Renda Básica de Cidadania

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DEPARTAMENTO DE DIREITO Renda Básica de Cidadania por Gustavo da Costa Ferreira Moura dos Santos ORIENTADORA: Telma da Graça de Lima Lage 2007.2 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO RUA MARQUÊS DE SÃO VICENTE, 225 - CEP 22453-900 RIO DE JANEIRO – BRASIL

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No presente estudo é analisada a política pública conhecida como Renda Básica de Cidadania, instituída no Brasil pela Lei 10.835/2004, que consiste no pagamento de uma renda incondicional e universal a todos membros de uma comunidade política. Abordam-se seus antecedentes históricos, seus fundamentos teóricos e constitucionais, demonstrando-se as diferenças em relação ao sistema da Seguridade Social da Constituição de 1988, bem como em relação às seculares ações assistenciais, filantrópicas e de benemerência.

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DEPARTAMENTO DE DIREITORenda Bsica de CidadaniaporGustavo da Costa Ferreira Moura dos SantosORIENTADORA: Telma da Graa de Lima Lage2007.2PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO DE JANEIRORUA MARQUS DE SO VICENTE, 225 - CEP 22453-900RIO DE JANEIRO BRASILRenda Bsica de CidadaniaporGustavo da Costa Ferreira Moura dos SantosMonografiaapresentadaao DepartamentodeDireitoda PontifciaUniversidadeCatlica doRiodeJaneiro(PUC-Rio)para aobtenodoTtulodeBacharel em Direito.Orientadora:Telmada Graa de Lima Lage2007.2RESUMONopresentetrabalhoanalisadaapolticapblicaconhecida comoRendaBsicadeCidadania,institudanoBrasilpelaLei 10.835/2004, que consiste no pagamento de uma renda incondicional euniversalatodososresidentesnopas.Abordam-seseus antecedentes histricos, seus fundamentos tericos e constitucionais, demonstrando-se as diferenas em relao ao sistema da Seguridade SocialdaConstituiode1988,bemcomoemrelaosseculares aes assistenciais, filantrpicas e de benemerncia.SUMRIO1. Introduo 82. Bons e maus pobres 123. Definio de Renda Bsica de Cidadania 204. Por que uma Renda de Cidadania?4.1. Diminuio da burocracia4.2. Segurana cidad4.3. Eliminao da armadilha do desemprego.4.4. No aceitao do trabalho degradante4.5. Auto-estima como valor4.6. Fomento atividade econmica232728283133355. Crticas habituais ao programa.5.1. A riqueza deve ser conseguida por meio do trabalho.5.2. A Renda de Cidadania injusta, porque os pobres recebem o mesmo que os ricos.5.3 A Renda de Cidadania uma loucura, invivel, carssima.5.4. A Renda de Cidadania devia ser paga s famlias e, no, individualmente.5.5. A Renda de Cidadania um programa assistencialista.3737404041426. Implementao no Brasil6.1. O obstculo6.2. O Bolsa Famlia a primei ra fase de implementao da Renda de Cidadania?4444487. A sada pela porta . Sada? 50Bibliografia 52Anexo 1 (Lei 10.835/04) 56Anexo 2 (Lei 10.836/04) 58Anexo 3 (Decreto 5.074/04) 63Palavraschave:renda,bsica,cidadania,desigualdade,desemprego, transferncia, social, seguridade, assistncia, previdncia, welfareDe primeiro, eu fazia e mexia, e pensar no pensava. No possua os prazos. Vivi puxando difcil de difcel, peixe vivo no moqum: quem mi no aspro, no fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idia.Riobaldo1. IntroduoDecerto, causa estranhamento a um incauto a leitura da monografia de fim de curso de um aluno de Direito em que a maior parte da bibliografia no jurdica1.Defato,emboratenhamtidoalgumaimportncia,noforam preponderantes para a elaborao do presente trabalho os tradicionais manuais e leis comentadas que habitualmente acompanham os alunos de graduao em Direitoe,porconseqncia,so,normalmente,fontesprimordiaisparaa monografia. Estefatonodecorredeidiossincrasiasdoautor,comosepoderia pensar. conseqncia inarredvel, em verdade, da prpria natureza do tema escolhido:aRendaBsicadeCidadania,instituda,noBrasil,pelaLei 10.835/2004.Conformeseobservarnaleituradestetrabalho,trata-sede poltica pblica subversora de postulados e princpios que vm orientando h sculos a ao estatal no trato em relao questo social antes mesmo do cunhamento do termo questo social, nos idos da dcada de trinta do sculo XIX2. No obstante a escassez de bibliografia jurdica acerca deste programa de governo especfico, certamente nos depararamos com idntico obstculo mesmo que buscssemos analisar alguma poltica pblica que se encontrasse acordecomospreceitossecularesqueorientamasaesdecombateao pauperismo3,osquaiscomoveremosreproduzem-senodesenhoda Seguridade Social dado pela Constituio de 1988. Aqui, temos um problema de outra natureza e que no ser objeto de investigao nesta monografia: o currculodoscursosjurdicos,omissoquantoaoestudodetemasde importncia para amaior parte da populaobrasileira, como a Assistncia SocialeaPrevidnciaSocial;e,aonossoentender,nodeforma

1 Utilizamos aspas para salientar que se trata de concepo do termo jurdico como relativo Cincia doDireitoem sua concepo estrita, ou seja, no sentido de DogmticaJurdica ou Jurisprudncia Tcnica, como bem diferenciada por Paulo Nader em suaIntroduo ao estudo do Direito. 2CASTEL,Robert.Asmetamorfosesdaquestosocial.Umacrnicadosalrio.Petrpolis:So Paulo, 2005. p. 303Oportunamentemostraremosadiferenaentreostermospauperismoeaquestosocialpropriamente dita a que fizemos referncia inicialmente. 9despropositada: a omisso d-se por conta da orientao pedaggica elitista e docunhomercadolgicodequeserevestemasfaculdadesdeDireito. desoladorobservarqueasrepercussesdestaomissochegamaoSupremo Tribunal Federal. Nas ocasies em que teve que se pronunciar acerca do tema, foicorrenteaconfusodeconceitosbsicosessenciaisparaasua compreenso e a aplicao correta das leis afins4. H um grande descompasso entre as conquistas polticas de grupos engajados com a o combate pobrezanombitodaconstituinteeoavanodadogmticajurdicanaanlisedo tema5.A falta de bibliografia, portanto, apresenta-se somente como a ponta de umiceberg:dograndeproblemaquerepresentaesseenormedescompasso entreodireitopositivoearealidadesocial6. Enos:representa,aindao flagrantedesajusteentreomainstreamdosdiscursospolticostantode esquerda como de direita e esta realidade. Para ilustr-lo, podemos comparar osdiscursosdedoisdosrepresentantesmaisexpressivosdematizes ideolgicascontrapostasnoBrasilcontemporneo.Primeiro,transcrevemos trechodafaladopresidenteLulanaocasiodolanamentodoPrograma Nacional de Estmulo ao Primeiro Emprego, no dia 30 de junho de 2003:Gerarempregosparatodoopovobrasileiroumsonho,umaobsessoeuma determinaodomeuGoverno.Eeunotenhodvidadequetambmdetodosos governosestaduais,dosprefeitos,dosdeputadosesenadores,dosministrosedetodasas pessoasquetmresponsabilidadenonossopas.(...)Eudigoissoporquequemjficou desempregado,nestepas,sabequeodesempregocomoumadasdoenascrnicasdo serhumano.Notemnadaquepossadarmaiorprazeraumserhumanodoque trabalhare,nofinaldoms,receberoseusalrioepodergastaroseudinheirinho, ajudandoafamliaouasiprprio.Hoje, asnossas meninaseosnossos meninos, muitas vezes, no gostam nem de pedir dinheiro para o pai ou para a me, porque antes de receber o dinheiro recebem um discurso: "o pai e a me no tm dinheiro". (...) A verdade que isso vai deixando a juventude sem nenhuma condio de acreditar que algum vai fazer alguma coisa por ela7(grifo nosso)

4 Ver, v. g., a Rcl 4.427-MC-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 6-6-07, DJ de 29-6-07, em que h clara confuso entre os conceitos de Previdncia e Assistncia Social.O mesmo equvoco pode ser observado nos RE 401.127-ED, AR 1390/SP, RE-AgR 369994 e RE-AgR 273501.5Parauma anliseaprofundadadaatuaodestesgruposnaconstituinte,queresultaramnaatual arquitetura da Seguridade Social, ver BOSCHETTI, Ivanete. Seguridade Social e Trabalho. Braslia: UnB, 20066 Ver CASTEL. Op. cit. p. 307 Disponvel em . Acesso em 10/07/2007.10O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, por sua vez, por ocasio da aberturadoSeminrioInternacionalsobreEmprego,RendaeTrabalho, realizado em So Paulo no dia 07/04/1997, assim se posicionou sobre o tema:Humatendncianaturaldeconcentraoderiqueza,inclusivenascamadasde trabalhadores com melhores condies de vida, o que dificulta a incluso dos despossudos. As polticas pblicas tm de fazer o oposto, no sentido de criar condies para mais pessoas participaremcriativamentedoprocessoprodutivo.Denovo,aquestodaeducaoest ligada quela do emprego. No por acaso que oMinistriodoTrabalhoestgastando bilhes de reais em programas para criar empregos, educar e treinar mo-de-obra, de formaqueseabramoportunidadesdeaprendizado,semoquenohaver possibilidade de manter o trabalho.8 (grifo nosso)Certamente,noserianecessriocolacionarestesdoistrechospara demonstrar que as polticas governamentais que tem como objetivo a criao de vagas de emprego e o fomento do mercado de trabalho so comuns tanto em governos de esquerda, quanto nos de direita. Tal no ocorre por conta de mera coincidncia do destino. Quando observamos, no decorrer dos sculos atopresentemomento,asestratgiasparaotratoemrelaoquesto social,possvel,claramente,inferirdiversosaspectoscomunsquetalvez expliquem o discurso unvoco. E talvez possamos entender a perpetuao da questo social e o aumento progressivo da pobreza extrema evidncias de que os remdios ministrados no tm o efeito esperado. O ceticismo em relao a estas estratgias , de modo bastante enftico, demonstrado por Robert Kurz, filsofo alemo, em artigo publicado no jornal Neues Deutschland:O discursoda libertao do trabalho revelou-seobsoleto. Enquanto a terceira revoluo industrialtornaotrabalhosuprfluoescalamundial,produzem-seaomesmotempo massivamente produtos inteis ou que constituem um perigo pblico. O ponto de vista do trabalho est desmoralizado. Agora que se paga caro o facto de o marxismo ter herdado da histriaburguesaaticaprotestantedotrabalhoeaideologialiberaldocarcter antropolgico e supra-histrico do trabalho.O carcter coercivo do trabalho hoje assinalado no slogan da administrao do trabalho, de que qualquer trabalho seria melhor do que nenhum. Tem que se impor o emprego a qualquer preo, mesmo com salrio de fome, com horrios dos primrdios do capitalismo, exigncias

8 Disponvel em Acesso no dia 10/07/2007.11de mobilidade extrema, etc. O que justificado apelando ao "vigilante interno de trabalho" nos indivduos modernos, que interiorizaramo perfil de exigncia capitalista.9ARendadeCidadaniaumprogramadetransfernciaderendaque visa, de alguma forma, preencher o vo entre a ordem econmica e a ordem jurdica. E de uma forma que, para um observador de primeira viagem, pode at parecer simplria: Dem a todos os cidados uma renda modesta, porm incondicional, e deixem-nos complet-la vontade com renda proveniente de outras fontes.10. No entanto, quando se esmiuarem os fundamentos, razes e conseqncias desta proposta, ser possvel observar mudanas de paradigma deproporestaisqueestaroaptasafornecer-lheacaracterizaode revolucionria seno tanto, pelo menos, a de mais efetiva.

9KURZ,Robert.Desempregofeliz?.Disponvelem. Acesso em 20/10/0710VANPARIJ S,Philippe.Rendabsica:rendamnimagarantidaparaosculoXXI?.Estudos Avanados, v. 14, n. 40. So Paulo: USP, 2000, p. 179122. Bons e maus pobresAchaveparaacompreensodofundamentomaiordaRendade Cidadania a delimitao do pblico-alvo das polticas pblicas pertencentes Seguridade Social. Este sistema, trazido ao Brasil na Constituio de 1988(art.194),incorporamodelosdeproteosocialadvindosdepases capitalistasdesenvolvidos11: 1)obismarckiano,inspiradonalgicadoseguro,custeadoegeridopreponderantementeporseusbeneficirios os trabalhadores ecujoclculodasprestaesobedecemaosprincpios atuariais;2)obeveridgiano,modeloditoassistencial,cujasprestaes configuram direitos subjetivos pblicos, gerido pelo Estado e financiado com recursos fiscais. O fundamento da Seguridade bem explicado pela professora da Faculdade de Economia da UFRJ , Maria Lcia Teixeira Werneck Vianna:(...)asociedadesesolidarizacomoindivduoquandoomercadoocolocaem dificuldades. Mais precisamente, o risco a que qualquer cidado, em princpio, est sujeito denoconseguirproverseuprpriosustentoecairnamisriadeixadeserproblema meramenteindividual,delecidado,epassaaconstituirumaresponsabildiadesocial, pblica. O Estado de bem-estar assume a proteo social como direito de todos os cidados porque a coletividade decidiu pela incompatibilidade entre destituio e desenvolvimento.12(grifo nosso)Observa-se,nosaludidosmodelos,umanecessidadedeintegraoao trabalho (quandoomercadoocolocaemdificuldades...). Se o risco a que est exposto o indivduo o de no conseguir prover seu prprio sustento, o que pressuposto implcito que deve tentar. neste ponto que observa-se umacontinuidadeemrelaoaocritriodeescolhadopblico-alvoda assistncia,da filantropiae da ajudaaosdesamparadosnas sociedadespr-industriais e na contemporaneidade. No h dvida que so os estropiados, os desamparados, os pobres, desfavorecidos, infortunados. Mas no todos.Aquestosocial. A questo social definidapor Robert Castel como umainquietaoquantocapacidadedemanteracoesodeuma

11Cf.BOSCHETTI,Ivanete.AssistnciaSocialnoBrasil:umDireitoentreOriginalidadee Conservadorismo. Braslia: UnB, 2003, pgs. 62-6312VIANNA, Maria Lucia TeixeiraWerneck. A americanizao (perversa) da seguridade social no Brasil: estratgias de bem-estar e polticas pblicas. Rio de J aneiro: IUPERJ : Revan, 1998, p. 1313sociedade.13Osseusprotagonistasrepresentam,portanto,umaameaaao conjunto ressalte-sequeaaludidaquestosocialnosinnimode pauperismo,porqueapobreza,tidacomoprivaodosbenscivilizatrios, nem sempre representa esta inquietao14- face ao risco de desmoronamento destas estruturas de coeso, o conjunto apresenta as solues. Como veremos, a integrao ao mundo do trabalho referncia definitiva para o delineamento destas solues.Nas sociedades pr-industriais, o apartamento em relao s instituies sociais famlia,religio e trabalho representa a condio de desfiliao. Umapessoa,oubemqueseencontrafiliadaporestarvinculadaaalguma destas instituies segundo as regras sociais vigentes, ou bem que se encontra desfiliada,quandonoseenquadranaquelespadres.Nestassociedades, existeumaintegraoprimriadosindivduos,ousejaqueligam diretamente os membros de um grupo a partir de seu pertencimento familiar, davizinhana,dotrabalhoequetecemredesdeinterdependnciasema mediao de instituies especficas.15 Estes indivduos, quando em situao defragilidade,encontramguaridanesteaparatoorientadopela interdependncia tradicional.Mais uma vez,valemo-nos da liode Robert Castel:Essascomunidadestendem,pois,afuncionarcomosistemasauto-reguladosou homeostticos que recompem seu equilbrio mobilizando seus prprios recursos. Uma nova afiliaoseprocessasemmudardequadrodereferncia.Aintegraoameaada reconstituda sobre uma base territorial e no quadro das interdependncias dadas por essa inscrio.Quandosurgeumadificuldadenosistemadasproteesmaisprximas,a sociabilidade primria menos rompida do que distendida, e o sucesso das operaes de recuperao depende de sua elasticidade, que no infinita.16Logo,umahiptesededesfiliaoseriadadaporumasituaotalde distenodestasociabilidadeprimriaaqueCastelfezrefernciaaptaa provocarorompimentodestarededeproteo.Surge,a,umdesfiliado:o

13 CASTEL. Op. Cit.,p. 4114 Como cedio, a pobreza pode ser um fator positivo na fixao do preo da fora de trabalho, alavancando o lucro e, portanto, a produo econmica.15 CASTEL. Op. Cit. p. 4816Ibid, p. 51-5214enjeitado, o velho sem famlia, o rfo, o louco. Mas h, tambm, o desfiliado por opo de vida: o vagabundo, o andarilho, o mambembe, o preguioso, o biltre, o velhaco, o rufio. Atriagemdosdesfiliadossemprefoipreocupaodasaes assistenciais: o que desfiliado por ser ardilosoou vadio, a esteno se d importncia a no ser que sua presena passe a ser uma ameaa coeso, hipteseemquegeralmentenoserassistido,masisoladooupunido.J aquele que desfiliado por um infortnio da vida, um coitado e merece ser assistido e o ser, na medida da possibilidade daquela sociedade. So, a, diferenciados os bons dos maus pobres, por meio dos critrios que, at hoje, permeiam as aes de assistncia social:Dentre as populaes sem recursos, algumas sero rejeitadas e outras atendidas. Desenham-se dois critrios: o do pertencimento comunitrio a assistncia se vincula, de preferncia, aos membros do grupo erejeita os estrangeiros (evidentemente, ser preciso elaborar o que significa ser membro do grupo e ser estrangeiro); o da inaptido [nunca inapetncia] para o trabalho a assistncia acolhe preferencialmente os que so carentes porque, como o rfo sozinho ou o idoso impotente, so incapazes de suprir suas necessidades atravs do trabalho (mas, tambm aqui, deve-se precisar o critrio atravs da anlise das prticas e das regulamentaesqueodefinem).Estadistino(...)circunscreveocampodosocial-assistencial em sua diferena quanto s outras formas de interveno social, voltadas para as populaes capazes de trabalhar.17Adespeitodoaperfeioamentoedaespecializaodosinstrumentos desta rede de proteo com a passagem de uma sociabilidade primria para uma secundria, queumasocialidadeconstrudaapartirdaparticipao emgrupos,supondoumaespecializaodasatividadeedasmediaes institucionais18 permaneceram estes critrios de triagem. A este respeito, economista do IPEA Luciana J accoud observa:Aspolticassociaisderivadasdainserodaspessoasnomundodotrabalho-edentro deste,noassalariamentosoamatrizoriginalapartirdaqualteminciooprocesso moderno de construo do sistema brasileiro de proteo social. O assalariamento formal-legal, sancionado pelo Estado, foi e em grande medida continua sendo a porta de entrada das pessoas na proteo social, tanto no que se refere cobertura de riscos sociais derivados

17Ibid, p. 5918Ibid., p.48 15dasatividades laborais(segurocontraacidentes detrabalho,seguro-desemprego,auxlio-maternidade, etc), como no que diz respeito a situaes de inatividade.19Numa sociedade em que houvesse um concerto afinado entre os fatores da produo capitalista,a Seguridade Social da Constituio de 1988 cairia como uma luva: os trabalhadores teriam sua proteo por serem contribuintes da Previdncia; aqueles incapacitados para o trabalho os velhos, as crianas, osdoentes,etc.teriamagarantiadesuasubsistnciapelaAssistncia.Estaria,portanto,plenamenteatendidoodireitodeviverdetodaa populao. Porm, a expresso a quemdelanecessitar, contida no art. 203 da Constituio, na verdade no to ampla como pode, a princpio, parecer. Aquemdelanecessitar,sim,desdequenosejaumpreguioso aproveitador.20 Nesse sentido, so pertinentes as consideraes da Professora de Servio Social da UnB, Ivanete Boschetti:Ajustaposiodaprevidnciaedaassistnciarevela-setembmpelanaturezade complementaridadeinerenteaestaspolticas.Enquantoaprevidnciasedestinariaaos trabalhadorescapazeseemcondiesdeexercerumaatividadelaborativaeassim assegurarosdireitoscontributivos,aassistncia,emtese,cobririaaquelesque,por incapacidade ao trabalho (em decorrncia de idade e/ou deficincia) [...] no teriam acesso previdncia. So polticas destinadas a amparas aspectos ou manifestaes diferentes de um mesmo fenmeno: a relao do homem com o trabalho. Esta justaposio, entretanto, produzumaduplacategorizao:aobrigaodotrabalho(assalariadoouno)que garanteodireitoaosbenefciosprevidenciriosdecoberturadosriscossociais;ea obrigaodesetersriasrazesquejustifiquemonoexercciodotrabalhoque garanteodireitosprestaesassistenciaisqueasseguramtransfernciaderenda.21(grifo nosso)Entretanto, o aludido concerto no ocorre. Muito ao contrrio: as altas taxasdedesemprego,ofenmenodaprecarizaodotrabalho22eo

19J ACCOUD, Luciana et. al. Questo social e Poltica Pblicas no Brasil Contemporneo. Braslia: IPEA, 2005, p. 25120 Art. 20, 2 da Lei Orgnica de Assistncia Social (Lei 8.742/93): Para efeito de concesso deste benefcio, a pessoa portadora de deficincia aquelaincapacitadaparaavidaindependenteou para o trabalho. (grifo nosso)21 BOSCHETTI. Op. Cit.. p. 67-6822A constatao acerca da forte desacelerao dos postos de trabalho assalariados formais permite identificar uma profunda modificao na qualidade da ocupao gerada no pas. Ao se reconhecer que o emprego assalariado formal representa o que de melhor o capitalismo brasileiro tem constitudo para a sua classe trabalhadora, pois bem acompanhado de umconjunto de normas de proteo social e trabalhista,conclui-sequeasuareduoabsolutaerelativanosanos90vemacompanhadado aumentodevagasasslariadassemregistroedeocupaesno-assalariadas,implicandoaumento considervel da precarizao das condies e relaes de trabalho. (in POCHMANN, Mrcio. O 16esgotamento do modelo de Welfare State se que no Brasil j houve muito o que ser esgotado -, evidenciado no somente pela incapacidade de o Estado proverosserviospblicosessenciais,comotambmpelagestode inspiraoneoliberalhajavistaaprivatizaodosserviospblicoseos novos instrumentos de parceria entre o governo e a iniciativa privada tornam urgente o engendramento de alternativas que faam frente s necessidades das pessoasvulnerveis.Nessesentido,degrandeimportnciaaanlisede Robert Castel:Larestructurationdunesocietdanslesensdesamodernisationentraneune marginalisation de certains groupes sociaux. Ce fut le cas lors de la lente transformation de lasocietfodale,commeauxdbutsdelindustrialisation.Actuellement,depuisune vingtainedannes,lesrestructurationsindustrielles,larecompositiondesrelationsde travail,lesredploiementsdelappareilproductifpourfairefaceuneconcurrence internacionale exacerbe, etc., entranent ds effets du mme type.23Em igual sentido, posiciona-seo professorda UniversidadeGoethe de Frankfurt, Paul Wolf:O paraso social est perdendo a sua glria. (...) J no podem ser ignorados os sinais de uma nova era das relaes industriais: crise no mercado de trabalho, fim da era do pleno emprego, greves locais e setoriais, dispensas coletivas, fechamento de fbricas, emigrao de empresas,progressofiscal,racionalizaodoemprego,erosodosdireitosdotrabalho, reduodasprestaesdosegurosocial,aumentodramticododesemprego, empobrecimento e perda do standart social da classe operria. Que aconteceu? Estado Social falido? Desmonte do Estado Social? Ou a sua modernizao?24Dentrodeumalgicaqueretomaaospostuladosdefendidospor economistasliberaisclssicos,humadefesadetotaldesmontedoEstado garantidordosdireitossociaislgicaquereforadapelacolocaode instituies privadas,que paradoxalmenteguiam suas atividadespelo lucro, emposiodeagentetransformadordestanovarealidadesocial:leia-se responsabilidadesocialdaempresa,seloempresacidad,comrcio empregonaglobalizao:anovadivisointernacionaldotrabalhoeoscaminhosqueoBrasil escolheu. So Paulo: Boitempo, 2001, p. 98)23 CASTEL, Robert. Les marginaux dans lhistoire In: PAUGAM, Serge (org.) Lexclusion, ltat des saviors.. Paris: La Dcouverte, 199624 WOLF, Paul. Declnio do Estado Social (reflexes sobre a atual situao do trabalho na Europa) In: FRANCO FILHO, Georgenor de Souza (coord..) PresenteeFuturonasRelaesdeTrabalho.So Paulo: LTr, 2000, p. 8417justo,etc.Commuitaargcia,aescritorafrancesaVivianeForrester assevera:Repita-se: avocao das empresas noserem caridosas. A perversidade consiste em apresent-lascomoaquelasforasvivasqueseguiriammaispropriamenteimperativos morais, sociais, abertos para o bem-estar geral, quando elas tm de seguir um dever, uma tica, no h dvida, mas que lhe pedem para produzir lucro, o que em si totalmente lcito, juridicamente sem mcula.25No por outro motivo, Fbio Konder Comparato indaga:Mas ter o empresrio, tambm, direitos positivos? Fora do elenco de direitos do art. 7 da Constituio,porexemplo,teriamasempresasodeverdedesenvolverumplanode assistncia social ou de previdncia complementar a para os seus empregados? O art. 116, pargrafo nico da Lei 6.404 [o acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir a sua funo social] obrigaria, porventura, o acionistacontroladorafazercomqueacompanhiaparticipassedecampanhasde recolhimento e amparo de menores abandonados, lanadas pelo governo do Municpio onde temasuasede?Maisespecificamente,emcasodeconflitoentreointeresseprprioda empresa, como unidade econmica, e o interesse geral da coletividade, deve o empresrio sacrificarointeresseempresarialemproldobemcomum,deixando,porexemplo,de aumentarospreosdosprodutosouserviosdeprimeiranecessidade,semestaraisso legalmente obrigado?26Esperar,tambm,queaesfilantrpicasdepessoasfsicas,Igrejase ONGs sem fins lucrativos dem conta do novo exrcito de desfiliados que esta novaconfiguraodosistemadeproduotemerrio.Aspressesde mercado e a insistncia em se reconhecer o primado do trabalho nosso mais sagradotabu,emfelizdizerdeVivianeForrestercomoorientadorda ordemsocialfazcomquetenhamos,cadavezmais,hordasehordasde desempregadosetrabalhadoresemsituaoaviltante.esclarecedora e estarrecedora a ironia de Robert Kurz:maneiradumaseita,ospragmticoscapitalistastentamchuparataotutanoos trabalhadoresdesalriosbaixosdeserdadoseindividualizados: Tusimportante.Do melhor rendimento de que fores capaz. um facto que j no te damos dinheiro em troca, masemcontrapartidapodesvoltarasaudarabandeiracomoqualquerescudeiromais apalermado.27

25 FORRESTER, Viviane. Horror Econmico. So Paulo: Unesp, 1997, p. 8526 COMPARATO, Fbio Konder. Estado, empresa e funo social. RevistadosTribunais.Ano 85, vol. 732. So Paulo: RT, 1996, p. 4427KURZ,Robert.Estsbarata,Alemanha? Disponvelem: Acesso em 20/10/200718 por este motivo que entendemos que pela via do Estado e, no, pela dotrabalhooupeladosbonsinstintoscristosquepoderosurgir alternativas que faam jus a estas novas demandas da sociedade globalizada. Nessecontexto,diversosnovosprogramasestataisquefugiamdospadres aquiexpostosforamcriados,todoscomoescopodeabarcarestesnovos desfiliados do sxulo XXI: a nova questo social:A questo social, tal como manifestada no incio do sculo XIX, no era exatamente a pobreza em si, pois esta sempre fez parte da histria da humanidade e por muito tempo foi considerada como inscrita na ordem das cosias e da criao. Tal questo tambm no se referesrespostasassistenciaisconcedidaspelospoderespblicosaosmiserveisous medidasrepressivadirigidasporumEstadopolicialaosmauspobres,considerados perigosos pela ordem pblica. O que assumiu a feio de questo social foi, de fato, a constatao da existncia de uma massa de trabalhadores pauperizados, a qual no podia ser explicada como o resultado da vagabundagem nem ser situada como perifrica em relao estrutura social e ao modo de produo capitalista.28Talveznenhumasdestaspropostastenhamsidoeaindasejamto criticadascomoosprogramasdetransfernciaderendadesvinculadosda aptido/inaptidoaotrabalho.Afinal,porquealgumtrabalhariapor um salrio se pudesse viver da assistncia?29. Os programas, cujo exemplo mais significativo o Bolsa Famlia, so condicionados a uma determinada situao de pobreza objetivamente considerada (famlias com renda per capita abaixo de X reais), tem como destinatrias as famlias e as prestaes pagas variam deacordocomonvelderendadafamliaecaractersticasparticularesde cada famlia (nmero de filhos em idade escolar, v.g.). Eles no se inserem na Previdncia Social, uma vez que no so dependem de prvia contribuio, tampouco na Assistncia Social, j que no h necessidade de se comprovar a inaptido para o trabalho e, sim, uma situao de pobreza duradoura. Quanto a estas polticas, assevera Luciana J acoud:Aproliferaodebolsasmonetriasparaapopulaoeconomicamenteativaabaixode certa linha de pobreza um benefcio de origem ainda mais recente, de aplicao focalizada, queseexplicaeseestruturaapartirdeumapolticadegoverno,tendoporsubstratoa condiodepobrezaouvulnerabilidadesocialdosbeneficirios.Suanaturezaainda

28 BOSCHETTI. Seguridade Social e Trabalho. Braslia: Letras livres: Editora UnB, 2006, pags. 282-28329 BOSCHETTI. Assistncia Social no Brasil. p. 56. 19temporriaeinstvel,enorepresentaumdireitoproteoadvindodeumapoltica nacional de assistncia social.30Totalmentediferentedestemodelo,contudo,odaRendaBsicade Cidadania, instituda no Brasil pela Lei 10.835/2004. Vejamos o que dispe o art. 1 da referida lei:Art. 1. instituda, a partir de 2005, a renda bsica de cidadania, que se constituir no direito de todos os brasileiros residentes no Pas e estrangeiros residentes h pelo menos 5 (cinco)anosnoBrasil,noimportandosuacondiosocioeconmica,receberem, anualmente, um benefcio monetrio.Partindo,portanto,dopressupostoqueabuscapeloplenoemprego uma bandeiraultrapassadaeque noseprestamais a atenderosanseios e perspectivasdeliberdadessubstantivasdasociedadecontempornea,este trabalhoprocuraanalisarestapolticadetransfernciaderenda,seus objetivos, fundamentos jurdicos e seu enquadramento constitucional.

30 J ACCOUD. Op. Cit. p. 253203. Definio da Renda Bsica de CidadaniaDiversaspolticasestataisdedistribuioderiqueza,queemalgum aspecto se assemelham Renda de Cidadania, j foram pensadas em todo o mundo,sobasmaisvariadasdenominaes,taiscomobnusestatal, demogrant, renda da terra, dividendo territorial, benefcio universal, imposto de renda negativo, soldo bsico universal e incondicional, renda mnima garantida e renda de existncia31. No entanto, a expresso Renda de Cidadania a mais adequada aos objetivos e natureza desta prestao, conforme se demonstrar no presente artigo.O professor de cincias econmicas , sociais e polticas da Universidade Catlica de Louvain Philippe Van Parijs, um dos fundadores da BIEN32 (Basic Income Earth Network), define a Renda de Cidadania como uma renda paga porumacomunidadepolticaatodososseusmembrosindividualmente, independentemente de sua situao financeira ou exigncia de trabalho.33O primeiro aspecto bsico da Renda de Cidadania , como o nome diz, de ser uma renda. Ou seja, deve ser uma prestao peridica, cujos intervalos regulares devem ser definidos pelo ente pblico pagador anual, mensal ou semanal. Alm disso, da prpria natureza da Renda de Cidadania que ela seja paga em dinheiro e, no, sob a forma de tickets com uso restrito, crditos fiscaisouttulos.ParaqueobenefciopossaserdefinidocomoRendade Cidadania, no pode haver qualquer tipo de controle ou restrio quanto ao que o beneficirio far com o produto da Renda. O segundo aspecto importante o fato de ela dever ser paga por um ente poltico,ouseja,pormeioderecursoscontroladospeloEstado.No necessrio,contudo,quesejapagaemnvelfederal.Attulodeexemplo, podemoscitaraprimeiraexperinciamundialdeRendadeCidadania,que

31FIGUEIREDO,Ivanilda.Polticaspblicasearealizaodosdireitossociais. PortoAlegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 3732 A BIEN (Basic Income Earth Network) uma rede de acadmicos e ativistas de diversos pases que discutem sobre a implementao da Renda de Cidadania. http://www.basicincome.org33 VAN PARIJ S, Philippe. Renda bsica: renda mnima garantida para o sculo XXI? In: Estudos Avanados, v. 14, n. 40. So Paulo: USP, 2000, p. 17921ocorreu no Alasca34 estado-membro dos EUA. A sua gesto financeira pelo ente estatal tambm no tem importncia para a definio do que seja ou no RendadeCidadania,podendoelaserfinanciadadaformaqueformais interessante ao ente. O Permanent Fund Dividend (nomenclatura que recebe a Renda de Cidadania distribuda no Alaska), por exemplo, financiado como parte de um rendimento de um fundo de investimentos de diversas naturezas, criado pelo estado com a utilizao dos royalties cobrados pela explorao de petrleo. Outro aspecto imprescindvel na Renda de Cidadania a universalidade. Nesse sentido, fundamental a lio de Ivanilda Figueiredo:A Renda de Cidadania um direito dos cidados de desfrutarem das riquezas do local no qualnasceramouresidem.Noumaajudaaospobreseestropiados,embora,como conseqncia,ajudeaosmenosfavorecidosecontribuaparaodecrscimoda desigualdade.35Embora alguns estudiosos estabeleam excees quanto a determinadas categorias de pessoas, tais como crianas, aposentados, pensionistas e internos (presos, internados em manicmios ou lares de idosos), a Lei 10.835/04 no fazressalva,apenaslimitandoarendaquantoaosestrangeirosresidentes queles que j se encontram no pas h 5 (cinco) anos. Entretanto, conforme analisaremosadiante,aleibrasileiratemumapeculiaridade:oPoderExecutivo pode implementar de forma gradativa o projeto de lei em questo, priorizando as camadas mais pobres da populao. ARendadeCidadaniadeve,ainda,serpagaindividualmente,como assevera Van Parijs:

34Nenhum outro estado norte-americano possui um programa de dividendos como o Alasca. Cada residente que faz uma aplicao e qualificao no importando quo jovem ou idoso, rico ou pobre, seja, obtm uma fatia pessoal das receitas do estado provenientes da produo estatal de petrleo, e cadaumdosalasquianospodedecidirporsimesmocomoquegastaroupouparsuaparte.O programadedividendosdoAlascatemproduzidomaisimpactosmacroeconmicospositivosque qualquer outro tipo de gasto do governo. Os dividendos ajudam a criar milhares de empregos a cada ano com grande eficincia e sem paralelo. A forma de igual tratamento para todos os alasquianos aumentam (sic)significativamente a renda anual disponvel para as famlias do Alasca. (BASSO, Leonardo Fernando Cruz. Renda mnima garantida prs e contras. So Paulo: FGV, 2000, p. 71)35 FIGUEIREDO. Op. Cit., p.5222A renda bsica paga individualmente a cada membro da comunidade, em vez de a cada unidadefamiliartomadacomoumtodoouaseuchefe,comoocasonamaioriados sistemas de renda mnima garantida existentes. (...) Uma renda bsica, ao contrrio, paga de maneira estritamente individual. No apenas no sentido de que cada indivduo membro da comunidade um beneficirio, mas tambm de que o valor que a pessoa recebe independe do tipo de famlia a qual ela pertence.36Porm, as peculiaridades mais relevantes da Renda de Cidadania so a no-condicionalidadeaotrabalhonemsituaofinanceiradeseus beneficirios. interessante notar que, dentro da Seguridade Social, h uma categoria de prestao estatal que tem as caractersticas de incondicionalidade e generalidade: a sade. E, de forma mais ampla, o Estado Social brasileiro garanteaeducaoobrigatrianosmesmosmoldes:comoumdireitos subjetivo pblico incondicional e universal.Cumpreobservar,contudo,quefalardepolticaspblicasestatais universais e incondicionais, que objetivema efetividade de Direitos Sociais nonovidade:josoaspolticasdesadeeeducao.Nessesentido, assevera Luciana J accoud:Em que pese o fato do reconhecimento destas duas polticas enquanto um direito social de carterincondicionaltersidorealizadaemmomentosdiferentes,apartirdedistintas trajetrias,elasidentificam-sehoje,noBrasil,comaprpriaidiadecidadaniasocial. Assim, educao fundamental e sade so polticas cujo acesso gratuito assegurado em carter obrigatrio pelo Estado a todo cidado brasileiro.37Outra observao pertinente que o direito sade, hoje universal, j foioutrora inserido na sistemtica do Direito Previdencirio, sujeito, portanto a prviacontribuioeinseroemdeterminadacategoriadetrabalhadores, cabendo a instituies filantrpicas privadas de interesse pblico (Santa Casa de Misericrdia, Beneficncia Portuguesa, Cruz Vermelha, etc...) os servios gratuitos de sade aos desamparados.

36 VAN PARIJ S, Op. Cit., p. 18437 J ACCOUD. Op. Cit. p.230234. Por que uma Renda Bsica de Cidadania?A sustentaodopagamentodeum benefciopelo Estadonosmoldes expostos costuma causar perplexidade s pessoas. Afinal, qual seria o sentido de o governo despender recursos para o pagamento de uma renda modesta s pessoas ricas ou mesmo aos que no so ricos, mas que podem prover sua prpria subsistnciatendo em vistaa escassezde recursosde quedispe para a prestao dos demais servios pblicos? AidiadadistribuiodiretaderendapeloEstadononova,tendo surgidosobdiversasconcepesfilosficaseemcontextoshistricos variados.Nosepodedizer,tambm,queaspropostashavidasnosculo XVIIIsoidnticasscontemporneas.Tratam-se,somente,deidiasque contriburam para a formulao das atuais teorias.Nosepodeolvidarqueagarantiadedireitosfundamentaisest intrinsecamente ligada construo de uma concepo de cidadania. Alis, as principaiscrticasaosdireitoshumanosresidemjustamentesualigao estrita ao pertencimento a uma comunidade poltica38. No toa, portanto, que as primeiras sugestes de uma poltica assemelhada Renda Cidadania tenhamsurgidojustamentedentreospensadoresquecontriburamparaos movimentos histricos que apresentaram os fundamentos mais concretos para apositivaodosdireitoshumanos:aIndependnciaAmericanaea Revoluo Francesa. Oprimeiroautoraarquitetaraidiadeumarendaaserpagacomo direito inerente condio de cidado nacional foi Thomas Paine em 1795. Ivanilda Figueiredo esclarece:Thomas Paine (1737-1809), tido tambm como o primeiro autor a cogitar especificamente o estabelecimento de uma renda desfrutvel por cada cidado pelo simples fato de haver nascido em determinado local. Sua idia vista como o grmen inicial da atual concepo norteadora da Renda de Cidadania. Em sua obra J ustia Agrria ele defende que, em razo da propriedade privada, alguns teriam oportunidade de retirar da terra seu sustento; outros, no. Assim, os proprietrios deveriam ser compelidos a pagar uma taxa, que seria dividida

38 ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. So Paulo: Cia. Das Letras, 2000, p. 32924entre todos os cidados, como forma de assegurar a todos a fruio dos bens da terra do pas onde vivem, seria uma Renda da Terra.39Observa-se, portanto, que a idia de uma renda bsica surge ligada de um dividendo territorial. Mais que isso, surge por conta da noo de que o aproveitamentoeconmico,porumaminoria,dasbenessesadvindasde determinado territrio a obrigaria a despender uma parte destas benesses em proldetodaapopulao.NaspalavrasdoprprioThomasPaine,todo proprietriodeterrascultivadasdevecomunidadeumground-rentpela terra que detm; e esse ground-rent que deve compor o fundo proposto neste plano.40. Mais cristalina a seguinte passagem:Proponho que os pagamentos, como j foi dito, sejam feitos a todas as pessoas, ricas ou pobres. melhor faz-lo dessa maneira para evitar distines invejosas. Tambm certo que deva ser assim porque em substituio herana natural, a qual, como um direito, pertence atodo homem, alm dapropriedade que ele possa ter criado ou herdado daquelas que a criaram. As pessoas que optarem por no receber o pagamento podem deposit-lo no fundo comum.41Na Frana, seguindo a mesma linha, o socialista utpico Charles Fourier, ainda no sculo XVIII e seu discpulo J oseph Charlier elaboram propostas de programasgovernamentaissemelhantes.ProssegueIvanildaFigueiredoem sua exposio:J nadcadade1930,J amesMeadedefendeanecessidadedeseobservarofatode algumas pessoas possuremterras outorgava-lhes um status social diferenciado. Por isso, a idia de a propriedade das terras passar para a mo do Estado, que cobraria taxa pelo seu uso e dividiria o valor arrecadado entre todos os cidados, parecia ideal, mas incompatvel com o sistema capitalista vigente. Ento, imaginouuma soluoalternativapara ser includa no programadoPartidoTrabalhistabritnico,aqualconcebiaqueumaeconomiajustae eficiente contm um dividendo social financiado com os rendimentos obtidos dos haveres produtivos de propriedade pblica.42Pode-se afirmar, contudo, que a concepo da Renda cidad, atualmente, desprende-se daquela de dividendo territorial. Em verdade, este s um dos

39 FIGUEIREDO, Op. cit., p. 4040 PAINE, Thomas. Justia Agrria. (trad. Miguel Arajo de Matos) in SUPLICY, Eduardo. Renda de Cidadania A sada pela porta. So Paulo: Cortez, 2006, p 18241Ibid., p. 18542 FIGUEIREDO, Op. cit. p. 4025fundamentosnosquaiselapodesebasear,pois,porsise independentemente de sua motivao, poltica pblica que opera no sentido de diminuirasdesigualdades,depossibilitaroexercciodasliberdades individuais e da promoo da efetividade dos direitos sociais. Diversas crticas so feitas Renda de Cidadania, bem como a todo e qualquerprogramadetransfernciaderenda,comooBolsaFamlia.Estes recebem a pecha de assistencialistas, ou so acusados de favorecerem o cio e premiarem a preguia, desestimulando a produo e o desenvolvimento. interessante notar como j no sculo XVIII, Thomas Paine j abordava esta questo:No estou reinvindicando caridade, mas um direito. No se trata de generosidade, mas de justia. O estado atual de civilizao to odioso quanto injusto. absolutamente o oposto daquilo que deveria ser, e necessrio que se faa uma revoluo nele. O contraste entre riqueza e misria encontrando-se e ofendendo os olhos continuamente como o de corpos vivos e mortos acorrentados uns aos outro.43Entendemos que h muito preconceito nestes posicionamentos, j que, acada dia, so divulgadas mais pesquisas que evidenciam os avanos no sentido dadiminuiodadesigualdadeperpetradosporestesprogramas44.Comoo preconceitogeralmenteimunelgica,valemo-nosdasensibilidadede Viviane Forrester:Tantasvidasencurraladas,manietadas,torturadas,quesedesfazem,tangentesauma sociedade que se retrai. Entre esses despossudos e seus conterrneos, ergue-se uma espcie de vidraa cada vez menos transparente. E como so cada vez menos vistos, como alguns o querem ainda mais apagados, riscados, escamoteados dessa sociedade, eles so chamados de excludos. Mas, ao contrrio, eles esto l, apertados, encarcerados, includos at a medula! Elessoabsorvidos,devorados,relegadosparasempre,deportados,repudiados,banidos, submissos e decados, mas to incmodos: uns chatos! J amais completamente, no, jamais suficientemente expulsos! Includos, demasiado includos, e em descrdito.45A Renda Cidad , para ns, a poltica pblica que de forma mais clara representa a efetividade do valor da dignidade da pessoa humana (art. 1, III

43 PAINE. Op. cit.,p. 18944 Cf. WEISSHEIMER, Marco Aurlio. Bolsa Famlia. Avanos, limites e possibilidadesdo programa que est transformando a vida de milhes de famlias no Brasil. So Paulo: Perseu Abramo, 200645 FORRESTER. Op. cit., p. 15 26da Constituio). Kant j dizia que a dignidade inerente condio humana: ascoisastmpreoeohomemtemdignidade. sempre bom lembrar da segunda das mximas que compe o imperativo categrico kantiano: Age de talmaneiraquepossasusarahumanidade,tantoemtuapessoacomona pessoadequalqueroutro,sempreesimultaneamentecomofimenunca simplesmentecomomeio.46Oserhumano,independentementedeseus defeitos e qualidades, dotado de dignidade, e este valor reconhecido como um fundamento de nossa Repblica pela Constituio. Nunca pode ser visto como o instrumento para o alcance de um fim qualquer, porque o prprio ser humano um fim em si mesmo. O desenvolvimento econmico e o crescimento da produo so, sim, importantes para o pas e devem ser fins colimados pelo Estado,maselesstmsentidocasovenhamatrazerbemestarparaas pessoas e para todas elas, no s para algumas delas.E j que tocamos, acima, na anlisedo Direito Sade, defenderque algum deva morrer de fome porque preguioso to cruel como defender que o SUS no deva atender um soropositivo que fez sexo sem preservativo porque ele foi irresponsvel e deve custear seu prprio tratamento; ou que um fumante inveterado, ao desenvolver cncer de pulmo, no possa contar com o auxlio estatal porque ele o maior culpado por sua doena. Logo, desprende-seatdenossofundamentoinicialoesgotamentodoWelfare StateeasmudanasestruturaisnaeconomiamundialadefesadaRenda Cidad.Eladeveserdefendidaemnome,tambm,dospreguiosos,dos biltres, dos malandros e dos vagabundos, porque eles so seres humanos e o EstadoSocialdevezelarporsuaintegridadeindependentementede questionamentos ticos e morais quanto a seu temperamento ou atitude.

46 KANT, Immanuel. Fundamentao da Metafsica dos Costumes e Outros Escritos. So Paulo: Martin Claret, 1999, p. 50274.1. Diminuio da burocracia.UmagrandevantagemdaRendadeCidadaniaem relaoaosdemais programasdetransfernciaderenda,notadamentequantosua universalidade, a eliminao de toda a estrutura administrativa envolvida na fiscalizao do atendimento aos requisitos habitualmente associados ao gozo de benefcios de natureza assistencial: determinado nvel de renda, freqncia escola, exercciodotrabalho.EmumpascomooBrasil,quetem180 milhesdehabitantes,adisposiodeumcorpodeservidoresemcada municpio para efetuar esta fiscalizao no nada barato. Estima-se que o custo administrativodoBolsa Famliasejade 40% do totaldo programa47.Isto muito claro: imagine-se toda a estrutura administrativa de que deve se disporpara,numpascom180milhesdehabitantes,controlar-seo atendimento a esta ou aquela condicionalidade.Almdisso,ataxaderesgate dadoestatsticoreferenteaoalcance percentualdopblico-alvodeprogramascondicionadosinfinitamente maior.Osprogramascondicionados,pordiversosproblemasinerentess prprias provas do atendimento s condicionalidades, acabam por no atender a totalidade das pessoas que, em tese, deveriam receber os benefcios. Alm disso, a fixao dos critrios pode ser falha e, at, oportunista:Ao lado dos riscos de ampliao do carter discricionrio da poltica pblica e presses polticas de vrias ordens, persistem neste campo dificuldades prprias de qualquer poltica focalizada:definiesproblemticasparalinhasdepobreza,mecanismosquasesempre falhos de controle de aes focalizadas, alm de muitas vezes questionveis no que respeita aos critrios de avaliao de efetividade, eficincia e eficcia das polticas. De poltica de Estado a programas de governo; de cidado a cliente de programas de combate pobreza.48A Renda Cidad, por ser incondicional, acaba por ter uma taxa de resgate altssima, uma vez que somente aquelas pessoas que vivem em comunidades emtotalisolamento,nodispondodequalqueracessoaosmeiosde comunicao e informao no estaro abrangidas pela poltica. a nica

47 SUPLICY, Op. Cit. p. 14448 J ACCOUD. Op. Cit. p. 22928provaqueosbeneficiriosdeverofazeraresidncianopaspor determinado perodo de tempo (art. 1, Lei 10.835). 4.2. Segurana cidad. Agarantiadeumarendamnimaregular,delineadacomoumdireito subjetivo exigvel por todos os cidados ao Estado lhes d grande segurana. Afinal, mesmo que venham a se achar frente a imprevistos e intempries da vida, como uma doena ou desemprego, podero contar com recursos capazes de satisfazer as necessidades bsicas. O Senador Eduardo Suplicy, ao comentar este ponto, teceu os seguintes comentrios:OsfundamentosdaRendaBsicadeCidadaniavmdosprimrdiosdahumanidade. Confcio, 520 anos antes de Cristo, no Livro das explicaes e das respostas, observou que a incerteza ainda pior do que a pobreza49Este,tambm,justificativaquerepresentaestavisomaisamplade dignidadeaquefizemosreferncia.verdadequeotrabalhodignificao homem, mas no s. Urge que as polticas pblicas voltadas resoluo da questo social tenham em vista valores mais amplos que a sobrevivncia, mas, tambm valores como a liberdade, a segurana e a felicidade. 4.3. Eliminao da armadilha do desemprego. Nosprogramasortodoxosdetransfernciaderenda,comooBolsa Famlia,ocondicionamentodorecebimentodobenefcioaumtetode rendimentos provoca um fenmeno indesejvel. Muitas pessoas gostariam de poder trabalhar para complementar sua renda, mas no o fazem por medo de perder o benefcio, o que chamado de armadilha do desemprego.50

49SUPLICY,EduardoMatarazzo.Rendabsicadecidadania:arespostadadapelovento.Porto Alegre: L&PM, 2006, p. 3150 VAN PARIJ S, Op. Cit., p. 18629Em 2005, o programa Bolsa Famlia pagava uma mdia de R$64,00 por entidadefamiliarbeneficiada51.Um(a)chefedefamliaquedeixade empreender uma atividade laborativa, que seria outra fonte de renda, masque colocaria em risco o recebimento do benefcio encontra-se, evidentemente, em situaodegrandefragilidadeafinal,somentepessoasrealmentepobres aceitam trabalhos que as remunerem em R$64,00. Portanto, no entendemos que se trata de atitude ilegtima e preguiosa por parte do beneficirio, mas dedecisoracionaltomadacombasenaequaocusto/benefcio.Estaa primeira dimenso da armadilha do desemprego.Aincondicionalidadefazotrabalhovalerapena.Nessesentido, valiosa a lio de Van Parijs, acerca desta outra dimenso da armadilha do desemprego:Ele consiste na falta de um diferencial de renda positiva significativo entre desemprego e trabalho mal remunerado. No nvel mais baixo da distribuio de rendimentos, se cada euro de rendimentos for compensado ou praticamente compensado ou mais que compensado, por uma perda de um euro em benefcios, no ser necessrio ser particularmente preguioso pararecusarumempregoqueproporcionetaisrendimentos,ouprocurarativamentetais empregos. Tendo em vista os custos adicionais, tempo de locomoo ou problemas com os cuidados com filhos, talvez uma pessoa no possa trabalhar sob tais circunstncias. Alm disso, de um modo geral, no faria muito sentido para os empregadores criar e oferecer tais empregos,poisimprovvelquepessoasqueficariamgratasporseremdemitidas constituam uma mo-de-obra escrupulosa e confivel. (...) Uma vez que uma pessoa pode manter o valor integral de sua renda bsica, quer esteja trabalhando ou no, quer seja rica ou pobre,elacomcertezaestarnumasituaomelhorquandoestivertrabalhandodoque quando estiver desempregada.52Observa-se,portanto,queaRendaCidadnocolidecomasleisda economia que orientam e condicionam o mercado de trabalho em um sistema capitalista. Dentro de uma ordem constitucional que consagra a propriedade privada e a livre iniciativa, seriam nocivos coletividade programas que, por melhorintencionadosquefossem,nolevassememconsideraoesta realidade.Comoexemploclssico,dadoporPolanyiemsuaGrande Transformao,tivemosaSpeenhamlandLaw,sistemadeabonossalariais criadosnaInglaterraaoinciodaRevoluoIndustrialequeacaboupor postergaracriaodeumverdadeiromercadodetrabalho:oEstado

51 SUPLICY. Op. Cit., p. 2252 VAN PARIJ S, Op. Cit, p. 186-8730completaria, por meio de um abono, a renda dos trabalhadores at o alcance do patamar mnimo considerado para a garantia do direito de viver. Ou seja, se este patamar fosse estabelecido em um nvel X e o salrio de determinada pessoa fosse X-Y, o estado incumbir-se-ia de completar sua renda mediante a transferncia de Y a esta pessoa. As conseqncias foram desastrosas:Atravs da Speenhamland pretendia-se que a Poor Law fosse administrada liberalmente, porm,elasetransformoudefatonoopostodoseuintentooriginal.(...)Ora,nenhum trabalhador tinha qualquer interesse material em satisfazer seu empregador, uma vez que a sua renda era a mesma qualquer que fosse o seu salrio. A situao era diferente apenas no caso dos salrios-padro, i. e. quando os salrios pagos excediam a tabela, ocorrncia esta muito pouco comum no campo, uma vez que o empregador podia conseguir trabalhadores a qualquer preo, Por menos que ele pagasse, o subsdio auferido atravs dos impostos sempre elevava a renda do trabalhador at o nvel determinado pela tabela.53O resultado:Em poucos anos a produtividade do trabalho comeou a declinar at o nvel do trabalho indigente, oferecendo aos empregadores mais um motivo para no elevar os salrios alm da tabela.Depoisqueaintensidadedotrabalho,ocuidadoeaeficinciacomoqualera executado caram aaixo de um nvel definido, ele chegou quase utilidade, a um simulacro de trabalho apenas para salvar as aparncias. Apesar do trabalho ainda ser obrigatrio em princpio, na prtica a assistncia externa se tornou geral,emesmo quandoprestada nos asilos de indigentes dificilmente se poderia chamar de trabalho a ocupao obrigatria a que se entregavam os seus internos.54Quando algum faz crticas ao Bolsa Famlia porque este programa faria com que seus beneficirios negassem determinados trabalhos, tem razo. Isto, sem dvida, um aspecto negativo dos programas de transferncia de renda condicionados, e que a Renda de Cidadania extinguiria. Afinal, qualquer tipo detrabalhoremuneradorepresentariaumplusnaRenda,cabendoao trabalhadordecidirsevaleapena,ouno,asuaaceitao.Eesteponto crucial para o entendimento do prximo subttulo: existem hipteses em que desejvel que no haja aceitao.

53 POLANYI, Karl. A Grande Tranformao. As origens da nossa poca. So Paulo: Campus, 1980, p. 9054Ibid., p. 91 314.4. No aceitao do trabalho degradante. muito comum a confuso da vantagem referida no tpico anterior coma que descreveremos em seguida. , portanto, proposital a proximidade entre as duas anlises. No se pode confundir a armadilha do desemprego com a eliminao do trabalho degradante e indigno. Existe um grande abismo entre uma ao que no vale a pena e uma ao indesejvel, humilhante e aviltante. O trabalho, entendido como toda a atividade que objetiva a satisfao das necessidades do homem, de fato, o grande motor da sociedade.A todo o momento o homem realiza trabalhos, remunerados ou no, e estes contribuem direta ou indiretamente para vida das pessoas e para o desenvolvimento das naes e para a o acesso aos bens civilizatrios.Portanto,dentreashiptesesqueseenquadramnaarmadilhado desemprego podem estar atividades de grande valia para o cidado e para a sociedadecomoumtodo,negadasporcontadoriscodeseperderarenda advindadoEstado.Almdeimpossibilitaraaberturadeumajanelaque poderiarepresentaroportunidadesvaliosasparaobeneficiriodarenda condicionada,aexistnciadessevoencareceocustodotrabalhono degradante e lcito, podendo representar srios problemas econmicos. Entretanto, diferente a hiptese da aceitao de um trabalho indigno e humilhante por conta da necessidade de subsistncia. Esta situao que deve ser repudiada pela ordem constitucional, e os programas de transferncia de renda, mesmo os condicionados, possibilitam aos beneficirios a liberdade de se poder rejeitar a explorao injusta e, qui, criminosa do trabalho. Nesteponto,pode-seapontarumainterseoentreasvantagensda Renda de Cidadania e o Bolsa Famlia: mesmo os programas condicionados tmomritodeinibirotrabalhoindigno.Afinal,aaceitaodotrabalho aviltante e humilhante se d entre as pessoas que no tm outra opo para a sua sobrevivncia, de modo que as polticas de renda garantida oferecem uma alternativa sujeio a este tipo de violncia. 32A proposta da Renda de Cidadania confere aos prprios trabalhadores o poderdedizerqualtrabalhoenriquecedor,dignificanteeatraente.Nesse sentido, valiosa a lio de Van Parijs:Adispensadaverificaodasituaofinanceiradosbeneficirios,comovimos,est intimamenteligadaeliminaodaarmadilhadodesemprego(emsuasduasdimenses principais),eporconseguintecriaodeumpotencialparaaofertaeaceitaode empregos de baixos salrios que no existe atualmente. Mas alguns desses empregos podem serdesagradveis,degradantesesemperspectivasdeprogresso,oquenodeveriaser fomentado. Outros so trabalhos agradveis, enriquecedores e com perspectivas de avano, osquaisvaleapenaaceitar,mesmoqueosalriosejabaixo,porcausadoseuvalor intrnseco ou da qualificao que proporcionam. Quem pode determinar a diferena? (...) No os legisladores ou burocratas, mas os trabalhadores, pois pode-se acreditar que estes sabemmuitomaisdoqueaquiloquesabidonos altosescalessobreasincontveis facetas do trabalho que realizam ou pensam em aceitar. Eles tm o conhecimento que os capacitaaestarfazendoadistino,masnemsempretmopoderparafaze-lo, principalmente se possuem qualificaes pouco valorizadas ou mobilidade limitada.E arremata:Uma renda bsica no condicionada realizao de um trabalho d poder de barganha ao mais fraco de uma maneira que uma renda garantida condicionada ao trabalho no d. Dito de outro modo, a no-condicionalidade ao trabalho um instrumento-chave para impedir queano-condicionalidadesituaofinanceiraleveproliferaodeempregos desagradveis55Por fim, h que se destacar a real liberdade de trabalho que o pagamento de uma Renda cidad possibilita. Afinal, no so todas as espcies de trabalho que tm valor de troca. Existemmuitasespciesdetrabalhoquesodegrandevaliaparaa sociedadeequenosoremunerados.Comoexemplos,podemoscitaros trabalhos voluntrios com finalidades sociais, a produo artstica, o trabalho da me e do pai que cuidam dos filhos situao exacerbada quando se trata deindivduosacometidosdedeficinciaquenecessitamdededicao exclusiva, etc.Quandose h garantia deumarendamnima, incentiva-sea procurapelotrabalhomenosemfunodeseuvalormaterialemaisemfuno de valores transcendentes, ticos ou estticos.

55 VAN PARIJ S, Op. Cit, p. 191-92334.5. Auto-estima como valor.Esta,semdvida,umdosgrandesdiferenciadoresdaRendade Cidadania em relao s demais polticas de transferncia de renda. A Renda deCidadanianoseenquadranosconceitosconstitucionaisdeAssistncia Social (art. 203, CRFB) nem de Previdncia Social (art. 201, CRFB), mas se constitui de um direito autnomo e universal de todo cidado de participar da riqueza da nao. Comotodososcidados,independentementedesuacapacidadeou disposiopara otrabalho,nvelde rendaouqualqueroutracondio,tem direito Renda bsica, no existe qualquer estigma quanto aos beneficirios como de incapazes, preguiosos, incompetentes. Esta caracterstica confere Renda de Cidadania a qualidade de mais avanado programa de transferncia de renda tendente efetividade dos direitos sociais. Mesmonassociedadespr-industriaisaquefizemosrefernciano primeiro captulo, necessitar de assistncia era motivo de humilhao. Embora o modo de organizao da sociedade possibilitasse uma maior solidariedade entreosmembrosdeumacomunidade,avidadoidiotadaaldeia,por exemplo, tolerada e, em parte sustentada por sua comunidade, nem por isso um paraso.56As primeirasexperinciasde aes governamentaisqueobjetivavama amenizaodosefeitosdapobrezaemeconomiascapitalistasliberais ocorreram na Inglaterra. Entretanto, as antigas leis dos pobres (PoorLaw) surgidas no reinado de Elizabeth I, no sculo XVII, eram objeto de ataque de economistas,dostradicionaisprodutoresagrcolasedosnovosprodutores industriais,doqueadveioareformaem1834,noaugedaRevoluo Industrial. Nesse sentido, esclarece Pedro Csar Lima de Farias:Osproblemascomadireoeocontroledosrecursospassaramagerarpressespela adoodemudanasnalegislao.Entreosgrandescrticosdosmecanismosde administraodosistemaassistencialedeseusreflexossobreosistemaprodutivo,

56 CASTEL. As metamorfoses... p. 5234alinharam-setrsdosprincipaiseconomistasclssicos:AdamSmith,ThomasMalthuse David Ricardo. Como conseqncia dessas presses, em 1834, o Parlamento Ingls aprovou atransformaoradicaldaLeidosPobres.(...) Configurou-se,comessasmedidas,a implementaodeumnovo,pragmticoeseletivomodelodeassistnciasocial,mais compatvel com o processo de consolidao de um mercado de trabalho assalariado e com o interesse do governo ingls em estimular a acumulao do capital na economia em acelerado processo de industrializao.57O ideal liberal no aceitava que cidados livres, indivduos capacitadospara contratar ao seu alvedrio, pudessem ser objeto de aes governamentais tendentesalhesgarantirsubsistncia.Poressemotivo,anovaPoorLawexigia que os beneficirios de prestaes assistenciais abrissem mo de seus direitos decorrentes da cidadania para que pudessem fazer jus aos benefcios. Nesse sentido, o socilogo T. H. Marshall observou:(...) como reivindicaes que poderiam ser atendidas somente se deixassem inteiramente de ser cidados. Pois os indigentes abriam mo, na prtica, do direito civil da liberdade pessoal, devidoaointernamentonacasadetrabalho,eeramobrigadosporleiaabrirmode quaisquer direitos polticos que possussem.58Um parntesis: interessante notar, mais uma vez, grandes semelhanas na assistncia pr-industrial e na assistncia liberal:Michel Mollat observa que, na iconografia crist, o pobre quase sempre representado portadoricoousportasdacidade,numaatitudehumildeesuplicante.No imediatamente autorizado a entrar: primeiro deve estar bem consciente de sua indignidade; e, em todo caso, o exerccio da esmola depende da boa vontade dos ricos.59EmboraaConstituiode1988nopermitaaabdicaodosdireitos polticos,os programasdirecionadosdeassistnciasocialpossuemum vis muito forte de humilhao e constrangimento. O ideal de mrito, to afeito ao nossoregimedeeconomiademercado,fazcomqueaquelesquedevem receberbenefciosassistenciaissintam-seenvergonhadoseincapazesde proverasubsistnciaporsiprprios,comosefossemelesmesmosos culpados por sua condio econmica.

57 FARIAS, Pedro Csar Lima de. A seguridade social no Brasil e os obstculos institucionais sua implementao. Braslia: MARE/ENAP, 1997, p. 22-358Apud. FARIAS, Op. Cit, p. 2359 CASTEL. Op. Cit. p. 6335AoconceberaRendadeCidadaniacomoumdireitodecorrentedo exercciodacidadaniaeextensvelatodososbrasileiroseestrangeiros residentes no pas, garante-se, mais uma vez o respeito dignidade da pessoa humana em seu sentido mais completo. Alm disso, na esteira do que j foi exposto em relao segurana cidad, no so a vergonha e a humilhao valoressuprfluosquedevemserdeixadosdeladonaanlisedos fundamentose caractersticasdas polticaspblicas.Nessesentido, muito pertinente, mais uma vez, a anlise perspicaz de Viviane Forrester:Pois no h nada que enfraquea nem que paralise mais que a vergonha. Ela altera a raiz, deixa sem meios, permite toda espcie de influncia, transforma em vtimas aqueles que a sofrem, da o interesse do poder em recorrer a ela e a imp-la; ela permite fazer a lei sem encontrar oposio, e transgredi-la sem temor de qualquer protesto. ela que cria o impasse, impede qualquer resistncia, qualquer desmistificao, qualquer enfrentamento da situao. ela que afasta a pessoa de tudo aquilo que permitira recusar a desonra e exigir uma tomada de posio poltica do presente. ela, ainda, que permite a explorao dessa resignao, alm do pnico virulento que contribui para criar.A vergonha deveria ter cotao na Bolsa: ela um elemento importante do lucro.A vergonha um valor slido, como o sofrimento que a provoca ou que ela suscita. No de espantar, portanto, o furor inconsciente, digamos instintivo, para reconstituir aquilo que est na sua origem: um sistema falido e extinto, mas cujo prolongamento artificial permite aplicar subrepticiamente castigos e tiranias de alto quilate, protegendo a coeso social. 60 (grifo nosso)Nohcomoseignorar,defato,avergonhacomoumlimitadorao prprioexercciodacidadania.Enquantoumfundamentotoimportante comoesteforvistocomofrescuraoupieguice,certamentemaisdifcil torna-se o enfrentamento da pobreza e da indigncia.4.6. Fomento atividade econmica. Quandosefalaempolticadedistribuioderiquezas,nosepode pensar somente na distribuio entre os indivduos diretamente beneficiados. QuandooEstadoinjetadinheiroemlocaisemqueexistembolsesde

60 FORRESTER. Op. cit. p. 1236pobreza, recrudesce, moda keynesiana, a economia local, antes estagnada e em crise.Afinal,quandoumdestinatriodoprogramadeRendadeCidadania recebe o benefcio, ele o utiliza para comprar bens e servios o que no faria caso no tivesse a renda. Inicia-se, ento, um crculo virtuoso que possibilita a criao de novos postos de trabalho e a circulao de riquezas em locais antes estagnados. 61Nessesentido,aRendacidadcombateofenmenointituladopor Boaventura de Souza Santos de fascismo societal, conforme esclarece Ingo Sarlet:Dentre as diversas formas de manifestao desta nova forma de fascismo, tal como descrito pelo autor referido, cumpre destacar a crescente segregao social dos excludos (fascismo do "apartheid social"), de tal sorte que a "cartografia urbana" passa a ser caracterizada por uma diviso em "zonas civilizadas", onde as pessoas - ainda - vivem sob o signo do contrato social, com a manuteno do modelo democrtico e da ordem jurdica estatal, e em "zonas selvagens", caracterizadas por uma espcie de retorno ao estado de natureza hobbesiano, no qual o Estado, a pretexto de manuteno da ordem e proteo das "zonas civilizadas", passa a atuar de forma predatria e opressiva, alm de subverter-se virtualmente a ordem jurdica democrtica, fenmeno que Boaventura Santos designou de "fascismo do Estado paralelo"62Uma das formas de se combater o malfadado fenmeno, muito comum nos pases perifricos em geral e vivenciado no Rio de J aneiro em particular, pelofomentoaodesenvolvimentolocal.ARendadeCidadaniaum instrumentopoderosodedistribuioderiquezasindividualmentee territorialmente, razo pela qual se apresenta como alternativa resoluo do problema.

61 Cf. Acesso em 05/11/07.62 SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais na Constituio de 1988. Revista Dilogo Jurdico, v. 1, n 1. Salvador: CAJ , 2001, p. 5375. Algumas crticas habituais Renda de Cidadania.Muitasdascrticascomumentefeitasaestapolticapblicajforam abordadas quando da explanao das justificativas da implementao de uma Renda Cidad no pas. Algumas das crticas, contudo, merecem uma anlise mais retida. 5.1. A riqueza deve ser conseguida por meio do trabalho. De fato, o trabalho tem importncia fundamental para a efetividade dos direitos sociais. A Constituio, em seu art. 1, IV, o eleva a fundamento da Repblica. Em seu art. 193, por sua vez, estabelece que ordem social tem por base o primado do trabalho. O art. 6 da CRFB dispe, in verbis:Art.6oSodireitossociaisaeducao,asade,otrabalho,amoradia,olazer,a segurana,aprevidnciasocial,aproteomaternidadeeinfncia,aassistnciaaos desamparados, na forma desta Constituio. (grifo nosso)Logo a seguir, no inciso IV do art. 7, que estabelece as necessidades a que, obrigatoriamente, o salrio mnimo deve se prestar, dita:Art. 7, inciso IV: salrio mnimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais bsicas e s de sua famlia com moradia, alimentao, educao, sade,lazer, vesturio, higiene, transporte e previdncia social, com reajustes peridicos quelhepreservemopoderaquisitivo,sendovedadasuavinculaoparaqualquerfim; (grifo nosso)Acoincidnciadostermosmoradia,alimentao,educao,sadee lazer denota o primado da relao de emprego, elevada, pela Carta Magna, ainstrumento essencial para a efetividade dos demais direitos. Nessesentido, Maurcio Godinho Delgado afirmou, ao comentar acerca da matriz ideolgica na qual o Estado de Bem Estar Social fincou suas razes:Estamatrizculturalsabiamentedetectouqueotrabalho,emespecialoregulado(o emprego, emsuma),porserassecuratrio decertopatamardegarantias aoserhumano, constitui-se no mais importante veculo de afirmao socioeconmica da grande maioria dos 38indivduoscomponentesdasociedadecapitalista,sendo,dessemodo,umdosmais relevantes (seno o maior deles) instrumentos de afirmao da democracia na vida social. 63. Maisdoqueinstrumentodeefetividadedosdireitossociais,seriao trabalho,tambm,instrumentoparaafirmaodaprpriademocracia,por assegurarumcertopatamardegarantias,imprescindveisparaoexerccio dos direitos individuais. Contudo, se o art. 6, ao conferir a todos o direito ao trabalho, impe ao Estado o dever jurdico respectivo de garanti-lo. Como explicar, contudo, os ndiceselevadosdedesempregonopas,girandoemtornode20%nas principais regies metropolitanas do pas64? A experincia demonstraque as polticas pblicasque visam atingiro pleno emprego no apresentam resultados satisfatrios. Ademais, conforme j foi explicitado aqui, nem toda forma de trabalho til, engrandecedora e digna remunerada.ARendadeCidadania,almdepossibilitaroexercciodo trabalhoquenohabitualmenteremunerado,permitequesejagarantido, mesmo ao grande contingente de pessoas que no conseguem emprego, um mnimo para que possa viver com dignidade.Considerando que ter direito a algo ter a faculdade de exigir de quem tem o respectivo dever jurdico este algo65, como poderia ser possvel que as pessoas,tendopossibilidadedeescolhaentreapenosidadedecorrenteda obrigao diria do trabalho e a dedicao integral ao cio e aos prazeres da vida, optassem pelo primeiro caminho se no houvesse um fator externo que lhes condicionasse a isso? Portanto, a idia que h por trs da crtica a de o trabalhocomoumdevere,no,comoumdireito.E,pior,otrabalhoaqui tomadoemseusentidopejorativo,desfigurado,sobaformaperversado empregotrabalhoalheiado.ConformeobservaPauloPeixotode Albuquerque:

63 DELGADO, Maurcio Godinho. Globalizao e Hegemonia: Cenrios para a Desconstruo do Primado do Trabalho e do Emprego no Capitalismo Contemporneo.SNTESE TRABALHISTA. v.17, n. 194 Porto Alegre: Sntese, 2005. p. 2164 Cf. http://www.dieese.org.br65 BARROSO, Luis Roberto. Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Rio de J aneiro:Renovar, 2002. p. 10339Precarizao das condies de trabalho, demisses, marginalizao, excluso, eliminao, estes fatores concorrem, para que o referencial simblico que dava sociedade moderna e industrial valorizao do indivduo e sua ao como fundamento de sua independncia e de criatividade para construir-se como pessoa; otrabalhocomorazodesereinclusona vida tenha perdido seu poder de significao66 (grifo nosso)Ademais, so cruciais as ponderaes de Eduardo Suplicy:A Constituio brasileira, como a da maioria dos pases, reconhece o direito propriedade privada.Istosignificaqueaquelapessoaquedetmapropriedadedeumafbrica,uma fazenda,umrestaurante,umbanco,ttulosfinanceiros,propriedadesimobilirias,etc. detentoradealgumaformadecapitalepodereceberrendimentosnaformadelucros, aluguis e juros. Por acaso est escrito na Constituio que uma pessoa nessa situao obrigada a trabalhar ou a enviar as suas crianas para a escola como condio para receber esses rendimentos? No. Entretanto, normalmente os que detm o capital trabalham e suas crianas freqentam aescola,assim como seusfilhos adolescentes vo paraasmelhores universidades. E por qu? Porque desejam progredir. Pois bem, se ns asseguramos o direito spessoasmaisricasdereceberemrendimentosprovenientesdocapital,mesmosem trabalharouseremobrigadasamantersuascrianasnaescola,porquenopodemos assegurar a todas as pessoas, ricas e pobres, o direito a serem scias do pas, recebendo uma modesta renda, como um direito cidadania?67Uma vida cheia de sentido fora do trabalho supe uma vida dotada de sentido dentro do trabalho.68 O trabalho, portanto, no pode ser visto como um valorabsolutoseeleinstrumentoparaoalcanceesatisfaodas necessidades humanas, um paradoxo que seja ele mesmo o algoz do prprio sentido da vida. Que ingnuo seno cnico o discurso que qualifica como dignificantesostrabalhospenosos,rduos,mal remuneradoseaviltantes, cadavezmaispesados,atolimitedadorealmdele,quetodosns, brasileiros, estamos acostumados a observar diariamente... Qualquer de ns leia-sequalquerleitordestamonografia porestarmosinseridosneste perverso sistema de produo, pode ver muito sofrimento alheio impregnandocada prazer que sentimos e incrustado em cada bem que consumimos. Como bemobservouNietzsche,emsuaGenealogiadaMoral,quantosanguee quanto horror h no fundo de todas as coisas boas!.

66Apud. FIGUEIREDO, Op. Cit., p. 9567 SUPLICY. Op. Cit. P. 28-2968 ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. So Paulo: Boitempo, 2000, p. 175405.2. ARendadeCidadaniainjusta,porqueospobresrecebemo mesmo que os ricosEmbora,aprincpio,ofatodetodosreceberemomesmovalorpossa causarestranheza,umaanlisemaisretidadosfundamentosdaRendade Cidadanialevamcompreensodapertinnciadestapremissa.Almda motivao,jexaustivamenteexplanada,queserelacionauniversalidade que decorre de um direito afeto cidadania que, por sua vez, pressupe a igualdade em direitos e obrigaes existe outra explicao bem simples e de ordem bastante prtica. A Renda de Cidadania no torna os ricos mais ricos, pelo simples fato de que deve ser financiada por algum e, evidentemente, o ser por eles mesmos. CasosejainstitudahojeumaRendauniversalnoBrasil,certamenteo montante de impostos pagos pelo maior empresrio seria de algumas centenas devezesovalordaRendabsica.Almdisso,oscustosadministrativos decorrentes do estabelecimento de um teto de rendimento so enormes em um pas com as dimenses do Brasil, como j foi dito.5.3. A Renda de Cidadania uma loucura, invivel, carssimaDe fato, a Renda Garantida no um programa barato. Porm, mesmo sendo dispendiosa, se fosse estabelecida hoje, no Brasil, uma renda universal no valor deR$50,00 o que, paraum casal,representariaumquantumde R$2.400,00 anuais a mais no oramento familiar ainda assim, ela custaria 44 bilhes de reais a menos do que o montante gasto pelo pas no ano de 2005 para o pagamento de juros de ttulos da dvida pblica, consoante os clculos do economista Marcelo Nri.69

69 FIGUEIREDO, Op. Cit., p. 57415.4. ARendadeCidadaniadeveriaserpagasfamliase,no, individualmente .A maior parte dos programas de transferncia de renda atualmente tem como destinatrios os ncleos familiares. Os beneficirios solitrios, em geral, recebemumarendaemvalorproporcionalmentemaiordoqueovalorper capita das famlias. A justificativa bvia: quando as pessoas se aglutinam em uma entidade familiar, os custos individualmente tomados diminuem significativamente, por contadousufrutocomumdealgunsbenseservios.Noentanto,polticas pblicasquesebaseiamnessescondicionamentosapresentamdiversos problemas. Nesse sentido, observa VAN PARIJ S:Como conseqnciasnaturais desse condicionamentoestruturafamiliar,economiasde escala so desencorajadas, falsos domiclios recompensados e portanto preciso verificar as condies de vida das pessoas. Uma das vantagens flagrantes da renda bsica precisamente o fato de que ela acabaria com tudo isso. Pessoas que vivem juntas e assim fazem com que a sociedade economize moradias e bens de consumo durvel teriam direito aos benefcios das economiasdeescalaqueelasgeram.Portanto,tambmnohaveriabnusparaaquelas pessoas que fingem viver separadas quando na verdade vivem juntas e nem necessidade de verificar quem vive onde e com quem.70Outro problema decorrente deste tipo de classificao a dificuldade de sedefiniroqueum ncleofamiliar,sendoesteum dosgrandesdesafios encontrados na gesto do Bolsa Famlia problema que se mostra de enormes propores,aoseconsideraroreconhecimentodecategoriasoutrasde entidadesfamiliares,taiscomocomoasanaparentais,asquedecorremde unieshomoafetivas,dentreoutras.Maisumavez,entramosnaquesto de comoaburocraciaenvolvidaparaafocalizaodosprogramasde transfernciaderendaseapresentacomoumempecilhoaoalcancedos objetivos colimados.

70 VAN PARIJ S, Op. Cit., p. 202425.5. A Renda de Cidadania um programa assistencialista.Preliminarmente,cumprefazeralgumcomentriosacercadapechade assistencialistadirigidaadeterminadaspolticaspblicas,notadamente quelas consistentes em transferncia direta de renda. A bem da verdade, importante rememorar a vasta tradio do Brasil quanto a prticas de governantes inescrupulosos que se utilizam da estrutura estatal para perpetuar-se no poder, por meio da compra de votos de eleitores vulnerveisfinanceiramente,distribuiodefavorespagoscomdinheiro pblico a seus correligionrios e outros costumes eticamente criticveis. Neste caso,podemosutilizarsemreceiootermoassistencialista,porseruma corruptela do adjetivo assistencial utilizada para qualificar programas com aparnciadeassistenciais,mascomcontedodeutilizaoimorale ineficiente de dinheiro pblico.Nosepodeolvidar,contudo,ofatodequeasmaioresvtimasda corrupoedafaltadezelocomacoisapblicaso,justamente,osmais pobres. So eles que sofrem com a escassez de servios pblicos essenciais, a falta de acesso informao e educao, to caros ao exerccio dos direitos polticos.Portanto,pareceserumdiscursosingelo,quandonoardiloso, colocar a pecha de assistencialista em qualquer programa de transferncia de renda, mesmo tendo sido ele elaborado e executado consoante os ditames maisisonmicoserepublicanospossveis.Afinal,somentepormeioda garantiadeummnimodeacessoaosdireitossociaispoderoserdadas condies para que essa populao fragilizada tenha condies de exercer seus direitos polticos em sua plenitude e, decerto, a distribuio de renda aos destitudos pressuposto dessa garantia. Como j foi amplamente exposto no Captulo 1, a Renda de Cidadania nopolticapblicaqueseenquadrenoroldeaesdoart.203da Constituio Assistncia Social - porque no paga a quem dela necessitar, mas a todos os cidados, independentemente de qualquer condio. E mesmo que fosse, h muito o trao jurdico da Assistncia Social perdeu o carter de 43benemernciaparaganharostatusdeverdadeirodireitosubjetivopblico, corolriodoprpriodireitovida,comoesclareceojuristafrancsDaniel Lenoir:Le droit laide sociale est dabord un droit subjectif: cest en quelque sorte le droit la vie, que est lorigine dune crance sur la societ. Le lgislateur sest toutefois bien gard, lpoque, daffirmer um droit de tous lassistence [Alfandari, 1989].Emboranovejamos,portanto,nenhumdemritoemumapoltica pblica da assistncia social que observe aos parmetros de republicanismo e isonomiaafetasatodasasaesestatais,observa-sequeacrticaaqui relacionadaacabaporreforarnossoargumentopeloqualdefendemosa Renda Cidad como vantajosaem relao a estas polticas tradicionais,por no impingir aos beneficirios qualquer estigma, como acontece em relao quelas.446. Implementao da Renda de Cidadania no BrasilOBrasilpioneironaimplementaodaRendaBsica.Coma promulgaodaLei10.835/2004,opascontacomabaselegal,emnvel nacional, para que seja efetivado o direito incondicional a uma renda mnima detodocidado.Entretanto,hquesedestacardiversosproblemasde naturezajurdicaparaaefetividadedalei.Falta-lhe,naverdade,eficcia jurdica(porquependentederegulamentao),eficciasocial(osagentes polticos no se mobilizaram para faz-la cumprir) e eficcia ideolgica (as crticasacimaexpostassoformuladasporpessoasdetodacolorao ideolgica, esquerda e direita)6.1. O obstculo. - Apossibilidadedeargiodeinconstitucionalidadeformaldosarts.3e 4 da Lei que institui a Renda Cidad.Como cedio, a Lei 10.835/2004 se originou de um projeto de lei de iniciativadoSenadorEduardoSuplicy.Porcontadisso,hquesefazer algumas consideraes acerca dos arts. 3 e 4, que dispem:Art.3o.OPoderExecutivoconsignar,noOramento-GeraldaUnioparaoexerccio financeiro de 2005, dotao oramentria suficiente para implementar a primeira etapa do projeto, observado o disposto no art. 2o desta Lei.Art.4o.Apartirdoexercciofinanceiro de2005,osprojetosdeleirelativosaosplanos plurianuaisesdiretrizesoramentriasdeveroespecificaroscancelamentoseas transferncias de despesas, bem como outras medidas julgadas necessrias execuo do ProgramaAiniciativa,atoquedincioaoprocessolegislativo,porregra, faculdadetantodoPoderExecutivo,quantodoPoderLegislativo(art.61, CRFB). Entretanto, em nome do princpio da separao de Poderes (art. 2, CRFB), o prprio art. 61, 1 estabelece excees a esta regra geral, ou seja, algumas hipteses em que a iniciativa reservada ao Presidente da Repblica. 45Almdisso,oart.84,incisoXXIII,bemcomooart.165daCRFB estabelecemacompetnciaprivativadochefedoExecutivoparainiciar projeto de lei que verse sobre o oramento anual, a o plano plurianual e a lei de diretrizes oramentrias. Portanto, no faz sentido algum que lei ordinria, de iniciativa do Poder LegislativovenhaaestabelecerumaobrigaodefazeraoPresidenteda Repblicaconsistentenodeverdeconsignardeterminadadotao oramentrianooramentoanual.Trata-sedeumaformaindiretadese imiscuir em sua competncia exclusiva e discricionria de elaborar o projeto de lei oramentria. Nesse sentido, aponta a jurisprudncia pacfica do STF:"O respeito s atribuies resultantes da diviso funcional do Poder constitui pressuposto de legitimaomaterialdasresoluesestatais,notadamentedasleis.Prevalece,emnosso sistema jurdico, o princpio geral da legitimao concorrente para instaurao do processo legislativo. No se presume, em conseqncia, a reserva de iniciativa, que deve resultar em facedoseucarter excepcional deexpressa previsoinscritanoprprio textoda Constituio, que define, de modo taxativo, em numerusclausus, as hipteses em que essa clusuladeprivatividaderegerainstauraodoprocessodeformaodasleis.O desrespeito prerrogativa de iniciar o processo legislativo, quando resultante da usurpao do poder sujeito clusula de reserva, traduz hiptese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissvel, a prpria integridade do diploma legislativo assim editado, que no se convalida, juridicamente, nem mesmo com a sano manifestada pelo Chefe do PoderExecutivo.Reservadeadministraoeseparaodepoderes.Oprincpio constitucionaldareservadeadministraoimpedeaingerncianormativadoPoder LegislativoemmatriassujeitasexclusivacompetnciaadministrativadoPoder Executivo. (...) No cabe, ao Poder Legislativo, sob pena de desrespeito ao postulado da separao de poderes, desconstituir, por lei, atos de carter administrativo que tenham sido editadospeloPoderExecutivonoestritodesempenhodesuasprivativasatribuies institucionais. Essa prtica legislativa, quando efetivada, subverte a funo primria da lei, transgride o princpio da diviso funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituio parlamentar e importa em atuao ultra vires do Poder Legislativo, que no pode, em sua atuao poltico-jurdica, exorbitar dos limites que definem o exerccio de suas prerrogativas institucionais.71 (grifo nosso)No entanto, isso no significa que o Poder Legislativo no possa fazer emendassleisoramentrias,deacordocomadisciplinadoart.166da Constituio, que venham a prever as despesas com a Renda de Cidadania. Afinal,a instituiodestedireito,emsi,noconstituimatriadeiniciativa reservada, e as emendas parlamentares ao oramento visando sua instituio no so proibidas.

71ADI 776-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-10-92, DJ de 15-12-06.46Almdisso,mesmotendosidoaleisancionadaepromulgadapelo PresidentedaRepblica,oSTFentendequenoh convalidao tcitado vciodeiniciativa.Portanto,algumaentidadequetenhalegitimidadepara faz-lo, ou at mesmo um outro governante pode vir a pedir a declarao de inconstitucionalidadepeloSTFdeleiquecontenhamculade inconstitucionalidadeformal.Nessesentido,tambmpacficaa jurisprudncia do STF:"Asano doprojeto deleinoconvalida o vcio deinconstitucionalidaderesultante da usurpaodopoderdeiniciativa.AulterioraquiescnciadoChefedoPoderExecutivo, mediante sano do projeto de lei, ainda quando dele seja a prerrogativa usurpada, no tem o condo de sanar o vcio radical da inconstitucionalidade. Insubsistncia da Smula n. 5/STF. Doutrina. Precedentes."72- A necessria regulamentao pelo Poder Executivo.O art. 1, 1 da Lei 10.835/04 estabeleceque o Poder Executivoir ditaradimensoeagradaocomqueserconcedidaaRendaCidad. Complementando e enriquecendo o sentido do direito concedido no art. 1, o 2estabelecequeeledevesersuficienteparaoatendimentodasdespesas mnimas de cada pessoa com alimentao, educao e sade desde que, mais umavez,oExecutivofaaregulamentaonessesentidoconsiderandoas possibilidades oramentrias, ou seja, o dinheiro disponvel. Alm disso, de senotarquenohprazopararegulamentaosalvoaobrigatoriedade invlidaeilegaldeconsignaodadotaooramentrianoexercciode 2005, j analisada no item anterior. Em verdade,alei nopoderiadisporde formadiferente,sobpenade inconstitucionalidade formal. O STF j se posicionou no sentido de considerar inconstitucional o estabelecimento de prazos, pelo Legislativo, para a edio deatosdecompetnciatpicaeexclusivadoExecutivocomosoos decretos regulamentares. Seno vejamos:

72ADI 2.867, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 3-12-03, DJ de 9-2-07.47O Tribunal, por maioria, julgou procedente, em parte, pedido formulado em aodireta proposta pelo Governador do Estado do Amazonas, para declarar a inconstitucionalidade dos incisos I, III e IV do art. 2, bem como da expresso no prazo de sessenta dias a contar da sua publicao, contida na parte final do caput do art. 3, todos da Lei 50/2004, do Estado do Amazonas, que dispe sobre a realizao gratuita do exame deDNA. (...) No que se refereaoart.3dacitadalei,queautorizaoChefedoPoderExecutivoaproceder regulamentao da lei no prazo de sessenta dias a contar de sua publicao, aduziu-se que a autorizaoparaoexercciodopoderregulamentarseriadespicienda,umavezquese cuidaria de simples regulamento de execuo. No obstante, reputou-se inconstitucional a determinaodeprazoparaqueoChefedoPoderExecutivoexeraafuno regulamentardesuaatribuio,porafrontaaoprincpiodainterdependnciae harmoniaentreospoderes. Quanto ao pargrafo nico desse art. 3, que credencia um rgopblicoparaoefetivocumprimentodoobjetodalei,pormeiodedotao oramentriagovernamental,afirmou-sequeessecredenciamentodeumrgopblico indeterminado, apesar de tecnicamente incorreto, no seria inconstitucional. Esclareceu-se, no ponto, que o texto do pargrafo nico do art. 3 conforma a regulamentao da lei pelo Executivo, que a desenvolver de acordo com a convenincia da administrao, no quadro do interesse pblico.73Isto significa dizer que a Lei 10.835/04 forneceu a base legal necessria paraquefosseimplementadaaRendadeCidadania,masasuaefetiva execuo somente se dar a critrio de convenincia e oportunidade do Poder Executivo. Este , sem dvida, o maior obstculo implementao desta poltica no pas: o processo legislativo brasileiro, ao ser baseado no sistema de freios e contrapesos, acaba sendo um entrave implementao imediata da Renda de Cidadaniasemquehajaumconcertoemuitobemafinadoentreos PoderesLegislativoeExecutivo.Certamente,odesenhoinstitucionaldo EstadodadonaConstituioconfereaoPoderExecutivograndepoderde deciso sobre o fim, o incio e caractersticas dessas polticas pblicas, o que podeacarretar,dentreoutrasdistores,umagrandeingerncianosoutros Poderes e a intermitncia e instabilidade na aplicao de projetos importantes para a populao.

73ADI 3.394, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 2-4-07, Informativo 462.486.2.OBolsaFamliaaprimeirafaseseimplementaodaRendade Cidadania?UmaanlisesuperficialdasLeis10.835/04(queinstituiuaRendade Cidadania)edaLei10.836/04(queinstituiuaBolsaFamlia)podefazer chegar concluso de que a implementao da Renda Cidad j est em curso noBrasil.Afinal,oBolsaFamlia,aforaofatodeteralgumas condicionalidades e ter como destinatrias entidades familiares, guarda muitas similitudescomaRendadeCidadania.Almdisso,aleiqueinstituiuo programadoGovernoLulafoipublicadaexatamente1diaapsaRenda Cidad. No entanto, o marco legal das duas polticas de transferncia de renda aponta emsentidodiverso.Primeiramente,cumpreobservarque, jmesmoantes da sano da Lei 10.835/04, j existia o Bolsa Famlia, que havia sido institudo pela Medida Provisria 132/03. A questo analisada por Ivanilda Figueiredo:As leis 10.835/04 e 10.836/04 tm a mesma alocao na pirmide jurdica. Nenhuma tem como serconsiderada maisespecfica, porque tratamdomesmo assunto.E alegarqueo critrio temporal traria uma resposta parece desvirtuar a realidade. Quando a Lei da Renda de Cidadania foi promulgada, o Bolsa Famlia j existia, entretanto eleforainstitudoatravsdeMedidaProvisria.Emvirtudedisso,aLei10.836restou promulgadaumdiadepoisdesuaantecessora.Emtermosexatosdedata,oBF[Bolsa Famlia]foicriadoem 20 deoutubro de2003 eaRC[RendadeCidadania],em 08de janeiro de 2004. No parece crvel argumentar que, pelo fato de a medida provisria ter se convertido na lei 10.836/04, em 09 de janeiro de 2004, a Lei da Renda de Cidadania nasceu revogada. Sim, porque, em seu artigo derradeiro, a lei 10.835/04 estabelece entrar em vigor na data de publicao na Imprensa Oficial o que ocorreu exatamente no dia 09 de janeiro. Apesardoimbrglionormativo,pode-sepresumirqueaintenoacoexistnciadas normas.74Podemoschegarconcluso,portanto,queapendnciade regulamentaodaLei10.835/04atornaumanormadeeficciacontida, porque pendente de regulamentao. Embora vlida, no pode produzir seus efeitos tpicos, ou seja, os cidados brasileiros ou estrangeiros residentes no pashpelomenos5anosnopodemdemandardoEstadoumarenda

74 FIGUEIREDO, Op. Cit., p. 17949suficiente para o atendimento de suas necessidades bsicas. Somente podero faz-lo quando o Poder Executivo emitir o decreto regulamentar que venha a fixar seu valor e estabelecer a maneira como a Administrao Pblica o far. Ouseja,almdesernecessriaafixaodovalor,oExecutivodever estabelecer,porexemplo,qualrgoserresponsvelpelocadastramento, pelopagamento,sehaverumcartonosmoldesdoBolsaFamlia,as atribuies de funes servidores responsveis pela execuo, locais em que as pessoas podero solicitar a incluso no programa, etc. Esta organizao matria tpica da competncia do Executivo. O governo Lula j deu um passo no sentido de implementar a Renda de Cidadania, que foi a criao da SENARC Secretaria Nacional de Renda de Cidadania vinculada ao Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome. Esta Secretaria composta por trs departamentos, o Departamento de Operao, Departamento de Gesto dos Programas de Transferncia de Renda eoDepartamentodeCadastronico.curiosoobservarqueagestodo programa Bolsa Famlia compete a esta Secretaria, de acordo com o art. 7 ao 10 do Anexo I do Decreto 5.074/2004 (Estrutura regimental da Ministrio de DesenvolvimentoSocial),oqueapontanosentidodeconsideraroBolsa Famliacomoumprogramatendenteexpanso,ataimplementaoda Renda de Cidadania. De fato, significativo que a gesto do Bolsa Famlia compita SENARC e, no, a uma outra secretaria qualquer. Isto indica que o atualgoverno,adespeitodeomarcolegalnopermitirtalconcluso, organizousuaestruturaministerialcomafinalidadedepermitiruma progressivaampliaodaabrangnciadoBolsaFamliaataalmejada efetividade da Lei 10.835/04.507. A sada pela porta . Sada?Dematodososcidadosumarendamodesta,porm incondicional,edeixem-noscomplet-lavontadecomrenda provenientedeoutrasfontes75.OSenadorEduardoSuplicy,maior defensor da Renda Cidad no pas, faz, no ttulo de seu livro Renda deCidadania:asadapelaporta,referncia aoensinamentode Confcio: O Mestre disse: Algum pode sair de casa sem ser pela porta?76.Trata-se de forma delicada de se referir s diversas solues que este programa de governo, de arquitetura to simples, traz para muitosproblemas e imbricaes a que fizemos referncia neste trabalho. No entanto, sabemos que otimista em demasia sustentar que a RendadeCidadaniaasada.Naatualordemdosfatos,sabemos que existem problemas para os quais no h sada pelo menos, no sem que haja uma ruptura do sistema capitalista constitudo. Istonotira,noentanto,alegitimidadeeopotencial transformadordaproposta.Umabelaproposta,entretantoenvolta numaaurasombriadedesalentoedesesperana.Pertinente, portanto, concluir a monografia com um poema de Carlos Drummond de Andrade:Elegia 1938*Trabalhas sem alegria para um mundo caduco, onde as formas e as aes no encerram nenhum exemplo. Praticas laboriosamente os gestos universais, sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

75VAN PARIJ S, Philippe. Op. Cit., p. 17976 CONFCIO apud SUPLICY, Op. cit,. p. 4951Heris enchem os parques da cidade em que te arrastas, e preconizam a virtude, a renncia, o sangue-frio, a concepo. noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas. Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer. Mas o terrvel despertar prova a existncia da Grande Mquina e te repe, pequenino, em face de indecifrveis palmeiras. Caminhas entre mortos e com eles conversas sobre coisas do tempo futuro e negcios do esprito. A literatura estragou tuas melhores horas de amor. Ao telefone perdeste muito, muitssimo tempo de semear. Corao orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota e adiar para outro sculo a felicidade coletiva. Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuio porque no podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.52BibliografiaARENDT,Hannah.Asorigensdototalitarismo.SoPaulo:Cia.Das Letras, 2000ANTUNES,Ricardo.Ossentidosdotrabalho.SoPaulo:Boitempo, 2000BARROSO,LuisRoberto.DireitoConstitucionaleaEfetividadede suas Normas. Rio de J aneiro:Renovar, 2002BASSO,LeonardoFernandoCruz.Rendamnimagarantidaprse contras. So Paulo: FGV, 2000BOSCHETTI,Ivanete.SeguridadeSocialeTrabalho.Braslia:Letras livres: Editora UnB, 2006_______________.AssistnciaSocialnoBrasil:umdireitoentre originalidade e conservadorismo. Braslia: UnB, 2003CASTEL, Robert. Asmetamorfosesdaquestosocial. Uma crnica do salrio. Petrpolis: Vozes, 2005DEHESA,GuillermodelaetSNOWER,DennisJ .(orgs.) Unemployment Policy. Londres: Cambridge University Press, 1997FARIAS,PedroCsarLimade.AseguridadesocialnoBrasileos obstculos institucionais sua implementao. Braslia: MARE/ENAP, 199753FIGUEIREDO, Ivanilda. Polticasp