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O RETORNO À METANARRATIVA COMO DEFESA FRENTE AO
ETNOCENTRISMO DAS ONTOLOGIAS REGIONAIS
Frederick Gomes Alves1
RESUMO: A historiografia contemporânea está teórica e metodologicamente orientada pelo
pensamento pós-moderno, tal como fora basicamente apresentado por Lyotard. Este
pensamento se constituiu enquanto crítica da modernidade e de suas filosofias da história.
Contra a história da emancipação da racionalidade europeia por sobre o globo foi possível
elaborar histórias locais de regiões antes tidas como periféricas ao ocidente, e com isso
evidenciar a centralidade e o protagonismo histórico de povos e culturas até então
marginalizados. Não obstante, essa mesma historiografia pós-moderna, em sua defesa do
múltiplo e do diverso, acentuou a percepção dos cientistas da cultura para o relativismo cultural
e para modelos explicativos especialmente endógenos, reduzindo assim a importância da
articulação de eventos históricos locais com ocorrências inter-regionais e supranacionais, o que
pode resultar em identidades culturais essencialistas, localistas e etnocêntricas, dificultando a
comunicação intercultural. O presente trabalho tem como objeto de pesquisa a história global:
uma corrente historiográfica que visa produzir explicações históricas satisfatórias às demandas
de sentido de indivíduos inseridos no processo de globalização. A hipótese básica desta
corrente, levada a cabo por autores como Eric Vanhaute, Michael Geyer e Charles Bright, é a
de que a historiografia deve retornar a produzir metanarrativas, aproximando-se teoricamente
do pensamento moderno, mas sem esquecer de toda a crítica à modernidade operada pelos pós-
modernos. O objetivo seria então a defesa de metanarrativas que não se circunscrevam a
legitimar o discurso dominador do ocidente mas sim um discurso emancipador de todas as
culturas históricas, cujo elemento comum seria um conceito de humanidade.
PALAVRAS-CHAVE: História global. Comunicação intercultural. Pensamento moderno.
Pensamento pós-moderno.
Introdução
Este trabalho pretende seguir no caminho proposto pelo teórico da história alemão Jörn
Rüsen, no sentido de que ele afirma que a ciência da história tem muito a ganhar com a
incorporação de elementos do pensamento moderno e pós-moderno. O caminho indicado por
Rüsen parece já estar sendo trilhado por alguns historiadores que produzem investigações sob
o título de história global. Dentre os muitos argumentos sustentados por esta corrente
historiográfica o que aqui será aprofundado é a defesa do retorno à metanarrativa, um elemento
do pensamento moderno que foi duramente criticado pelos pós-modernos, sobretudo pelo seu
eurocentrismo, legitimador de diversas atrocidades perpetradas pelos ocidentais frente a outros
povos, na época da conquista da América, do colonialismo na África, e da exploração de países
“periféricos” que persiste até os dias atuais. Não obstante os problemas que podem ser
1 Doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Bolsista CAPES.
E-mail: [email protected]
2
devidamente identificados com, e associados, a metanarrativa, os historiadores globais visam,
de um ponto de vista teórico, distinguir conceitualmente metanarrativa de eurocentrismo2. Eles
assim o fazem por identificar na construção histórica nos moldes de uma metanarrativa
elementos favoráveis ao combate de excessos etnocêntricos num mundo globalizado, excessos
que aqui serão apresentados como ontologias regionais. A instrumentalização da metanarrativa,
alegam estes historiadores globais, é fundamental para fazer frente às pressões das ontologias
regionais que, num mundo em constante integração global, buscam defender-se deste peso
integrador através de estratégias de desconexão; mas estas estratégias acabam por gerar tensões
e conflitos que são igualmente devastadores.
Assim, num primeiro momento, buscar-se-á apresentar a escrita da história pós-moderna
enquanto crítica da metanarrativa, o que será feito a partir de dois autores-chave para essa
questão, Jean François Lyotard e Frank Ankersmit. O primeiro por afirmar, com todas as letras,
que a pós-modernidade é marcada pelo declínio das metanarrativas, e também por trazer o
debate, já extenso no campo da crítica cultural e da história da arte, para o campo filosófico. O
segundo, por ser um dos primeiros historiadores a defender o pensamento pós-moderno como
suporte teórico para a produção historiográfica. Em ambos a crítica da metanarrativa é evidente.
Em seguida serão apresentados os argumentos que sublinham as limitações do
pensamento pós-moderno, sobretudo em sua defesa radical do relativismo cultural, que tem
como um de seus resultados posturas intelectuais e políticas que sustentam as ontologias
regionais. Entre os autores elencados aqui estão: Jürgen Habermas, que travou um debate
profícuo com Lyotard ao defender a ideia não de uma pós-modernidade, mas sim de uma
modernidade enquanto projeto inacabado e, portanto, em vias de receber seu acabamento; Perez
Zagorin foi um historiador que também entrou no debate, assim como Habermas, que se
posicionou frente a Lyotard, Zagorin lançou seus questionamentos diretamente a Ankersmit, e
seus argumentos diante da postura pós-moderna são esclarecedores para o que aqui está em
questão.
Uma vez apresentadas as determinações básicas do pensamento moderno e pós-
moderno referentes à metanarrativa e suas consequências, a parte seguinte se dedicará
justamente a apresentar a forma como a metanarrativa tem sido conceituada e trabalhada na
2 Assim como há uma importante distinção a ser feita entre modernidade e Europa. Anthony Giddens, em seu livro
As consequências da modernidade, argumenta que embora a modernidade tenha emergido na Europa ela não é
uma exclusividade sua, nem tampouco as múltiplas modernidades em outros países e continentes são,
necessariamente, europeias (GIDDENS, 1991). Uma outra distinção deve ser feita entre humanismo – que será
trabalhado na parte final deste texto – e modernidade europeia, uma vez que o humanismo possui elementos
específicos que transcendem a modernidade tal como ela se constituiu na Europa entre os séculos XV-XIX com
manifestações declaradamente eurocêntricas.
3
história global. Os autores selecionados aqui são: Eric Vanhaute, Michael Geyer e Charles
Bright.
A escrita da história pós-moderna, crítica da metanarrativa
Em um artigo que situa a história entre a modernidade e a pós-modernidade Rüsen
resume, em termos gerais, os principais aspectos que pretendo desenvolver neste texto. Ele
servirá como uma espécie de mapa no qual os argumentos aqui empregados estão dispostos
segundo a lógica de sua exposição. Ele afirma:
Creio que devemos aceitar essa crítica [pós-moderna] na medida em que aponta para
uma generalização ideológica de uma história individual na direção da história. Esse
foi efetivamente o caso no decorrer da modernização, do Iluminismo até nossos dias.
Devemos admitir que só há uma multiplicidade de histórias, mas não a história como
entidade de fato. E não obstante – esse é meu ponto de vista nessa argumentação,
comprometido com o paradigma moderno – necessitamos de uma representação
mental da unidade da experiência histórica. Do contrário o pensamento histórico nos
conduz ao relativismo total. O preço a ser pago por esse relativismo seria demasiado
alto. [...] Além disso necessitamos de uma concepção de história que corresponda à
experiência atual do mundo uno, que se integra cada vez mais (enfatizar a micro-
história enquanto vivemos em meio a um processo macro-histórico soa como se
quiséssemos reprimir uma experiência ameaçadora, ao invés de enfrentá-la com ajuda
da interpretação histórica). (1997, p. 95)
Entre os diversos motivos pelos quais o pensamento pós-moderno lança seus ataques à
modernidade, um dos principais é pelo emprego da metanarrativa como um argumento
ideológico de generalização da história individual europeia na direção de uma história
universal. Sobretudo se se pensa na filosofia da história calcada nas categorias de selvageria,
barbárie e civilização, sendo as outras culturas classificadas como incivilizadas e tendo-se a
cultura europeia como sendo a única civilizada e, portanto, imbuída de uma “obrigação moral”
de civilizar os selvagens e bárbaros do restante do mundo3.
Nestes termos a crítica pós-moderna à suposta História universal feita na modernidade
desempenha uma função fragmentadora: ao abrir perspectivas da história enquanto
multiplicidade, do processo histórico dotado de diversas historicidades e do sujeito histórico
fracionado, atravessado por uma miríade de histórias e dotado ele mesmo de variadas
identidades4.
3 Sobre a apropriação de um discurso civilizador para a legitimação de práticas imperialistas conferir o excelente
livro de Enrique Dussel. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. 4 Stuart Hall (2006) trabalha com essa concepção, trazida pela pós-modernidade, de um sujeito fragmentado e de
múltiplas formações identitárias sob o conceito de crise da identidade, cf. HALL, Stuart. A identidade cultural na
pós-modernidade.
4
Lyotard argumenta que a sociedade pós-moderna é constituída por uma massa de
indivíduos ao invés de uma sociedade orgânica, com o fim de uma sociedade una, coesa, se
fragmenta também a narrativa histórica, se instaura então a impossibilidade de uma
metanarrativa.
Desta decomposição dos grandes Relatos [metanarrativa], que analisaremos mais
adiante, segue-se o que alguns analisam como a dissolução do vínculo social e a
passagem das coletividades sociais ao estado de uma massa composta de átomos
individuais lançados num absurdo movimento browniano. (1988, p. 28)
O que conferia unidade e coesão às concepções modernas de sociedade e história é
justamente um elemento aglutinador de caráter especulativo, um discurso emancipador,
geralmente associado a um conceito de humanidade enquanto sujeito da história: “a
humanidade como herói da liberdade” (LYOTARD, 1988, p. 58). Todavia, este discurso
emancipador, e o pensamento pós-moderno evidencia isto de forma bastante clara, se reduz a
emancipar o ocidente e sua visão de mundo às custas do rebaixamento e mesmo da exclusão de
discursos não ocidentais, não racionais, o que é enfatizado, por exemplo, na postura do cientista.
O cientista interroga-se sobre a validade dos enunciados narrativos e constata que eles
não são nunca submetidos à argumentação e à prova. Ele os classifica conforme outra
mentalidade: selvagem, primitivo, subdesenvolvido, atrasado, alienado, feito de
opiniões, de costumes, de autoridade, de preconceitos, de ignorâncias, de ideologias.
Os relatos são fábulas, lendas, mitos bons para as mulheres e as crianças. Nos
melhores casos, tentar-se-á fazer penetrar a luz neste obscurantismo, civilizar, educar,
desenvolver. [...] É toda a história do imperialismo cultural desde os inícios do
Ocidente. (1988, pp. 49-50)
A metanarrativa é um discurso legitimador que apresenta a história do ocidente como o
desabrochar da história mundial, em que as outras regiões entram na história à medida em que
são encontradas e introduzidas pelo ocidente e por este ocidentalizadas, e isto não apenas física
mas também intelectualmente, na medida em que o saber ocidental penetra e “civiliza”,
“educa”, as regiões tidas por obscuras da terra.
A crítica pós-moderna à metanarrativa, tal como fora elaborada no pensamento
moderno, é decisiva por fragmentar a história, não por trazer à luz “ocidental” regiões obscuras,
mas por enxergar a luz própria destas mesmas regiões, sua historicidade inerente, seu
protagonismo histórico. É uma postura que percebe a história do imperialismo cultural ocidental
e vai além, percebendo também as histórias que estão para além desta narrativa, deixando de
tratar o outro, o não ocidental, como selvagem, primitivo, subdesenvolvido.
A percepção da historicidade do outro, de outras culturas, é resultado de uma gama de
transformações ocorridas no século XX que reposicionaram o ocidente, sobretudo a Europa,
5
problematizando seu status, auto-atribuído, de centro do mundo e abrindo a possibilidade de
perceber processos históricos inerentes às culturas não-ocidentais. Este conjunto de
transformações caracteriza uma natureza pós-moderna na segunda metade do século XX. Sobre
isto Ankersmit afirma:
Primeiramente, existe, é claro, a natureza pós-moderna de nossos tempos. Nosso
antiessencialismo, ou, como tem sido mais popularmente chamado ultimamente,
nosso “antifundacionalismo” diminuiu nosso compromisso com a ciência e com a
historiografia tradicionais. A nova posição da Europa no cenário mundial a partir de
1945 é um segundo indicador importante. A História desse apêndice do continente da
Eurásia não é mais a história do mundo. O que gostaríamos de conceber como o tronco
da árvore da História Ocidental tornou-se parte de uma floresta. Os meta-récits
[metanarrativas] que gostaríamos de contar sobre a nossa história, sobre o triunfo da
Razão, sobre a luta gloriosa pela emancipação do proletariado dos trabalhadores do
século XIX, são somente dados de importância local, e portanto não são mais
metanarrativas apropriadas. O vento gélido que, de acordo com Romein, soprou por
volta de 1900 simultaneamente no Ocidente e no Oriente, finalmente acabou por
varrer as folhas da nossa árvore da História por volta da segunda metade deste século.
(2001, p.129)
O caminho percorrido por Ankersmit apresenta a forma como a historiografia introduz
as discussões do pensamento pós-moderno em seu corpus teórico. A posição privilegiada do
ocidente é colocada em cheque durante o século XX, todo o discurso moderno é esfacelado por
duas guerras mundiais e por uma série de outros extremos a que se chegou naquele século. Num
mundo pós-Segunda Guerra Mundial, numa cultura pós-moderna, não é possível uma
metanarrativa radicada no Ocidente, ou na Europa. E como toda metanarrativa foi isso, então,
na pós-modernidade, não é mais possível nenhuma metanarrativa, nenhum sistema, nenhum
centro, nenhum tronco, nenhuma realidade histórica essencial do passado. Foi neste momento,
nestes tempos pós-modernos, que a crítica à metanarrativa se constituiu, que a metanarrativa
foi desconstruída; de onde se torna compreensível, à luz do contexto histórico, que o
pensamento pós-moderno tenha se fortalecido cada vez mais e se consolidado enquanto
paradigma empregado por grande parte dos cientistas da cultura.
Limitações do pós-moderno: ontologias regionais e relativismo cultural extremado
É justamente no momento de sua consolidação que os primeiros problemas, os primeiros
limites do pensamento pós-moderno surgem. Trata-se do que Rüsen, na citação que abre este
texto, fala a respeito de um relativismo total. Pois Ankersmit afirma: “Se queremos, não
obstante, aderir ao essencialismo, podemos dizer que ele não está situado nem nos galhos nem
6
no tronco e sim nas folhas da árvore da História.” (2001, p. 129)5. Ora, abandona-se o
essencialismo do tronco (metanarrativa, humanidade) moderno, para assumir o essencialismo
das folhas, das migalhas, pós-moderno. Desta ação substitui-se um problema, o essencialismo
moderno, por outro, um antiessencialismo que é também um essencialismo, pós-moderno.
O perigo do essencialismo das migalhas encontra-se na impossibilidade de produzir
narrativas históricas que lidem com o iminente encontro destas mesmas migalhas. Como lidar
historicamente com a comunicação intercultural? Se se retorna à metáfora de Lyotard, a
pergunta se formula assim: o que acontece quando a massa composta de átomos individuais
lançados num absurdo movimento browniano se choca com outras massas, ou o que acontece
quando os próprios átomos individuais se chocam entre si? Como afirmou Rüsen, num mundo
cada vez mais integrado, o contato, o choque, é inevitável. Outra questão deve ser colocada
para que a primeira possa ser levada à sua resolução: como a ciência da cultura pode lidar com
estes choques atómicos num mundo cada vez mais integrado, num mundo atravessado pela
experiência da globalização?
Uma vez que estes átomos continuam em seu absurdo movimento, eles estão
incomunicáveis, as folhas são as novas essências que não constituem mais uma floresta da
história, em que as folhas possuíam níveis variados de integração. Segue-se disto que, ao invés
de uma ontologia histórica moderna, surgem na pós-modernidade ontologias regionais:
grupamentos culturais que prezam pela desconexão, pela liberdade absoluta do eu diante do
outro.
Com isto, pode-se definir ontologia regional da seguinte maneira: uma narrativa,
individual ou social, que confere sentido cultural para o agir humano e que se baseia, isto é
fundamental, numa argumentação exclusivamente endógena, que não considera a influência do
outro na formação do eu. Naturalmente, ontologia regional é empregado aqui como um tipo
ideal, ela jamais pode ser encontrada no mundo social na forma ‘pura’ como aqui está sendo
conceituada.
Dois eventos da história ocidental podem ser empregados para exemplificar minha
argumentação: o nascimento do ocidente na Grécia antiga e a constituição da modernidade
europeia a partir do século XV. Estes dois eventos são basicamente explicados a partir de
5 Neste artigo de 1989, intitulado Historiografia e pós-modernismo, Ankersmit não adere a um essencialismo, seja
de uma árvore moderna ou das folhas pós-modernas. Esta afirmação do autor tem o intuito, aqui, de sublinhar seu
posicionamento, alinhado à época com o pensamento pós-moderno, em favor de uma maior concentração na
multiplicidade representada pelas folhas da história, uma vez que a teoria do conhecimento pós-moderna não vê a
possibilidade de acesso ao passado enquanto tal, restando ao historiador apenas fragmentos legados deste e que se
encontram no presente, sendo este seu material de trabalho.
7
elementos puramente endógenos, a filosofia e ciência que “nasceram” na Grécia são resultado
do esforço dos gregos, raramente sendo mencionadas as raízes egípcias, chinesas, indianas,
deste pensamento; o mesmo ocorre com a modernidade europeia, que não raras vezes é
explicada a partir de processos históricos exclusivos ao espaço europeu, a formação de estados-
nacionais, a Revolução Industrial, etc. Ora, a maior parte destes eventos ocorreu junto ao
contato europeu com outros povos, seja a unificação nacional na Reconquista hispânica contra
os mouros, seja a chegada dos europeus na América e a subsequente descoberta de infinitas
reservas minerais, ouro e prata sobretudo, e o emprego de povos africanos escravizados, seja a
redescoberta de parte da filosofia grega que fora conservada fora da Cristandade, nas
universidades muçulmanas, seja a riqueza cultural das cidades-estado italianas, promovida
principalmente pelo amplo contato comercial das mesmas com outros povos6. Enfim, diversos
fatores externos ao ocidente ajudam a compreender processos históricos que lá ocorreram, mas
que são velados, escondidos, ignorados, e que auxiliam na formação de narrativas históricas
particularistas, sem dar os devidos créditos à comunicação intercultural, tão importante na
conformação histórica de toda cultura.
Neste sentido, a ontologia histórica da modernidade é uma ontologia regional travestida
de universal, é a visão de mundo ocidental apresentada como universal. A metanarrativa da
emancipação moderna é uma farsa tida como história oficial. Isto é um problema. Problema
este que foi identificado, investigado e trabalhado com muita propriedade pelo pensamento pós-
moderno. Não obstante, uma limitação deste último se deve ao fato de que, em seu afã de
desconstruir o pensamento moderno, ele acabou por descuidar da possibilidade de radicalização
de seus próprios pressupostos. Disto resulta que o relativismo cultural pós-moderno – decisivo
para reprimir os excessos do imperialismo cultural ocidental – pode ser radicalizado em
relativismo cultural extremado – fonte teórica inesgotável para a emergência de novas
ontologias regionais, estruturalmente incapazes de dialogarem entre si7.
6 Tanto Friedrich Nietzsche quanto Jacob Burckhardt contribuíram em larga medida para ampliar o horizonte
cultural do ocidente ao evidenciar justamente o que ele devia a outros povos. De Nietzsche pode-se citar duas
obras A filosofia na era trágica dos gregos e O nascimento da tragédia, de Burckhardt têm-se A história da cultura
grega e A cultura do renascimento na Itália. Enrique Dussel também argumenta como o conceito de modernidade
não raras vezes é pensado sem referência aos contatos europeus na América, África e Ásia, cf. nota 3. 7 Um exemplo disto é a emergência, cada vez mais frequente no mundo globalizado, de fundamentalismos que são
resultado de estratégias de defesa frente à integração global. Fredric Jameson, em seu texto Notas sobre a
globalização como questão filosófica, afirma: “[...] todas as recorrências do que é considerado violência local
nacionalista representam uma reação e um mecanismo de defesa contra a intensificação dos efeitos da
globalização. [...] O neoconfucionismo, os fundamentalismos hindu e islâmico, são invenções novas, pós-
modernas, e não sobreviventes de antigos modos de vida.” (2001, pp. 57-58).
8
Para se ver livre destes excessos Habermas postula uma modernidade inacabada. A
perspectiva habermasiana da modernidade como projeto inacabado não se alinha com o
pensamento pós-moderno por julgar que este se despede apressadamente da modernidade. Mas
Habermas também não pretende, como parecem pensar os pós-modernos, restaurar a
modernidade tal qual ela se constituiu nos séculos XVIII e XIX, como um retorno purista de
todos os seus pressupostos. O que ele pretende é atualizar o discurso filosófico da modernidade,
e atualizar significa trazer o pensamento moderno à atualidade, isto é, sair da filosofia do
sujeito, do purismo da razão pura.
A mudança de paradigma da razão centrada no sujeito pela razão comunicativa
também pode encorajar a retomar mais uma vez aquele contradiscurso imanente à
modernidade desde o princípio. Uma vez que a crítica radical de Nietzsche à razão
não pode ser cumprida consistentemente nem na linha da crítica da metafísica nem na
linha da teoria do poder, somos remetidos a uma outra via para sair da filosofia do
sujeito. Desse modo, talvez as razões para a autocrítica de uma modernidade em
conflito consigo mesma possam ser levadas em conta sob outras premissas, de modo
que possamos fazer justiça aos motivos, virulentos desde Nietzsche, de uma despedida
apressada da modernidade. É preciso tornar claro que na razão comunicativa não
ressurge o purismo da razão pura. (HABERMAS, 2000. p. 420)
Como não é possível deslindar todas as minúcias desta argumentação aqui, em vista de
economia argumentativa do texto, ressalto a postura do filósofo para com a modernidade, ou
seja, distante e distinta daquela dos pós-modernos que, aos seus olhos, foi uma despedida
apressada. Isto é decisivo pois o autor separa modernidade de Europa a partir da teoria da
modernização, o que abre o espectro crítico garantindo novos recursos heurísticos para o estudo
de sociedades modernas, mas que são distintas daquelas sociedades europeias, as que sempre
foram o foco de estudo dos pós-modernos, sejam sob o conceito de sociedades pós-industriais,
empregado por Lyotard, ou o conceito de sociedades ocidentais, empregado por Gianni
Vattimo8.
Habermas parece indicar outra diferenciação importante, a saber, entre ‘universalismo
europeu’ e um tipo de universalismo que seria mais abrangente do que o primeiro, que
contraditoriamente se afirmava universal mesmo partindo de premissas exclusivamente
europeias. A universalidade da razão ocidental, presente nas filosofias da
história/metanarrativas, é uma universalidade quimérica, que disfarça e ao mesmo tempo impõe
a pretensão de dominação global por parte da Europa.
Aquela “razão” do idealismo alemão, que pretende ser mais originária do que aquilo
que se personificou na cultura europeia, aparece, então, exatamente como aquela
ficção com que o Ocidente se revela em sua particularidade, com que se arroga uma
8 Deste autor conferir seu livro O fim da modernidade, niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna.
9
quimérica universalidade e disfarça, ao mesmo tempo que impõe, sua pretensão de
dominação global. (HABERMAS, 2000. p. 336)
Como afirma o filósofo alemão, tal postura é legitimamente criticada pelos pós-
modernos, desde o ponto de inflexão que é Nietzsche até Foucault; o problema é pensar que a
universalidade europeia é a única possível, e portanto condenável. Existem outras
universalidades, mais universais do que a europeia. E parece ser neste sentido que Habermas
argumenta com sua teoria da razão comunicativa. Um universalismo de princípio que
possibilitaria a construção de pontes, que o autor chama de comunidades de comunicação, entre
as ontologias regionais. O caminho indicado por Habermas possibilitaria um direcionamento
da questão que evitaria tanto o excesso moderno quanto o pós-moderno, o diálogo intercultural
impede que uma cultura se veja enquanto modelo universal a ser imposto aos outros, na mesma
medida que impede que as culturas se vejam como essências incomunicáveis, incorruptíveis,
inalteráveis9. É com este tipo de teoria universalista da cultura que a história global trabalha,
como será visto no último tópico deste texto.
Agora será útil apresentar a definição de etnocentrismo que possibilita uma apreciação
mais aprofundada das ontologias regionais. Esta definição é introduzida no artigo de Rüsen
intitulado Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. Segundo este
autor o etnocentrismo é uma estratégia básica da formação da identidade cultural.
O etnocentrismo é uma estratégia cultural difundida para efetivar a identidade coletiva
distinguindo o seu próprio povo de outros. Ele significa simplesmente a distinção
entre a esfera da própria vida como algo familiar da esfera da vida dos outros, que é
substancialmente diferente. (2009. p. 175)
O etnocentrismo não é, em si, ruim; como uma estratégia básica da formação identitária
ele pode ser, teoricamente, encontrável em toda cultura humana, bem como em cada indivíduo,
uma vez que, para a formação de identidade, há uma distinção, uma instauração de fronteiras
entre aquilo que se é e que se não é. Ademais, as evidências antropológicas sugerem que há
uma tendência que vai para além da simples diferenciação do eu e do outro, esta tendência
9 Seguindo no mesmo caminho de Habermas está o antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira, em seu
artigo A questão étnica: qual a possibilidade de uma ética global? o autor constrói sua argumentação no sentido
de evidenciar como o relativismo cultural extremado impossibilita o estabelecimento dos Direitos Humanos e
acaba autorizando ações culturais baseadas em novos etnocentrismos. Todo o debate entre a Associação
Antropológica Americana, encabeçada por Herskovits, e a ONU, no ano de 1948, quando da elaboração da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, é ali apresentada e analisada sob a ótica da ética discursiva de
Habermas, e também ilustrada com a experiência antropológica de campo do autor. Ainda segundo ele, o
relativismo cultural surgiu na tentativa de desconstruir o etnocentrismo eurocêntrico, mas ele acaba produzindo os
etnocentrismos das ontologias regionais. Em versões mais extremadas o relativismo cultural impossibilita a
instituição de comunidades de comunicação, aceitando a incomensurabilidade das culturas e possibilitando assim
a legitimação das culturas em si mesmas – o que abole o espaço do diálogo. (OLIVEIRA, 2001)
10
resume-se numa valorização positiva das características pessoais e numa consequente
valorização negativa da alteridade (RÜSEN, 2009)10.
Todavia, esta tendência pode ser radicalizada, e é neste momento em que se formam as
ontologias regionais. É neste sentido que a metanarrativa moderna, que também é uma
ontologia regional, se radicalizou adquirindo características cada vez mais eurocêntricas, ainda
que mantivesse um discurso, no Humanismo renascentista e no Idealismo, universalista.
Não obstante, apesar de o etnocentrismo separar o eu e o outro, de gerar uma tensão,
Rüsen alega que existem modos de comunicação intercultural que podem eliminar as ameaças
de uma explosão de tensões etnocêntricas11. Caso contrário, se não houver diálogo, se a
comunicação intercultural for apenas mais uma utopia impossível de ser efetivada, a saída, na
relação entre ontologias regionais será apenas uma guerra de todos contra todos no sentido da
descrição de Thomas Hobbes do estágio natural da vida social (RÜSEN, 2009).
Ainda buscando estratégias que possam impedir que o contato intercultural se resuma
ao choque de civilizações Rüsen postula a categoria da humanidade como forma de produzir
histórias multiculturais mas não regionalmente ontológicas. É o momento em que se pode
perceber aquilo que o autor havia defendido num outro texto, citado mais acima, ou seja, uma
busca por metanarrativas que possam incluir a diferença máxima encontrada em toda cultura
mas também possa reconhecer totalidades históricas que sirvam de espaço de diálogo
intercultural entre as diferentes culturas, uma categoria que serviria de espaço comum para o
diálogo das diferenças.
Mas a multiperspectividade e a multiplicidade de vozes levantam um problema: o que
acontece com a unidade da história? Havia ali apenas variedade, diversidade e
multiplicidade, mas nada abrangente? As narrativas mestras [metanarrativas]
tradicionais [modernas] de todas as civilizações contêm uma perspectiva
universalista; e por muito tempo o Ocidente tem estado comprometido com tais
“histórias universais” abrangentes. Devemos então abdicar desse universalismo
histórico em favor de um multiculturalismo? Muitos historiadores e filósofos pós-
modernos estão convencidos que isso é inevitável. Mas tal multiculturalismo é apenas
plausível se as pretensões de verdades abrangentes forem abandonadas. Logo a
consequência seria um relativismo geral. Mas este relativismo poderia abrir a porta
para um irrestrito “choque de civilizações”. Se não há qualquer possibilidade de
integração e concordância a partir de perspectivas abrangentes, que possam mediar e
sintetizar as diferenças culturais, a última palavra sobre o relacionamento entre as
diferentes perspectivas seria o pluralismo e a competição. Sob certas condições isso
poderia levar ao conflito e à guerra mental. [...] Penso que a solução será um princípio
10 A antropóloga americana, e discípula de Franz Boas, Ruth Benedict afirma que o etnocentrismo possui existência
universal, seja entre os povos, ditos, primitivos, seja como fonte de comportamento ocidental. Conferir seu
Padrões de Cultura. 11 Tal explosão de tensões etnocêntricas seria algo no sentido dos choques perpetrados quando do encontro entre
dois grupos que seguem ontologias regionais distintas, mais ou menos no sentido que pode ser percebido no
comentário de Fredric Jameson, conferir nota 7. Outro exemplo que pode ser citado é a obra de Samuel Huntington
O choque de civilizações.
11
de humanidade, o qual deve incluir o valor da equidade, e pode levar à regra geral do
reconhecimento mútuo das diferenças. (2009. p. 180)
Para impedir um multiculturalismo etnocêntrico, tal como postulado pelo pensamento
pós-moderno, é necessário inserir o multiculturalismo numa metanarrativa universalista –
idealizada pela modernidade europeia mas empiricamente não concretizada. A categoria
diretriz desta nova metanarrativa seria a humanidade.
Como fora afirmado no começo do texto, a postura assumida pela história global parece
conjugar os principais elementos até aqui apresentados: 1) crítica do eurocentrismo das
metanarrativas modernas; 2) percepção das limitações desta mesma crítica quando radicalizada
em relativismo cultural extremado; e 3) defesa de um retorno da categoria de metanarrativa mas
incorporado com as críticas pós-modernas à mesma. Portanto, na parte final deste texto serão
apresentadas fontes da história global com o intuito de evidenciar esta hipótese.
Metanarrativa na história global: globalização e humanismo
A história global é uma corrente historiográfica que visa produzir narrativas históricas
satisfatórias às demandas de sentido de indivíduos inseridos no processo de globalização. Para
isso ela a considera sob dois aspectos: 1) a globalização enquanto conceito, como uma nova
forma de olhar para o mundo e seu passado; e 2) a globalização enquanto processo histórico,
que é tão antiga quanto a história do capitalismo, se não mais (DIRLIK, 2000). O conceito de
globalização surge por volta das décadas de 1960-1970, nas Relações Internacionais, e
rapidamente é incorporado pelas demais ciências sociais, sobretudo por ser heuristicamente
aplicável a processos histórico-sociais cujas configurações eram bastante inovadoras, num
mundo pós- Segunda Guerra Mundial, e que outros conceitos não conseguiam explicá-los a
contento.
Os cientistas da cultura não ficaram imunes ao conceito de globalização e começaram
também por produzir investigações orientadas pelo mesmo. Na historiografia, que não é uma
atividade exclusiva de historiadores, ele foi associado à história mundial produzindo assim esta
nova corrente historiográfica12. A partir dessa mescla entre história mundial com o conceito de
globalização a história global encontra sua emergência, se fortalecendo e se consolidando
enquanto tal por volta das décadas de 1990 e 2000.
12 A história mundial é uma corrente mais antiga e que está alinhada na tradição de autores como Oswald Spengler,
Arnold Toynbee, Fernand Braudel entre outros. As principais obras desta corrente historiográfica são The Rise of
the West (1963), de William McNeill, Europe and the people without history (1982), de Eric Wolf, e The modern
World-System (1974, 1980, 1989), de Immanuel Wallerstein.
12
Os historiadores Michael Geyer e Charles Bright escreveram um artigo em 1995
intitulado História mundial na era global (World History in a global age), em que eles
buscavam justamente refletir quais as consequências para a disciplina histórica de estar inserida
no que eles chamaram de era global (global age). A primeira delas é que a globalização opera
uma crise do imaginário ocidental, que era hegemônico até então. Os autores afirmam então:
“Esta é uma crise, acima de tudo, do imaginário ocidental, mas ela lança desafios profundos
para todo historiador: o mundo em que vivemos está sendo inserido num globo integrado,
embora lhe falte narrativas e ele não tenha História.” (1995, p. 1037, tradução minha). Este
imaginário ocidental, que está em crise, é o mesmo que sustentou por tanto tempo as
metanarrativas modernas, um imaginário em que a história tal como fora contada pelo ocidente
era a história hegemônica, mas cujo processo de globalização acaba por colocá-la em xeque,
por relativizá-la ao inserir novas e múltiplas narrativas históricas não ocidentais.
Este mundo integrado cada vez mais pela globalização não tem uma narrativa e
tampouco uma História, enquanto totalidade histórica. Daí os autores afirmarem que este
desafio precisa ser encarado pelos historiadores, a tarefa de produzir história global num mundo
cada vez mais integrado, num mundo inscrito na era da globalidade, é uma tarefa que precisa
de uma resposta, se ele carece de uma História, esta precisa ser feita (GEYER, BRIGHT, 1995).
Não é difícil perceber que uma História para o globo só pode ser levada a cabo por uma
narrativa histórica nos moldes de uma metanarrativa, que considere a multiplicidade de vozes
emergentes na pós-modernidade mas que busque inscrevê-las numa totalidade histórica, afinal,
tais vozes se encontram no mesmo globo, se inscrevem na mesma era, a da globalidade.
Os autores prosseguem empregando a categoria da humanidade, emprego que Rüsen já
havia defendido logo acima:
Esta condição da globalidade é a de um espaço global integrado da prática humana.
Como consequência, a humanidade não mais existe como um “pensamento”. Antes,
humanidade ganha existência numa multiplicidade de distintas atividades
econômicas, sociais, culturais e políticas. No passado, tal humanidade tinha sido o
sonho de sábios e filósofos e, não se pode esquecer, de deuses, mas agora ela se
constitui no trabalho diário de seres humanos. Este trabalho diário necessita
imaginação. Com esse fim, a história global torna explícito e visível tanto práticas
quanto regimes globais, bem como a imbricação de comunidades locais. Sua tarefa é
tornar transparente as linhas de poder, sustentadas pela informação, que comprimem
os seres humanos (humanity) em uma única e singular humanidade (humankind). [...]
Esta conclusão sublinha tanto a promessa quanto o desafio do século XX como uma
era de transição histórica mundial – que forja o mundo no qual “humanidade” se
tornou uma realidade pragmática com um destino comum. (1995. p. 1060, tradução
minha)
13
A humanidade ganha existência nas atividades diárias de todo indivíduo, além da sua
antiga existência no plano do pensamento. Existe um espaço global integrado da prática
humana, e é neste espaço que a humanidade se corporifica. O trabalho cotidiano carece de
imaginação histórica, ou seja, de historiografias que forneçam sentido histórico para o agir dos
indivíduos inseridos nesta era de globalidade. Assim, para além de sua tarefa, de sua função
social, enquanto fornecedora de histórias, de imaginários, a história global objetiva produzir
uma história da humanidade, trata enquanto objeto de pesquisa a humanidade, pensada e
corporificada na globalização (GEYER, BRIGHT, 1995).
Outra definição válida para a história global é a do historiador Eric Vanhaute. Sua
definição possui muitos elementos próximos com a de Michael Geyer e Charles Bright. Em seu
artigo Quem tem medo da história global? (Who is afraid of global History?) ele afirma:
A premissa básica na história global é que as trajetórias históricas de indivíduos,
grupos, nações ou civilizações humanas apenas faz sentido dentro de suas mútuas
conexões, no interior de uma história humana geral. Como com toda narrativa
historiográfica, a história global também cria sentido. O foco não é a peculiaridade de
cada caso, mas a comparação e interconexão dentro de um contexto global. (2009. p.
23, tradução minha)
Esta definição está repleta de elementos com implicações metodológicas importantes
para a história global, assim como a de Geyer e Bright estava de elementos teóricos e éticos.
Em primeiro lugar ressalto que o objeto de pesquisa – ou seja, os indivíduos, grupos, nações ou
civilizações humanas (em sua humanidade) – é trabalhado apenas em conexão com outros
grupos humanos; a história global pensa as culturas em suas múltiplas, e mútuas, inter-relações.
Desta forma o conceito de ontologia regional, partidário de uma teoria essencialista da cultura,
dificilmente encontraria espaço num ambiente de trabalho pautado pela história global; todas
as culturas, necessariamente, entram em relação com outras, e são por elas modificadas, nada
mais distante do que uma concepção essencialista poderia afirmar.
Em segundo lugar, ela focaliza as conexões, as inter-relações, mas num contexto de uma
história humana geral, uma metanarrativa, uma totalidade histórica, na qual as partes interagem,
no interior da qual as partes estão inseridas. Em terceiro lugar, a história global cria sentido,
mais especificamente, sentido histórico global. Assim, relembrando a afirmação de Rüsen no
começo deste texto, os indivíduos e sociedades estão passando por experiências de processos
tanto macro quanto microhistóricos, para estas últimas a microhistória está criando sentido, de
igual maneira para os processos macrohistóricos a história global também cria sentido. De modo
algum ela pretende invalidar ou mesmo inutilizar toda a riqueza de sentido produzida pela
14
microhistória, o que ela objetiva é fazer ver que também os processos macrohistóricos precisam
de narrativas historiográficas que lhes confiram sentido, sobretudo numa era de globalidade.
No que diz respeito à questão do etnocentrismo a história global, segundo Vanhaute, se
posiciona da seguinte forma:
A história global estimula diferentes formas de olhar para e pensar sobre a história
humana. [...] a história global [...] vai além de formas particularistas de pesquisa que
focam apenas em “mim e no meu caso”. Homens e mulheres fazem escolhas em
circunstâncias similares ou diferentes. A história global quer conhecer quais escolhas
são feitas e porquê. Respostas podem ser encontradas ao se focar na jornada humana
em seu conjunto. É por isto que a história global cria novas metanarrativas, narrativas
sobre os seres humanos e sobre a humanidade, começando com experiências locais
mas sempre olhando por conexões, linhagens e padrões cada vez mais amplos. (2009.
p. 24, tradução minha)
A história global avança na direção da supressão do etnocentrismo, e ela o faz
considerando a história universalmente, mais do que fora considerado até então pelas filosofias
da história modernas. A história global produz metanarrativas, mas com maior autenticidade,
pois não se fixa na Europa ou no Ocidente. A busca por um contexto global, que incorpora a
experiência de uma era de globalidade, é feita sempre a partir de eventos locais. Trata-se de
produzir metanarrativa a partir de narrativas históricas empíricas, cujo material pode ser
acessado diretamente, assim a metanarrativa ganha corporeidade e pode se diferenciar da
metanarrativa moderna, baseada fundamentalmente em especulação filosófica e em parcas
fontes históricas.
Na modernidade europeia, a filosofia da história era feita por historiadores “de gabinete”
com pouco ou nenhum conhecimento de regiões e continentes inteiros que por eles eram
estudados. Contava-se em grande medida com relatos de terceiros, desbravadores e aventureiros
que observavam a alteridade fora da Europa e relatavam aos conterrâneos que lá ficavam. A
história global visa criar novas metanarrativas mas com um conhecimento mais direto e menos
enviesado por relatos tão eurocentricamente concentrados, calculando e equilibrando a
inevitável dose de etnocentrismo presente em todo relato, toda narrativa, que é uma descrição
de si ou do outro.
Para finalizar, Vanhaute faz a seguinte afirmação, cheia de significados para a definição
desta corrente historiográfica:
A história global conta a estória do mundo como uma sociedade humana. É uma
história complexa porque as fronteiras não estão dadas, como frequentemente
acontece com histórias nacionais ou civilizacionais. É uma história complexa porque
não há narrativa política, cultural ou econômica dominante. Interpretações ecológicas
(humanos/natureza), econômicas (produção), demográficas (reprodução), sociais
(relações de poder) e culturais (legitimação) se fundem em grandes questões que dão
15
suporte à história global. É uma história complexa porque ela não é estruturada no
relatório de eventos e na listagem de grandes personagens, mas pela análise,
comparação e interpretação. Finalmente, é uma história complexa porque ela não
(re)cria metanarrativas deduzidas de um esquema interpretativo singular. Ela objetiva
criar novas metanarrativas com uma visão que é grande, uma ambição que é
pretensiosa, mas com respostas que não são nunca absolutas ou finais. (2009. pp. 25-
26, tradução minha)
A história global objetiva criar novas metanarrativas, pois tenciona incorporar múltiplas
vozes em sua escrita da história. Mas estas metanarrativas globais diferem daquelas de formato
moderno em diversos aspectos, um deles, e que Vanhaute aqui destaca, é que elas não são nunca
finais. Ora, uma das características definidoras da metanarrativa moderna, e Lyotard aponta
isto, é sua inescapável aliança com a teleologia. Toda metanarrativa, enquanto filosofia da
história, está imbuída com um télos, um destino final, e fatal, que inexoravelmente será
alcançado, para o bem ou para o mal. Não obstante, a metanarrativa global não admite este
preceito, uma vez que, como tentei apresentar neste texto, ela incorporou elementos do
pensamento pós-moderno, a história global visa produzir metanarrativas que criem sentido para
uma era de globalidade, e criar sentido numa sociedade que já passou pela experiência da pós-
modernidade é criar sentido sem precisar fundamentá-lo numa teleologia, num final da História
enquanto tal.
Neste aspecto a história global se aproxima mais do pensamento pós-moderno, pois ao
criar metanarrativa ela visa, a partir de um conceito claro de totalidade histórica, dar voz à
multiplicidade de novas histórias possíveis, ela visa explodir a teleologia multiplicando os fins
possíveis. E multiplicar estes fins significa multiplicar também os esquemas interpretativos sob
os quais ela pode se basear, é escapar da ontologia regional eurocêntrica, bem como de outras
ontologias regionais que visam se instalar num mundo globalizado. Multiplicar os esquemas
interpretativos, multiplicar os espaços de diálogo intercultural, multiplicar as pontes que ligam
as culturas.
Conclusão
À guisa de conclusão, cito Perez Zagorin, o historiador que polemizou com Ankersmit
quando da defesa deste do pós-modernismo na historiografia. Assim como a citação de Rüsen
serviu de pórtico deste texto, a de Zagorin servirá para encerrá-lo, uma vez que ela resume uma
posição que parece estar alinhada com a postura básica da história global.
Contrariamente à crença de Ankersmit, a expansão e fragmentação da historiografia
em nosso tempo, através do crescimento simultâneo da especialização e da expansão
16
de nossos horizontes históricos trouxe a necessidade de integração e síntese ainda
maiores do que antes. Essa é uma necessidade, além do mais, amplamente
reconhecida. Não se trata de buscar uma noção plena da história do mundo ou do
processo histórico, pois isto é quase certamente impossível. O que não impede ser
factível, porém, pensar em temas de larga escala de maneira geral, nem sobre questões
que transcendem as barreiras da disciplina e especialização para obter uma
compreensão de sociedades e civilizações inteiras e de áreas amplas do passado. Não
somente a moderna literatura histórica inclui numerosos exemplos deste tipo de obra,
como também sempre haverá historiadores com a ambição intelectual para trabalhar
problemas de significado e largueza excepcionais. (2001. p. 149-150)
Não se trata de fazer uma história total do mundo, de produzir uma noção plena,
enciclopédica, de todos os agentes históricos, individuais, locais, nacionais, regionais, etc.,
trata-se, isto sim, de fazer uma história integrada, que pense a universalidade, e não a totalidade,
das experiências históricas e que possam ser um contraponto à constante fragmentação do saber
histórico, além de ser também uma fonte de sentido histórico capaz de fornecer orientação numa
época em que multiplicam-se os processos de natureza macrohistórica. E isto com um duplo
objetivo: 1) não retornar à postura eurocêntrica da metanarrativa moderna, e 2) não cair na
armadilha das ontologias regionais e do relativismo cultural extremado pós-moderno.
17
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