo e o tom s suas atividades intelectuais e profissionais.

    como professor que todas essas qualidades, muito suas, avultam em forte relevo, conferindo-lhe, no exerccio de suas funes, em qualquer dos graus de ensino, uma autoridade magistral. A clareza, ordem, segurana e erudio que apresentam suas prelees, tidas como modelos por estudantes e professores, j o ergueram, h muito tempo, altura de um mestre consagrado, um dos maiores que j teve a Universidade de S. Paulo. Dispondo de todos os instrumentos intelectuais, de raciocnio e de expresso, destaca-se, entre os demais professores de seu nvel, pelo seu poder clarificador de ideias. O que obscuro ou nebuloso, difcil de se perceber ou carregado de impurezas, transforma-se, quando passa pelo filtro de suas anlises e reflexes, em algo de uma transparncia cristalina. No professor que le , o que sobressai, quando se dirige a qualquer pblico, de especialistas ou de estudantes, esse esforo lcido, tenaz e metdico, esse "ostinato rigore", que constitua a preocupao quotidiana de Leonardo da Vinci, mestre por excelncia pelo seu esprito crtico e criador a um tempo. Mas, ao lado de uma curiosidade em todas as direes, da largueza e elevao de vistas, observam-se ainda em Almeida Jnior rara capacidade de fazer o comum de um modo incomum, o amor apaixonado do ofcio, certa maneira de ser generoso, uma sensibilidade particular de sua profisso. Pois o ensino, para le, a um tempo ministrio e ofcio: no saber seu ofcio significa no tomar a srio seu ministrio. No admite, como tantos cuidam, seja o ensino a nica profisso que se possa praticar sem dela ter feito a aprendizagem. E le a fz, longa e escrupulosamente, em toda uma vida. E, como sabe que somente a matria humana sofre prejuzo quando, quem trabalha sobre ela, no se preparou para

  • a modelar, e que a matria humana a matria-prima por excelncia, fz do magistrio um ministrio ou, por outras palavras, um apostolado.

    Foi Wilhelm Dilthey quem observou que "o estado de alma do pedagogo de gnio to difcil de analisar e descrever quanto o do grande poeta. algo de completamente original. le reside na fora de certas impulses espontneas. de notar que o poder de atrao que um homem exerce sobre outro, depende da maneira pela qual se d e se dedica". No contato com as crianas (e Almeida Jnior comeou pelo magistrio primrio), com os adolescentes, nos colgios, ou com a mocidade, dos cursos de nvel universitrio, sempre o mesmo, pela simplicidade, clareza e capacidade de comunicao. Onde quer que "essas fortes impulses se desencadeiam (observa Dilthey), em contato com as crianas que lhes correspondem apaixonadamente (ou com ado-lescentes e jovens, acrescentamos ns), l temos o dom, a aptido original". Almeida Jnior que "possui o esprito de inveno para modelar, comunicar, empreender, ensinar", tem o dom de se adaptar a todos os auditrios, como se cada um deles lhe fosse o mais familiar, ensinando a crianas com a mesma naturalidade comunicativa com que veio, logo depois, a ensinar a adolescentes e, mais tarde, a jovens dos cursos superiores, como um tipo perfeito de scholar, para o qual no tem segredos a arte difcil do magistrio. Mestre acabado, genuna expresso do gnio pedaggico. Professor primrio em Santos, onde comeou, em 1910, sua carreira magisterial, ou professor da escola-modlo isolada da capital do Estado de S. Paulo; professor de francs da Escola Normal de Pirassununga, at 1915, de biologia e higiene na Escola Normal do Brs (1921), de biologia educacional da antiga Faculdade de Educao (1933), em 1938, da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras e, a partir de 1941, de Medicina Legal, por concurso, na Faculdade de Direito, as trs da Universidade de S. Paulo, imps-se Almeida Jnior aos alunos de todos os nveis, como mestre de qualidades excepcionais, que se situa na linha dos grandes educadores no s do pas como da Amrica Latina.

    Desde os cursos que realizou, e foram todos brilhantes, a sua atividade no magistrio, graduada pelos cargos sucessivos que exerceu, da escola primria s instituies de ensino superior, com escala pelas de nvel mdio, foi uma carreira profissional que no conheceu saltos nem desvios e acidentes. Uma continuidade sem ruptura. Uma ascenso sem desfalecimentos. A solidez, a coerncia e a unidade marcam essa vida, bela e fecunda, em que, ao mesmo tempo que subia pacientemente para postos mais altos, foi ascendendo laboriosamente para a clareza e preciso. A sua atividade de mestre e orientador, no a exerceu, porm, apenas nos cursos que professou,

  • e para os quais se habilitara o professor diplomado, em 1909, pela Escola Normal da Praa da Repblica ou o mdico formado, em 1921, pela Faculdade de Medicina de S. Paulo, onde, no ano seguinte, defendia tese de doutoramento, com a nota de "grande distino". Em Conselhos de que fz parte, como o Conselho Nacional de Educao e o Conselho Estadual do Ensino Superior; em comisses, como a do Estudo das Diretrizes e Bases da Educao, instituda em 1947 pelo Ministro Clemente Marini; em, conferncias e congressos, de mbito nacional, ou Seminrios Internacionais, como o de Petrpolis, em 1949, e o de Montevideu, em 1950, a sua presena e atuao tem sido a de um mestre, de "saber de experincias feito", a cuja palavra e a cujos pareceres ficam atentos os ouvidos de todos os participantes, de pequenos grupos ou de grandes assembleias. No me lembra ter visto uma vez sequer levantar-se Almeida Jnior para proferir conferncia, entrar em debate ou emitir parecer que no se voltasse para le a ateno geral, como para ouvir a palavra meditada, lcida e precisa, com que se esclarecesse um problema ou se cortasse uma discusso. Mas esse interesse vigilante que desperta e sabe manter at o fim de suas palestras e intervenes, no provm de se transfigurar, quando fala, nem de qualquer atitude oratria, armada ao efeito, mas somente de sua probidade intelectual, da lucidez de seu pensamento, do rigor de suas anlises, da transparncia meridiana de sua palavra. Sensvel s reaes do auditrio, acrescenta a todos esses dons com que lhe conquista e sustenta a ateno, o de temperar, aqui e ali, a matria, despertando a hilariedade com finas ironias e anotaes pitorescas, to de seu gosto.

    Em todas as campanhas que se tm empreendido, para a reconstruo educacional do pas, nas iniciativas a que abriram oportunidade; nas comisses de estudos e planejamentos, , por isso, instantemente solicitada sua inestimvel colaborao. Nunca lhe bateram porta para lhe tomar conselhos ou o convocar para uma luta ou um trabalho em comum, que no acudisse prontamente, ainda que com sacrifcio. Em 1926 colabora na fundao do Liceu Rio Branco, de que foi professor e diretor at 1934, e, mais tarde, na da Escola Paulista de Medicina, em que rege at hoje a ctedra de Medicina Legal. Em 1933, d-me a honrar de cooperar com o Diretor Geral da Instruo Pblica de S. Paulo na elaborao do Cdigo de Educao do Estado. Resolve Armando Sales, no fim desse ano, fundar a Universidade de S. Paulo. mais uma vez chamado Almeida Jnior, agora, para integrar a Comisso incumbida de proceder ao exame e redao final do projeto do decreto-lei que a criou em 25 de Janeiro de 1934. Membro do primeiro Conselho Universitrio, faz parte igualmente da Comisso que elabora os Estatutos dessa Universidade. E de quantas outras comisses?

  • De todas, entre as mais importantes, que se foram instituindo para o estudo de problemas de educao e planejamentos de reformas. Da que, em 1935, realizou, sob a presidncia do Ministro Gustavo Capanema, "os estudos preliminares para o Plano Nacional de Educao", previsto na Constituio Federal de 1934; da de Estudo das Diretrizes e Bases da Educao, constituda, em 1947, pelo Ministro Clemente Marini, que lhe confiou depois o encargo de relator geral e recebeu de suas mos, em abril de 1948, o relatrio dos trabalhos e de suas concluses, traduzidas e formuladas no Anteprojeto de Lei de Diretrizes e Bases, enviado ento Cmara de Deputados; da Comisso Tcnica de Assistncia do Ministrio da Educao, criada em 1953 pelo Ministro Antnio Balbino, e, finalmente, da que foi organizada, em 1957, pelo Ministro Clvis Salgado para atuali-zar o Projeto de Diretrizes e Bases.

    Mas no pararam a as mltiplas e infatigveis atividades de Almeida Jnior, direta ou indiretamente, ligadas educao, que uma das especialidades a que se dedicou. Houvesse Conselheiros de Estado na Repblica, como havia no Imprio, e o insigne professor seria certamente um deles. No apenas como um ttulo honorfico, que no gostaria de ostentar, mas como encargo de funes especficas, to elevadas quanto penosas. Conselheiro para os negcios da educao, junto ao Governo Federal e ao do Estado de S. Paulo, membro do Conselho Universitrio, conforme j lembrei, na fase inicial da organizao da Universidade, fundada por Armando Sales; do Conselho Nacional de Educao, para o qual foi nomeado em 1949, e a que prestou notveis servios, durante mais de um decnio, ainda faz parte do Conselho Consultivo da Escola de Sociologia e Poltica, do Conselho Penitencirio, desde 1944, e, a partir de 1956, do Conselho Estadual de Ensino Superior, de S. Paulo. Em todos esses Conselhos deixa Almeida Jnior vincos profundos de seu saber e de sua experincia; e, se por vezes surdos se tornaram aos seus pareceres, avisos e apelos, nem por isso esmoreceu, em qualquer momento, na defesa de seus pontos-de-vista e dos mais altos interesses da educao nacional. Nesse ilustre conselheiro para a educao, andam ao par, associadai em alto grau, dignidade e cultura, lucidez de pensamento e cora-gem nas afirmaes. Vivendo na intimidade com o "demnio do conhecimento", no s nunca perdeu o contato mas est sempre s voltas com o "demnio do bem", sob cuja inspirao, to fecunda como a daquele, se desenvolveu, numa permanente vigilncia sobre si mesmo, toda a sua vida profissional. Da a influncia que exerce, e o prestgio que alcanou, com suas intervenes em debates e com seus pareceres, claros, precisos e, por imparciais, frequentemente severos. Entre os professores que mais tm lutado para salvaguardar, nos Conselhos e fora

  • deles, a tradio universitria de independncia e liberdade, nenhum a ter resguardado com maior firmeza e equilbrio, com esse rigor tranquilo e frio, to isento de concesses ao gosto do dia quanto livre de preocupaes polmicas.

    Em Almeida Jnior no h, porm, esse dualismo artificial, to frequente nos meios intelectuais, entre pensamento e ao. le reconhece que teoria e prtica no constituem (as palavras so de Alfonso Reyes) "dois orbes desconexos, mas que ambos aspectos lgicos formam um contnuo biolgico; que o fazer e pensar se complementam, se inspiram e mutuamente se enriquecem". A administrao , para ns, o ponto de interseo entre esses dois planos, e eles se cruzaram frequentemente na vida pblica do ilustre educador que, se nunca demonstrou impacincias para inserir o ideal na realidade, sempre foi encontrado pronto para entrar em ao. As anlises tericas e empricas, a que se dedica nas horas de recolhimento, fornecem-lhe as diretrizes para planejar e agir, e nas experincias que se apoia, atento s suas duras lies, para retificar em uns pontos e completar, em outros, suas ideias e doutrinas. Como se pode observar, quando em plena atividade, nos postos de comando a que ascendeu, suas maneiras e seus estilos de administrador refletem fielmente o prprio estilo de pensamento. Nada de obscuridades e hesitaes. Nada tambm de obstinao e rigidez nos speros contatos com a realidade. Solidez de julgamentos, confiana tranquila, capacidade de adaptao a condies novas, flexibilidade, esprito prtico e positivo, eis o que caracteriza a ao pblica de Almeida Jnior, quando lhe pem nas mos o basto da liderana e as responsabilidades de direo. Parece no ter pressa em tomar iniciativas e resolues, mas, se examinarmos atentamente as que tomou, temos de reconhecer que no lhe faltaram, no momento de decidir, nem o senso da oportunidade nem o cuidado da exatido nem a clara viso dos problemas e de suas solues. "Os moinhos de Deus (reza um provrbio alemo) moem de vagar, mas moem extremamente fino." Almeida Jnior como uma dessas moendas: o que delas tem sado o trigo sem mistura, finamente triturado. Pois, quando trabalha, marcha firmemente para seus objetivos, sem precipitaes, com bom humor, com malcia mas sem malevoln-cia e, sobretudo, com extraordinria eficcia. Nada, por isso, do que fz ou iniciou, se perdeu.

    Na administrao, pblica ou particular, no exerceu cargo, ainda que por pouco tempo, sem que tivesse deixado a marca de sua passagem, assinalada por importantes iniciativas e realizaes. Auxiliar da Diretoria do Ensino, organizou e dirigiu, em 1920, o recenseamento escolar que ento se empreendeu, como base para a reforma promovida por Sampaio Dria, e na qual colaborou. Era ainda, em 1933, diretor do Liceu Rio

  • Branco (1926-1934), quando, nomeado Chefe do Servio de Higiene Escolar e no desempenho dessas novas funes, cooperou com o ento Diretor Geral da Instruo Pblica, na elaborao do Cdigo de Educao. Mas o perodo mais fecundo de suas atividades administrativas estende-se de 1935 a 1938, em que serviu como Diretor do Departamento de Educao, nos governos Armando Sales e Cardoso de Melo Neto. Nessa poca projetou e em grande parte realizou um amplo programa de construes escolares, organizou e fz publicar o Anurio do Ensino (1936) que um repositrio de informaes precisas e de documentos tcnicos, referentes no s sua como tambm a trs administraes anteriores. Entre alternativas de avanos e recuos, de sucessos e reveses de uma situao poltica instvel; apesar das dificuldades que lhe criavam o cepticismo de uns e a resistncia de outros, e fora de tenacidade tranquila e de f inabalvel, reps de p a mquina burocrtica que pouco a pouco levou os benefcios do ensino e o reconforto da educao a milhares de crianas at ento sem escolas. Todas essas e outras iniciativas le as tomou e, quando obrigado a referir-se a elas, as descreveu, sem alarde e sem vaidade, como a coisa mais natural do mundo. Foi com o mesmo esprito que assumiu, em 1942, em conjuntura difcil, a direo do Colgio Visconde de Porto Seguro, antiga Escola Alem, a le confiado por motivo de guerra, e cuja restituio entidade que o fundara, obteve do Governo Federal atravs de obstculos e incompreenses, cessadas as hostilidades. Secretrio da Educao e Sade, na Interventoria Macedo Soares, le nos confirma, em pouco menos de quatro meses (1945-46), a lio a que j nos habituara, de quanto capaz a administrao pblica, quando a firmeza se associa prudncia e entre esses dois mundos, o da probidade e o do talento, em vez de um antagonismo, o que se estabelece uma aliana seno uma ntima interpenetrao.

    No se cuide, porm, que sua averso ao diletantismo e superficialidade, pressa e improvisao, tenha contribudo de qualquer forma, para lhe retardar a ao, quando administrador, ou comprometer-lhe por um ritmo de trabalho, lento demais, a vida intelectual. Se se penetrou da ideia de que "rien ne sert de courir, il faut partir au point", e se acostumou, por isso, a evitar precipitaes, sabe resguardar-se por igual de protelaes e demoras. As medidas, que decorrem de seus planos, so maduramente pensadas, sim, mas logo postas em prtica; os trabalhos de que se encarrega, e oram por uma centena ou mais suas publicaes, sempre prontos e acabados no momento preciso. A sua produo intelectual, numerosa e de alto teor, literrio, cientfico ou tcnico, testemunha o rigor de seus mtodos e sua imensa capacidade de trabalho. Repartida em quatro grupos: educao; biologia; higiene e puericultura; e medi-

  • cina legal, essa vasta bibliografia, em que se encontram, alm de obras de maior tomo, comunicaes, ensaios, discursos e conferncias constitui um conjunto equilibrado de importantes contribuies ao estudo dos problemas que abordou, em pocas diferentes. Entre suas obras principais, a Anatomia e fisiologia humana, que apareceu em 1931 e j atingiu a 21.a edio: a Biologia Educacional, que saiu em 1939 e est na 11.a edio (1957), podem ser apresentadas como modelos de manual. e fontes seguras de informaes. Nos domnios da medicina legal, Paternidade (1940), As provas genticas da filiao (1941) e Lies de Medicina Legal, granjearam-lhe, com os outros 43 trabalhos sobre a matria de que professor na Faculdade de Direito, a reputao de um mestre consumado em que no se sabe que mais admirar se a solidez da cultura, se o rigor de esprito crtico, se a claridade da exposio. Trabalhos preciosos que avultam entre os melhores publicados no pas sobre educao, pelas observaes fundadas numa longa experincia refletida, pela preciso da linguagem, e pela riqueza de sugestes prticas, so a Escola pitoresca (l.a ed., 1934; 2.a ed., 1951), os Proble?nas do ensino superior (1956) e o volume E a escola primria'?, em que reuniu estudos relativos a problemas do ensino primrio.

    A anlise de cada uma dessas obras e do conjunto de seus trabalhos ainda est por fazer e, sendo sobre assuntos to diversos, no poder ser feita seno por entendidos nos principais campos por que se repartem. Mas bastar a leitura de algumas delas para se perceber que Almeida Jnior possui no somente uma cincia e uma informao de uma riqueza pouco comum e, o que ainda menos comum, um sentido crtico, apurado e vigilante, e um alto e claro bom-senso. A sua obra , a um tempo, a de um homem de pensamento e a de um homem de letras e, se se impe pela substncia, nutrida de ideias e reflexes, atrai pela forma que a de um escritor na plena posse de seus recursos intelectuais. Pensamentos amadurecidos, apresentados na sua nudez, severa e altiva, sem imagens e metforas, ou com um ar irnico e motejador de quem aprendeu tambm a apanhar o aspecto ridculo das coisas. Mestre e educador, escreve no para aqueles que "se comprazem em turvar as guas para darem a impresso de que so profundas", na observao de Nietzsche, mas para os que procuram livros em que haja mais luz do que sombras, mas precises do que ambiguidades, mais ideias do que palavras, mais realidades positivas do que fantasias. Clareza, conciso, sentido de harmonia e de propores, e essa simplicidade difcil, porque a simplicidade que se alcana a poder de anlise e de esforo, so outras tantas qualidades desse escritor que ps a sua pena a servio da cincia e da educao. Das duas correntes que se encontram na inte-

  • ligncia francesa, to presente em sua cultura e em sua obra, _ a corrente racionalista que vem de Abelardo, e a corrente pascaliana, que remonta a So Bernardo, abade de Claraval, a primeira delas que exerceu influncia sobre o seu pensamento. E se f na razo, ao esprito crtico, ao gosto pela objetividade, se' acrescentar o sentido da relatividade das coisas, ter-se- uma ideia mais exata (creio eu) do que esse educador-escritor, cuja obra educacional se mantm a meio-caminho entre o apelo inovao e o respeito da tradio, entre o desejo de exprimir as razes do mundo tal como vai e a vontade de melhorar a sociedade, segundo uma concepo ideal de vida e de organizao.

    Ningum, de fato, mais avesso a frmulas esquemticas ou radicais nem mais atento diversidade de condies concretas sem as quais apodrecem na raiz projetos e reformas. Quando se recolhe para pensar ou se dispe a agir, nunca perde o con-tato com as coisas e o sentido do real. Nem o sentimento da complexidade das situaes e dos problemas que delas emergem. Esse contato que constante, esse sentido que se mantm alerta, esse sentimento que a anlise aviva, do relativo e do complexo, que lhe permitem ver sempre "a educao em grande", como queria Michael Sadler, isto , em relao com toda a vida do povo e com os outros problemas da vida". Para le, como para o pensador e educador ingls, da maior importncia a compreenso desse fato de que "muitos dos fatres vivificantes da educao nacional provm no dos programas impostos s escolas mas da tradio social, que, apesar de sua plasticidade, goza de uma grande influncia, e de que a escola, filtrando e esclarecendo essa tradio, da tira seu melhor impulso vital". Discute-se o problema do ensino secundrio? O que esse ensino far pelo esprito e pelo carter (o seu pensamento coincide com o de Sadler), "depender da Universidade, no que concerne aos mestres, e da escola primria pelo que respeita aos alunos. A escola primria fica base do problema". da ideia de descentralizao do ensino que se trata? le no concorda facilmente que se estenda at o municpio. certo que a escola, municipal ou local, escaparia ao domnio da poltica pelo alto; mas por baixo, localmente que ela lhe sofreria as repercusses. A composio das diretorias ou dos conselhos municipais resultaria, entre ns, cada vez mais de uma dosagem eleitoral. Mas, se se repe, como em 1959-60, outro problema, o de diretrizes e bases da educao nacional, bastar ler a sua exposio de motivos, para o projeto que elaborou, suas conferncias e suas "notas", magistrais para O Estado de S. Paio, para se sentir que h o mesmo acento, o da paixo pela verdade, o mesmo cuidado, o da objetividade e exatido, nas suas intervenes no dilogo que ope as duas correntes mais interessadas no debate da questo.

  • Para renovar as ideias mais familiares aos pedagogos, para lhes dar movimento e interesse, le tem em si mesmo, como o grande educador francs, P. Bernard, retratado por Charles Chabot, "um saber vasto e preciso, uma grande autoridade de mestre, um esprito curioso, aberto, hospitaleiro, uma viva simpatia pelas novidades que libertam da rotina, com um senso atilado da medida e da tradio, enfim, um talento que sabe fazer valerem todos os matizes do pensamento". Almeida Jnior um desses tipos de educador, cada vez mais raros, em que se renem a cultura, a lucidez e a aptido para a ao. Com o seu ar retrado e um tanto desajeitado, por demais esquecido de si mesmo, pode no dar logo a impresso exata do que . Mas basta que fale, para se perceber, em toda a sua plenitude, a sua forte personalidade que uma das mais alta-mente civilizadas e confere, por isso mesmo, extraordinria serenidade a uma arte de pensar, dizer e agir, cuja qualidade primordial , sem dvida, o poder de autocrtica e de reflexo. "Das coisas preciosas (seja-me permitido citar, a propsito de Almeida Jnior, as belas palavras de Paul Valry), umas so o produto de um encontro rarssimo de circunstncias favorveis os diamantes, a felicidade e certas emoes muito puras, so dessa espcie. Mas as outras so formadas pela acumulao de uma infinidade de fatos imperceptveis e de contribuies elementares, que absorvem um tempo muito longo e exigem tanto de calma quanto de tempo. As prolas finas, os vinhos profundos e maduros, as pessoas verdadeiramente realizadas, fazem sonhar com uma lenta tesaurizao de causas sucessivas e semelhantes: a durao do crescimento da excelncia delas tem por limite a perfeio". Almeida Jnior, professor e educador, en-quadra-se na segunda espcie de coisas preciosas a que se refere o poeta e ensasta francs: uma dessas "pessoas verdadeiramente realizadas".

    Sua histria individual mistura-se, toda ela, como se viu, histria da educao nacional nestes ltimos quarenta anos, a essa histria coletiva que evoca a da comunidade paulista desde So Paulo antigo, das famlias patriarcais que floresceram nas fazendas de caf, at o So Paulo de hoje, com suas grandes concentraes urbanas e industriais. Nesse largo perodo, de atividades contnuas no terreno da educao, muitas tentaes deve ter sofrido, e algumas bastante fortes, para se desviar da linha de suas ocupaes dominantes. Desde a vida acadmica, em que participou de campanhas eleitorais atravs da Liga Nacionalista, at a sua atuao poltica no Partido Constitucionalista, na "Resistncia ao Estado Novo" e, a partir de 1945, na Unio Democrtica Nacional, de cuja seo paulista foi presidente em dois binios sucessivos (1951-52; 1952-54). Passando pelas lutas de que resultou a Revoluo de 32, na qual tomou

  • parte saliente, Almeida Jnior sofreu a atrao da vida poltica, e muitas vezes lhe cedeu s sedues, dominado pelo sentimento do bem pblico, a que sempre procurou servir dentro de suas convices polticas. Mas por maiores que tenham sido esses apelos, em nenhum momento foram bastantes para o obsorverem nem o afastarem de suas atividades no plano do magistrio e da educao. Todos esses fatos intercorrentes, altamente significativos, no passam, no entanto, de episdios em sua vida austera de trabalho, a de um lder autntico de educao, mestre, guia e conselheiro. Essa a vida que le construiu pacientemente, e lembra, sob vrios aspectos, a histria do homem retratado no romance pedaggico Wilhelm Meister, de Goethe, "cuja erigem, educao, fortuna e carter o destinavam (nas palavras de Hermann Hesse, em Dank an Goethe) a ser um cidado satisfeito, ajustado sua civilizao equilibrada, mas que, impelido por uma nsia divina, devia partir, seguindo estrelas, boas ou ms, para realizar a aspirao de uma vida mais alta, de mais pura espiritualidade, de mais profunda e amadurecida conscincia humana". Do personagem de Goethe o que lhe faltava para ser um "satisfeito cidado", ter sido a fortuna, mas tinha a paz e segurana quando partiu de sua terra natal, para iniciar a ascenso a uma vida mais til e fecunda, a de mestre e educador de educadores. "Gosto de ver um homem orgulhar-se do lugar em que nasceu, dizia Abraham Lincoln, mas gosto tambm de ver um homem viver de tal modo que permita ao lugar orgulhar-se dele". o caso de Almeida Jnior. Mas no apenas o pequeno lugar em que nasceu, que dele se orgulha. o Estado de So Paulo. o Brasil.

  • LIBERDADE DE ENSINO

    ROQUE SPENCER MACIEL DE BARROS

    Na ingrata tarefa de justificar o projeto de Diretrizes e Bases da Educao Nacional aprovado pelo Congresso, teimam os seus defensores em insistir que le institui no Pas a "liberdade de ensino" e que seria, nesse sentido, uma espcie de carta magna do liberalismo, em matria pedaggica. Teriam razo os que assim pensam? A resposta s poderia ser dada depois de uma anlise do prprio conceito de liberdade de ensino, que est longe de ser unvoco, podendo ser tomado em diferentes acepes. O projeto tomou uma delas (a que identifica "liberdade de ensino" com a faculdade a todos concedida de abrir escolas, praticamente sem ingerncia do Estado) como se fosse a nica ou, pelo menos, como se fosse a que correspondesse mais adequa-damente essncia mesma do ideal pedaggico liberal que se invoca o que, como iremos ver, no exato.

    A concepo da liberdade de ensino, compreendida como faculdade indiscriminada de abrir escolas e exigindo, ao menos como ideal remoto, o abandono, pelo Estado, de sua funo educadora, est intimamente ligada com as doutrinas da livre concorrncia, ou seja, com os princpios do liberalismo econmico. Acreditava-se, desde os tempos da revoluo francesa e possvel perceb-lo nos discursos sobre educao de Mirabeau, ou nos diferentes planos pedaggicos dos jacobinos que o ideal em matria de ensino, ainda que no imediatamente realizvel, era deixar as escolas entregues iniciativa particular, unicamente submetidas lei de oferta e procura, sem a menor ingerncia do Estado. No s, entretanto, o ideal econmico da livre-concorrncia, que explica tal interpretao da liberdade de ensino: a seu lado, e com le formando um todo sistemtico, ergue-se uma concepo negativa do Estado, a justificar-lhe a expulso do domnio pedaggico. Compreende-se perfeitamente essa noo de um "Estado-gendarme", encarregado exclusivamente de garantir a vigncia das leis, da qual decorre o princpio de no-interveno estatal nos negcios dos cidados: os homens que esposavam tais ideias vinham de uma luta contra o Estado absoluto que, como o Leviatan de Hobbes, punha e dis-punha de seus membros, considerando-os simples sditos, ao invs de cidados. Mas, no momento em que se formula essa

  • concepo da liberdade de ensino, em termos de livre-concorrn-cia e obsteno estatal, limita-se o seu alcance e restringe-se a sua significao, isto , compreende-se que no possvel submeter aos interesses privados a questo vital da formao de cidados livres: consagrando, no s como direito, mas tambm como necessidade inadivel, a instruo elementar gratuita e obrigatria teses inscritas no fulcro mesmo da filosofia liberal e democrtica no se poderia deixar ao arbtrio de particulares a sua concretizao. Nem se podia contar, no caso preciso da Frana ps-revolucionria, onde a questo se props com toda a clareza, com o trabalho da Igreja Catlica, aliada do trono que a revoluo derrubara. Fazia-se necessrio, pois, que o Estado se encarregasse da instruo pblica, instituindo um sistema de educao nacional. O famoso Informe sobre a instruo pblica, de Condorcet, o projeto de Talleyrand-Prigord etc, destinam-se precisamente a tornar real o cidado livre sonhado pela revoluo. certo que, em nome da mesma necessidade, se formulam planos pouco libei-ais, como o de Gilbert Romme, mas igualmente certo que essa necessidade reconcilia o liberalismo com a interveno estatal em matria pedaggica. Mas no s: em breve o pensamento liberal acabou por compreender que o problema da educao no podia ser tratado segundo os princpios da doutrina econmica da livre-concorrn-cia. Em fins da primeira metade do sculo XIX, j Stuart Mill escrevia que "qualquer governo bem intencionado e mais ou menos civilizado pode crer, sem que isso implique presuno, que possui ou deve possuir um grau de cultura superior mdia da comunidade que governa e que, por conseguinte, deve ser capaz de oferecer s gentes uma educao e instruo melhores do que a maioria dessas espontaneamente pediria. De outra parte, pode-se admitir que a educao uma daquelas coisas que, em princpio, um governo deva prover para o povo. Este um daqueles casos a que no se estendem por necessidade ou de modo universal as razes do princpio da no-interveno". E aduzia, explicando, a sua tese: "Em questes de educao justificvel a interveno do governo, porque o-caso no daqueles nos quais o interesse e o discernimento do consumidor so garantia suficiente da bondade da mercadoria."1 Assim, se certos liberais continuam a considerar o Estado-educador um "fato enorme",2 como que crendo que o art. II da Declarao dos Direitos do Homem ("a livre comunicao dos pensamentos e das opinies um dos mais preciosos direitos do homem; todo

    1 Princpios de Economia Politica, trad. esp. Fondo de Cultura Econmica, 2 edio, pgs. 815 e 817.

    2 Veja-se, por exemplo, Laboulaye, Le Parti Liberal, 8me dition, pg. 75.

  • cidado pode ento falar, escrever, imprimir livremente, respondendo pelos abusos dessa liberdade nos casos determinados pela lei") envolvesse tambm a liberdade indiscriminada de criar escolas, sem ingerncia estatal, o liberalismo convence-se cada vez mais da imprescindibilidade dessa ingerncia. Como dizia o nosso Tavares Bastos, "esqueam-se as prevenes que o despotismo aliado aos jesutas criara contra as tendncias do ensino oficial. Depois que a democracia se apoderou do governo dos Estados, o ensino oficial revelou toda a sua eficcia. Afugentado o absolutismo que o envenenava, le cessou de oferecer perigos liberdade".3

    Em resumo: a liberdade de ensino, em termos liberais, foi concebida como liberdade de iniciativa particular para criar escolas, acompanhada da progressiva absteno do Estado, em vista de uma situao histrica determinada e da aplicao de uma doutrina econmica ao campo da pedagogia. Desde que essa situao histrica se modificou, com a democratizao do Estado ( claro que nos referimos apenas ao Estado Democrtico) e desde que se compreendeu a extenso indevida de um princpio econmico educao, tal acepo do conceito de liberdade de ensino passou a ser secundria; sem negar a liberdade da iniciativa particular em assuntos pedaggicos, o liberalismo, ao mesmo tempo que passa a aconselhar a sua rigorosa fiscalizao pelo Estado, a fim de que a liberdade de alguns no pre-judique a liberdade dos demais, compreende agora que no essa a essncia da liberdade de ensino. Agora dizemos mal, j muitos liberais tinham-na h muito claramente percebido. Assim que Condorcet, no seu Informe sobre a instruo pblica, dizia que "um poder que impedisse de ensinar uma opinio contrria que serviu de fundamento s leis estabelecidas, atacaria dire-tamente a liberdade de pensar e estaria em contradio com o fim de toda instituio social o aperfeioamento das leis, consequncia necessria do combate das opinies e do progresso das luzes".4 Em nossa linguagem, diramos que "liberdade de ensino" essencialmente "liberdade de ctedra". Na Alemanha do sculo passado havia plena liberdade de ensino, na medida que havia liberdade de ctedra e no existia sequer uma uni-versidade privada; toda instruo superior era dada nas universidades autnomas do Estado. Poder-se-, em contraposio, dizer que h "liberdade de ensino" na Espanha de Franco ou no Portugal de Salazar, onde, embora a iniciativa privada possa criar escolas, no existe, no seu pleno significado, a liberdade de ctedra? O que caracteriza a liberdade de ensino no ,

    3 A Provinda, 1 edio, 1870, pg. 236. 4 Cf. Condorcet, Escritos Pedaggicos, trad. esp. "Calpe", Madrid, 1922, pgs.

    190/1.

  • portanto, o simples direito de abrir escolas a existncia, em toda e qualquer escola, da liberdade de ctedra, da liberdade de opinio e pensamento, fundada, em ltima anlise, no ideal de Uberdade de conscincia.

    Tocamos, aqui, nos fundamentos mesmos do liberalismo, em funo dos quais poderemos esclarecer melhor o conceito de liberdade de ensino; O liberalismo no a doutrina econmica da livre-concorrncia, com a qual muitos, ainda hoje, teimam em identific-lo; le uma concepo tica autonmica da vida, contraposta heteronomia dos autoritarismos. Como diz admiravelmente Croce, seguindo, alis, a tradio de um Stuart Mill ou de um Hobhouse, o liberalismo "pode perfeitamente admitir diferentes maneiras de regulamentar a propriedade e a produo da riqueza, porm com uma s condio e um s limite, tendente a assegurar o incessante progresso do esprito humano: nenhuma das formas que se escolham dever poder impedir a crtica do existente, a busca e a inveno de melhoras, a realizao dessas melhoras; nenhuma pretender fabricar o homem perfeito ou o autmato perfeito; nenhuma anular no homem a facul-dade de errar e de pecar, sem a qual no possvel fazer o bem, o bem que cada um sente e se considera capaz de fazer".5 No fulcro do liberalismo no se encontra, por conseguinte, a doutrina da livre-concorrncia ou a concepo de um Estado absen-testa, mas a ideia tica mais profunda da liberdade de conscincia. A organizao econmica da sociedade ou a estruturao poltica do Estado no so, em termos de uma autntica filosofia liberal, ideais em si mesmos, mas meios, cuja justia ou injustia ho de ser julgadas em funo de sua "bondade" ou "maldade", de sua eficcia ou ineficcia para a plena realizao da liberdade de conscincia. Pois bem, esse princpio da liberdade de conscincia h de ser vlido para todas as conscincias, o que implica, necessariamente, a igualdade jurdica de todas elas, umas limitadas pelas outras, segundo uma lei universalmente vlida. Como diz Kant, nos Princpios Metafsicos do Direito, o fundamento de todo o direito no seno "a liberdade (independncia do arbtrio de outro) na medida que pode subsistir com a liberdade de todos, segundo uma lei uni-

    5 Croce, Elementos de Poltica. Cf., na mesma linha, as observaes de Stuart Mill nos Princpios de Economia Poltica, cit., pg. 200: "Sabemos ainda pouco sobre o que o sistema individual, levado a sua maior perfeio, ou o socialismo, na melhor de suas formas, podem realizar, para poder decidir qual dos dois ser a forma final da sociedade humana. Se nos permitem aventurar uma opinio, a deciso final depender provavelmente e de maneira principal da seguinte considerao: qual dos dois sistemas compatvel com a maior soma de liberdade e de espontaneidade humanas?"

  • versar. Nestes termos, a tarefa do Estado devera ser a progressiva efetivao de uma ordem (no cabe aqui discutir qual seja essa ordem) que permita a plena realizao da liberdade de todos os indivduos enquanto fins em si mesmos, isto , enquanto pessoas ticas.6 Ora, a primeira condio para que o indivduo passe da "animalidade humanidade" (a expresso de Kant), converta-se num fim em si mesmo e participe do reino do direito precisamente a educao. Se compete ao Estado (democrtico), expresso comum de todas as conscincias, a tarefa de instituir a ordem que permite a realizao da liberdade de todos, e se a educao um aspecto fundamental da possibilidade dessa ordem, claro que ela eminentemente uma funo pblica, uma tarefa do Estado. Sem desprezar os esforos privados, naturalmente supletivos, o Estado dever ento garantir a educao de todos, uma educao naturalmente democrtica, inspirada na liberdade, j que o que pretende precisamente a efetivao do princpio da liberdade de conscincia.

    neste quadro doutrinrio que se poder chegar ao exato conceito liberal de liberdade de ensino: esta implica, em primeiro lugar, a liberdade de pensamento, isto , a liberdade de ctedra, para o que ensina, a independncia da opinio, para o que aprende, em todos os assuntos sujeitos a controvrsias. Mas, exatamente para garantir a liberdade do que aprende, isto , a liberdade do aluno, ser preciso exigir do que ensina, do professor, condies rigorosas de habilitao para o exerccio de sua prpria liberdade: exatamente para defender os direitos do aluno, o Estado haver no s de organizar um amplo sistema de ensino para atender educao de todos, mas ter tambm o dever de fiscalizar com rigor a educao dada pelos particulares, muitas vezes mais interessados, quando no no lucro, na imposio de crenas intocveis ao educando, num flagrante desrespeito da sua autonomia, do que na formao deste para o gozo de sua liberdade, que o fundamento de sua conduta tica.

    Este o conceito verdadeiramente liberal de "liberdade de ensino". Cabe-nos perguntar, agora, se o projeto de diretrizes e bases o realiza, atendendo, alis, s exigncias liberais de nossa Constituio. Dedicando um ttulo liberdade de ensino, o que estatui a o projeto? Vejamo-lo. Diz o art. 4. que " assegurado a todos na forma da lei o direito de transmitir seus conhecimentos, no podendo o Estado favorecer o monoplio do ensi-

    6 Para alguns neokantianos, a ordem poltica capaz de assegurar essa realizao tico-jurdica de todas as conscincias o socialismo. Nem por isso suas doutrinas so menos liberais, se entendermos o liberalismo no seu sentido legtimo, como filosofia^ como concepo tica da vida.

  • no". Completa-o o art. 5., cuja redao a seguinte: "So assegurados aos estabelecimentos de ensino pblicos e particulares legalmente autorizados adequada representao nos conselhos estaduais de educao, e o reconhecimento, para todos os fins, dos estudos neles realizados." No h uma palavra sequer sobre a liberdade de ctedra, garantida pelo inciso VII do art. 168 da Constituio. Essa omisso, aliada s disposies dos artigos 4. e 5., revela claramente qual a concepo de liberdade de ensino esposada pelos autores do projeto: trata-se apenas da liberdade de abrir escolas, com o mnimo de ingerncia do Estado, como se pode depreender ainda nos artigos 16, 19, 39 etc. No h no projeto sequer um dispositivo que resguarde para o Estado o direito de cassar a licena de escolas inidneas... E h mais: pelo art. 5., combinado com o 8., o particular, alm da liberdade de abrir escolas de qualquer tipo, tem ainda o direito de participar, em p de igualdade com o Estado, da administrao da educao do pas... Mas no nosso propsito discutir agora esse direito ou a inslita pretenso de diviso dos recursos pblicos entre a escola oficial e a particular limi-tamo-nos questo da liberdade de ensino. Pois bem, quanto a esta, j vimos que o seu significado essencial, para o libera-lismo, de liberdade de pensamento na escola, para o professor e para o aluno, sendo a liberdade de abrir escolas, sem ingerncia do Estado, uma acepo acidental, explicvel pelas contingncias histricas, do conceito de liberdade de ensino.7 Consagrando esta acepo acidental, em prejuzo da essencial, o projeto no ento, de forma alguma, a pretendida carta magna do liberalismo em matria pedaggica; antes, ao contrrio, um verdadeiro epitfio inglrio da autntica liberdade de ensino.

    Mas, perguntar o leitor, se no se trata da concepo liberal de liberdade de ensino, de que concepo ento se trata? Qual a "filosofia" orientadora do projeto?

    7 No queremos, com isso, dizer que no faa parte do conceito liberal de liberdade de ensino a possibilidade de particulares abrirem escolas, naturalmente fiscalizadas pelo Estado, que poder cassar-lhes a licena caso se abastardem: o que afirmamos que essa no a nota essencial do conceito cie liberdade de ensino. Nas emendas ao projeto de diretrizes e bases, que enviou ao Senado da Repblica, a Comisso Estadual de Defesa da Escola Pblica restabeleceu o sentido do conceito, propondo a supresso do art. 5' e a substituio do 4' pelo seguinte: " assegurado a todos na forma da lei o direito de transmitir seus conhecimentos, devendo o Estado, entretanto, zelar pelo nvel do ensino. Pargrafo nico. assegurada a liberdade de ctedra a todo professor no exerccio do magistrio." Basta comparar a redao do projeto original e esta emenda proposta para ver qual delas traduz o ideal liberal da liberdade de ensino.

  • II

    O atual projeto de diretrizes e bases da educao nacional, aprovado pela Cmara dos Deputados, no traduz, de forma alguma, os ideais da "liberdade de ensino", da forma que os concebe a filosofia liberal. preciso lembrar, todavia, que h concepes no liberais dessa liberdade e nosso propsito, no momento, discutir essas concepes, para ver qual delas est consubstanciada no projeto. Alm da concepo liberal da liberdade de ensino, h pelo menos duas outras, claramente formuladas desde o sculo passado: a positivista e a catlica. De acordo com a primeira, o Estado deve renunciar a todo sistema completo de educao geral, permitindo que os representantes de todas as doutrinas, sem qualquer auxlio oficial, organizem livremente as suas escolas, at que triunfe, sem nenhuma coao da parte do poder e apenas em virtude de sua verdade intrnseca, uma filosofia definitiva, que seria precisamente o positivismo. "A liberdade de ensino esclarecia nesse sentido Comte que s o positivismo pode invocar com plena sinceridade, tornou-se indispensvel na nossa situao, seja como medida transitria, seja mesmo como anncio do futuro normal. Sob o primeiro aspecto ela constitui uma condio do advento de toda doutrina prpria a determinar, em consequncia de uma verdadeira dis-cusso, convices fixas e comuns que todo sistema legal de instruo pblica, longe de poder produzir, na realidade suporia. Apreciada sob a segunda relao, a liberdade de ensino esboa j o verdadeiro estado final, proclamando a incompetncia radical de toda autoridade temporal para organizar a educao. O positivismo est ento longe de negar que o ensino deva ser regulado, embora estabelea que esta organizao no ainda possvel, enquanto durar o interregno espiritual, e que, quando ela tornar-se realizvel, segundo o livre ascendente de uma doutrina universal, pertencer exclusivamente ao novo poder intelectual e moral", isto , ao sacerdcio positivista.8 No foi, sem dvida, essa concepo da liberdade de ensino, apresentada como necessria para o perodo da "transio orgnica", que inspirou os nossos legisladores: alm do positivismo, apesar de sua influncia decisiva na evoluo das ideias pedaggicas, no Brasil, ter hoje apenas interesse histrico, fazia parte integrante de seu conceito da liberdade de ensino a ausncia de qualquer auxlio oficial, financeiro ou sob qualquer outra forma, s escolas livres fundadas pelos particulares...

    Em tais condies, resta apenas uma acepo do conceito de liberdade de ensino como possvel inspiradora do projeto aprovado pela Cmara dos Deputados: a catlica. Procuremos, pois, precisar qual o conceito catlico de liberdade de ensino.

    8 Cf. Systme de Politique Positive, tomo I, pg. 122.

  • J vimos que, para o liberalismo, a tese da liberdade de ensino uma consequncia lgica da postulao da liberdade de conscincia e a partir dos seus fundamentos mesmos a concepo catlica se ope a esta. Para o catolicismo, a liberdade de conscincia se confunde com a "liberdade do erro", enten-dendo-se por erro tudo o que est em desacordo com a doutrina da Igreja, e no pode ser assim admitida como um direito legtimo. Ela no seno um "erro pestilento", como queria Gregrio XVI,9 e no decorre, de forma alguma, da liberdade do homem, tal como a concebe a Igreja. J Santo Anselmo, por exemplo, assinalava que "poder de pecar no pertence definio do livre-arbtrio" (De Libertate Arbitrii, cap. I) e que , seno pecado, essa liberdade de conscincia que pe o catolicismo no nvel das outras religies ou das outras filosofias? A "verdadeira liberdade", para o catlico, deve ser entendida de outra forma: "A liberdade afirma-o Leo XIII como perfeio do homem, deve ter como objeto o verdadeiro e o bom; porm a razo do verdadeiro e do bom no pode mudar ao capricho do homem, mas se conserva sempre a mesma, com aquela imutabilidade que prpria da natureza das coisas" (In-cclica Imortale Dei, 38). E, acrescente-se, cabe Igreja definir qual seja essa verdade imutvel, dirimindo as dvidas e as controvrsias entre os homens. Em outros termos, poder-se-ia dizer que a "verdadeira liberdade" do homem a submisso de sua conscincia aos ditames da Igreja catlica; tudo o mais erro e pecado e no se pode admitir a "liberdade de errar e de pecar". A liberdade confunde-se, assim, com a obedincia que deveria produzir a unanimidade das crenas, sob a gide da Igreja. O nosso padre Jlio Maria, quando era, ainda, apenas, o laico Jlio Csar de Morais Carneiro, resumia com felicidade essas ideias nas suas Apstrofes, publicadas pela primeira vez em 1885: "Muita gente filosofa, muita gente doutrina, dirige a sociedade. Pensais que isso um bem, uma vantagem, uma prova de progresso e de civilizao? No o acrediteis. um mal, uma desvantagem, um sintoma infalvel de que a humanidade est enferma, e sem achar uma medicina que a salve.

    A unidade da verdade no comporta a multiplicidade das solues que os homens lhe querem dar".10

    O que pode significar, nos quadros desse pensamento, "liberdade de ensino"? Ningum melhor do que o papa Leo XIII esclareceu essa questo: "No pode realmente escreveu le na encclica Libertas, de 20 de junho de 1888, 32 haver dvidas de que s a verdade deve ocupar o entendimento, porque nela est o bem das naturezas inteligentes, seu fim e

    9 Cf. a encclica Mirari Vos, 10. 10 Apstrofes, 2 edio, 1897, pg. 155.

  • sua perfeio; de modo que o ensino no pode ser seno de verdades, tanto para os que ignoram como para os que j sabem, isto , para dirigir uns ao conhecimento da verdade e conservar os outros nela. Por este motivo, sem dvida, dever prprio dos que ensinam livrar do erro os entendimentos e fechar, com seguros obstculos, o caminho que conduz a opinies enganosas. Por onde se v quanto repugna razo esta liberdade de que tratamos (a de ensino) e como nasceu para perverter radicalmente os entendimentos ao pretender ser-lhe lcito ensinar tudo segundo o seu capricho; licena que a autoridade do Estado no pode conceder nunca ao pblico sem infrao de seus deveres." E mais adiante, completando o seu pensamento: "em matria de f e de costumes, Deus fz da Igreja partcipe do magistrio divino e, por benefcio igualmente divino, livre do erro; em virtude do que a mais alta e segura mestra dos mortais e nela reside o direito inviolvel liberdade de ensinar. E, de fato, vivendo a Igreja da doutrina mesma recebida de Deus, nada anteps ao exato cumprimento do encargo que Deus lhe confiou e, mais forte ainda que as dificuldades que por todas as partes a rodeiam, jamais cessou de combater pela defesa da liberdade de seu magistrio" ( 34). Dito de outro modo, liberdade de ensino, para os catlicos, no quer dizer, de forma alguma, "liberdade de ensinar o erro" (e por erro entende-se toda opinio ou doutrina contrria s da Igreja) mas somente "liberdade para a Igreja" de ensinar a "sua verdade". Rigorosamente falando, essa "liberdade da Igreja" excluiria a de todos os demais, j que ela se considera a nica depositria da verdade e no admite o ensino do erro, que , no seu entender, a nica coisa que os no-catlicos poderiam ensinar. Essa concluso, no tiram, em geral, explicitamente, as autoridades catlicas, porm ela est implcita na doutrina, espera apenas da oportunidade favorvel. n Enquanto isso, insiste-se na exten-

    11 Certos documentos pontifcios, contudo, deixam bem clara essa doutrina. Veja-se, por exemplo, a proposio 47 do Syllabus, de Pio IX, em que anatematizada a seguinte tese: "A mais perfeita constituio da sociedade civil exige que as escolas populares, isto , as escolas abertas para todas as crianas de qualquer classe do povo, e em geral os institutos pblicos destinados ao ensino das letras e das mais graves disciplinas, assim como a educao da juventude, se eximam de toda autoridade, fora moderadora e ingerncia da Igreja e submetem-se apenas ao pleno arbtrio da auto-ridade civil e poltica, segundo a vontade dos governantes, e a normas das opinies comuns do sculo." Se tal proposio falsa, a verdadeira ser a sua contraditria, de acordo com a qual a Igreja deve ter autoridade sobre todas as escolas. Nestes termos, a exigncia formulada na encclica Divini Illius Magistri, de acordo com a qual " necessrio que todo o ensino e toda a organizao da escola mestres, programas e livros, em cada disci-

  • so universal da misso educativa da Igreja. Como diz o principal documento pedaggico catlico, a encclica de Pio XI, Divini lllius Magistri, de 31 de dezembro de 1929, "quanto extenso da misso educativa da Igreja, estende-se a todos os povos, sem qualquer limite, de acordo com o mandato de Cristo: Ensinai a todas as gentes; e no h poder terreno que possa legitimamente disputar ou impedir o seu direito. Primeiramente, estende-se a todos os fiis, pelos quais, como Me extremosa, tem solcito cuidado"... e . . . "sua misso educativa, estende-se tambm aos no-fiis, porque todos os homens so chamados a entrar no reino de Deus e a conseguir a salvao eterna" ( 14).12 Assim, nos termos dessa "misso educativa universal" que se deve entender a liberdade de ensino reclamada pela Igreja. De acordo com esta, "O Estado deve respeitar os direitos inatos da Igreja e da famlia educao crist, alm de observar a justia distributiva. Portanto, injusto e ilcito todo monoplio educativo ou escolar, que force fsica ou moralmente as famlias a socorrerem-se das escolas do Estado, contra os deveres da conscincia crist ou ainda contra suas legtimas preferncias. 13

    Note-se bem que no se condena todo e qualquer monoplio, mas somente o monoplio do Estado, j que o monoplio da Igreja seria por ela recebido com os braos abertos. J que este no possvel, em virtude das circunstncias do mundo moderno, a Igreja condena aquele, ao mesmo tempo que exige a cooperao financeira do Estado para garantir a sua "liberdade de ensino". o que diz a referida encclica de Pio XI ( 50, ed. bras., 83, pg. 214) : "e no se diga que impossvel para o Estado em uma nao dividida em vrias crenas, prover a instruo pblica seno por intermdio da escola neutra ou da escola mista, devendo mais racionalmente o Estado e podendo, at mais facilmente, prover, deixando livre e favorecendo com justos subsdios a iniciativa e a obra da Igreja e das famlias".

    plina estejam imbudos de esprito cristo sob a direo e vigilncia maternal da Igreja, de sorte que a religio seja verdadeiramente fundamento e o coroamento de toda a instruo, em todos os graus, no s no elementar, mas tambm no mdio e superior" ( 49), no valeria apenas para a escola catlica, mas, a rigor, para toda e qualquer escola.

    12 Pode encontrar-se em portugus essa encclica no livro de Paul Foul-qui, A Igreja e a Educao, trad. brasileira, Rio de Janeiro, Agir, 1957. A indicao dos pargrafos nessa edio diversa, distribuindo-se o texto citado pelos 5 24 e 25, pgs. 162/3. O texto citado na nota anterior corresponde, na edio brasileira, ao 82 e se encontra s pgs. 213/4.

    13 Divini IlliusMagistri, 24, edio brasileira, 48, pgs. 178/9.

  • Podemos, ento, resumindo, dizer que, do ponto-de-vista catlico, a liberdade de ensino, em primeiro lugar, a liberdade exclusiva, para a Igreja, de propagar a "sua verdade", isto , as suas crenas e doutrinas; no sendo possvel, entretanto, o seu monoplio, ela ataca o "monoplio do Estado", concebido no s como monoplio do ensino, mas, tambm, como aplicao exclusiva dos recursos pblicos na escola pblica.

    Pois bem, exatamente esta a orientao dominante do projeto de diretrizes e bases da Cmara dos Deputados, como se pode verificar j nos seus primeiros artigos. Assim que o art. 2. estabelece, no seu pargrafo nico, que " famlia cabe escolher, com prioridade, o gnero de educao que deve dar a seus filhos", de acordo com o que manda o 16 da encclica Divini Illius Magistri. u Logo a seguir, no art. 3., inciso I, divide-se a responsabilidade da educao entre o Estado e a iniciativa particular para, no art. 4., proibir-se o monoplio estatal do ensino, de acordo com o 48 do citado documento pontifcio. O art. 5. do Ttulo III e todo o Ttulo IV tratam, em seguida, de entregar a prpria administrao do ensino iniciativa privada, e, como esta preponderantemente catlica (e s-lo- ainda mais com o aproveitamento privado dos recursos pblicos), prpria Igreja, preparando o caminho para realizar o ideal da escola catlica estabelecido no 49 da Divini Illius Magistri ou na referida proposio 47 do Syllabus. A distrtibuio das blsas-de-estudo (artigos 93, 94 e 111) obedece, por outro lado, s exigncias, j lembradas, do 48 da encclica sobre educao.

    14 "Primeiramente diz-se a a misso educativa da famlia concorda admiravelmente com a misso educativa da Igreja, porque ambas procedem de Deus de maneira muito semelhante. famlia, de fato, na ordem natural, Deus comunica imediatamente a fecundidade, que principio de vida, e por isso princpio de educao para a vida, simultaneamente com a autoridade, que princpio da ordem." E adiante: "A famlia recebe, portanto, imediatamente do Criador a misso e consequentemente o direito de educar a prole, direito inalienvel porque inseparavelmente unido com a obrigao rigorosa, direito anterior a qualquer direito da sociedade civil e do Estado, e por isso inviolvel da parte de todo e qualquer poder terreno" (cf. edio brasileira, 29 e 31, pgs. 165/6). Note-se, contudo, que, antepondo o direito da famlia ao do Estado, a encclica subordina-o ao direito da Igreja; como se diz no 10 (ed. bras. 14, pg. 156) "a educao pertence antes de tudo de modo supereminente Igreja, por dois ttulos de ordem sobrenatural, exclusivamente a ela concedidos pelo prprio Deus e, por isso, absolutamente superiores a qualquer outro ttulo de ordem natural" (o grifo nosso). Isto , sobrepe-se a famlia ao Estado para sobrepor a ela a Igreja: como o Estado moderno libertou-se da tutela direta da Igreja, esta, procura, indiretamente, por intermdio da famlia, novamente submet-lo.

  • E enquanto consagra tais medidas, o projeto emite, deliberadamente, as garantias da liberdade de ctedra (art. 168, inciso VII da Constituio) ou a condenao das discriminaes religiosas, filosficas ou polticas (art. 141, 8. da Constituio)...

    Na medida que os interesses das escolas privadas leigas coincidem com os da Igreja, so elas beneficiadas pelo projeto, mas a doutrina que nele impera a dos textos pontifcios. E chegamos, assim, a este absurdo: em vez de orientar-se pela Constituio que nos rege, o projeto se regula pelos ensinamentos papais! Afinal, cabe perguntar, por acaso a encclica Divini Illius Magistri ou os demais documentos da Igreja tm fora de lei em nosso Pas? Voltamos, por acaso, ao regime da religio de Estado? Devem as nossas leis obedecer s decises do Vaticano? No podemos deixar de fazer tais perguntas, vista das doutrinas esposadas pelo projeto de diretrizes e bases que institui, no a liberdade de ensino decorrente do liberalismo democrtico da Constituio, mas a "liberdade de ensino" conceituada pela Igreja. Cabe ao Senado dar-lhes resposta, dizendo se a nossa Constituio ainda est em vigor ou se passamos a obedecer diretamente s decises romanas, sem guardarmos sequer o direito do beneplcito, que defendia o Imprio dos melefcios da religio de Estado...

    Cremos ter cumprido o nosso propsito de mostrar qual a "filosofia" orientadora do projeto de diretrizes e bases. Acreditamos ainda, contudo, que importante esclarecer melhor o conceito de liberdade de ensino em funo das lutas pedaggicas que se travaram no nosso prprio Pas em torno dessa ideia, desde o Imprio. Este exame ajudar a compreender, pela sua filiao ao passado, as intenes dos combatentes de hoje.

    III

    A liberdade de ensino, que o projeto de diretrizes e bases aprovado pela Cmara dos Deputados invoca sem esclarecer, no uma novidade na histria das ideias pedaggicas em nosso Pas: desde a segunda metade do sculo passado ela uma constante das discusses tericas e das lutas polticas em torno da educao.

    Muito mais do que hoje, o ensino no Imprio era precrio e fraco, no atendendo nem de longe s nossas necessidades em matria de educao. "O que chama a ateno, de incio, ao estudarmos o ensino no Imprio escrevemos uma vez a ausncia de um sistema de educao nacional. Entre o ensino primrio, insuficiente e mau, e o superior, anacrnico e falho, h um hiato que o Colgio de D. Pedro II, os Colgios das Artes, de S. Paulo e Pernambuco, e as poucas aulas de preparatrios

  • espalhadas pelas provncias no poderiam nunca preencher. A proporo dos alfabetizados mnima; o diretor da repartio de estatstica, Manoel Francisco Correia, em 1877, informava: "Da populao livre recenseada, sabem ler e escrever 1.563.078 habitantes; no sabem 6.858.594; dos que, excludos os menores de 5 anos, restariam 5.579.945. analfabetos. Da populao escrava os que sabem ler no passam de 1.403." As escolas primrias chegavam apenas a 4.890 e apenas 170.000 crianas as frequentavam. Almeida Oliveira, no seu trabalho sobre o ensino pblico, acentuava, comentando estes ltimos dados: "Para termos uma escola por 700 habitantes ou 100 escolares, visto que estes representam sempre a stima parte da populao, deviam as escolas primrias subir a 12.324." Em lugar desse nmero, bem modesto, as nossas 4.890 escolas estabeleciam a proporo de uma escola por 1.722,2 habitantes, considerando-se apenas a populao livre (8.421.672 habitantes em 1870) de uma escola por 2.028,9, considerada tambm a populao escrava, calculada esta em 1.500.000 cativos, nmero de resto pouco seguro. penria de escolas acrescente-se o nmero diminuto de alunos: 34,7 em mdia para os estabelecimentos existentes. Depois da escola primria, para o pequeno nmero de indivduos que as frequentava, aprendendo, geralmente mal, leitura, escrita, clculo elementar e alguns rudimentos de outros assuntos, nada, praticamente, se oferecia. Nem estudos secundrios regulares, nem instruo profissional.15 Quanto ao ensino superior, re-duzia-se s duas faculdades de direito, de S. Paulo e Pernambuco, s duas faculdades de medicina, do Rio de Janeiro e da Bahia, e, depois de 1875, Escola Politcnica do Rio de Janeiro e Escola de Minas de Ouro Preto. As provncias, livres de se entregarem, pelas disposies do 2. do art. 10 do Ato Adicional de 1834, organizao do ensino, nos graus primrio e secundrio, pouco contribuam para a melhora da situao.

    nesse quadro desolador, quase o mesmo em 1877 ou dez anos antes, que aparecem as primeiras reivindicaes de liberdade de ensino, entendia, como no atual projeto de diretrizes e bases, como faculdade de abrir escolas, com o mnimo de ingerncia estatal. Assim que o grupo radical, formado aps a queda do gabinete Zacarias, em 1868, reclamava j, neste mesmo ano, por intermdio do jornal a Opinio Liberal, e no ano seguinte, por meio do Correio Nacional, o ensino livre, como um item de seu programa. Em 1868, o deputado mineiro Felcio dos Santos apresentava Cmara o primeiro projeto de liberdade de ensino; em 1869, o liberal alagoano Antnio Lus Dantas de Barros

    15 Cf. Roque Spencer Maciel de Barros. A Ilustrao Brasileira e a Ideia da Universidade, Boletim n' 241 da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de S. Paulo, S. Paulo, 1959, pgs. 200/1.

  • Leite apresentava ao Senado outro projeto de "ensino livre"; em 1870, o Manifesto Republicano criticava a inexistncia dessa liberdade fundamental; em 1873 e 1877, Antnio Cndido da Cunha Leito encaminhava Cmara novos projetos no mesmo sentido.16 A maioria dos liberais de ento acredita que a simples decretao da liberdade de ensino, estimulando a fundao de escolas e faculdades e estabelecendo a concorrncia entre os estabelecimentos fundados, resolveria, por si s, os problemas fundamentais do ensino, quanto qualidade e quanto quantidade. Alguns mais extremados chegam at a sustentar a tese da absteno do Estado no domnio da educao, certos de que a iniciativa particular atenderia a todas as necessidades pedaggicas. E no so s os liberais que assim pensam: a propaganda positivista martela no mesmo tema e os catlicos ortodoxos, depois da questo religiosa, que os fazia temer um Estado disposto a sustentar os direitos da Coroa contra as teses ultramon-tanas do Syllabus e do Conclio do Vaticano, tornam-se entusiastas das mesmas ideias sustentadas pelo catolicismo francs. claro, entretanto, que liberais, positivistas e catlicos no tinham a mesma concepo de liberdade de ensino o que os unia era a ausncia de uma lei em que se precisasse o sentido do conceito. Assim, enquanto para os liberais essa liberdade se estendia s ctedras, para os catlicos era apenas a liberdade da Igreja fundar escolas catlicas e para os positivistas, de acordo com a lio de Comte, a que nos referimos no ltimo artigo, era um elemento fundamental da "transio orgnica" e deveria servir ao livre jogo das opinies, para facilitar a implantao da "doutrina definitiva" e a unificao final de todas as crenas pela "filosofia regeneradora".

    S em 1879, entretanto, realiza-se o primeiro ensaio de liberdade de ensino, consubstanciado no Decreto n. 7.247, de 19 de abril, e no Aviso de 21 de maio do mesmo ano. No nosso propsito examinar aqui essa reforma e suas consequncias; j o fizemos longamente em outro lugar.17 Queremos apenas assinalar que, concebida em termos liberais, chegando mesmo a abolir, pelo seu artigo 25, o juramento de catolicidade obrigatrio para os membros do magistrio, ela no agradou aos catlicos: Joo Jos de Oliveira Junqueira e Cndido Mendes de Almeida, membros influentes do laicato catlico, por exemplo, investiram contra ela, j que no era a liberdade de ensino do decreto a que a Igreja reclamava. Mas (e o tempo se encarregou de demonstr-lo), independentemente de sua orientao doutrinria, essa reforma no resolveria os problemas especficos

    16 Cf. A Ilustrao Brasileira, cit, pgs. 107, 229/30 e 254/65.

    17 A Ilustrao Brasileira, cit., 2 parte, cap. II, especialmente pginas 272/318.

  • do ensino, ainda que tenha tido real importncia do ponto-de-vista poltico. Na mesma poca em que se faz esse primeiro ensaio de liberdade de ensino, alguns liberais, entretanto, reconhecem que no possvel enfrentar a srio o problema da educao sem afirmar a prioridade do Estado, Tavares Bastos j o sustentava em A Provncia, em 1870, e Joaquim Nabuco o proclama durante a prpria discusso do projeto de Lencio de Carvalho pela Cmara dos Deputados, a 15 de maio de 1879. Rui, por sua vez nos pareceres sobre a Reforma do Ensino Primrio, em 1883, fixa com nitidez essa ideia: "Enquanto a preocupao de alguns sistemticos e o exclusivismo de certos teoristas, invocando a cincia da realidade, mas desconhecendo notavelmente o estado real dos espritos e das ideias no seio da civilizao con-tempornea, condenam o desenvolvimento que o nosso primeiro projeto quer imprimir ao ensino oficial, preconizam a supresso dos graus acadmicos, tacham desdenhosamente de cincia oficial a instruo distribuda nos cursos universitrios, encarecem a iniciativa individual como capaz de substituir o poder pblico no seu papel atual de grande propulsor da educao popular e da alta cultura cientfica, reprovam, em suma, o progressivo alargamento da ao protetora e tranquilizadora do Estado nesta esfera, a tendncia universal dos fatos, na mais perfeita anttese com essas pretenses, com o subjetivismo das teorias dessa nova classe de doutrinrios, refora, e amplia, entre os povos mais individualistas, com o assentimento caloroso dos publicistas mais liberais, o crculo das instituies ensinantes alimentadas pelo errio geral; aduz todo dia o concurso de novos argumentos em apoio da colao dos ttulos universitrios sob a garantia do Estado, e reconhece, cada vez com mais fora, a necessidade crescente de uma organizao nacional do ensino, desde a escola at s faculdades, profusamente dotada nos oramentos e adaptada a todos os gneros de cultivo da inteligncia humana." 18

    Em contraposio, portanto, tese segundo a qual, para resolver os problemas do ensino, preciso entreg-lo iniciativa privada, entendendo-se nesse sentido a liberdade de ensino, le-vanta-se, vigorosa, a concepo do Estado-educador, em termos liberais e democrticos.

    A Repblica, nos seus primeiros tempos, iria, contudo, retomar o caminho da liberdade de ensino entendida no sentido pri-vatista. A reforma de Benjamim Constant, em 1891, no s estabelece a liberdade da iniciativa particular, mas equipara os estabelecimentos privados aos pblicos. Abria-se, assim, o caminho para a "desoficializao do ensino", que a reforma de

    18 Obras Completas de Rui Barbosa, vol. X, 1883, Reforma do Ensino Primrio, tomo I, Ministrio da Educao e Sade, Rio de Janeiro, 1947, pginas 85/6.

  • Rivadvia Correia, em 1911, finalmente consagraria.19 No preciso que nos detenhamos aqui nas desastrosas consequncias da reforma Rivadvia, que abriu caminho para toda sorte de irregularidades, a tal ponto que o reformador seguinte, Carlos Maximiliano, embora crendo, como Rivadvia, que era "esplndida e adiantada" a ideia da desoficializao do ensino, reconhecia as suas limitaes e os seus perigos: "Nos pases novos dizia na Exposio de Motivos da reforma de 1915 comea apenas a educao da legalidade; todo poder suspeito; obedecer, um sacrifcio. Perigosa deve ser, portanto, a outorga precipitada de amplas autonomias. Quanto ao ensino, os fatos demonstram que se avanou demais.20 Em outros termos, comeava a surgir a conscincia de que era preciso reexaminar o papel do Estado no domnio pedaggico, o que, entretanto, s iria ser feito seriamente aps a revoluo de 30. Sem negar a liberdade de ensino, antes compreendendo-a de acordo com as exigncias do liberalismo e da democracia os educadores ps-revolucionrios abandonaram a tese da "desoficializao", para defender o princpio da educao como funo pblica. Os "pioneiros da educao nova", representantes tpicos do novo esprito, proclamavam que o Estado tem "o dever de considerar a educao, na variedade de seus graus e manifestaes, como uma funo social e eminentemente pblica, que le chamado a realizar com a cooperao de todas as instituies sociais.21 Dentro do mesmo esprito, o poder pblico, em S. Paulo, enfrentou com indisfarvel seriedade, pela primeira vez, o problema da educao superior, com a criao da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras e da Universidade de S. Paulo.

    Essa aguda conscincia da tarefa educativa do Estado, nascida do malogro das experincias "desoficializadoras" e do contato com os pases estrangeiros, nos quais, mesmo nos mais democrticos, o Estado chamava a si o dever de constituir um autntico sistema de educao nacional, transparece claramente na Constituio de 1934, a primeira a dedicar um captulo inteiro educao e cultura. Reconhecendo a "liberdade de ensino em todos os graus e ramos, observadas as prescries da legislao

    19 "A presente organizao escrevia Rivadvia assinala e tem em vista uma suave e natural passagem da vigente oficializao do ensino para a sua completa desoficializao, corolrio fundamental do princpio da liberdade profissional, consagrado na Constituio da Repblica." Apud Primitivo Moacyr, A Instruo e a Repblica, tomo IV, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1942, pg. 14.

    20 Primitivo Moacyr, ob. cit. pgs. 83/4. 21 Cf. A Reconstruo Educacional no Brasil Ao Povo e ao Governo

    Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova, S. Paulo, Companhia Editora Nacional, 1932, pg. 45.

  • federal e estadual" (art. 150, pargrafo nico, letra c), afirma-va-se, entretanto, sem vacilaes, o papel educador a ser exercido pelo poder pblico (arts. 148 e 149), ao mesmo tempo que eram exigidas garantias srias de idoneidade dos estabelecimentos particulares.

    A marcha saneadora da educao foi, porm, interrompida pela ditadura e curioso lembrar que a carta fascista de 1937 concebeu a funo educadora do Estado como meramente supletiva. Efetivamente, depois de estabelecer a liberdade de ensino (entendida como liberdade de abrir escolas), no seu art. 128, estatui a Carta no art. 129: " infncia e juventude, a que faltarem os recursos necessrios educao em instituies particulares, dever da Nao, dos Estados e dos Municpios assegurar, pela fundao de instituies pblicas de ensino em todos os seus graus, a possibilidade de receber uma educao adequada s suas faculdades, aptides e tendncias vocacionais." Isto , s quando faltarem recursos para a educao privada entrar o Estado em ao, o que caracteriza o seu papel "supletivo", como dizem ainda hoje os que se proclamam defensores da liberdade de ensino. A mesma ditadura que suprimiu a liberdade de ctedra inscrita na Constituio de 1934 (art. 155), que subverteu, praticamente, o princpio da gratuidade do ensino (cf. art. 130 da Carta de 1937), aplaudiu a liberdade de abrir escolas e deixou ao Estado apenas a tarefa de completar a obra da iniciativa privada! Nada mais compreensvel: para todo regime policial a nica liberdade de ensino "perigosa" a liberdade de ctedra e mais vale, nesse caso, que o Estado se limite a policiar as conscincias nas escolas privadas, reservando os seus recursos para ofcios menos nobres do que o educativo...

    Derrubada a ditadura, a Constituio de 1946 voltou linha autenticamente liberal e democrtica, restabelecendo a prioridade do Estado no domnio da educao: "o ensino dos diferentes ramos diz o seu art. 167 ser ministrado pelos poderes pblicos e livre iniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem". Ao mesmo tempo, pelo inciso VII do art. 168, a ctedra readquiriu a sua liberdade, vale dizer, a sua dignidade. O projeto de diretrizes e bases que ento se elaborou, em 1948, atendendo s exigncias da letra d no inciso XV do art. 5. da Constituio, norteou-se por aqueles princpios, exigindo do Estado o cumprimento de seu dever de educar, garantida a legtima liberdade de ensino a de ctedra e deixando livre a iniciativa particular, mas fiscalizando-a seriamente, para impedir abusos e irreguaridades. Como lembrava o ministro Clemente Marini, na Exposio de Motivos que acompanhava o projeto, a Lei de Diretrizes e Bases ter "de descer s mincias sobre as condies de reconhecimento das escolas, sobre o processo de escolha dos seus professores, sobre a organizao dos currculos

  • sobre o regime de aulas e das provas, assegurando, em todas essas matrias, uma vigilncia por parte do Ministrio da Educao, que impossibilite seja a autonomia usada num sentido pernicioso, em vez de s-lo para a mais perfeita realizao dos interesses nacionais em matria de cultura.22

    Toda a nossa experincia histrica parece esquecida pelos legisladores atuais. Na nsia de favorecerem o particular, em detrimento da Nao e do Estado, acabaram por confundir o sentido liberal e democrtico de liberdade de ensino com uma anacrnica contrafao dessa liberdade ou at mesmo com a sua negao, implcita no conceito catlico, e, o que pior, parecem pretender, novamente, encetar uma experincia que j fizemos e resultou completamente nefasta para o ensino.

    Que o Senado medite sobre as marchas e contramarchas da liberdade de ensino no Brasil e se decida pela sua correta interpretao liberal e democrtica, emendando, convenientemente, o projeto aprovado pela Cmara dos Deputados, a fim de que no se comprometa, no sabemos por quantos anos, o j insuficiente sistema nacional de educao e para que se possa, o mais brevemente possvel, p-lo altura das necessidades de um pas democrtico e liberal, em plena luta contra o "subdesenvolvimento", no s econmico, mas tambm cultural, poltico e moral.

    22 Cf. Exposio de Motivos in Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos, vol. XIII, maio-agsto de 1949, n 36, pg. 20.

  • LEI DE DIRETRIZES E BASES

    M. B. LOURENO FILHO Professor Emrito da Univ. do Brasil

    Atendo com prazer ao convite que me dirigistes, apresen-tando-vos algumas ideias sobre o projeto de lei de diretrizes e bases da educao nacional.

    O que desejais, por certo, uma anlise objetiva desse documento. Para que assim se faa, ser til usar de um mtodo que isso nos facilite. Imaginemos que no se trate de um projeto brasileiro, mas de outro pas, de um pas vizinho, por exemplo. Algum desse pas a ns se dirige, pedindo-nos uma opinio.

    Nesse caso, afastamos as razes emotivas, as pessoas e grupos, para serenamente interrogar os fatos. Uma lei um instrumento de ao poltica. Supe a realidade de uma nao, um territrio e um povo, geraes em face umas de outras, ocupao e trabalho. Supe igualmente certas ideias comuns desse povo sobre suas instituies, normalmente compendiadas numa carta poltica, ou constituio.

    Acerca de tudo isso, portanto, devemo-nos informar para que possamos emitir uma opinio bem fundada sobre o valor do projeto, como instrumento til.

    Certo que, ainda antes disso, podemos proceder a uma anlise formal do escrito. Est bem formulado ou no est; usa corretamente das expresses tcnicas, ou no usa; permite fcil interpretao, ou no o permite.

    Que h, no projeto, muitas falhas tcnicas salta aos olhos. As impropriedades so numerosas, e a redao, para um texto de lei, nem sempre perfeita. Para s citar uns poucos exemplos: o projeto no distingue entre educao e ensino, o que se v pelas denominaes de ttulos e captulos; confunde cursos e ramos de ensino (artigo 47) ; confunde matria de ensino e disciplina, empregando como sinnimas essas palavras (artigo 44 e seus pargrafos) ; usa da expresso disciplinas optativas, de modo contrrio ao consenso universal (artigo 45 e outros), pois admite opo pelos estabelecimentos, no pelos alunos. Sugere tambm que os mtodos de ensino e formas de atividade escolar sejam questes de classes sociais (artigo 30).

    Palestra realizada no Colgio Bennett, a 21 de julho de 1960.

  • Deslizes mais graves, quanto ao uso de expresses consagradas no direito pblico so tambm frequentes. Tal o caso, quando diz, por exemplo, que o Ministrio da Educao exercer as atribuies de Poder Pblico Federal em matria de educao (artigo 6.); ou quando situa o Conselho Federal de