Representações sociais sobre os direitos dos animais ... · representações sociais do...
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM POLTICAS PBLICAS
SUELI APARECIDA AGOSTINI
Representaes sociais sobre os direitos dos animais: subsdios para a
formulao de polticas pblicas de proteo aos animais de companhia e de
combate ao abandono de ces e gatos
Maring
2014
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SUELI APARECIDA AGOSTINI
Representaes sociais sobre os direitos dos animais: subsdios para a
formulao de polticas pblicas de proteo aos animais de companhia e de
combate ao abandono de ces e gatos
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Polticas Pblicas do Departamento
de Cincias Sociais da Universidade Estadual de
Maring, como requisito parcial para obteno do
ttulo de Mestre em Polticas Pblicas.
rea de concentrao: Elaborao de Polticas
Pblicas
Orientador: Walter Lucio de Alencar Praxedes
Maring
2014
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Biblioteca Central - UEM, Maring, PR, Brasil)
Agostini, Sueli Aparecida A275r Representaes sociais sobre os direitos dos
animais : subsdios para a formulao de polticas pblicas de proteo aos animais de companhia e de combate ao abandono de ces e gatos / Sueli Aparecida Agostini. -- Maring, 2014.
64 f. Orientador: Prof. Dr. Walter Lcio de Al encar
Praxedes. Dissertao (mestrado) - Universidade Es tadual de
Maring, Centro de Cincias Humanas Letras e Artes, Departamento de Cincias Sociais, Programa de Ps-Graduao em Polticas Pblicas, 2014.
1. Direitos dos animais. 2. Animais de c ompanhia
- Proteo - Polticas pblicas. 3. Animais - Polticas pblicas. 4. Direitos dos animais - Representaes sociais. 5. Animais de companhia - Abandono. I. Praxedes, Walter Lcio de Alencar, orient. II. Universidade Estadual de Maring. Centr o de Cincias Humanas Letras e Artes. Programa de Ps -Graduao em Polticas Pblicas. III. Ttulo.
CDD 22.ed. 344.049
SOI-002052
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Dedico este trabalho especialmente Mel (? 2012).
Cadelinha vira-lata que com sua esperteza
e olhar atento despertou o meu olhar
para os animais que vivem nas ruas.
voc, minha linda, que foi um dos
meus maiores tesouros, todo o meu amor.
Saudade infindvel...
Dedico tambm aos vira-latas caninos:
Nina, Betsy, Gigante e Juma,
e aos vira-latas felinos:
Pierre, Melo, Luli, Juju, Gato e Serelepe.
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AGRADECIMENTOS
A todas as pessoas, que direta ou indiretamente contriburam para a elaborao e concluso
deste trabalho.
Aos professores do programa de ps-graduao em Polticas Pblicas, pelo conhecimento
transferido e partilhado com o grupo.
Ao professor Dr. Walter Lucio de Alencar Praxedes, meu orientador, que aceitou lidar com
um tema to diverso de sua rea de atuao e, com sua competncia profissional, soube
indicar qual o caminho que eu deveria seguir para a elaborao desta dissertao de mestrado.
Aos professores que participaram da banca do exame de qualificao, Raymundo de Lima e
Fagner Carniel, que enriqueceram o texto com suas observaes.
amiga Luciane que, com o seu conhecimento na rea jurdica, indicou onde e como
encontrar a legislao de proteo e defesa dos animais.
amiga Laura pelo incentivo e exemplo, pois aos setenta anos de vida mantm a disposio
de uma jovem na batalha por melhores dias aos nossos queridos ces e gatos.
minha me Idalina e minha sobrinha Ariane que, durante minhas ausncias para a
realizao das disciplinas do curso, se dedicaram aos cuidados com os meus animais de
companhia, dedicando ateno especial sade frgil da Mel.
Aos ces e gatos, meus animais de companhia e tambm queles com quem tive algum
contato, porque foi atravs desse convvio que surgiu a inspirao para a realizao deste
trabalho.
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Cada animal que o homem escolher para companheiro tem direito a uma durao de vida
conforme sua longevidade natural
O abandono de um animal um ato cruel e degradante
Art. 6 - Declarao Universal dos Direitos dos Animais
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Representaes sociais sobre os direitos dos animais: subsdios para a
formulao de polticas pblicas de proteo aos animais de companhia e de
combate ao abandono de ces e gatos
RESUMO
Nesta dissertao, investigamos as representaes sociais sobre os direitos dos animais na
sociedade brasileira contempornea, para ser possvel compreender por que, no Brasil, o
animal ainda no conseguiu o status de sujeito de direito, por que ces e gatos, to prximos
ao homem e sua companhia, s vezes por um longo tempo, ainda so tratados como coisas
que podem ser descartadas a qualquer momento, sem nenhum sentimento de pena ou de
arrependimento e sem nenhuma punio quele que infringiu o direito vida livre de maus-
tratos e do abandono. Para o desenvolvimento desta dissertao, utilizou-se da teoria das
representaes sociais do socilogo Pierre Bourdieu, que defende as representaes sociais
como sendo, por um lado, uma gnese social dos esquemas de percepo, pensamento e ao
que so constitutivos do que ele chama de habitus e, de outro lado, as estruturas sociais,
chamadas por ele como campos sociais. O objetivo do trabalho apresentar propostas para a
formulao de polticas pblicas de proteo aos animais de companhia e de combate ao
abandono de ces e gatos, pois a superpopulao desses animais nos centros urbanos, sendo
em sua maioria vtimas da prtica do abandono, tem forado os rgos pblicos a encontrarem
solues para o problema. Para a identificao e apresentao dos direitos dos animais, no
Brasil, e para a observao das medidas adotadas no enfrentando do problema do abandono de
ces e gatos, foram realizadas pesquisas documental da legislao federal, estadual, municipal
e de obras bibliogrficas dos defensores desses direitos e visita a dois Municpios brasileiros,
So Carlos/SP e Florianpolis/SC.
Palavras-chave: Animais. Direitos. Representaes sociais. Abandono. Polticas pblicas de
proteo aos animais de companhia.
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Social representations on the rights of animals: subsidies for the formulation
of public policies for the protection of household pets and for fighting against
the abandonment of dogs and cats.
ABSTRACT
In this dissertation, the social representations on animal rights in contemporary Brazilian
society were investigated. The purpose was to seek to understand why animals have not yet
achieved the status of legal beings in Brazil, considering that cats and dogs have for a long
time lived very closely with human beings. Yet, they are still treated as objects that can be
disposed of at any moment, without any feelings of pity or regret. In addition, there is no
punishment for those who violate the animals rights to a life free from mistreatment and
abandonment. The theory of social representations developed by sociologist Pierre Bourdieu
was utilized in the development of this dissertation, since it claims that social representations
are, on the one hand, the social genesis of schemes of perception, thought and action, which
constitute what is named by him as habitus, and, on the other, the social structures, which are
named by him as social fields. The purpose of this work is to present proposals for the
formulation of public policies to protect household pets and to combat the abandonment of
dogs and cats, since the excessive population of such animals in urban centers have forced
public agencies to find solutions to this problem. In order to identify and present animal rights
in Brazil, and in order to observe the measures adopted to fight the problem of the
abandonment of dogs and cats, documental research was carried out at municipal, state and
federal legislation, as well as in the bibliography produced by the defenders of such rights,
and visitation to two Brazilian cities, So Carlos, in the State of So Paulo, and Florianpolis,
in the State of Santa Catarina.
Keywords: Animals. Rights. Social representations. Abandonment. Public policies for the
protection of household pets.
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SUMRIO
1 INTRODUO ..................................................................................................................... 9
2 OS DIREITOS DOS ANIMAIS NO CAMPO JURDICO BRASILEIRO ................... 15
2.1 LEGISLAO FEDERAL DE PROTEO AOS ANIMAIS ........................................ 15
2.2 LEGISLAO DE PROTEO AOS ANIMAIS NO ESTADO DO PARAN ............ 19
2.3 LEGISLAO DE PROTEO AOS ANIMAIS NO MUNICPIO DE LONDRINA .. 22
3 REPRESENTAES SOCIAIS SOBRE OS DIREITOS DOS ANIMAIS E SOBRE
O BEM-ESTAR DE CES E GATOS ................................................................................. 24
3.1 O ANIMAL COMO SUJEITO DE DIREITO E O ANIMAL COMO OBJETO DE
DIREITO .................................................................................................................................. 26
3.2 AS GRANDES VERTENTES TICAS DE DEFESA DOS DIREITOS ANIMAIS ..... 27
3.3 AS REPRESENTAES SOCIAIS SOBRE OS DIREITOS DOS ANIMAIS NO
ESPAO SOCIAL BRASILEIRO ........................................................................................... 29
4 POLTICAS PBLICAS DE PROTEO AOS ANIMAIS DE COMPANHIA E DE
COMBATE AO ABANDONO DE CES E GATOS ......................................................... 38
4.1 PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAO AMBIENTAL (ProNEA) ........................ 38
4.2 CONTROLE POPULACIONAL DE CES E GATOS .................................................... 40
4.3 AS DELEGACIAS DE PROTEO E DEFESA DOS ANIMAIS .................................. 44
4.4 O MINISTRIO PBLICO DO MEIO AMBIENTE ...................................................... 46
4.5 A DEFENSORIA PBLICA ............................................................................................. 49
4.6 MUNICPIOS BRASILEIROS QUE ADOTARAM MEDIDAS DE PROTEO E
DEFESA DOS ANIMAIS ........................................................................................................ 50
4.6.1 Medidas de Proteo e Defesa dos Animais, adotadas pelo Municpio de So
Carlos (SP) ....................................................................................................................... 51
4.6.2 Medidas de Proteo e Defesa dos Animais, adotadas pelo Municpio de
Florianpolis (SC) ........................................................................................................... 52
5 CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................. 55
REFERNCIAS .................................................................................................................. 58
ANEXO 1 Declarao Universal dos Direitos dos Animais .............................................. 63
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1 INTRODUO
A humanidade vive uma poca em que preservar o meio ambiente questo de
manuteno da vida de todos os seres vivos, inclusive do ser humano. Um planeta saudvel
onde os humanos possam viver em harmonia com os animais o objetivo das muitas pessoas
que fazem parte da Nao dos Direitos Animais. Esta Nao no possui uma localizao ou
territrio especficos, pois ela composta por pessoas que se unem em funo de valores e
compromissos para a defesa dos direitos bsicos dos animais que so definidos como: direito
liberdade, direito integridade fsica e direito vida.
As percepes sociais construdas em torno da necessidade de preservar o meio
ambiente, castigado pela degradao desenfreada e a possibilidade iminente de esgotamento
dos recursos naturais e, consequentemente, a extino de vrias espcies, foi o ponto inicial da
mudana de paradigma em relao importncia de um meio ambiente saudvel para
humanos e no humanos. Essa nova realidade social beneficiou a flora e tambm a fauna
Os animais por muito tempo foram considerados, pela maioria das pessoas, seres
desprovidos de qualquer sentimento, como se fossem mquinas, influncia ainda da tese do
filsofo francs Ren Descartes (ROCHA, 2004), para quem os animais eram desprovidos de
alma, logo no possuam pensamento e, consequentemente, no sentiam dor. Para os
seguidores desse entendimento, maltratar animais era algo comum, no consideravam como
sendo algo ruim.
Contrrios ao pensamento de Descartes, outros filsofos vieram em defesa dos animais.
Entre eles destacamos o filsofo e jurista ingls Jeremy Bentham (SINGER, 2010) cujo
ensinamento se ops ao entendimento de seu antecessor, ao afirmar que os animais sofriam as
dores dos maus-tratos. Para Bentham, o que importava era a capacidade que os animais
tinham de sofrer e no se podiam raciocinar ou falar.
No mundo contemporneo, os animais recebem a proteo do Estado por intermdio da
positivao de seus direitos e, em funo de leis protetivas e do interesse de grupos que lutam
por esses direitos, passaram a ter um espao significante na agenda poltica das Naes da
Europa e nos Estados Unidos. Em alguns casos, os animais chegaram ao ponto de
conquistarem o status de sujeitos de direito.
No Brasil, apesar dos avanos quanto preservao do meio ambiente, juridicamente os
animais ainda continuam na categoria de objetos de direito. Esse habitus, oriundo
especialmente do antropocentrismo, doutrina que considera o homem o centro de todas as
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coisas, pensamento predominante em pases judaico-cristos, no possibilita que no espao
social brasileiro os outros seres vivos possam viver com dignidade.
Alm da predominncia do antropocentrismo, o Brasil ainda possui inmeras
necessidades humanas no atendidas. Possui problemas interminveis com a gesto da sade
pblica, da educao pblica e da falta de moradia. Com tantos problemas humanos no
resolvidos, a soluo para os problemas dos maus-tratos aos animais e, especificamente, da
prtica do abandono de ces e gatos, nunca prioridade na pauta da agenda poltica brasileira.
Diante dessa realidade, at mesmo os responsveis pela elaborao das legislaes que
regem a Nao consideram os direitos fundamentais do meio ambiente como sendo de terceira
gerao, atrs, portanto, dos direitos do indivduo e dos direitos econmicos e culturais.
Contudo, felizmente, j existem movimentos organizados por pessoas interessadas em
defender o bem-estar dos animais e que lutam pela eficcia da legislao de proteo dos
animais, assim como pelo fim da prtica do abandono de ces e gatos.
Com a participao crescente das pessoas em movimentos de preservao do meio
ambiente e de proteo e defesa dos animais, as representaes sociais sobre os direitos dos
animais esto em constante construo, nos levando a crer que a Nao dos Direitos
Animais tende a crescer.
Tom Regan (2006), professor emrito de Filosofia da Universidade do Estado da
Carolina do Norte, nos Estados Unidos da Amrica, classifica os defensores dos direitos
animais em trs categorias: os vincianos, os damascenos e os relutantes. Para ele, os vincianos
j nascem com a conscincia animal e desde crianas conseguem penetrar no mistrio da vida
interior dos animais, no sendo, portanto, algo que lhes seja ensinado. Chama-os assim por
causa de Leonardo da Vinci que, segundo consta, nutria um amor natural pelos animais. Os
damascenos e os relutantes, por sua vez, so frutos da mudana de percepo da conscincia
animal. Os damascenos sofrem a mudana de forma abrupta, em funo de alguma
experincia nica e transformadora. A denominao vem da histria bblica de Saulo na
estrada de Damasco. Os relutantes so aquelas pessoas que avanam para a conscincia
animal passo a passo, pouco a pouco. Primeiro aprende uma coisa, depois outra, experimenta
isto, depois aquilo e assim vo seguindo o seu caminho, culminando, aqui, nesta dissertao
de mestrado.
Para o desenvolvimento desta dissertao, utilizou-se da teoria das representaes
sociais do socilogo Pierre Bourdieu (2004), para ser possvel compreender por que, no
Brasil, os animais ainda no conseguiram o status de sujeitos de direito. Por que ces e gatos,
to prximos ao homem e sua companhia, s vezes por um longo tempo, ainda so tratados
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como coisas que podem ser descartadas a qualquer momento, sem nenhum sentimento de
pena ou de arrependimento e, o pior, sem nenhuma punio severa quele que infringiu o
direito vida livre de maus-tratos e do abandono.
Bourdieu (2004) defende que, no prprio mundo social existem as estruturas objetivas
que independem da conscincia e vontade dos agentes sociais e que so capazes de orientar ou
coagir suas prticas e representaes.
Assim, as representaes sociais so esclarecidas por Bourdieu como sendo, por um
lado, uma gnese social dos esquemas de percepo, pensamento e ao que so constitutivos
do que ele chama de habitus e, de outro lado, h as estruturas sociais, chamadas por ele como
campos sociais.
O habitus construdo atravs do conhecimento de senso comum que os agentes
desenvolvem ao longo de suas vidas e de acordo com o espao que ocupam na sociedade.
Nesse caso a realidade social possui um sentido e uma estrutura de pertinncias especficas
para os seres humanos que nela vivem, agem e pensam. Os agentes pr-selecionam e pr-
interpretam o mundo que apreendem como a realidade de sua vida cotidiana, mediante uma
srie de construes de senso comum, tendo seu comportamento determinado por estes
objetos de pensamento.
Segundo Bourdieu (2004), o habitus acaba interferindo no desenvolvimento da
sociedade, formando outro tipo de estrutura que poder manter ou alterar a existente. Essas
estruturas paralelas tambm definem o rumo que a sociedade poder tomar.
Para se compreender a realidade social de uma determinada sociedade, preciso basear-
se nos objetos de pensamento, construdos pelo pensamento de senso comum dos homens que
vivem sua vida cotidiana em seu mundo social. Assim, a percepo da realidade social, as
perspectivas, os pontos de vistas, que os agentes tm sobre essa realidade, definidos a partir
da posio que ocupam no espao social objetivo, devem ser objeto da cincia social.
Conforme Bourdieu (2004), como as representaes sociais so construdas pelos
agentes de acordo com a posio ocupada no campo social, poder haver pontos de vista
diferentes e at antagnicos, j que dependem do ponto a partir do qual so tomados e, a viso
que cada agente tem do espao, depende de sua posio nesse campo.
Na comparao entre o espao social e o espao geogrfico, percebe-se que a tendncia
natural que quanto mais prximos estiverem os agentes, num determinado espao social,
maior probabilidade eles tero de pensarem e agirem de forma parecida e comum e, por opo
ou por fora, eles estaro mais prximos tambm no espao geogrfico. No entanto, os
agentes que esto mais afastados no campo social, podero at interagir por um breve tempo
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ou de forma intercalada no espao fsico, porm a distncia estrutural entre os campos
prevalecer sobre a interao social.
Considerando, segundo Bourdieu (2004), que as representaes sociais dos agentes
variam conforme a posio ocupada no campo social, isso significa que eles constroem o
habitus atravs de sua viso de mundo. Entretanto, essa construo delimitada por coaes
estruturais e pelos interesses que esto associados posio ocupada no campo social.
As relaes sociais, entre as posies ocupadas, iro conduzir as interaes e a
distribuio dos recursos que so, ou podem se tornar, eficientes, a exemplo dos trunfos de
um jogo.
A distribuio dos agentes no espao social global ser determinada, primeiramente, de
acordo com o volume global de capital possudo e, posteriormente, de acordo com o peso
relativo das diferentes espcies de capital, econmico e cultural, no volume total de seu
capital.
Assim, conforme Bourdieu (2004), as representaes sociais dos agentes variam
segundo sua posio e interesses associados a ela e segundo seu habitus, sendo ao mesmo
tempo um sistema de esquemas de produo de prticas e um esquema de percepo e
apreciao das prticas, construdo a partir da posio ocupada no campo social.
A problemtica que envolve o debate a ser discutido neste trabalho pode ser resumida
no questionamento sobre, quais as representaes sociais que so construdas atualmente, pela
sociedade brasileira, acerca dos direitos dos animais, em especial sobre o bem-estar dos
animais de companhia, e quais as medidas que esto sendo tomadas, pelos rgos pblicos
competentes, para uma efetiva proteo da integridade fsica e do bem-estar de ces e gatos.
O estudo sobre as representaes sociais dos direitos dos animais conduziu para a
tentativa de entender por que a sociedade e o ordenamento jurdico brasileiro, ainda enxergam
o animal como objeto e no como sujeito de direito, e porque os ces e gatos deixam a
posio de animais de companhia e passam a ser considerados como objetos descartveis.
Deste modo, o tema do trabalho veio ao encontro da necessidade urgente de se efetivar a
proteo dos animais de companhia. Optou-se pelo uso do termo companhia ao invs de
estimao, em decorrncia da concluso de que o termo companhia estaria mais adequado
em relao aos ces e gatos, pois estima significa: amor, respeito, afeto por alguma coisa ou
pessoa. Parece que quem comete o ato de abandono de um co ou de um gato no foi capaz de
lhe proporcionar estima, respeito e amor.
Muito embora a legislao brasileira tenha avanado, criando leis especiais de proteo
aos animais: federais, estaduais e at municipais, na verdade essas leis ainda no foram postas
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em prtica na sua totalidade, em razo da falta de estrutura necessria e do desinteresse do
Poder Pblico com o problema, haja vista que, como mencionado anteriormente, outras so as
prioridades dos governantes.
Uma sociedade que est em constante construo, tambm pode estar sujeita a mudar o
ponto de vista em relao situao do animal de companhia e, alm da inteno de mudar
esse paradigma, nesta dissertao de mestrado buscou-se contribuir para a formulao de
polticas pblicas eficientes, de proteo e bem-estar dos animais de companhia,
especialmente ces e gatos, e de combate ao abandono desses animais.
No 1 captulo, apresentamos uma discusso sobre a legislao de proteo aos animais
que se intensificou aps a promulgao da Declarao Universal dos Direitos dos Animais,
proclamada pela UNESCO em sesso realizada em Bruxelas (Blgica), em 27 de janeiro de
1978. Esse documento foi um passo importante no tocante proteo animal. Quase todos os
pases do mundo, inclusive o Brasil, assinaram o documento, no qual proposto que o
respeito aos animais no seja mais ignorado.
Apesar de no ter fora de Lei, a Declarao Universal dos Direitos dos Animais
levantou a questo sobre os direitos dos animais e abriu o caminho para a melhoria da
condio animal, com a elaborao de legislaes que institussem normas e formas que os
defendessem e prezassem pelo seu bem-estar.
No Brasil, a legislao sobre a proteo dos animais vem da dcada de 1930. A mais
antiga o Decreto-lei n 24.645, promulgado em 1934. Em 1988, com a promulgao da
Constituio Federal, o meio ambiente ganhou destaque no artigo 225 que trata sobre os
direitos sociais relativos ao meio ambiente; nesse artigo o poder constituinte evidenciou a
preocupao com o tema, dispensando a ele a proteo necessria.
Aps o advento da Constituio Federal de 1988, foi promulgada em 12 de fevereiro de
1998 a Lei Federal n 9.605, mais conhecida como a Lei de Crimes Ambientais, que dispe
sobre as sanes penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio
ambiente. Alm da legislao federal, temos ainda as legislaes estaduais, incluindo o Estado
do Paran e de alguns Municpios brasileiros, entre eles: o Municpio de Florianpolis/SC,
So Carlos/SP e o Municpio de Londrina, cidade localizada no interior do Estado do Paran,
que no ano de 2011 elaborou Lei Municipal de Proteo e Defesa dos Animais de Companhia.
No 2 captulo, apresentamos a reviso bibliogrfica dos textos utilizados para pesquisa
sobre os direitos fundamentais dos animais, de como esses direitos so considerados para
definir o status jurdico dos animais, nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil. Destacando
as representaes sociais sobre os direitos dos animais no espao social brasileiro, segundo os
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conceitos de Pierre Bourdieu, e a importncia que o bem-estar animal vem adquirindo ao
longo das ltimas dcadas.
No 3 captulo, propomos algumas polticas pblicas para a mudana de paradigma dos
brasileiros sobre os direitos dos animais e sobre o bem-estar de ces e gatos. Buscou-se nesse
captulo demonstrar quais rgos pblicos so responsveis pela tutela e proteo dos
animais, quais as necessidades desses rgos para que se conquiste a efetiva proteo dos
animais de companhia e quais medidas podero ser adotadas para preservar a vida e combater
a prtica de abandono dos ces e gatos.
Ainda, neste mesmo captulo, relatamos informaes obtidas em visitas, realizadas no
ano de 2013, a dois Municpios brasileiros: So Carlos, no Estado de So Paulo, e
Florianpolis, no Estado de Santa Catarina. Evidenciando que esses Municpios j adotaram
medidas de proteo aos animais, de controle populacional e de combate ao abandono de ces
e gatos.
Nas consideraes finais, detalhamos as propostas para a implementao das Polticas
Pblicas de Proteo aos Animais de Companhia e de Combate ao Abandono de Ces e
Gatos.
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2 OS DIREITOS DOS ANIMAIS NO CAMPO JURDICO BRASILEIRO
A Declarao Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela UNESCO em
sesso realizada em Bruxelas (Blgica), em 27 de janeiro de 1978, foi um passo importante no
tocante proteo animal. Quase todos os pases do mundo, inclusive o Brasil, assinaram o
documento, no qual proposto que os direitos dos animais no sejam mais ignorados.
Como j foi dito, apesar de no ter fora de Lei, a Declarao Universal dos Direitos
dos Animais levantou a questo sobre os direitos que os animais deveriam ter e abriu o
caminho para a melhoria da condio animal, com a elaborao de legislaes que
institussem normas e mtodos que os defendessem.
provvel que, no Brasil, os problemas econmicos e sociais existentes dificultem as
condies de vida do povo brasileiro e contribua no modo como a populao interprete os
direitos dos animais. Apesar dos problemas existentes, seguiu-se a tendncia mundial na
elaborao de legislao que protegesse o meio ambiente e consequentemente os animais. Os
legisladores brasileiros, no mbito federal, estadual e municipal, elaboraram Leis e Decretos,
adiante demonstrados, que cuidam da proteo e defesa dos animais, proporcionando-lhes o
direito vida livre de maus-tratos e do abandono.
2.1 LEGISLAO FEDERAL DE PROTEO AOS ANIMAIS
A legislao federal que dispe sobre normas de proteo aos animais tem como marco
inicial o Decreto Lei n 24.645/1934 que, em seu art. 1 decreta: todos os animais do pas so
tutelados do Estado. Para o ordenamento jurdico brasileiro, tutela significa o Direito Instituto
pelo qual se confere a algum autoridade para zelar por menores e interditos (proteo,
amparo, auxlio).
A Constituio da Repblica Federativa do Brasil, promulgada no ano de 1988, foi
produzida sob dogmas sociais e liberais advindos de seu perodo de criao, ou seja, aps a
queda da ditadura, num perodo de abertura e de valorizao dos direitos fundamentais que
so aqueles direitos indispensveis pessoa humana, os que no se podem viver sem eles,
como meio ambiente, por exemplo.
Buscando definir a Constituio de 1988, tem-se que:
Nossa Constituio a lei fundamental de organizao do Estado, pois
estrutura e delimita seus poderes polticos. a lei maior do pas, o vrtice do
sistema jurdico. Contm todas as normas fundamentais do Estado, estando
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todos sujeitos a seu imprio, inclusive os membros do governo. Deste modo,
ela confere autoridade aos governantes, que s podem exerc-la dentro dos
limites por ela traados. O carter rgido de suas normas sobrepe a todas as
demais normas jurdicas (PINHO, 2002, p.10-17).
No texto constitucional existem normas de contedos diversos: as que tratam da
estrutura do Estado; as que tratam dos limites de criao do Estado; as que se destinam
soluo dos conflitos constitucionais; as que possibilitam a aplicao dos prprios
dispositivos constitucionais, mas, especialmente, em virtude do tema que aqui se discute, as
normas que revelam o compromisso da ordem constitucional com determinados princpios
ideolgicos, no caso os da Ordem Social, dispostas no Captulo VI, do Ttulo VIII, o art.
225, que dispe sobre o meio ambiente.
A Constituio Federal trata no art. 225, dos direitos sociais relativos ao meio ambiente.
Nesse captulo o poder constituinte evidenciou a preocupao com o tema, dispensando a ele
a proteo necessria, com o seguinte teor em seu caput.
Todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Pblico e coletividade o dever de defend-lo e preserv-lo para as presente
e futuras geraes (BRASIL, 2004, p.70).
Alguns estudiosos da legislao brasileira defendem que o constituinte utilizou a
palavra todos de forma ampla, levando a entender que os animais fazem parte desse todos.
Segundo a definio legal disposta na Lei de Poltica Nacional do Meio Ambiente, n
6.938/81, em seu art. 3, inciso I, meio ambiente o conjunto de condies, leis, influncias
e interaes de ordem fsica, qumica e biolgica, que permite, abriga e rege a vida em todas
as suas formas.
Por ser o meio ambiente um bem jurdico tutelado pela norma constitucional, a
Constituio Federal considera sua preservao como uma tarefa do Estado (art. 225, 1 e
incisos). Deste modo, a tutela constitucional se faz necessria quando determinado bem no
protegido diretamente, necessitando de proteo do Poder Pblico.
Nesta esteira o 1 e o inciso VII, do art. 225, dispem sobre obrigatoriedade da
proteo do meio ambiente pelo Poder Pblico.
1 Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Pblico:
[...]
VII proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as prticas que
coloquem em risco sua funo ecolgica, provoquem a extino de espcies
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ou submetam os animais crueldade.
Entende-se por fauna todos os animais, incluindo os de companhia, ces e gatos. Neste
sentido, por ser o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado um direito subjetivo, o
ambiente como um fim estatal implica na:
Existncia de deveres jurdicos ao estado e demais poderes pblicos, em que
no cabe ao poder pblico decidir se o meio ambiente deve ou no ser
protegido, porque sua proteo decorre de imposio constitucional (NERY,
2009, p.688).
Sendo o meio ambiente compreendido como uma totalidade e os animais dele fazerem
parte, recebem a tutela do Estado porque essa tutela est determinada no art. 225, mais
especificamente no 1, inciso VII, como j mencionado, o que determina o dever do Estado e
da coletividade, de proteg-los e dar-lhes o respeito devido.
A Constituio Federal de 1988 foi inovadora ao tutelar, alm do direito individual
privado e do interesse pblico, os interesses transindividuais. Para facilitar seu entendimento,
esses interesses so definidos e classificados da seguinte maneira:
Esses interesses podem ser divisveis (cuja ciso possvel) ou indivisveis
(cuja ciso no possvel) e so assim classificados:
interesses difusos seus titulares so pessoas indeterminadas ou indeterminveis, ou seja, no possvel mensurar quais so as pessoas
titulares desses interesses, unidas preponderantemente por um fato,
constituindo-se em interesses indivisveis. Um exemplo um dano ambiental
provocado por determinada pessoa jurdica [...];
interesses coletivos [...];
interesses individuais homogneos[...]. Com relao aos interesses transindividuais, a Constituio Federal, alm de
prev-los, os garantiu por aes especficas: mandado de segurana coletivo,
ao popular e ao civil pblica (GALANTE, 2005, p.75-76).
Impende ressaltar ainda, as inmeras normas infraconstitucionais que se avolumaram ao
longo dos anos e que foram criadas a partir da norma geral (art.225) e da responsabilidade que
ela impe ao Estado, produzindo-se tais leis a partir do tratamento que a Constituio Federal
de 1988 consagra ao meio ambiente. So legislaes especficas que dependem
exclusivamente de serem postas em prtica e, especialmente, fiscalizadas, para que
efetivamente se cumpra a tutela pretendida de proteo ao meio ambiente.
Aps o advento da Constituio Federal de 1988, foi promulgada em 12 de fevereiro de
1998 a Lei Federal n 9.605, mais conhecida como a Lei de Crimes Ambientais. Ela dispe
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18
sobre as sanes penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio
ambiente.
Art. 2 Quem, de qualquer forma, concorre para a prtica dos crimes
previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua
culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e
de rgo tcnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatrio de pessoa
jurdica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a
sua prtica, quando podia agir para evit-la.
Na Lei de Crimes Ambientais est um dos artigos mais conhecidos e comentados entre
as pessoas envolvidas com a causa animal, porque ele dispe no Captulo V, Seo I, Dos
Crimes Contra a Fauna,
Art. 32 Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres,
domsticos ou domesticados, nativos ou exticos: pena - deteno, de trs
meses a um ano, e multa [...] 2 A pena aumentada de um sexto a um
tero, se ocorre morte do animal.
Se o Projeto de Lei n 2833/2011, que criminaliza condutas praticadas contra ces e
gatos j aprovado pela Comisso de Constituio e Justia da Cmara, for igualmente
aprovado pelo Plenrio da Cmara e sancionado pela Presidncia da Repblica, essa pena
poder chegar a 10 anos de priso, podendo ser em dobro se o crime for cometido por duas ou
mais pessoas ou pelo proprietrio ou responsvel pelo animal.
Nos casos em que o crime de maus tratos a animais tenha sido causado por criana at
12 (doze) anos de idade, incompletos, ou adolescente entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de
idade (art. 2 da Lei 8.069/90/ECA Estatuto da Criana e do Adolescente), a eles podem se
aplicar as medidas socioeducativas dispostas no art.112, incisos I a III, deste mesmo diploma,
em razo de serem penalmente inimputveis (art. 104 do mesmo Cdex e art. 228 da
Constituio Federal), ou seja, por no estarem sujeitos s penalidades impostas pelo Cdigo
Penal, aplicam-se a eles somente as penalidades que o estatuto determina.
Essas medidas preveem a advertncia, a obrigao de reparar o dano e a prestao de
servios comunidade.
Em complementao ao exposto acima, o Novo Cdigo Civil Brasileiro, vigente desde
janeiro de 2003, impe responsabilidade civil indireta aos responsveis por inimputveis, em
atos lesivos praticados por estes, em que seja possvel o ressarcimento civil do dano.
-
19
Art. 932 So tambm responsveis pela reparao civil:
I os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua
companhia;
II o tutor e curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas
mesmas condies.
Portanto, alm das penalidades determinadas pelo Estatuto da Criana e do Adolescente,
existir a necessidade da reparao civil, que recair sobre as pessoas citadas no artigo 932,
inciso I, do Novo Cdigo Civil Brasileiro, no caso da prtica de ato infracional ser cometido
por menores de dezoito anos, que seja vinculado por uma relao jurdica ao imputado.
2.2 LEGISLAO DE PROTEO AOS ANIMAIS DO ESTADO DO PARAN
O Estado do Paran, localizado na regio sul do pas, possui normas prprias de
preservao do meio ambiente, assim como de proteo dos animais. A Constituio Estadual
publicada no Dirio Oficial em 05 de outubro de 1989 dispe,
Art. 12 competncia do Estado, em comum com a Unio e os Municpios:
[...]
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluio em qualquer de suas
formas;
VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;
A Constituio Estadual do Paran dispe ainda, no captulo V, normas sobre o meio
ambiente, como no artigo:
Art. 207. Todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum e essencial sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Estado, aos Municpios e coletividade o dever de defend-lo e preserv-lo
para as geraes presente e futuras, garantindo-se a proteo dos
ecossistemas e o uso racional dos recursos ambientais.
1. Cabe ao Poder Pblico, na forma da lei, para assegurar a efetividade
deste direito:
I - estabelecer, com a colaborao de representantes de entidades ecolgicas,
de trabalhadores, de empresrios e das universidades, a poltica estadual do
meio ambiente e instituir o sistema respectivo constitudo pelos rgos do
Estado, dos Municpios e do Ministrio Pblico;
[...]
X - promover a educao ambiental em todos os nveis de ensino e a
conscientizao pblica para a preservao do meio ambiente;
[...]
XIV - proteger a fauna, em especial as espcies raras e ameaadas de
extino, vedadas as prticas que coloquem em risco a sua funo ecolgica
ou submetam os animais crueldade;
-
20
XV - proteger o patrimnio de reconhecido valor cultural, artstico, histrico,
esttico, faunstico, paisagstico, arqueolgico, turstico, paleontolgico,
ecolgico, espeleolgico e cientfico paranaense, prevendo sua utilizao em
condies que assegurem a sua conservao;
2. As condutas e atividades poluidoras ou consideradas lesivas ao meio
ambiente, na forma da lei, sujeitaro os infratores, pessoas fsicas ou
jurdicas:
I - a obrigao de, alm de outras sanes cabveis, reparar os danos
causados;
II a medidas definidas em relao aos resduos por elas produzidos;
III - a cumprir diretrizes estabelecidas por rgo competente.
Alm da proteo instituda a partir da Constituio Estadual, foi publicado no Dirio
Oficial do Paran, no dia 11 de abril de 2003, o Cdigo Estadual de Proteo aos Animais,
contendo 31 artigos, com destaque para:
Art. 2 vedado:
I - ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo
de experincia capaz de causar-lhes sofrimento, humilhao ou dano, ou que,
de alguma forma, provoque condies inaceitveis para sua existncia;
II - manter animais em local desprovido de asseio, ou que no lhes permita a
movimentao e o descanso, ou que os prive de ar e luminosidade;
III - obrigar animais a trabalhos extenuantes ou para cuja execuo seja
necessria uma fora superior que possuem;
IV - impingir morte lenta ou dolorosa a animais cujo sacrifcio seja
necessrio para o consumo. O sacrifcio de animais somente ser permitido
nos moldes preconizados pela Organizao Mundial de Sade;
V - exercer a venda ambulante de animais para menores desacompanhados
por responsvel legal;
VI - enclausurar animais com outros que os molestem ou aterrorizam;
Em maio de 2009, foi publicada a Lei n 16.101 que veda, no mbito do Estado, a
prestao de servios de vigilncia por ces de guarda, com fins lucrativos.
Mais recentemente foi publicada, a Lei n 17.422, de 18 de dezembro de 2012, que
dispe sobre o controle tico da populao de ces e gatos no Estado. Essa Lei est vigente
desde junho/2013.
O Estado possui ainda a Lei n 17.505, de 11 de janeiro de 2013, que instituiu a Poltica
Estadual de Educao Ambiental e o Sistema de Educao que direciona para:
Art. 1 A Poltica Estadual de educao Ambiental do Paran criada em
conformidade com os princpios e objetivos da Poltica Nacional de
Educao Ambiental (PNEA) e do Programa Nacional de Educao
Ambiental (ProNEA), articulada com o sistema de meio ambiente e
educao em mbito federal, estadual e municipal.
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21
Art. 2 Entende-se por educao ambiental os processos contnuos e
permanentes de aprendizagem, em todos os nveis e modalidades de ensino,
em carter formal e no-formal, por meio dos quais o indivduo e a
coletividade de forma participativa constroem, compartilham e privilegiam
saberes, conceitos, valores socioculturais, atitudes, prticas, experincias e
conhecimentos voltados ao exerccio de uma cidadania comprometida com a
preservao, conservao, recuperao e melhoria do meio ambiente e da
qualidade de vida, para todas as espcies.
Art. 3 Todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
cabendo ao Poder Pblico e coletividade o compromisso de desenvolver a
sustentabilidade, o respeito e a valorizao da vida em todas as suas formas
de manifestao, na presente e nas futuras geraes.
Encontramos tambm na Constituio do Estado do Paran, no Captulo IV onde dispe
sobre as Funes Essenciais da Justia, na Seo I, o Ministrio Pblico, que a instituio
permanente, essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem
jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individuais indisponveis, sendo
que,
Art. 120. So funes institucionais do Ministrio Pblico:
I - promover, privativamente, a ao penal pblica, na forma da lei;
II - zelar pelo efetivo respeito dos poderes pblicos e dos servios de
relevncia pblica aos direitos assegurados nesta Constituio e na da
Repblica, promovendo as medidas necessrias sua garantia;
III - promover o inqurito civil e ao civil pblica, para proteo do
patrimnio pblico e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos
e coletivos;
[...]
X - participar em organismos estatais de defesa do meio ambiente, do
trabalhador, do consumidor, de menores, de poltica penal e penitenciria e
outros afetos a sua rea de atuao;
XI - receber peties, reclamaes, representaes ou queixas de qualquer
pessoa por desrespeito aos direitos assegurados na Constituio Federal e
nesta, promovendo as medidas necessrias sua garantia;
O Ministrio Pblico atua como um aliado na defesa do meio ambiente e dos animais,
em razo da competncia que a Constituio Federal lhe atribui, incumbindo-lhe a defesa da
ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais.
ainda na Constituio do Estado que encontramos a legislao que define a
necessidade e obrigatoriedade da elaborao do plano diretor dos municpios, conforme o
seguinte artigo,
Art. 152. O plano diretor, instrumento bsico da poltica de desenvolvimento
econmico e social e de expanso urbana, aprovado pela Cmara Municipal,
obrigatrio para as cidades com mais de vinte mil habitantes, expressando
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22
as exigncias de ordenao da cidade e explicitando os critrios para que se
cumpra a funo social da propriedade urbana.
1. O plano diretor dispor sobre:
[...]
IV - proteo ambiental;
Juntamente com a legislao federal e estadual h, ainda, a legislao especfica
municipal de proteo e defesa dos animais.
Vrios Municpios brasileiros j adotaram medidas de proteo e defesa dos animais de
companhia, de controle populacional e de combate ao abandono de ces e gatos. As medidas
desenvolvidas por dois Municpios brasileiros: So Carlos/SP e Florianpolis/SC sero
demonstradas adiante.
2.3 LEGISLAO DE PROTEO AOS ANIMAIS DO MUNICPIO DE LONDRINA
Dos Municpios do Estado do Paran que possuem legislao prpria de proteo e
combate ao abandono de ces e gatos, destacamos a cidade de Londrina, localizada na regio
norte do Estado, que incluiu na elaborao do seu Plano Diretor do Municpio a Lei
Municipal n 11.468, de 29 de dezembro de 2011, que instituiu o Cdigo de Posturas.
A opo por destacar a legislao do Municpio de Londrina, foi em funo da
oportunidade, como residente na cidade, de ter participado das oficinas de trabalho e das
conferncias pblicas que discutiram o Cdigo de Posturas e, assim, contribuir efetivamente
para a elaborao da referida Lei.
A Lei n 11.468 dispe no Captulo IV sobre As Medidas Referentes a Animais, na
qual destaca-se o seguinte artigo:
Art. 50. Todo proprietrio de animal considerado seu guardio, devendo
zelar por sua sade e bem-estar e exercer a guarda responsvel que consiste
em:
I - mant-lo alimentado e que tenha fcil acesso gua e comida;
II - mant-lo em local adequado ao seu porte, limpo, arejado, com acesso
luz solar, com proteo contra as intempries climticas e com fcil acesso;
III - manter a vacinao em dia;
IV- proporcionar cuidados mdicos veterinrios e zootcnicos sempre que
necessrio;
V - proporcionar caminhadas e brincadeiras frequentes, com a finalidade de
lazer e sade do animal;
VI - remover os dejetos deixados pelo animal em vias e logradouros
pblicos, bem como reparar e ressarcir os danos causados por este a
terceiros.
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23
1 O proprietrio no poder abandonar o animal sob qualquer pretexto em
logradouros ou vias pblicas ou em imveis alheios.
Contudo, apesar do Municpio londrinense ter considerado as medidas referentes a
animais em seu Plano Diretor, muito h por fazer, pois a gesto municipal ainda no
conseguiu resolver o problema do abandono de ces e gatos.
Embora no haja estudo oficial sobre o quantitativo de animais abandonados muito
comum a presena, principalmente de ces, pelas ruas da cidade, sendo que o problema mais
acentuado nos bairros da periferia onde situa-se a parte mais carente da populao.
Ao considerarmos as representaes sociais presentes na legislao de proteo aos
animais, no Brasil, percebemos que houve avanos e que so favorveis aos direitos dos
animais de companhia a viverem livres de maus-tratos e do abandono, porm em funo do
habitus do antropocentrismo e da condio de vida dos brasileiros, ainda esto muito distantes
da sua efetividade prtica, no cotidiano das gestes pblicas das trs esferas de governo e na
vida cotidiana dos brasileiros.
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24
3 REPRESENTAES SOCIAIS SOBRE OS DIREITOS DOS ANIMAIS E SOBRE O
BEM-ESTAR DE CES E GATOS
O espao social, de acordo com Bourdieu (2004), uma representao
multidimensional e relacional da estrutura da sociedade, de acordo com o volume e a estrutura
do capital cultural, econmico ou social em posse das diferentes classes sociais em conflito.
Como as representaes sociais so construdas pelos agentes de acordo com a posio
ocupada no campo social, poder haver pontos de vista diferentes e at antagnicos, j que
dependem do ponto a partir do qual so tomados e a viso que cada agente tem do espao
depende de sua posio nesse campo.
Numa sociedade composta pela sua maioria de pessoas carentes de direitos bsicos,
como o caso da sociedade brasileira e com formao fundamentalmente crist, quais as
representaes sociais que podem ser construdas, sobre os direitos dos animais? Esta
pergunta tentar ser respondida atravs da reviso bibliogrfica das obras que foram utilizadas
para o desenvolvimento desta dissertao de mestrado.
O senso comum predominante de que o animal pode ser descartado, como se descarta
um objeto velho, foi construdo por vrios anos de antropocentrismo e tambm pela influncia
de alguns pensadores, entre os quais destacamos o filsofo Ren Descartes, para quem os
animais seriam autmatos como se fossem mquinas,
O filsofo diferencia trs graus de sensao. Segundo o que afirma, devemos
distinguir trs graus de resposta sensorial. O primeiro se limita ao estmulo
imediato dos rgos corpreos, ou seja, afeco imediata de um rgo
corpreo por um objeto externo; o segundo grau de sensao consiste em
qualquer resultado mental imediato dessa afeco, tal como, a percepo da
dor, da fome, do calor, da cor etc; e o terceiro consiste nos juzos que
fazemos a partir do movimento nos rgos corpreos [...]. A tese acerca da
impossibilidade de atribuio de sensaes aos animais , portanto, bastante
clara: o que Descartes nega aos animais o segundo e terceiros graus de
sensao, isto , a conscincia da sensao e o juzo que envolve a sensao,
o que implica na negao do sofrimento e da expresso deste, mas no nega
o primeiro grau de sensao, que envolve apenas estmulos e movimentos
corpreos e uma possvel expresso desses movimentos (ROCHA, 2004, p.
353-354).
Contrrio ao pensamento de Descartes, o livro Libertao Animal, de Peter Albert
David Singer (2010), filsofo e historiador, nascido em Melbourne, Austrlia e residindo nos
Estados Unidos, um bom exemplo sobre o movimento pelos direitos dos animais. Sua
primeira verso foi escrita e publicada em 1975.
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25
Embora o autor tenha destacado em sua obra os sofrimentos dos animais de criao para
alimento humano e dos animais para pesquisas cientficas, os direitos destes, defendidos por
ele, so tambm os mesmos direitos dos animais de companhia.
A professora, escritora e filsofa Snia Teresinha Felipe, considera o sofrimento como
sendo consequncia de:
Tendo nascido na forma de vida chamada animal, todos os indivduos, no
importa a espcie, canina, felina, bovina, suna, caprina, avina ou humana,
so dotados por natureza de um aparato que os acompanha por toda a vida,
um sistema nervoso central organizado e um diencfalo, sede dos estmulos
confortantes e dos ameaadores, gravados e recriados pelos nociceptores a
cada movimento, dia por dia, ano aps ano, at a morte. Esse arquivo mental
individual forma a mente do animal. Por isso, no h dois animais com a
mesma mente, embora todos a tenham. [...] A emoo com a qual cada uma
das nossas experincias gravada em nossa mente basicamente a mesma
em todos os animais. O que varia, obviamente, a intensidade do estmulo
que causa dor, medo, alegria ou sofrimento (FELIPE, 2013, p. 2).
Singer (2010) cita em sua obra a escola reformista-utilitarista de filosofia moral, cujo
fundador foi Jeremy Bentham, jurista ingls e inventor do termo deontologia (deon =
obrigao; logia = estudo). Esse termo utilizado para se referir ao ramo da tica cujos
objetos de estudo so: princpios, fundamentos e sistemas de moral. A deontologia tambm
conhecida como o tratado dos deveres. Bentham escreveu:
Talvez chegue o dia em que o restante da criao animal venha a adquirir os
direitos que jamais poderiam ter-lhe sido negados, a no ser pela mo da
tirania. Os franceses j descobriram que o escuro da pele no razo para
que um ser humano seja irremediavelmente abandonado aos caprichos de um
torturador. possvel que um dia se reconhea que o nmero de pernas, a
vilosidade da pele ou a terminao do osso sacro so motivos igualmente
insuficientes para abandonar um ser senciente ao mesmo destino. O que mais
deveria traar a linha intransponvel? A faculdade da razo, ou, talvez, a
capacidade da linguagem? Mas um cavalo ou um co adultos so
incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que um beb de um
dia, de uma semana, ou at mesmo de um ms. Supondo, porm, que as
coisas no fossem assim, que importncia teria tal fato? A questo no
Eles so capazes de raciocinar?, nem So capazes de falar?, mas, sim:
Eles so capazes de sofrer? (Bentham, apud SINGER, 2010, p.12).
Bentham sustenta que a condio necessria para que um ser seja eticamente
considervel a sencincia, ou seja, basta que tenha a capacidade de sentir dor ou prazer. Ele
sugere tambm que a desconsiderao dos sofrimentos dos animais pode ser comparada a
desconsiderao dos sofrimentos de seres humanos, como exemplo: os negros. Parece ter
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26
sido assim o primeiro autor a sugerir uma analogia entre o racismo e a atitude que muito mais
tarde seria designada como especismo: a descriminao baseada na espcie (GALVO, p.
15).
3.1 O ANIMAL COMO SUJEITO DE DIREITO E O ANIMAL COMO OBJETO DE
DIREITO
Enquanto aguardamos o dia em que a sencincia seja realmente capaz de se sobrepor
racionalidade e possibilidade da fala, veremos como os direitos dos animais,
especificamente os de companhia, ces e gatos, so considerados pela sociedade brasileira.
Diferente dos Estados Unidos e da maioria dos pases da Europa, onde os animais j
conseguiram o status de sujeitos de direito, no Brasil os animais ainda so considerados como
objetos de direito e como tal so classificados como bens semoventes, ou seja, aqueles que
andam ou se movem por si. Entretanto, o mais correto seria consider-los como sujeitos de
direito, pois eles no podem ser equiparados a simples objetos ou mquinas,
difcil considerar que os animais possam ser reduzidos a conjuntos
mecnicos primitivos, porquanto o animal tambm o mecnico do seu
prprio corpo. Nesse sentido, torna-se difcil ver os animais como coisas, e
vale mais represent-los como sujeitos cuja actividade se organiza com base
na aco e na percepo. Os animais so compostos por rgos e no por
peas como as mquinas. So animados por um sujeito e no por um motor.
O conjunto dos rgos constitui um concerto que rege a tonalidade viva do
animal no seu todo. Quando essa tonalidade desaparece, o animal morre
(LESTEL, 2001, p.200).
Uma vez considerados como bem, os animais podem ser vendidos, doados ou, como
pensam muitas pessoas, simplesmente descartados.
Quando o co ou gato pertencem a uma raa pura so suscetveis de valor econmico e,
enquanto for conveniente, sero mantidos por seus proprietrios. Todavia, quando esses
animais so fruto da mistura de raas, ou seja, os considerados sem raa definida ou,
simplesmente vira-latas, no possuem valor econmico, sendo ento as principais vtimas
do abandono,
A domesticao e o antropomorfismo tornaram os animais mais prximos do
convvio humano e cada vez mais dependentes e vulnerveis. Alm de serem
tratados como coisas, muitos animais so tratados como coisas de ningum.
Poucos dos que vagam pelas ruas se encontram na categoria de foragidos,
mas a maioria ou j nasce no descaso dos sem-teto, filhos de outros res
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27
nullis, ou so abandonados pelos seus donos, porque se tornaram velhos,
doentes e inteis ao trabalho. o nico momento em que o proprietrio
abdica de seu direito de propriedade, na hora de descart-los. [...] Quando
importunam os vizinhos e o condomnio, ou causam um desconforto a mais
na famlia, so simplesmente abandonados (NOGUEIRA, 2012, p.218).
O intenso abandono de ces e gatos fez surgir um novo grupo social: os acumuladores
de animais. Podemos definir o acumulador de animais como aquela pessoa que, na nsia de
socorrer o co ou gato, vtima do abandono, no mede esforos para resgat-los e nem a
capacidade fsica e financeira para abrig-los e aliment-los. Vai acumulando os animais em
espaos imprprios, sem levar em considerao as necessidades que eles possuem para o seu
bem-estar. Essas pessoas acreditam estar ajudando os animais, porm, em alguns casos, esto
apenas prolongando seu sofrimento.
Abandonar os animais implica em causar-lhes dor, tormento, sofrimento e
morte. Manter todos os animais, nascidos no mbito domiciliar, implica em
no ter espao digno para os animais, no poder manter o ambiente limpo e
arejado, no poder dar o alimento adequado e, finalmente, transformar a
prpria casa em um grande campo de concentrao animal. Isso acontece
com os colecionadores que comeam a adotar um animal e seguem adotando
todos os desvalidos, mesmo que no tenham condies financeiras para
sustent-los. Se o abandono no a soluo, o acmulo tambm no .
Nenhuma dessas formas resolve a questo (FELIPE, 2013, p.5).
A diferena, entre os acumuladores e os defensores dos direitos animais, est na forma
como esses dois grupos sociais enfrentam o problema do abandono de ces e gatos. O
primeiro grupo est focado no resgate, recolhimento e manuteno dos animais. O segundo
grupo se dedica mais s lutas cotidianas da busca do reconhecimento dos direitos
fundamentais dos animais.
Ao utilizarmos o conceito de campo de Bourdieu entendemos que esses agentes sociais
possuem pontos de vista diferenciados, pois ocupam posies diferenciadas no campo social,
o que acaba causando conflitos de ideias e posicionamentos. Nessa luta pelo bem-estar dos
animais, cada grupo vai mantendo sua prpria estrutura e criando seu objeto prprio.
3.2 AS GRANDES VERTENTES TICAS DE DEFESA DOS DIREITOS ANIMAIS
Importante saber que existem duas grandes vertentes ticas, compartilhadas entre os
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28
defensores dos direitos animais: Bem-estar Animal1 e Abolicionismo Animal
2. Os
welfaristas defendem o bem-estar dos no humanos em razo do princpio da igual
considerao de interesses, sendo esta a vertente dominante.
Ao afirmar que devemos considerar os interesses de todos os seres com capacidade de sofrer ou sentir prazer, Bentham no deixa arbitrariamente de
admitir a considerao de quaisquer interesses como o fazem os que
traam a linha de referncia posse da razo ou da linguagem. A capacidade
de sofrer e de sentir prazer um pr-requisito para um ser ter algum
interesse, uma condio que precisa ser satisfeita antes que possamos falar
de interesse de maneira compreensvel. Seria um contrassenso afirmar que
no do interesse de uma pedra ser chutada na estrada por um menino de
escola. Uma pedra no tem interesses porque no sofre. Nenhum modo de
atingi-la far diferena para o seu bem-estar. A capacidade de sofrer e de
sentir prazer, entretanto, no apenas necessria, mas tambm suficiente
para que possamos assegurar que um ser possui interesses - no mnimo, o
interesse de no sofrer. Um camundongo, por exemplo, tem interesse em no
ser chutado na estrada, pois, se isso acontecer, sofrer (SINGER, 2012,
p.13).
Bem-estar animal um termo abrangente que diz respeito ao bem-estar fsico e mental.
Convencionou-se que para ter bem-estar os animais necessitam das cinco liberdades, que
foram originalmente desenvolvidas pelo Conselho do Bem-Estar de Animais de Produo do
Reino Unido (Farm Animal Welfare Council FAWC), em 2003. As cinco liberdades so
internacionalmente reconhecidas e determinam que para ter bem-estar os animais tm o
direito de viver,
Livres de fome e sede. Livres de desconforto. Livres de dor, ferimentos e
doenas. Livres de medo e angstia. Livres para expressar seu
comportamento natural (WSPA, 2014).
Os abolicionistas, por sua vez, propem uma libertao dos animais por meio da
considerao de seus direitos subjetivos, j que so sujeitos-de-uma-vida. Esse movimento
luta contra qualquer uso de animais no-humanos como propriedades dos seres humanos.
Tom Regan um dos defensores desta vertente.
O senso comum e o significado das palavras na nossa linguagem comum
sustentam a resposta afirmativa. Os comportamentos comuns entre ns,
_____________ 1 Conhecida por Animal Welfare.
2 Conhecida por Animal Rights.
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assim como nossas estruturas anatmicas comuns, sustentam essa resposta.
Nossos sistemas neurolgicos comuns e consideraes sobre nossas origens
comuns, seja atravs da evoluo, seja como uma criao separada de Deus,
sustentam essa resposta. Se olharmos a questo com olhos imparciais,
veremos um mundo transbordante de animais que so no apenas nossos
parentes biolgicos, como tambm nossos semelhantes psicolgicos. Como
ns, esses animais esto no mundo, conscientes do mundo e conscientes do
que acontece com eles. E, como ocorre conosco, o que acontece com esses
animais importante para eles, quer algum mais se preocupe com isto ou
no. A despeito de nossas muitas diferenas, os seres humanos e os outros
mamferos so idnticos neste aspecto fundamental, crucial: ns e eles
somos sujeitos-de-uma-vida (REGAN, 2006, p.72).
Assim, voltando ao conceito de campo de Bourdieu, aqui tambm teremos dois grupos
sociais formados por agentes que tero pontos de vista diferenciados entre si e entre os
grupos, ocupando uma posio que ser definida pelo volume e pela estrutura do capital
eficiente no campo.
Podemos perceber que ocorrem divergncias e conflitos, porm, apesar da luta ser
realizada de acordo com a posio ocupada por cada agente, todos eles, a seu modo,
defendem os direitos dos animais.
3.3 AS REPRESENTAES SOCIAIS SOBRE OS DIREITOS DOS ANIMAIS NO
ESPAO SOCIAL BRASILEIRO
Trazendo esta discusso para o tema aqui proposto: as representaes sociais sobre os
direitos dos animais no espao social brasileiro, veremos que, em funo da forte influncia
do antropocentrismo, agravada pelos problemas econmicos e sociais e pela falta de
efetividade da aplicao da legislao brasileira, nem mesmo a vertente do bem-estar animal
atende de forma satisfatria as necessidades fsicas e prprias dos animais de companhia,
Bem-estar fsico tem a ver com a presena dos elementos que propiciam
condies de manuteno do organismo com sade e sem privaes. Bem
prprio, por sua vez, tem a ver com o esprito do animal, com a expresso
dele de acordo com a espcie na qual nasce marcada pela sua singularidade
individual. Nenhum animal igual ao outro, quando se trata de falar do bem
prprio. Cada animal precisa estar livre e ter autonomia para buscar o que
sua natureza ou bagagem gentica lhe garante, mas fazer isso com um trao
que singularize sua passagem no mundo (FELIPE, 2013, p.3).
Mesmo aquele animal que vive em um lar estruturado, muitas vezes sofre a falta de um
companheiro da mesma espcie,
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30
comum uma famlia possuir apenas um animal de estimao, enquanto o
ideal seria pelo menos uma companhia da mesma espcie. Por estar
acostumado a tratar os animais como objetos, mesmo o ser humano que
acredita estar tratando-o de forma solidria e correta, pode estar imputando
um determinado mal ao mesmo. No raro esquecido que ele um ser vivo
com estado psicossocial a ser preservado, tanto quanto sua condio fsica.
Ainda que o animal trabalhe em conjunto com o homem em atividades
solidrias e no exploratrias, como o co-guia e o co-alegria (d apoio
moral em hospitais, orfanatos e asilos), seu proprietrio no pode esquecer
que ele um ser vivo e precisa comer, descansar, de carinho, de contato com
seres da mesma espcie etc.(NOGUEIRA, 2012, p.191).
A presena de um animal de companhia preenche a necessidade de sociabilidade do ser
humano. O contato fsico com um animal muito mais simples, pois, no h preocupao
com a interpretao que o outro far sobre o gesto de carinho.
A espcie humana a nica espcie animal que retm junto a si animais de
outras espcies, para fazer uso deles e atender diferentes interesses humanos,
tidos como interesses essenciais. Assim, na histria humana, demos incio
prtica de reter animais em nossos domiclios para fins de estima, guarda e
companhia. H mais de dez mil anos nascia a convivncia de ces e de gatos
com humanos. Mas, enfatizo, h dez mil anos no vivamos em cidades, no
nos trancvamos em apartamentos, no murvamos nem gradevamos
nossas residncias (FELIPE, 2013, p.3).
Como j foi dito anteriormente, as representaes sociais sobre os direitos dos animais
no espao social brasileiro poderiam ser atribudas ao habitus predominante do
antropocentrismo, o qual considera que tudo existe em funo do ser humano. Este sentimento
foi construdo por muitos anos de domnio da religio crist, a qual coloca o homem como
filho do Deus soberano e criador,
O homem era uma criatura distinta dos outros seres. Ele era especial e,
portanto, era superior, podendo exercer o domnio sobre os outros seres,
decidindo-lhes a vida e a morte. Para muitos estudiosos, foi a viso bblica
quem mais autorizou a superioridade sem fronteiras do ser humano sobre os
animais (NOGUEIRA, 2012, p. 19).
Entretanto, o entendimento geral de que o homem foi criado para dominar as demais
criaturas est equivocado, pois o homem pertence natureza, assim como a natureza pertence
ao homem, um necessita do outro para sua prpria sobrevivncia,
Em que pese entendimentos contrrios, ainda que a Bblia seja lida na verso
crist da criao, no se pode interpret-la de forma literal, isolando
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versculos e captulos. Ao contrrio, como bem entendeu precursoramente
Santo Agostinho, a interpretao da doutrina crist deve basear-se em sua
essncia. Sendo uma sistematizao de ideias, deve conter uma
principiologia prpria que conduz o intrprete de suas linhas essncia do
fundamento bblico: o amor. Princpios mximos da doutrina crist tais como
a preservao da vida, da solidariedade, da irmandade e do amor, devem ser
o norte da literalidade bblica. No se pode entender que o objetivo de Deus,
ao fazer o homem sua semelhana, seja para exercer domnio de pavor e
sofrimento sobre as demais espcies (NOGUEIRA, 2012, p.22).
No ano de 1182 nascia uma das figuras mais importantes do cristianismo, um homem
chamado Giovani di Pietro di Bernardone, que mais tarde seria mundialmente conhecido
como So Francisco de Assis. Esse santo da Igreja Catlica foi o grande acolhedor dos
animais, chamando-os de irmos. Foi nomeado padroeiro dos animais e da ecologia pelo Papa
Joo Paulo II, em 1979, cuja festa litrgica acontece todo dia 4 de outubro, quando
comemorado tambm o dia dos animais e da natureza.
O pensamento caridoso de So Francisco e o tratamento que dispensava em
igualdade a todos os seres vivos, principalmente aos animais, o
transformaram em um homem alm de seu tempo, precursor de um
desprendimento crtico e anistiado das razes antropocntricas de sua poca
(NOGUEIRA, 2012, p. 21).
A expectativa dos defensores dos direitos animais que o 266 Papa da Igreja Catlica,
Francisco I, resgate o esprito acolhedor de So Francisco em relao aos animais e dirija o
olhar da Igreja para o bem-estar desses que, de acordo com a verso crist da criao, tambm
so criaturas de Deus.
Se considerarmos que o antropocentrismo, com o agravante dos problemas econmicos
e sociais e a no efetividade da legislao brasileira de proteo aos animais, moldam as
prticas dos agentes sociais, conseguimos compreender porque a maior parte da sociedade
brasileira ignora ou indiferente que ces e gatos circulem pelas ruas, com fome, com sede e
muitas vezes feridos.
Muitas pessoas ainda consideram esses animais como um estorvo, pois eles pedem
comida queles que esto comendo, pedem carinho queles que esto por perto, pedem
socorro queles que nem percebem sua presena. Algumas pessoas at se dizem penalizadas,
entretanto, no se dispem a socorr-los. A circulao de animais pelos centros urbanos so
cenas comuns no Brasil,
So 11h de uma tera-feira. Barba, Mailon, Menina e Jurema caam o sol
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para o cochilo matutino no terminal de nibus de Cidade Tiradentes, zona
leste. No parecem se incomodar com o ir e vir de nibus e passageiros. Ou
com a voz que, do alto-falante, repete: No alimentem os ces dentro do
terminal. Colabore com a administrao, com a higiene e evite atrair outros
animais (HADDAD, 2013).
Conforme o conceito de habitus, de Bourdieu (2004), as condutas dos agentes sociais
so orientadas por um sistema de disposies durveis e transponveis, sem que esse processo
seja consciente. O habitus seria sempre produto do condicionamento histrico e social.
Muitas pessoas resistem ideia de direito dos animais. As objees gerais,
como lhes chamo, so a substncia da incredulidade comum. Por diversas
razes, algumas pessoas consideram difcil acreditar que os animais tm
direitos. Outras pessoas repudiam os direitos dos animais por razes
religiosas, e no so poucos os filsofos que rejeitam os direitos dos animais
por razes filosficas (REGAN, apud GALVO, 2011, p. 97).
De acordo com Bourdieu (2004), essa tendncia social que os agentes tm para agir no
significa que precisam fazer sempre o que se espera ou a mesma coisa, pois h uma margem
de manobra para improvisar e elaborar novas estratgias para o jogo.
Apesar de internalizar as representaes da estrutura social, os agentes agem sobre elas,
no sendo apenas o seu reflexo ou resultado mecnico dos condicionamentos sociais. Sendo
assim, tudo indica que os defensores dos direitos animais conseguiram superar a tendncia
social e criar novas estratgias para o jogo.
Alm dos vrios pases do mundo, incluindo o Brasil e os Estados Unidos,
delimitados geograficamente, existe uma nao diferente. Assim como a
Cidade de Deus de Santo Agostinho, essa outra nao, a Nao dos Direitos
Animais, no tem uma localizao e um fuso horrio especficos. Os valores
e os compromissos em comum, e no a data e o local de nascimento, so as
exigncias para a cidadania. Os valores so os seguintes: os animais tm
direitos morais bsicos, incluindo o direito liberdade, integridade fsica e
vida. E os compromissos? Que lutemos, no apenas por um ms ou um
ano, mas sim pela vida toda, para garantirmos que um dia esses direitos
sejam reconhecidos (REGAN, 2006, prefcio, p. 1).
Outro problema muito srio a ser discutido e regulamentado e que contribui para o
abandono de ces e gatos a criao desses animais para comercializao.
Em vrias cidades do Brasil, existem criadores de ces e gatos que trabalham de forma
clandestina. Na maioria dos casos no possuem estrutura apropriada para o desenvolvimento
do negcio. Esses criadores, ou desconhecem a legislao de proteo aos animais de
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companhia ou, se a conhecem, sabem de sua no efetividade. Seu interesse maior e prioritrio
to somente a lucratividade.
Fbricas de filhotes so lugares destinados reproduo para o comrcio
de animais em massa, estando o lucro em um patamar mais elevado que o
bem-estar do animal. Os animais procriadores vivem em terrveis condies.
Geralmente passam a vida em gaiolas pequenas e sujas, sem o contato com
pessoas. Passam fome, no recebem atendimento veterinrio e so vistos
como coisas, vivendo em situao deplorvel. As fmeas procriam a cada cio
e quando no conseguem mais atender a demanda so descartadas como
lixo, e outro animal colocado em seu lugar. A venda de animais por si s,
seja ela em pet shops ou canis/gatis, transforma animais em mercadoria, em
objeto negocivel. No apenas ces e gatos, mas quaisquer animal merece
ser tratado como um ser senciente, e no como fonte de lucro (ANDA,
2013).
Muitos dos animais nascidos nesses estabelecimentos morrem antes de serem
comercializados ou, como ocorre com frequncia, sero entregues ao futuro comprador com
problemas de sade, causados pelas pssimas condies em que se reproduziram.
A explorao financeira com a venda desses animais contribui para o aumento no
abandono de ces e gatos, pois muitas pessoas que j tinham um animal de companhia, o
abandona, para substitu-lo pelos animais pertencentes raa que est na moda no momento
da compra. Os valores pagos por esses animais geralmente so bem expressivos. Lembrando
que a raa o que determina o preo,
Qual seria o preo de um homem de 1.70m, olhos azuis e que saiba latim e
francs? A pergunta parece absurda, pois no h como estabelecer um preo
para uma vida humana. Da mesma forma, no se deveria estabelecer valores
para a vida dos animais. Seria um Pit Bull mais valioso que um Pastor
Alemo. O valor algo que se atribui de acordo com a utilidade do bem para
aquele que o deseja e de sua disponibilidade no mercado onde consumido.
Nenhuma vida passvel de atribuir-se algum valor, seja ela humana ou no
(NOGUEIRA, 2012, p.190).
Os animais que sobrevivem s pssimas condies de criao so posteriormente
comercializados, na maioria das vezes por pet shops ou at mesmo em feiras livres,
A forma inadequada de comercializao tambm uma crueldade. Os
animais ficam dias, e at meses, expostos em gaiolas nos pets, cujo piso
gradeado, machucam-lhes as patas. s vezes so esquecidas a alimentao e
a gua suficientes. Nas feiras livres, os animais ficam expostos ao sol, sem
gua e, muitas vezes, apertados nas mos de seus proprietrios por horas
seguidas. Nos mercados, onde os animais apresentam valores menores, a
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situao ainda pior. Os animais ficam em locais insalubres, sem gua e
comida, com ventilao insuficiente, com intenso calor, amontoados em
pequenas gaiolas, junto com animais doentes (muito comum a diarreia).
Aves, peixes e mamferos, no raro, dividem o mesmo espao. Alm das
condies serem cruis aos animais, so ainda insalubres aos comerciantes e
aos consumidores e turistas. O assunto h muito passou a ser uma questo
sanitria. No entanto, devido ausncia de proibio do comrcio em muitos
Estados e pases, as autoridades quedam-se inertes (NOGUEIRA, 2012,
p.193).
Com tantos animais abandonados e precisando de um lar, por que comprar um animal
de companhia? Caberia aqui outro conceito de Bourdieu a distino. Podemos entender
que, nesses casos o animal de companhia utilizado como ferramenta, explicitando, conforme
Bourdieu (2004), uma estratgia de diferenciao econmica que estabelece uma hierarquia
entre indivduos e grupos. Possuir um animal de raa pura requer condies financeiras
apropriadas, portanto no artigo acessvel de compra para pessoas menos privilegiadas
financeiramente.
A proximidade entre humanos e animais de companhia no trouxe muitas vantagens
para os ces e gatos, pois a dependncia destes daqueles, lhe tiraram o instinto de
sobrevivncia por conta prpria. Considerando ainda que o ambiente urbano, com suas
especificidades, tambm no colabora para a superao das dificuldades encontradas em viver
pelas ruas,
Historicamente, os humanos traram os animais que domesticaram. No incio
o animal seguia o humano em suas atividades pela floresta, nos campos e nas
viagens. Seguia fisicamente livre, como o fazia seu amo e senhor. O
humano obtinha vantagens da companhia do co que o protegia dos
assaltantes, ou que encontrava para ele algum animal perdido e ferido, na
floresta. Em troca, o animal recebia o calor da presena fsica do humano
que, por sua vez, o protegia de predadores. Havia realmente uma troca.
Naquela troca inicial o animal no perdia nada, nem fsica nem mentalmente.
Podia expressar sua natureza, canina ou felina, plenamente, caando. Sem
jaula alguma, sem corrente alguma, sem muralha ou grade alguma, o co foi
ficando na companhia dos humanos e assim deixou-se humanizar. Fim da
histria idlica (FELIPE, 2013, P. 3).
Outra situao que leva as pessoas a abandonarem seus animais de companhia, so
aqueles momentos de crises econmicas, ocasionadas pelo desemprego, doena ou consumo
de bens e materiais acima do que a renda familiar possa custear. Nesses momentos se descarta
tudo que possa contribuir com o custo de manuteno da famlia, incluindo o animal de
companhia,
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O Estado falho na assistncia da sade humana e inexistente na assistncia
da sade animal. No mximo o que se consegue pelos rgos sanitrios o
sacrifcio do animal doente. [...] So escassos ou inexistentes os programas
de incentivo adoo animal, pedagogia de posse responsvel nas escolas,
esterilizao gratuita, cadastramento obrigatrio, vacinao eficaz e
confivel, fiscalizao ou proibio de pontos de venda de animais
(NOGUEIRA, 2012, p.219).
Quando falamos do sacrifcio de animais doentes entendemos que, apesar de alguns
Estados brasileiros proibirem a utilizao da eutansia para o controle populacional de ces e
gatos, ela ainda permitida nos Centros de Controle de Zoonoses, como controle de doenas
transmissveis.
A ideia de que os animais de companhia so um perigo sade pblica, pois podem
transmitir inmeras doenas ao homem, um grande exagero, uma vez que animais tratados,
vermifugados e vacinados, que vivem em boas condies de higiene, dificilmente transmitiro
doenas s pessoas (WEBANIMAL, 2013).
No entanto, os animais podem sim transmitir doenas ao homem em determinadas
condies e situaes, a mais grave delas quando ocorre o abandono, pois nessa situao
eles ficam expostos s doenas chamadas de zoonoses. As principais zoonoses transmitidas
por ces e gatos so: brucelose, escabiose, giardase, leishmaniose, leptospirose, micoses,
raiva e toxoplasmose. Nessas situaes, a eutansia a prtica mais usualmente utilizada nos
Centros de Controles de Zoonoses.
Hoje quase como um dia santo. Quarta-feira! O dia de ir assistir s
execues no canil! [...] Os condenados so uns quinze ces normais, de
todos os tamanhos. Uns esto at alegres, outros desconfiados, outros de
mau humor. Uma cadela imensa parece estar mal. Ces que foram recolhidos
em zonas de risco e que os donos no vieram busc-los. Cinco funcionrios
se movem quase automaticamente. Trazem o carrinho azul de sacrifcio para
a porta do box 14, cada um pega seu cambo e, s ordens do chefe vo
pegando um por um e colocando dentro do carrinho gradeado que os levar
para a escurido da cmara de gs. [...] Num espao de mais ou menos um
metro quadrado vo ficando amontoados e imveis. Ser que acreditam que
sero levados de volta para seus antigos endereos? Fecha-se a portinhola
superior do carrinho que levado para a cmara que j espera de porta
aberta. No fundo dela, trevas e poluio. [...] A espera durou quase uma
eternidade. [...] A porta aberta e o carrinho puxado para fora. A primeira
impresso um carrinho cheio de peles. [...] Aquela quantidade de cachorros
que ocupava todo o carrinho, agora est compacta, da metade do espao para
baixo, como se tivessem se aconchegado uns aos outros, em busca de ar,
durante o sufocamento. (BAZZO, 2001, p.158 e 160).
A falta de polticas pblicas de proteo e defesa da sade dos animais, tambm
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contribui para o abandono dos ces e gatos. O custo para a preveno das doenas e da
assistncia mdica veterinria no baixo. Na maioria dos casos, os atendimentos mdico
veterinrio so efetuados por clnicas e profissionais do setor privado. Os atendimentos
pblicos, basicamente, resumem-se naqueles realizados por universidades e faculdades
pblicas que oferecem o curso de medicina veterinria e, na maioria delas, os atendimentos
no so gratuitos,
Uma parcela do poder pblico justifica a inrcia do Estado na ausncia de
polticas pblicas e sociais para os no humanos devido escassez de
recursos. Primeiro, tutela-se a sade humana, depois vem a questo sanitria
animal e sequer h referncia sade animal. Tal justificativa peca tanto do
ponto de vista antropocntrico quanto biocntrico. Se for analisado
antropocentricamente, a questo da sade animal est intimamente ligada
sade humana. Proteger os animais, sua sade, seu habitat, enfim o meio
ambiente proteger o prprio ser humano que depende e interage com ele.
evitar riscos ambientais, modificaes climticas rigorosas e principalmente
as doenas infectocontagiosas. Se o foco for o biocntrico, ser observado
que a proteo da sade animal uma questo de tutela da vida e, portanto,
ser prioridade em relao a outras despesas estatais que no tutelam
diretamente a vida, seja humana ou animal (NOGUEIRA, 2012, p.220).
Os problemas humanos no podem ser obstculos para a busca de uma vida melhor para
os animais, mesmo que as representaes sociais sobre os direitos dos animais sejam
fortemente influenciadas pelo antropocentrismo e agravadas pelas dificuldades econmicas da
sociedade e pela falta de efetividade da legislao brasileira.
Uma ltima objeo a se considerar no desafia a verdade dos direitos
animais; ela s pretende nos colocar no nosso devido lugar, lugar esse que
fica l no final da fila. H tantos problemas humanos terrveis diante de
ns, diz a objeo. da fome guerra, da assistncia sade ao
analfabetismo. Depois que resolvermos esses problemas, da sim que
podemos voltar nossa ateno para os direitos animais. Voc no precisa
ser um cnico para ver que essa a receita da negligncia perptua dos
direitos animais. Se formos realistas, saberemos que sempre haver alguns
problemas humanos para serem resolvidos. (Por exemplo, no verdade que
os pobres estaro sempre conosco)? Assim (supondo a objeo), nunca
chegar o dia em que poderemos voltar nossa ateno para os direitos
animais. Ser que s eu, ou outras pessoas tambm tm a impresso de que
quem levanta essa objeo simplesmente no quer ouvir o que os defensores
dos direitos animais esto dizendo? (REGAN, 2006, p.86).
Diante desse cenrio, entendemos que a atual situao em que vivem os animais
consequncia das representaes sociais das geraes, passadas e presente, mesmo que isso
tenha ocorrido pela imposio das estruturas sociais e o habitus do antropocentrismo.
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Segundo Bourdieu (2004), o habitus seria sempre produto do condicionamento histrico e
social, no podendo ser revertido com uma mera tomada de conscincia.
Entendemos tambm que a responsabilidade em mudar a atual situao de descaso aos
direitos dos animais e de desrespeito ao meio ambiente, no deve ser transferida s futuras
geraes, mas proporcionar a oportunidade para aqueles que a causaram repararem os danos
infringidos, aos animais e ao meio ambiente.
Assim, na busca da soluo para o problema do abandono de animais apresentamos, no
prximo e ltimo captulo, propostas de Polticas Pblicas para Defesa e Proteo dos
Animais de Companhia e de Combate ao Abandono de Ces e Gatos.
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4 POLTICAS PBLICAS DE PROTEO AOS ANIMAIS DE COMPANHIA E DE
COMBATE AO ABANDONO DE CES E GATOS
Estudos demonstram que, a responsabilidade de elaborar, implementar e executar
polticas pblicas de defesa e proteo dos animais de companhia e de bem-estar para ces
gatos, da gesto municipal. Porm sua construo e execuo devem ser realizadas de
forma participativa com a sociedade e setor privado (CRMV-PR, n 34, ano IX, jan/fev/mar,
2011).
O enfrentamento do problema do abandono de animais de companhia, especificamente
ces e gatos, deve ser realizado atravs de vrias frentes, como: a educao ambiental
incluindo a posse responsvel; acesso ao atendimento mdico veterinrio; campanhas
nacionais de vacinao; campanhas de esterilizao para controle populacional; regularizao
da criao e do comrcio de ces e gatos e efetividade na aplicao da legislao de proteo
e defesa dos animais.
4.1 PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAO AMBIENTAL (ProNEA)
Considerando que a educao ambiental, incluindo a posse responsvel, ser uma aliada
indispensvel para a mudana do comportamento das pessoas em relao aos animais de
companhia e, consequentemente, ao combate do abandono de ces e gatos, no poderamos
deixar de falar em educao, nesta dissertao de mestrado.
A Constituio Federal de 1988 estabeleceu, no inciso VI do artigo 225, a necessidade
de promover a educao ambiental em todos os nveis de ensino e a conscientizao pblica
para a preservao do meio ambiente (BRASIL, 1988, p.70).
Com o advento da Constituio Federal de 1988 e dos compromissos internacionais
assumidos com a Conferncia do Rio, foi criado em 1994, pela Presidncia da Repblica, o
Programa Nacional de Educao Ambiental (ProNEA), tendo suas diretrizes sintonizadas com
o Tratado de Educao Ambiental para Sociedades Sustentveis e Responsabilidade Global,
criado em 1992, no Rio de Janeiro, Brasil.
Importante ressaltar que o ProNEA um programa de mbito nacional, o
que no significa que sua implementao seja de competncia exclusiva do
poder pblico federal, ao contrrio, todos os segmentos sociais e esferas de
governo so co-responsveis pela sua aplicao, execuo, monitoramento e
avaliao (ProNEA, 2005, p.15).
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Compartilhado entre alguns Ministrios, o ProNEA foi executado pela coordenao de
educao ambiental do MEC e pelos setores correspondentes do ento Ministrio do Meio
Ambiente (MMA) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renovveis (IBAMA), envolvendo ainda outras entidades pblicas e privadas do pas.
Em 27 de abril de 1999 foi promulgada a Lei n 9.795, que dispe sobre a educ