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Renata Quintella de Oliveira ENTRE MURMÚRIOS E GRITOS ABAFADOS: a crueldade e a delicadeza em Seta Despedida de Maria Judite de Carvalho Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa). Orientadora: Prof. Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria Rio de Janeiro Março de 2012

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Renata Quintella de Oliveira

ENTRE MURMÚRIOS E GRITOS ABAFADOS: a crueldade e a delicadeza em Seta Despedida de Maria Judite de Carvalho

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa).

Orientadora: Prof. Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria

Rio de Janeiro Março de 2012

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Renata Quintella de Oliveira

Entre murmúrios e gritos abafados: a crueldade e a

delicadeza em Seta Despedida de Maria Judite de Carvalho

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa).

Examinada por:

_______________________________________________________

Prof. Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria- (UFRJ)

(Orientadora)

_______________________________________________________

Prof. Doutora Luci Ruas Pereira (UFRJ)

_______________________________________________________

Prof. Doutora Teresa Cristina Meireles de Oliveira (UFRJ)

_______________________________________________________

Prof. Doutor José Clécio Basílio Quesado (UFRJ)

(Suplente)

_______________________________________________________

Prof. Doutora Lúcia Maria Moutinho Ribeiro (UNIRIO)

(Suplente)

3

À Ana Lúcia: minha mãe e meu alicerce

4

Agradecimentos

Descobri em minha jornada de vida que posso conseguir muitas coisas. Porém,

não posso consegui-las sozinha. Necessito do apoio e força de outras pessoas e

com relação à feitura desta Dissertação de Mestrado não é diferente. Agradeço

imensamente à minha mãe, a quem dediquei este trabalho, não apenas por ter me

dado a vida, mas por me ajudar a caminhar, mesmo que às vezes a estrada seja

repleta de obstáculos. As pedras no caminho são sempre encaradas como grãos de

areia quando temos amigos. Agradeço imensamente aos meus novos amigos. Estes

não preciso nomear. Eles sabem a quem me refiro! Agradeço ao meu namorado,

Bruno Schiaffarino Luzze, pois ele acompanhou todo o processo, sempre me dando

força, inspiração e me ajudando a abstrair quando eu estava muito cansada.

Agradeço a um Poder maior do que eu, que não chamo de Deus propriamente, mas

que sei que existe e me guia nos momentos difíceis, me dando serenidade,

paciência e perseverança não para vencer, mas para continuar a lutar e não desistir

nunca. Agradeço à minha orientadora, Ângela Beatriz de Carvalho Faria, pela

paciência e a forma amorosa com que me orientou na produção desta dissertação.

Agradeço aos professores da Faculdade de Letras da UFRJ: Carmem Lúcia Tindó

Ribeiro Secco, Dau Bastos, Cinda Gonda, Luci Ruas e Ronaldes de Melo e Souza,

pelas excelentes aulas e pela inspiração que acabaram me dando, direta ou

indiretamente. Agradeço, por fim, im memoriam, à Maria Judite de Carvalho, por ter

deixado este legado. Sua escrita realmente me fascinou e me inspirou a encarar

esta difícil tarefa, que foi a de escrever sobre os seus belíssimos contos.

5

Em nenhum outro escrito como nesse poema, de 1953, Montale evocou uma visão tão apocalíptica;

mas o que os seus versos melhor valorizam são os minúsculos traços luminosos, que ele contrapõe

à escura catástrofe.

(Ítalo Calvino)

6

RESUMO

OLIVEIRA, Renata Quintella de. Entre murmúrios e gritos abafados : a crueldade e a delicadeza em Seta Despedida de Maria Judite de Carvalho. Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa). Faculdade de Letras, UFRJ, Rio de Janeiro, 2012, 117 p. A coletânea de contos, Seta Despedida, da escritora portuguesa contemporânea,

Maria Judite de Carvalho, apresenta, simultaneamente, a crueldade e a delicadeza.

Não se trata de uma crueldade explícita, manifesta através de "uma gota de sangue

verdadeiro", mas uma crueldade do inelutável, implícita, expressa muito mais pelo

silêncio do que pela fala, talvez muito mais cruel, segundo as reflexões críticas de

Renato Cordeiro Gomes, ao referir-se à Artaud e Clément Rosset em Estéticas da

Crueldade (Org. Ângela Maria Dias e Paula Glenadel, 2004). Por um lado, há a

crueza desse tema denso, mas, por outro, há a forma através da qual este tema é

desenvolvido: uma escrita singular, que opta por dizer o mínimo e o subentendido,

para não perder a delicadeza e a leveza, como nos aponta Denílson Lopes em A

Delicadeza: estética, experiência e paisagens (2007).

Palavras-chave: crueldade; delicadeza; Seta Despedida; Maria Judite de Carvalho.

7

ABSTRACT

OLIVEIRA, Renata Quintella de. Entre murmúrios e gritos abafados : a crueldade e a delicadeza em Seta Despedida de Maria Judite de Carvalho. Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa). Faculdade de Letras, UFRJ, Rio de Janeiro, 2012, 117 p.

The short story collection Seta Despedida, of contemporary Portuguese writer Maria

Judite de Carvalho, presents both cruelty and Kindness. This is not an explicit

cruelty, manifested by “a drop of a real blood”, but one of the inevitable cruelty,

implied, expressed more by silence than by speech, perhaps even more cruel, the

second critical reflections Renato Cordeiro Gomes, when referring to Artaud and

Clément Rosset in Estéticas da Crueldade (Org. Ãngela Maria Dias and Paula

Glenadel, 2004). On the one hand here is the rawness of dense matter, but on the

other, there is the way in which this theme is developed: a written individual who

chooses to say the least understood and, not to lose the delicacy and lightness, as in

Denilson Lopes points in A Delicadeza: estética, experiências e paisagens, 2007.

Key words: cruelty; kindness; Seta Despedida; Maria Judite de Carvalho.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO: a dor elevada ao campo da beleza.............................................10

2 A DELICADA NARRATIVA DO INELUTÁVEL......................................................12

2.1 Formas de representação do real implacável.................................................12

2.2 O cruel revelado através da delicadeza..........................................................21

2.3 Maria Judite de Carvalho: a mulher, a escritora, o projeto estético e a visão crítica sobre a autora..................................................................................................24

3 O HOMO SACER: uma visão agambiana da crueldade.......................................46

3.1 A figura enigmática e obscura do homo sacer e sua sacralidade.....................46

3.2 A desconstrução da ambivalência do sacro: o homo sacer entendido através da dupla exceção.......................................................................................................49 3.3 O homo sacer: o devoto sobrevivente e o rito fúnebre do soberano................56

4 MERGULHADOS NOS ABISMOS DE SI MESMOS: a cruel realidade das personagens de Seta Despedida...............................................................................60 4.1 A crueldade agambiana e a crueldade do inelutável........................................60

4.2 “Seta Despedida” vivendo como quem se despede de si e da vida................68

4.3 “George”: partir e chegar para depois partir......................................................84

4.4 O tribunal do silêncio e “A Absolvição”.............................................................92

4.5 Banida por encarceramento: “A alta”................................................................96

4.6 “As impressões digitais” de uma vida sem história.........................................102

4.7 O “frio” encontro com a face da morte............................................................106

9

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................110

REFERÊNCIAS .......................................................................................................115

10

1 INTRODUÇÃO: a dor elevada ao campo da beleza

A ideia de tratar simultaneamente destes dois temas—a crueldade e a

delicadeza—surgiu a partir de um curso ministrado na Faculdade de Letras da UFRJ

pela professora Ângela Beatriz de Carvalho Faria, no segundo semestre de 2010. O

curso intitulava-se Estéticas da crueldade e da delicadeza na ficção portuguesa

contemporânea e contemplava o estudo dessas duas estéticas em diferentes textos

de autores portugueses contemporâneos. Entre eles, encontrava-se Maria Judite de

Carvalho, o que nos levou a perceber a presença da crueldade aliada à delicadeza

nos contos de Seta Despedida, publicados em 1995.

Não se trata, entretanto, de uma crueldade explícita, manifesta

através de cenas de horror e sangue derramado, mas de uma crueldade que irá se

manifestar “em tom menor”, através do silêncio e do subentendido, construída

sutilmente através de uma linguagem econômica e extremamente sofisticada, que

apresenta, de uma forma singular, uma aparente simplicidade, manifesta no texto

literário, através da delicadeza.

Utilizamos, em nossa pesquisa, textos de diferentes autores que

trataram da crueldade especificamente, como, por exemplo, Antonin Artaud (O

Teatro e seu duplo); Clément Rosset (O princípio da crueldade) e Renato Cordeiro

Gomes (“Narrativa e paroxismo: será preciso um pouco de sangue verdadeiro para

manifestar a crueldade?”, texto presente na obra Estéticas da crueldade, organizada

pelas autoras Ângela Maria Dias e Paula Glenadel, 2004). Partindo da ideia inicial,

utilizamos, inclusive, outros textos que contribuíram para a compreensão do tema,

como, por exemplo, o do filósofo italiano Giorgio Agamben: Homo sacer I: o poder

soberano e a vida nua, assim como o de Helena Carvalhão Buescu: “Somos todos

homines sacri: uma leitura agambiana de Maria Judite de Carvalho”, contido do livro

De Orfeu e de Perséfone: Morte e Literatura, organizado por Lélia Parreira Duarte,

em 2008. A eles faremos referência nos capítulos subsequentes à Introdução.

No capítulo 2, intitulado “A delicada narrativa do inelutável”,

apresentaremos, de uma forma panorâmica, as reflexões propostas por alguns

autores que trataram da crueldade e da delicadeza. Assim, entremearemos

discussões de Clément Rosset, Antonin Artaud e Renato Cordeiro Gomes sobre a

crueldade com as questões propostas por Denílson Lopes e Ana Cristina Chiara que

abordam a estética da delicadeza. Consideramos que a crueldade, na narrativa de

11

Maria Judite de Carvalho, se manifesta mais claramente no tema, enquanto que a

delicadeza estará presente na forma através da qual essa crueldade emergirá, o que

funciona como um “contraponto” à violência, à crueldade e ao excesso, presentes

em muitos textos literários contemporâneos. Na narrativa juditeana, em especial no

livro de contos Seta Despedida, verificamos uma crueldade que se manifesta “em

tom menor”, configurada através de silêncios, por vezes, entretanto, bem mais

perturbadores do que poderiam ser cenas de violência explícita e com a presença de

sangue e de horror. Ainda no capítulo 2, apresentaremos, de forma breve, a

escritora Maria Judite de Carvalho, sua vida e sua obra, e faremos alusão à fortuna

crítica sobre ela.

No capítulo 3, denominado “O homo sacer: uma visão agambiana da

crueldade”, destacaremos as reflexões inicialmente propostas por Giorgio Agamben

(e posteriormente retomadas por Helena Carvalhão Buescu) sobre o homo sacer, e

as questões do poder soberano, do estado de exceção e da vida nua. Segundo o

próprio Agamben, a condição de homo sacer é hoje compreendida como pertinente

ao homem contemporâneo, pois ele menciona o fato de, hoje, todos sermos, de

certa forma, “virtualmente homines sacri”. Assim, podemos estabelecer uma

conexão entre a condição do homo sacer e alguns personagens presentes nos

contos de Seta Despedida, como veremos no decorrer da Dissertação.

No quarto e último capítulo, intitulado “Mergulhados nos abismos de si

mesmos: a cruel realidade dos personagens de Seta Despedida”, trataremos mais

especificamente dos seis contos inseridos na coletânea Seta Despedida, última

publicada em vida e selecionada para análise. São eles: “Seta Despedida”,

“George”, “Impressões digitais”, “A alta”, “A absolvição” e “Frio”. Veremos, desta

forma, como a crueldade do inelutável (termo que escolhemos utilizar aqui, baseado

nas reflexões de Clément Rosset) se manifesta nos textos selecionados, utilizando,

em sua tessitura, uma delicadeza que instaura, nestes contos, uma beleza

incontestável, na medida em que alia, simultaneamente, a sutileza na representação

do cruel, sofisticação e simplicidade.

12

2 A DELICADA NARRATIVA DO INELUTÁVEL

2.1 Forma de representação do real implacável

Ainda na introdução de seu texto, O princípio da crueldade, Clément

Rosset defende que só há um pensamento sólido ou obra sólida no “registro do

implacável e do desespero”. Mas esse desespero não é entendido pelo autor como

uma disposição de espírito voltada para a melancolia e sim uma “disposição

refratária a tudo o que se assemelha à esperança ou à expectativa” 1.

Segundo Rosset, tudo o que visa atenuar a crueldade da verdade ou

ainda as “asperidades do real” teria como consequência desacreditar a mais genial

das empresas ou a mais estimável das causas. Para enfatizar ainda mais essa

recusa pela atenuação da crueldade da verdade, Rosset cita Ernesto Sábato,

quando, em seu romance Abaddón, o exterminador, diz que deseja ser “seco” e não

“enfeitar nada”, pois uma teoria deve ser implacável e voltar-se contra seu criador se

este não trata a si mesmo com crueldade.

Clément Rosset defende a ideia de que toda realidade é cruel . Para

argumentar em favor deste pensamento, estabelece dois princípios, cujos

significados são o objeto de estudo do livro citado: o “princípio da realidade

suficiente” e o “princípio da incerteza”. Ao tratar do primeiro princípio, Rosset tece

seu discurso abordando a filosofia como uma “teoria do real”. E teoria seria definida,

segundo a sua etimologia, como o resultado de um olhar (criativo e interpretativo)

sobre as coisas.

Segundo Rosset, a filosofia teria, assim como a arte, um caráter

criativo, apesar de sua essência especulativa e intelectual. Desta forma, Rosset

aproxima os dois campos do saber: filosofia e arte. Segundo o autor, há

semelhanças significativas entre as duas áreas de conhecimento, já que a filosofia

consiste, antes de tudo, em uma obra, uma criação. A imaginação, a invenção, a

composição e a potência expressiva são, segundo Rosset, o apanágio de todo

grande texto filosófico, assim como também o são de toda obra de arte.

1 ROSSET, C. (1989) p.7

13

O que particulariza, entretanto, o estudo filosófico seria o seu objeto

de estudo: a realidade como um todo, concebida em sua totalidade de dimensões

espacio-temporais. Rosset coloca que, para o filósofo, inclusive, torna-se objeto de

estudo até mesmo aquilo que se encontra fora do alcance de sua percepção.

Segundo o autor: “A ambição de dar conta do conjunto dos objetos conhecidos e

desconhecidos define, ao mesmo tempo, a desmedida e a especificidade da

atividade filosófica”2. Outras teorias preocupar-se-iam, segundo Rosset, com

aspectos mais particularizados da realidade, enquanto à teoria filosófica caberia

preocupar-se com a realidade em seu conjunto.

Outra questão a que Rosset faz alusão é o paradoxo da certeza do

detalhe ligada a uma incerteza do conjunto, ou seja, a visão de grande parte dos

filósofos é a que um fato é tido como realidade, visto em seu detalhe, em sua

particularidade; mas duvidoso se observado como fazendo parte de um conjunto de

fatos que compõem a realidade. Desta forma, como exemplifica Rosset, admitir-se-ia

sem dificuldades a existência de, por exemplo, cães em particular; por outro lado,

seria mais difícil admitir a existência de cães em geral.

Segundo Rosset, quase toda a tradição filosófica ocidental entende o

real por sua insuficiência: não haveria nada no real que pudesse contribuir para a

sua inteligibilidade, sendo, portanto, necessário buscar fora desse mesmo real o seu

segredo. Clément Rosset, no entanto, irá entender essa questão de outra maneira.

Recorrendo a Leibniz e relembrando o seu princípio da razão suficiente, o autor

abordará o “princípio de realidade suficiente”, que aparecerá, no entanto, como uma

inconveniência aos olhos da maioria dos filósofos (Dizemos a maioria, pois ele

excetua alguns: Lucrécio, Spinoza, Nietzsche e o próprio Leibniz):

A intenção de filosofar unicamente sobre o real e a partir do real constitui, mesmo aos olhos da filosofia e da opinião mais comuns, um motivo de zombaria geral, e uma espécie de enorme erro de base reservado apenas aos espíritos inteiramente obtusos e incapazes de um mínimo de reflexão.3

Nesse sentido, Rosset faz uma crítica veemente a Hegel que, para

ele, assim como o grupo de filósofos do qual trata, faz uma depreciação da realidade

imediata, ao defender o “princípio da realidade insuficiente”. Rosset vê-se obrigado a

2 Idem, p. 11 3 Ibidem, p.13

14

admitir que a filosofia, que se propõe a compreender e interpretar o que existe,

frequentemente só possui seu olhar focado no que não existe. Segundo ele, sempre

lhe pareceram suspeitas as razões invocadas pela maioria dos filósofos para

contestar o real, mantendo sob suspeita o fato de sua simples e total realidade.

Claro que é pertinente dizer, afirma Rosset, que há aspectos ininteligíveis na

realidade. Mas ser ininteligível não é, de fato, o mesmo que ser irreal. Para o autor,

ao pensarem assim, a maioria dos filósofos dissimula, na verdade, a dificuldade que

existe em se levar em consideração o real e somente o real; dificuldade essa que

reside, antes de mais nada, no caráter incompreensível da realidade, inclusive em

seu “caráter doloroso”.

Essa “desavença filosófica”, como afirma Rosset, não se origina no

fato de a realidade ser inexplicável, considerada em si mesma, mas ao fato de que

essa mesma realidade é cruel. A ideia da “realidade suficiente” seria, para o autor,

um risco permanente de angústia, pois privaria o homem de qualquer possibilidade

de distância ou de recurso em relação a ela. Trata-se de uma realidade que se

mostra subitamente insuportável.

Em seguida, Clément Rosset detalha o que entende por “crueldade do

real”: a natureza intrinsecamente dolorosa e trágica da realidade:

(...) o caráter único, e consequentemente irremediável e inapelável, desta realidade—caráter que impossibilita ao mesmo tempo de conservá-la a distância e de atenuar seu rigor pelo recurso a qualquer instância que fosse exterior a ela4 .

A ideia de Rosset sobre a “crueldade do real” fica muito mais evidente

e clara quando o autor nos fornece os significados etimológicos de termo “cruel ”:

Cruor, de onde deriva crudelis (cruel) assim como crudus (cru, não digerido, indigesto) designa a carne escorchada e ensanguentada: ou seja, a coisa mesma privada de seus ornamentos ou acompanhamento ordinários, no presente caso a pele, e reduzida assim à sua única realidade, tão sangrenta quanto indigesta5 .

Desta forma, como afirma Rosset, a realidade é cruel quando

desprovida de tudo o que não é ela, para considerá-la apenas em si mesma, “tal

4 Ibidem, p. 17. 5 Ibidem, p. 17.

15

como uma condenação à morte que coincidisse com a sua execução”, como bem

exemplifica o autor. Não há, desta forma, nenhum espaço intermediário, nenhuma

preparação prévia para acostumar-se a essa realidade; ela simplesmente acomete o

sujeito, de surpresa, sem direito a nenhum pedido de apelo. Por isso, Rosset afirma

que o cruel desta realidade é algo duplo: por um lado é o fato de ser cruel; por outro,

o fato de ser real.

A “dupla crueldade do real” seria, então, o acúmulo de duas realidades

em uma só: uma realidade penosa que é, ao mesmo tempo, uma “realidade real”:

“parece que o mais cruel da realidade não reside em seu caráter intrinsecamente

cruel, mas em seu caráter inelutável, isto é, indiscutivelmente cruel”6 .

O “inelutável”, como afirma Rosset, não se refere ao que seria

necessário para toda a eternidade, mas sim a algo a que é impossível furtar-se no

instante mesmo. Essa ideia de uma realidade cruel porque inelutável é algo que

veremos ocorrer com frequência nos contos de Seta Despedida, nos quais a

crueldade não se manifesta, em momento algum, através de cenas em que há

atrocidades com sangue, mas sim através de realidades das quais os personagens

não podem escapar.

Este tipo de crueldade, a qual poderíamos chamar aqui “crueldade do

inelutável” será representada, nos textos de Maria Judite de Carvalho selecionados,

através de um discurso que manifesta essa dor da existência muito mais através do

silêncio do que da fala; através de uma linguagem da “delicadeza” (da qual

falaremos mais adiante), que sugere muito mais do que realmente diz,

representando, desta forma, uma crueldade muito mais terrível do que aquela que

poderia emergir de um texto que traz imagens de crueldade de forma mais explícita

(como exemplo, temos alguns textos da ficção do brasileiro Rubem Fonseca, que

possui imagens que, de tão cruéis e explícitas, chocam o leitor).

O outro princípio a que se remete Rosset chama-se “princípio da

incerteza”. Segundo este princípio, toda verdade é duvidosa, fazendo com que toda

verdade considerada incontestável cessaria de ser uma verdade filosófica. Porém, a

incerteza é cruel, mas essa crueldade é, segundo o autor, inerente à filosofia. A

dúvida serviria, como explica Rosset, não para produzir o verdadeiro, mas para

6 Ibidem, p. 18.

16

destruir as ideias falsas; teria, assim, um caráter “higienizador”, pois mantém a

mente limpa dos “germes” portadores de ilusão e loucura.

Mas de onde viria o caráter cruel do princípio da incerteza? Rosset

afirma que esse caráter advém da necessidade humana de se ter a certeza; isso é

algo “aparentemente inextirpável” da maioria dos homens. É inerente ao homem,

desta forma, a busca incessante pela certeza das coisas e a intolerância pela

incerteza. O filósofo deveria, então, mostrar-se sempre desconfiado de suas próprias

teorias:

Pitágoras não crê nos números, Platão não crê nas idéias, Epicuro não crê nos átomos. Contrariamente ao fanático, ele possui bastante sabedoria para não defender, a qualquer preço, uma verdade que certamente enunciou mas de que também sabe, e provavelmente melhor do que ninguém, a que ponto é duvidosa.7

Este segundo princípio, porém, apesar de extremamente válido, não

nos servirá tanto para nossas reflexões quanto o primeiro, já tratado anteriormente.

Faremos referência, logo, com maior frequência, ao pensamento de Rosset ligado

ao que ele chama “princípio da suficiência do real”, a partir do qual pudemos pensar

na “crueldade do inelutável”, característica marcante dos contos selecionados do

livro Seta Despedida, do qual trataremos com mais vagar posteriormente.

Há um outro autor ao qual não poderíamos deixar de fazer referência,

ao tratarmos do tema da crueldade: Antonin Artaud. Em seu livro O teatro e seu

duplo, Artaud trata do que ele chama “Teatro da crueldade”. Seguindo uma linha

inaugurada pelas vanguardas, escreve um texto contundente, com um tom muito

próximo do manifesto, apontando uma crise no teatro do seu tempo e propondo uma

renovação do mesmo, através da criação de um espetáculo que sensibilize o

espectador.

Segundo Artaud, o teatro encontrava-se em decadência e fora

desprezado, tanto pela elite, como pelas massas que, naquele momento, preferiam

o cinema, o music-hall ou até mesmo o circo. O teatro passou a se limitar, segundo

Artaud, a fazer o público “penetrar na intimidade de alguns fantoches” 8 e acabou

transformando o espectador em mero “voyeur”. Segundo o autor, esse era o motivo

de ambos os públicos estarem buscando outras formas de arte como as já citadas,

7 Ibidem, p. 32. 8 ARTAUD, A. (2006) p. 95.

17

pois com elas poderiam experimentar as “satisfações violentas”, cujo teor não as

decepcionaria. Artaud afirma que começava a ocorrer um desgaste na sensibilidade

do público. E este precisava de um teatro que lhe despertasse “nervos e coração”.

O autor faz uma forte crítica ao teatro que dominava a cena burguesa

e compara o Teatro Ocidental com o Oriental. Segundo ele, o tipo de teatro que

prevalecia no Ocidente possuía uma “obsessão pela palavra clara que diga tudo” 9, o

que ocasionou um verdadeiro “ressecamento das palavras”. Tal fato já não ocorria,

segundo Artaud, com o teatro produzido no Oriente que, de certa forma, ainda

conservava certo valor expansivo da palavra, já que a mesma em seu sentido claro

não é tudo. É necessário valorizar a música das palavras, algo que atinge, segundo

o autor, diretamente o inconsciente do espectador. O Teatro Oriental, portanto, é

visto por ele como um teatro que exigiria uma linguagem mais ampla, de gestos,

atitudes, signos. Essa questão da palavra é muito frisada por Artaud. Isso que ele

considera uma qualidade no Teatro Oriental (o uso mais amplificado da linguagem,

indo além das palavras) será um dos requisitos que o autor defenderá como

essenciais no que ele define como o “Teatro da Crueldade”.

Para Artaud, o “Teatro da Crueldade” não seria mero entretenimento:

funcionaria como uma “terapia da alma”, capaz de insuflar um “magnetismo ardente

das imagens”. Seria um “teatro grave”, muito diferente daquele que estava em vigor

e cujo valor já havia se esgarçado. O tipo de linguagem utilizada no teatro proposto

por Artaud recusaria o mimetismo e o “textocentrismo” que caracterizavam o teatro

ocidental; seria uma linguagem que apela para o ressurgimento do teatro como

cerimônia mágica ou mística, devolvendo-lhe o caráter de ritual; teria uma

preocupação metafísica, referindo-se ao mal como “o mal único”, ou seja, o

sofrimento de existir. A crueldade seria a essência dessa expressão teatral de cunho

metafísico: somente através dela seria possível estabelecer-se esta renovação tão

ampla do teatro, como propõe Artaud.

Contudo, quando Artaud afirmou categoricamente que faltava

crueldade no teatro fora, muitas vezes, incompreendido. Podemos perceber, em

suas cartas, presentes em O teatro e seu duplo, sua tentativa de esclarecer a essas

pessoas que não o entenderam o uso específico que faz deste termo (crueldade ):

9 Idem, p. 139-140.

18

Caro amigo As objeções que lhe fizeram e que me fizeram contra o Manifesto do Teatro da Crueldade dizem respeito, umas, à crueldade que não se vê muito bem o que vem fazer em meu teatro, pelo menos como elemento essencial, determinante; e outras, ao teatro tal como o concebo. (...) Eu deveria ter especificado o uso muito particular que faço dessa palavra e dizer que a emprego não num sentido episódico, acessório, por gosto sádico e perversão de espírito, por amor dos sentimentos estranhos e das atitudes malsãs, portanto de modo nenhum num sentido circunstancial; não se trata de modo algum da crueldade vício, da crueldade erupção de apetites perversos e que se expressam através de gestos sangrentos (...); mas, pelo contrário, de um sentimento desprendido e puro, um verdadeiro movimento do espírito, que seria calcado sobre o gesto da própria vida; e na ideia de que a vida, metafisicamente falando (...) admite, por conseqüência direta, o mal (...) E, apesar de algum cego rigor que estas contingências todas tragam consigo, a vida não poderá deixar de se exercer, caso contrário não seria vida; mas esse rigor e esta vida que continuam e se exercem na tortura e no espezinhamento de tudo, esse sentimento implacável e puro, é a crueldade10 .

A intenção de Artaud era renovar o que ele denomina “espetáculo

total”. O espetáculo teatral deveria ser feito com uma linguagem que fosse além das

palavras, “um espaço bombardeado de imagens, de sons, um teatro feito por uma

mobilização intensa de objetos, de gestos, de signos11”, como afirma Renato

Cordeiro Gomes, ao tratar do teatro de Artaud em seu texto “Narrativa e paroxismo:

será preciso um pouco de sangue verdadeiro para manifestar a crueldade?”,

presente no livro Estéticas da crueldade, organizado por Ângela Maria Dias e Paula

Glenadel. Aliás, a pergunta que faz parte do título do texto Gomes é tomada de

empréstimo do próprio Artaud, que abre essa questão em seu texto para cogitar se,

necessariamente, para haver a expressão da crueldade, seria necessário se recorrer

sempre às cenas de horror e sangue derramado.

Segundo Gomes, o teatro da crueldade proposto por Artaud seria:

(...) afirmação de uma terrível e, aliás, inevitável necessidade. Mas não significa teatro de terror e sangue. Não se trata absolutamente de uma crueldade física ou mesmo moral, mas, antes de tudo, de uma crueldade ontológica, ligada ao sofrimento de existir e à miséria do corpo humano12.

10 Ibidem, p. 133-34. 11 GOMES, R. C. (2004) p. 143. 12 Idem, p. 144.

19

Porém, apesar de não haver uma conexão exclusiva dessa crueldade

com o sangue, Gomes afirma que, por vezes, podem ocorrer cenas que recorrem

eventualmente ao horror. Isso porque a crueldade de que trata Artaud é de essência

metafísica.

O apelo às dissonâncias, ao exagero e à desproporção leva Gomes a

concluir que o teatro de Artaud é a expressão de um paroxismo: “Crise, delírio, furor,

espasmo, dilaceramento, frénésie, exaltação violenta, transe: tudo isso nos obriga a

ver o teatro da crueldade como a expressão de um paroxismo” 13. Contudo, Gomes

opta por um caminho diferente, ao analisar a crueldade na literatura contemporânea.

A pergunta que é também título de seu texto, aquela tomada de Artaud e já

mencionada anteriormente, tem, para Gomes, um sentido retórico, o que leva o

autor a indagar se realmente é necessário, para expressar a crueldade na literatura

contemporânea, fazer uso da violência explícita, marcada pelo sangue derramado.

Para Gomes, a crueldade estaria muito mais “num modo de estar em

linguagem e não especificamente no tema, ou na realidade a que remete”14. Isso

porque o autor afirma que a representação da realidade brutal (ou inelutável) nos

textos literários contemporâneos dá-se através de um discurso sem metafísica, sem

transcendência.

Para exemplificar esta questão, Gomes (2004) cita o conto “Intestino

grosso”, de Rubem Fonseca (presente na coletânea Feliz Ano Novo, 1972). Apesar

de usar também o paroxismo, o texto de Rubem Fonseca utiliza uma linguagem

“crua”, sem eufemismos. O conto citado possui caráter metaficcional, pois explica a

poética do autor, que é posta em prática no próprio volume Feliz Ano Novo. Nele, o

personagem-autor aborda a sua própria escrita, dizendo que escreve sobre as

pessoas empilhadas da cidade, enquanto os agentes do poder “armam o arame

farpado”; afirma também, citando a obra roseana Grande Sertão: Veredas que “Não

dá mais para Diadorim”15. Com isso, o personagem-autor de “Intestino grosso”

afirmava que não há mais espaço para as narrativas que privilegiam um discurso

metafísico.

Da mesma maneira em que não cabem discursos metafísicos, como

postula Gomes, também não cabem, em textos de ficção contemporâneos que

13 Ibidem, p. 145. 14 Ibidem, p. 145. 15 FONSECA, R. “Intestino grosso”. In: Feliz Ano Novo. apud. Gomes, R. C. (2004), p. 145.

20

representam a crueldade, certezas apaziguadoras. Representar a crueldade não

significa mimetizar a realidade cruel e violenta: significa não essencializá-la,

demonstrando, assim, que a verdade pode ter múltiplos aspectos: não há verdades

absolutas.

Textos como o já citado conto de Rubem Fonseca, assim como

Cidade de Deus, romance de Paulo Lins, representam a crueldade da realidade

brutal através de imagens fortes, chocantes, de paroxismos. Há um excesso de

descrições de cenas terrivelmente cruéis, que chocam o leitor, pelo requinte de

detalhes com que são escritas. Porém, Gomes irá mencionar textos que utilizam um

procedimento inverso: o contrário do paroxismo. Segundo o autor, algumas

narrativas contemporâneas conectam-se à realidade inelutável para narrar, de forma

breve, experiências que beiram o insuportável e o indizível, fazendo com que a

própria representação entre em crise. Torna-se impossível narrar e essa

impossibilidade configura, muitas vezes, o tema da própria narrativa. Esses relatos

narram a crueldade, segundo Gomes, através do “deslocamento” ou da

“condensação”, o que ele chama de “o contrário do paroxismo”.

O procedimento narrativo denominado “condensação”, que

manifestaria o “contrário do paroxismo”, aludido por Gomes, é exemplificado pelo

autor através da citação de outro texto de Rubem Fonseca: o conto “Cidade de

Deus”, homônimo do romance de Paulo Lins, já citado anteriormente. Neste conto,

há também a descrição de uma cena brutal de vingança, que é, neste caso, narrada

de forma econômica, em poucas linhas, enquanto que, no romance de Paulo Lins,

cena semelhante toma cerca de quatro páginas. Segundo Gomes, a narrativa de

Rubem Fonseca instaura, com sua economia de palavras, uma crueldade tão ou

mais brutal do que aquela que emerge no texto de Paulo Lins: “os atos terríveis e

cruéis são filtrados pela linguagem econômica, que funciona como mediação, quase

uma espécie de ‘decoro’, que revela indiretamente a violência”16 . Gomes ainda

afirma que, através da síntese, está toda a diferença, pois não se tem a pretensão

de afirmar uma verdade absoluta. A crueldade surge, assim, muito “mais cruel”, pois

é dita de modo displicente e cínico, sem a preocupação de criar uma ilusão

extratextual e não apelando para uma visão de mundo maniqueísta.

16 GOMES, R. C. (2004) p. 149.

21

Gomes também cita outro procedimento narrativo que, segundo ele,

instaura a crueldade, através do “contrário do paroxismo”: o deslocamento. Este

procedimento consistiria em narrar indiretamente, “fazer entender”, “mostrar” ao

invés de “dizer”. Ao descrever esse artifício da linguagem, Gomes cita Ricardo Piglia,

autor que também tratou a respeito desse “deslocamento”, como uma proposta do

milênio em que estamos, e que tomaria o lugar da “consistência” na narrativa.

O deslocamento viria a funcionar, assim, como uma forma de rejeitar

um discurso hegemônico, contrapondo-se às ficções oficiais, do Estado, pois, agora,

“há o testemunho de alguém que viu e vai contar a outro alguém o que viu; que

sobrevive para não deixar que a história se apague”17. Mais uma vez está em jogo a

ausência de uma verdade absoluta: há verdades, múltiplas, relativas, que entram em

confronto.

Gomes nos mostra, enfim, que nem sempre é preciso sangue

verdadeiro para manifestar a crueldade. O texto de Maria Judite de Carvalho nos

revelará uma crueldade absolutamente privada de cenas de horror e sangue

derramado; uma crueldade que emergirá, no texto, através da delicadeza de um

discurso sutil, sofisticado e muito bem construído, que irá deixar inúmeras lacunas,

por vezes silêncios ou subentendidos, revelando uma crueldade diferente daquela

presente em alguns textos de Rubem Fonseca e Paulo Lins. Neste sentido,

poderemos retomar Gomes, pois será através da economia, do “contrário do

paroxismo”, da sugestão, que se manifestará a crueldade. A autora optará, como

veremos, por uma estratégia discursiva que se aproximará de uma poética da

delicadeza, através da valorização do mínimo e da sutileza. Tratemos, agora,

portanto, um pouco mais deste último aspecto.

2.2 O cruel revelado através da delicadeza

Em A Delicadeza: estética, experiência e paisagens, Denílson Lopes

aborda essa questão de maneira minuciosa, explicando como a delicadeza e seus

17 Idem, p. 150.

22

temas transversais—a leveza, o sublime no banal, a poética do mínimo, entre

outros—se apresentam na literatura hoje, contrapondo-se, muitas vezes, a uma

estética da violência, do paroxismo de imagens, que revela uma realidade brutal.

Segundo Lopes, este estudo partiu de um desejo inicial de falar sobre

a beleza hoje, o que possibilitaria reflexões sobre uma estética pós Estudos

Culturais. Seria essa estética, então, adequada a uma produção cultural e artística

que se firmou após os anos de 1970, momento a partir do qual cada vez mais os

meios de comunicação de massa se tornaram parte integrante da experiência

cotidiana das sociedades contemporâneas. Lopes estabelece o que ele mesmo

chama de “contraponto” à violência, à crueldade e ao excesso, deixando-se guiar

pela delicadeza, pela leveza e pelo banal. Essa opção estética constituiria, assim,

uma opção ética e até mesmo política traduzida em recolhimento e desejo de

discrição em meio à saturação de informações, presente na sociedade

contemporânea.

Ana Chiara, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e

autora de Pedro Nava—um homem no limiar e Ensaios de possessão (irrespiráveis),

abre o livro de Lopes com um texto chamado “No mês do cavalo”18. Neste texto,

Chiara introduz o tema da delicadeza, utilizando-se de uma linguagem com lampejos

de irreverência, ao elogiar e ao mesmo tempo, em uma espécie de jogo lúdico com o

autor, “desconfiar” dessa estética proposta por Lopes, já que a mesma irá se

contrapor a muitas outras tendências de abordagem do literário, que dariam relevo

ao oposto do delicado. Chega a referir-se ao autor fazendo-lhe uma espécie de

brincadeira, chamando-o “moço”, “moço bonito do Planalto” e “moço de Brasília”:

Quando sou uma cavala querendo dar coices e galopar no descampado, espumando e sem freio, vem esse moço falar de delicadezas...(...) Quando me perco numa égua cheia de fúria derrubando os pianos da aurora, quebrando as cercas com as patas, refugando arreios, e dando dentadas no ar, vem o moço me falar de afetos e de suaves entardeceres em Dawson’s Creek (...). No mês do cavalo, quando sou um no terreiro de candomblé, bolando com uma entidade totalmente desconhecida, dançando um batuque incontrolável, soltando os bichos, babando uma língua arcaica, vem o moço bonito do Planalto querendo me trazer de volta pro cotidiano (...)

18 Artigo publicado no livro Ensaios de possessão (Irrespiráveis). Rio de Janeiro: Caetés, 2006. Gentilmente cedido para abrir o livro de Denílson Lopes.

23

Logo agora no mês de dezembro, quando invoco meu cavalo e quero corcovear, quero esfregar a pata no chão, tomar impulso e me lançar mundo afora, no mundo de fora, vem o moço de Brasília pra me falar da casa e de intimidade19 .

Chiara apresenta-nos a visão de uma subjetividade singular que se

contrapõe à estética proposta por Denílson Lopes, não escondendo sua

perplexidade e até mesmo seu estranhamento diante da mesma. A autora deixa

transparecer ao leitor essas sensações, quando se indaga: “Caio na conversa? Vai

ser bom pra mim?”, ao cogitar a possibilidade de abrir-se a essas novas

perspectivas, propostas a partir desta estética na qual a discrição e a sutileza serão

alguns dos pontos fortes presentes.

A autora considera-se formada por outra geração, que seria anterior a

de Lopes. Demonstra vontade, entretanto, de “se parir” num novo século, num “novo

clima”, e num “novo espírito do tempo”, para aproximar-se ainda mais das propostas

teóricas de Lopes. Chiara parece afirmar estar habituada a uma outra estética,

relacionada à intensidade, à velocidade, à brutalidade e revela, neste sentido, como

já afirmamos, seu estranhamento ao ter contato com a abordagem de Lopes.

O trecho que destacaremos abaixo resume, de forma clara, a maneira

como Chiara entende a estética da delicadeza:

Eu, para quem a experiência estética é o provisório absoluto (...), procuro entender o sinal de menos proposto por uma concepção estétic a fundada no quietismo quase oriental, no silêncio, n a não-ação. Eu, formada pela estética do assalto e da guerra, quero entender o pacifismo jovem que tenta me seduzir. 20 (grifos nossos)

E ainda:

Eu, criada no canto de louvor à transgressão, ao excesso, ao transtorno, procuro entender os moços e suas estratégias de resistência estética (...). Eu: me segura que vou dar um troço. Ele dizendo: menos, menos, menos .21 (grifo nosso)

Além do texto de Chiara, há também outro texto, do próprio Denílson

Lopes, que entendemos ser igualmente introdutório ao livro, constituindo, também,

um texto de apresentação da estética da delicadeza, que será minuciosamente

19 CHIARA, A. C. (2006). apud. Lopes, D. (2007). pp. 11-15. 20 Idem, p. 15. 21 Idem, p. 13.

24

abordada nos capítulos seguintes. Este texto chama-se “Para ouvir no volume

mínimo” e conceitua bem o que Lopes (2007) irá entender como a delicadeza:

(...)A delicadeza se traduz desde a busca de uma sutilidade conceitual para apreender os trânsitos entre filmes, romances e músicas de diferentes culturas até a seleção dos trabalhos escolhidos, de Kieslowski, Bressane, Rafael França a Terence Davies, de seriados da Sony, filmes hollywoodianos ao cinema brasileiro e a poemas de Carlito Azevedo. Resgato Buriti, de Guimarães Rosa, para compor uma genealogia possível na literatura brasileira de uma poética da intimidade, presente nos romances de Adriana Lisboa e João Almino, que se contrapõe a uma estética da violência e do excesso tão valorizada pela crítica e pelo público hoje em dia. A delicadeza não é, portanto, só um tema, uma forma, mas uma opção de ética e política, traduzida em recolhimento e desejo de discrição em meio à saturação de informações (...)22 .

Tentamos ilustrar, de forma sintética, as principais características que

compõem a estética da delicadeza, proposta por Lopes. Faremos, mais à frente,

uma abordagem mais aprofundada, ao tratar especificamente desta estética que

julgamos estar presente no livro de contos da escritora portuguesa contemporânea

Maria Judite de Carvalho.

2.3 Maria Judite de Carvalho: a mulher, a escritora, o projeto estético e a visão

crítica sobre a autora

Numa rara entrevista dada ao Jornal de Letras23, Maria Judite de

Carvalho nos fornece diversas informações preciosas sobre sua vida que, com

certeza, influenciaram direta ou indiretamente a sua forma de escrever.

Maria Judite de Carvalho vivia na mesma casa há quarenta anos, de

onde quase nunca saía, devido à sua doença, reduzindo a quase nula a sua

convivência com o mundo externo: “Sofro de tonturas, não posso pegar em pesos,

22 Ibidem, p. 18. 23 SILVA, R. “Uma voz estrangulada”. Jornal de Letras. Lisboa. 22/05/1996, pp 16-17.

25

tenho medo de andar na rua. Há imenso tempo que não vou a parte nenhuma. Salvo

aqui à volta, comprar qualquer coisa leve que seja preciso.”24

Além de residir por tanto tempo no mesmo local, não lhe agradava

nem um pouco morar ali, mas a escritora demonstra ter uma postura resignada com

relação a isso, assim como em relação a uma série de questões. Essa postura está

muito presente nas personagens de seus contos, em especial em Seta Despedida

(1995), em que sempre há aqueles que, embora insatisfeitos com sua rotina, não

conseguem movimentar-se em direção a uma mudança. Apresentam, assim como a

autora, uma postura resignada em relação à vida.

Há outra questão muito presente na obra ficcional de Maria Judite de

Carvalho que também fez parte da vida da escritora: a solidão. Desde cedo, a

escritora teve que aprender a lidar com dolorosas perdas. Com sete anos de idade,

Maria Judite perde a mãe. Aos quinze, o pai e o irmão. E, antes mesmo de seus

familiares mais próximos falecerem, a vida de Maria Judite de Carvalho sempre fora

extremamente solitária, pois o pai ia com frequência à Bélgica, a trabalho,

acompanhado pela mãe. Maria Judite ficava com os tios.

Desde a infância esta escritora teve que conviver com a solidão, com

a ausência. Sua ficção representa, em certa medida, essa “fratura na alma”. Os

personagens dos contos de Maria Judite de Carvalho—a maioria mulheres—vivem

em constante solidão. Estão sempre se despedindo ou perdendo alguém ou alguma

coisa. Vivenciam encontros frustrados, desencontros irreversíveis e perdas

dolorosas.

Com a “intensidade de um murmúrio”, como afirma Manuel Gusmão,

no seu texto “A arte narrativa de Maria Judite de Carvalho”, a escrita da autora é

“uma arte do mínimo que sabe que é grande”25 . Apesar de tratar de temas tão

intensos e profundos, prefere a contenção e a economia de palavras. Talvez por ter

consciência de que as palavras, às vezes, de nada adiantam. O silêncio manifesta-

se, desta forma, como a expressão mais adequada de linguagem. Tudo é sugerido,

implícito. A intensidade e a beleza do texto juditeano estão no não-dito, que exprime

muito mais significados do que as próprias palavras.

24 Idem, p. 16 25 GUSMÃO, M. “A arte narrativa de Maria Judite de Carvalho”. Jornal de Letras. Lisboa. 22/05/1996, p.18.

26

Outra questão importante é o fato de a obra de Maria Judite de

Carvalho ser ainda praticamente desconhecida do público em geral. Apesar de já ter

sido premiada por diversas vezes, a ficção de Maria Judite de Carvalho permaneça,

ainda, quase desconhecida; “Os meus livros não se vendem. Não sei por quê. Têm

boas críticas, mas não se vendem. Nem cá, nem creio que na França, onde tenho

quase tudo traduzido”26 . Pode-se dizer que, até mesmo na academia, pouco se tem

estudado acerca da obra desta escritora.

Villibor & Zappone analisam as relações de mediação entre a obra da

escritora portuguesa Maria Judite de Carvalho e a sua circulação no Brasil. Se em

Portugal esta autora quase não é lida e estudada, no Brasil sua presença parece ser

ainda mais insignificante. Por que isso acontece? Na visão, talvez limitada e

preconceituosa de Villibor & Zappone, uma das questões que influenciaram a

dificuldade da circulação das obras de Maria Judite no Brasil foi o gosto do público.

No Brasil, o público-leitor demonstra ter preferência por leituras que lhe tragam

algum tipo de benefício prático. Entretanto, frisamos aqui ser a visão destas autoras

bastante preconceituosa em relação ao público leitor brasileiro. Sabemos que, hoje,

há um interesse bastante crescente, ao menos de certo número de leitores, em

estudar e conhecer uma literatura que passa longe de ter somente um “efeito

prático”. No entanto, consideramos importante apresentar a visão de Villibor &

Zappone, já que são poucos os estudos publicados a respeito da obra de Maria

Judite de Carvalho. Um exemplo desse tipo de leitura (que traria “efeitos práticos”)

são os livros de auto-ajuda e de auto-promoção. Os temas presentes na ficção

juditeana se distanciam muito, segundo as autoras citadas, do gosto desse público-

leitor brasileiro:

Que interesse terá este leitor em ler livros que não produzem algum efeito prático, material em suas vidas? Porque, tendo em vista o modelo econômico em vigência, a leitura de ficção não serve para nada, apenas para deleite, ou para evasão. O que dizer então de uma autora cujas temáticas esmiúçam a vida humana, que trabalha com o prazer estético oriundo da morte, da solidão, da perspectiva existencialista? Parece pouco provável que esses temas irão despertar interesse, uma vez que não produzem efeitos palpáveis, além daqueles produzidos no íntimo de cada um27 .

26 CARVALHO, M. J. apud SILVA, R. “Uma voz estrangulada”. Jornal de Letras. Lisboa. 22/05/1996, p. 16. 27 VILLIBOR, R. F. & ZAPPONE, M. H. Y. (2009) p. 842.

27

Além disso, as autoras indagam que, em tempos de violência

exacerbada, quem irá aceitar “uma obra que explore a condição humana, os vieses

da solidão e da morte?”28 . O público prefere, em tempos como esses, obras mais

“leves”, “menos invasivas” e “mais evasivas”. Outro agravante para o

desconhecimento de Maria Judite de Carvalho é a falta de interesse mercadológico

em publicar seus livros no Brasil. Portanto, não há intimidade entre o público-leitor

do Brasil e a obra juditeana.

Maria Judite de Carvalho inicia sua carreira literária com a publicação

de Tanta gente, Mariana (1959) e a encerra com a publicação da coletânea de

contos de que estamos tratando neste trabalho: Seta Despedida (1995). Porém,

outras duas obras da escritora foram publicadas após sua morte, em 1998: A flor

que havia na água parada (uma coletânea de poemas) e Havemos de rir? (uma

peça teatral).

Apesar de já termos afirmado que Maria Judite de Carvalho foi e ainda

é uma escritora quase ou praticamente desconhecida do público também pontuamos

que, contrariamente a este fato, a escritora obteve considerável sucesso na crítica,

recebendo diversos prêmios por vários de seus escritos. Dentre as obras premiadas,

encontram-se: As palavras poupadas (1961), Prêmio Camilo Castelo Branco, da

S.P.A.; Este tempo (1991), Prêmio da Crônica A.P.E.; Seta Despedida (1995),

Prêmio da Associação Internacional de Críticos Literários, Prêmio Pen-Clube,

Prêmio Revista Máxima, Prêmio da A.P.E.; Prêmio Vergílio Ferreira, atribuído ao

conjunto da sua obra.

A obra de Maria Judite de Carvalho é constituída basicamente por

novelas, contos e crônicas, ocorrendo frequentemente uma interpenetração entre

esses gêneros, sendo difícil, desta forma, sua delimitação. Em sua obra

encontramos textos que possuem características simultaneamente de crônica e

conto, por exemplo. A escritora publicou uma infinidade de crônicas em jornais e

revistas, tendo sido algumas delas reunidas e publicadas em livros, mas a grande

maioria ainda não foi recolhida em livro. A crônica foi, portanto, o gênero predileto de

Maria Judite de Carvalho. Foi com a crônica que a escritora iniciou sua carreira e a

influência deste gênero nas suas outras formas de ficção é bem evidente, como se

pode notar em Seta Despedida.

28 Idem, p. 842.

28

A preferência por essa forma breve alia-se perfeitamente à temática

que permeia a obra da escritora. É um lugar comum, em sua ficção, a temática da

consciência da efemeridade da vida, o mistério da passagem do tempo, a vida como

antecipação da morte, como afirma Esteves, em seu texto Seta despedida de Maria

Judite de Carvalho: uma forma abreviada sobre a dificuldade de viver29.

Outro tema central na obra de Maria Judite de Carvalho é, como já

dissemos, a solidão. Segundo Esteves, este tema, presente em toda a obra da

escritora, pode ser detectado de diferentes maneiras, correlacionadas às vivências

das personagens, tais como:

(...) a casa onde se mora (muitas vezes em quartos alugados ou casas sub-alugadas já mobiladas), é a paisagem urbana, é o ar irrespirável, é o corpo/ invólucro no qual o coração não metaforiza os sentimentos, mas onde é apenas um órgão fisiológico que se cansa com o decorrer dos anos30 .

Ainda segundo Esteves, o foco do texto de Maria Judite de Carvalho é

sempre o mundo interior. A ficção juditeana tem um forte caráter intimista. Há

narrativas em primeira e terceira pessoas, mas neste último caso há a interrupção

constante do monólogo interior.

Esteves afirma ainda que a escrita de Maria Judite de Carvalho possui

uma aparente simplicidade. Porém, tal simplicidade traduz-se como perturbadora. A

linguagem econômica, sugestiva, marcada por extrema contenção, metaforizando

“gritos abafados” e “lágrimas represas”, mostra, de forma lúcida, uma visão do ser

humano “sem qualquer laivo de paixão”. Através dessa linguagem “simples” e

contida, a escrita de Maria Judite de Carvalho consegue desvelar a inquietação

íntima por que passa o homem do século XX, tendo que viver em uma sociedade

que tem a tendência a apagar sua existência como sujeito.

Os contos de Seta Despedida são, segundo Esteves, “simples

incidentes do quotidiano, com significado humano, que suporta o desenrolar da

29 ESTEVES, J. M. da C. “Seta Despedida de Maria Judite de Carvalho: uma forma abreviada sobre a dificuldade de viver”. Artigo publicado no Cahier Du Crepal. Lê conte em langue portugaise, n° 6, Paris, Presses de La Sorbonne Nouvelle, dir. de Anne-Marie Quint, 1999. Texto também incluído no livro O imaginário de Maria Judite de Carvalho (1921-98), volume de homenagem à escritora no primeiro aniversário da sua morte, Aveiro, Câmara Municipal de Aveiro, 1999, com autorização da Professora Anne-Marie Quint. Salientamos que a versão utilizada neste trabalho foi aquela encontrada disponível na Internet: p. 1-7. (ver referência no final do trabalho). 30 Idem, p. 2.

29

ação, muito próximos do registro da crônica”31 . Nesses textos, os personagens

enfrentam frequentemente situações sem saída, mergulhadas muitas vezes em

profunda alienação, de forma quase mórbida. Diante da impossibilidade de reversão

do quadro em que se encontram, as personagens vivenciam uma existência

desencantada, resignada e ataráxica. Essa impossibilidade de recomeço leva os

personagens a experienciarem uma espécie de “morte em vida”, buscando por

vezes alguma espécie de fuga real ou imaginada, seja através do suicídio, seja

através da própria imaginação ou do sonho.

Porém, na visão de Esteves, a sobrevivência da escrita de Maria

Judite de Carvalho não se revela “apocalíptica”, mas representa, em certa medida,

uma visão de esperança. Apesar de os personagens vivenciarem melancolicamente

a impossibilidade de vencer o tempo e o destino inexorável, a própria obra de Maria

Judite de Carvalho o consegue: existindo como escritura, a obra vence o próprio

tempo, ludibriando o destino e a própria morte, insistindo em permanecer viva. A

obra surge, desta forma, como o grito que permanecia apenas murmúrio. Desta

forma há, segundo Esteves, o “entrever de uma alegria”.

Faria, em seu texto, Tempo de afetividades ameaçadas: a melancolia

em Antônio Lobo Antunes e Maria Judite de Carvalho, apresentado em um

seminário na UFF em 2002 e, posteriormente, publicado em um CD-ROM, aborda o

tema da melancolia, recorrente em Seta Despedida de Maria Judite de Carvalho.

Segundo Faria, as personagens presentes em alguns contos de Seta Despedida

vivenciam um momento essencialmente solitário da pós-modernidade. A autora

relaciona a melancolia com a crise de identidade do sujeito e sua fragmentação,

tema comum na ficção portuguesa contemporânea.

Tratando especificamente do texto juditeano e apropriando-se de

reflexões críticas retiradas de uma obra de Suzana Kampf Lages sobre Walter

Benjamin32, Faria assinala que, na ficção juditeana, está muito presente o “impulso

melancólico”, uma vez que há a afirmação da perda de um objeto/sujeito querido e o

desejo latente de resgatá-lo, rasurando a separação passada. O ser melancólico

oscila entre a infelicidade narcísica e o triunfo da alegria, nunca atingindo um estágio

harmônico, de equilíbrio. O melancólico vai de um pólo a outro constantemente e é

isso que vemos acontecer nos contos de Seta Despedida de que nos propomos a

31 Ibidem, p. 5. 32 LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin- Tradução e Melancolia. São Paulo: EDUSP, 2002.

30

tratar nesta Dissertação. Há também, como ressalta Faria, formas sutis e

dissimuladas de melancolia presentes nesta ficção: o humor e a ironia.

A professora e ensaísta citada faz alusão a Stuart Hall e, ao comentar

o estado melancólico das personagens de certos contos de Seta Despedida,

assinala existir neles uma reconfiguração identitária e a consciência do

descentramento, da perda de uma ancoragem estável no mundo social, o que

resulta na fragmentação da identidade supostamente unitária do sujeito. Mediante

essa condição, a personagem sente-se solitária e toma consciência de que está

imersa em um “tempo de afetividades ameaçadas”—expressão contida no título do

texto de Faria. Mediante essa sensação de descentramento e de solidão, a

melancolia instala-se como um traço da subjetividade das personagens, não se

manifestando mais como um provisório “estado de espírito”, mas como condição

permanente e irreparável.

Faria afirma que, em Seta Despedida, há o ser melancólico que se

situa entre a “miséria” e o “esplendor”, passa da “humildade” à “soberba”, da

“depressão” à “mania”. No conto que dá nome ao livro de Maria Judite de que

estamos tratando, esta situação apresenta-se claramente. Faria afirma ainda que

Seta Despedida apresenta-nos sujeitos que vivem à superfície para evitar a dor,

portanto, caracterizam-se pela ataraxia e pelo minimalismo existencial pelo fato de

se verem, sempre, em uma menor dimensão. Diante disso, frequentemente recorrem

a processos ou estratégias de fuga e alienação e julgam, assim, sublimar a dor.

Evitam a experiência trágica, preferindo a superficialidade de suas rotinas

aprisionantes. A euforia surge apenas como um vislumbre, desfazendo-se assim que

a personagem constata o malogro da relação intersubjetiva, como será o caso do

conto “Seta Despedida”.

Duarte, em “Maria Judite de Carvalho: Seta despedida não volta ao

arco”33, apresenta-nos uma abordagem mais filosófica acerca dos contos de Seta

Despedida, focalizando especificamente a questão vida/morte. A autora afirma que,

em todos os contos da obra referida de Maria Judite de Carvalho, há personagens

que vivem a ambiguidade vida/morte ou a experiência da morte sem morrer. Essas

personagens, frequentemente femininas, apresentam-se nos textos ficcionais como

33 DUARTE, Lélia Parreira. “Maria Judite de Carvalho: Seta despedida não volta ao arco”. In: DUARTE, Lélia Parreira (org). De Orfeu e de Perséfone: Morte e Literatura. Cotia, S.P.: Ateliê Editorial. Belo Horizonte, M.G.: Editora PUC Minas, 2008. P. 253-263.

31

“mortas-vivas”, pois para elas geralmente a vida é um desconforto imensurável, o

que significa que estar vivo é “não ser”, ou seja, estar vivo equivale a estar morto.

Segundo Duarte, os contos de Seta Despedida possuem uma

elaboração que leva a dor para o campo da beleza. Há uma intensa valorização do

inacabamento. As histórias não se fecham, permanecendo inconclusas. Essa

inconclusão é construída através de uma série de “oscilações e indecisões,

estranhamentos e não-saberes, em que apenas as palavras são nítidas, na sua

instabilidade, mas em que o sentido é sempre impossível de ser fixado”34 .

Os personagens desses contos têm, como assinala Duarte,

consciência de seu estado de “morte em vida”, mas não se rebelam, pois sabem de

sua impotência para chegar a uma condição normal de vida. As situações vividas

por esses personagens conduzem-nos a uma sensação constante de exílio, como

se fossem “eus estrangeiros” que estão sempre fora, condenados à inadequação e

ao desespero de não poderem alterar sua condição existencial. Duarte segue seu

texto procedendo à análise de alguns contos do livro em questão, focalizando esta

questão da morte/vida. Contudo, deixemos para retomar tais ponderações críticas

posteriormente, em capítulo apropriado, em que faremos também a análise dos

contos selecionados.

Maria Alzira Seixo analisa uma das obras de Maria Judite de

Carvalho—As Palavras Poupadas (1961)—, levando em conta a expressão do

tempo no romance português contemporâneo. Segundo Seixo, “em As Palavras

Poupadas a autora utiliza, é certo, processos que facilmente se integram numa

caracterização global do seu estilo, tendo em conta a sua restante produção”35. Esta

observação da crítica é extremamente pertinente, pois verificaremos que muitos dos

processos narrativos aqui presentes ressurgirão, inclusive, na coletânea de contos

que iremos analisar. No entanto, para Seixo, a textura romanesca de As Palavras

Poupadas possui características muito singulares e poderia isolar-se das outras

obras, considerando-se uma “criação definitiva e autônoma”.

Seixo, ao comentar o texto citado, levanta, em primeiro lugar, a

questão do gênero: seriam As Palavras Poupadas uma novela ou um romance? A

crítica defenderá a ideia de que se trata de um romance e argumentará a favor

disso, salientando alguns pontos:

34 Idem, p. 254. 35 SEIXO, M. A., s/d, p. 176.

32

(...) Sem pretender uma precisão, aliás impossível de atingir em assuntos desta natureza, liga-se de preferência ao romance uma circunstância de maior densidade e um processo narrativo constituído por várias linhas de casos ou de temas que se cruzam, além de uma duração mais sensível numa aproximação da vida. A novela seria mais linear, antes relacionada com uma sucessão de factos que resultado das suas mútuas implicações. As Palavras Poupadas apresenta características semelhantes às que se atribui ao romance. Para isso concorre fortemente a estrutura temporal em que se baseia e que radicalmente a afasta de um ritmo de progressão unilinear (...).36

Uma das características marcantes deste romance é, segundo Seixo,

o fato de a narradora aparecer totalmente “virada para o passado”. Embora seja uma

narrativa em terceira pessoa, a narração é perspectivada em função da personagem

Graça. A maneira de encarar o tempo é comunicada ao leitor através dos

pensamentos da personagem central e, também, da forma como eles surgem e se

associam ao longo do texto.

Segundo Seixo, há a presença, embora muitíssimo velada, da autora

em As Palavras Poupadas. Ela se entremostra de vez em quando como “demiurgo”,

através da narração: “Não se trata aqui de um narrador-personagem, mas de um

narrador-autor, ou melhor, de um autor que totalmente imerge na consciência da sua

personagem e dela nos dá a sua vida exterior e sobretudo interior”37 .

A personagem central do romance—Graça—aparece situada em um

presente marcado textualmente pelo uso dos correspondentes tempos verbais.

Porém, as ações executadas pela personagem no presente são exercidas sempre

em função do passado. Frequentemente, a narrativa é invadida por recordações da

personagem, transportando-a para uma realidade passada da qual não consegue se

desprender.

Essa relação temporal presente/passado é analisada minuciosamente

no texto de Seixo. Segundo a crítica, o tratamento dado a essa questão temporal, no

texto de Maria Judite de Carvalho, apresenta uma estruturação peculiar e

extremamente sofisticada.

Seixo afirma que a relação da personagem Graça com o presente

baseia-se na indiferença. Mas isso não significa que o ambiente em que vive seja

para ela desprovido de significado ou que Graça seja “desenraizada” do seu meio. O

que ocorre é que esse espaço onde se encontra Graça é aquele que lhe proporciona 36 Idem, p. 176. 37 Ibidem, p. 177.

33

frequentemente uma imersão em recordações. A personagem “não se divorcia, pois,

do actual para morbidamente mergulhar no que foi; simplesmente o actual perdeu

para ela todo o interesse”38 .

A autora ressalta também uma característica de Graça que veremos

estar presente também em outros textos de Maria Judite de Carvalho, inclusive nos

contos de Seta Despedida: a solidão. Graça é uma personagem solitária e suas

recordações estão ligadas sempre à sensação de ausência decorrida dos laços

rompidos com pessoas que já foram importantes em sua vida:

Graça é uma pessoa só. O marido que morreu, o pai que cortou relações com ela, a madrasta que possivelmente caluniou, a mãe morta que deixou um vazio afectivo na sua infância, Vasco, seu amor de menina, que abalou não sabe para onde—são personagens ligadas entre si por laços ou atitudes e que fazem parte desse passado que desfila perante Graça. Mortos ou para sempre afastados, eles vivem ainda no seu pensamento porque ela sente o irremediável de uma atitude que então tomou e que desfez as suas vidas, tendo como consequência desligá-la deles para sempre. O remorso e a sensação de ter talvez ido demasiado longe obsidiam-na desde essa altura39 .

A crítica salienta também o tipo de postura que esta personagem de

As Palavras Poupadas demonstra ter em relação ao passado que insistentemente

evoca: é uma atitude passiva, estática. Ao lembrar do que passou, Graça não reflete

sobre os acontecimentos ou se interroga “atormentando-se com conjecturas ou

idealizando explicações”40 . Ela está diante do seu passado como quem olha uma

fotografia. Contempla-o obsessivamente, mas sem desejar uma modificação do

mesmo no presente. Relembra essas imagens plásticas, dos móveis da casa, do

lugar que as pessoas ocupavam à mesa, do espelho partido no canto, até que algum

pormenor do presente venha novamente acordá-la.

Essa postura da personagem Graça em relação ao passado será a

mesma de muitas personagens nos contos de Seta Despedida. Vemos então que,

na escrita juditeana, embora cada obra apresente a sua especificidade, muitos

traços serão recorrentes em uma compreensão global. Essa forma de expressão do

tempo será, como veremos, muito semelhante daquela presente, por exemplo, em

muitos contos da coletânea selecionada por nós.

38 Ibidem, p. 178. 39 Ibidem, p. 178-79. 40 Expressão utilizada por SEIXO, M. A. s/d, p. 179.

34

Seixo também aborda uma característica da personagem Graça,

comum a muitos outros personagens de Maria Judite de Carvalho: o cansaço. Há,

como já se disse, uma indiferença em relação ao presente. Mas esse cansaço é

cumulativo e “vem já de muito longe”.41 Graça, assim como outras personagens de

Maria Judite de Carvalho (inclusive personagens da obra Seta Despedida), parecem

guardar em si “um armazém de cansaço”42 , uma espécie de cansaço permanente,

um cansaço da vida, de si mesmas. Por isso, Graça conta os “dias a menos” em sua

vida, alegrando-se com a chegada da noite, que representa para ela “uma porta que

se fechava sobre mais um dia”43 .

A atitude final da personagem Graça, como afirma Seixo, é a de fuga.

Característica marcante nos textos de Maria Judite de Carvalho, a fuga pode ser real

ou ilusória; tentativa ou apenas um desejo, é algo sempre presente na atitude de

cada personagem juditeano. Seixo afirma que a fuga feita por Graça constitui uma

solução temporária e pode interpretar-se ambiguamente:

(...) ela furta-se, por um lado, ao que seria, de qualquer modo, uma renovação do seu problema (...); por outro lado, a fuga representa, e duma maneira mais apreensível, a sua conservação no “jogo”, a manutenção do estado de coisas, a crença num fatalismo que nada poderia, nem ela o pretende, no fundo, destruir; (...)44 .

Para Seixo, As Palavras Poupadas não são um romance de corrente

de consciência. A crítica insiste em argumentar contra essa possível classificação.

Justifica a sua posição em relação a isso em diferentes momentos do seu texto:

Não se trata pois propriamente de um romance de corrente da consciência, embora as derivações abundem e normalmente a recordação apareça, ou se transfunda noutra, através de associação de ideias; simplesmente, o actual representa, por assim dizer, o papel de centro coordenador, permitindo mas ao mesmo tempo condicionando aos seus moldes e até interrompendo as digressões pelo passado45 . (...) Isto o que fundamentalmente afasta As Palavras Poupadas do tipo de romances de corrente da consciência porque nestes a derivação é contínua

41 Expressão utilizada por SEIXO, M. A. s/d, p. 179. 42 Expressão presente na obra Palavras Poupadas, citada por SEIXO, M.A. 43 Expressão presente na obra Palavras Poupadas, citada por SEIXO, M. A. 44 SEIXO, M. A., s/d, p.184. 45 Idem, p.181.

35

e nunca regressa ao ponto de partida, diferente da atitude de eterno retorno que anima, ou desanima, Graça46 .

Seixo compara Maria Judite de Carvalho com Vergílio Ferreira e

Agustina Bessa-Luis, no que diz respeito à forma de estruturação do romance e,

especificamente, à expressão do tempo, tema fundamental do texto desta crítica:

Simplesmente, num romance de Vergílio Ferreira, o resultado da comunicação desse estado é a desordem que nessa consciência se continua para lá do romance e o leitor, que participou dela, embora apreenda globalmente a ação, não consegue recompô-la em totalidade; em Agustina Bessa-Luís, há o compromisso entre o tempo da narradora e o da personagem que se não resolvem, e a autora, poderosa e omnisciente, não pretende sequer dispor a narrativa de modo a que o leitor compreenda em todos os pormenores a ação porque ela, a narradora, possui também um estado de consciência peculiar de que o leitor terá de sentir o peso; quanto a Maria Judite, verificamos que a personagem nos é comunicada por si na medida em que é ela que percepciona a realidade e que o fragmentarismo dos seus estados de consciência é diretamente comunicado ao leitor—mas o resultado dessa comunicação não se limita a uma visão parcelar ou incompleta que as intenções dos autores precedentes condicionam, permite, pelo contrário, uma reconstituição total da matéria romanesca que o leitor executa, mais facilmente então a uma segunda leitura, com o prazer de uma integração total dos vários estratos temporais numa seqüência de acontecimentos. Não há, assim, nenhuma parcela da obra que se não embrenhe num conjunto homogêneo47 . (...) Assim, à sensação final de confusão de uma consciência que se nos transmite em ritmo descontínuo, substitui-se a do fundamental equilíbrio que caracteriza o tempo deste romance48 .

Percebe-se, logo, de onde vem a ideia para o título dado por Seixo a

seu texto: “Maria Judite de Carvalho: um tempo de integração”, pois a autora irá

tratar justamente de como se organiza e se integra esse tempo romanesco

inicialmente apresentado de maneira tão fragmentária. Para a crítica, Maria Judite

de Carvalho constrói seu texto com um tempo que irá narrar o estado de uma

consciência e, por isso, apresenta-se de forma fragmentária e descontínua. Porém,

o leitor não sairá perdido no final da leitura, pois há uma espécie de “ordenamento

final”. O leitor consegue, segundo Seixo, obter uma compreensão integrada dessa

expressão temporal. A crítica atribui essa ordenação final à presença da autora

46 Ibidem, p.183. 47 Ibidem, p.186. 48 Ibidem, p.187.

36

Maria Judite de Carvalho no texto. Como já foi afirmado anteriormente, Seixo

acredita que, sutilmente, há a presença dessa autora que, como já ressaltamos,

apresentar-se-á de tempos em tempos na narração, de forma velada, entretanto,

funcionando como o “demiurgo” no processo de elaboração do próprio texto: “(...)

não se trata de maneira nenhuma de uma interveniência ou de uma disposição

despótica, antes de uma presença organizadora e sobretudo tutelar”49.

Seixo ressalta, porém, que não se deve exagerar a importância dessa

perspectiva analisada anteriormente:

(...) se é certo que é talvez o seu aspecto mais saliente esse desejo ou até exigência de complementariedade dos vários planos temporais em ordem a uma integração final, não se deve tomar As Palavras Poupadas como uma construção seca e determinada, despida de contingência do acontecer romanesco50 .

A crítica afirma que o foco da obra analisada por ela não é proporcionar um jogo ao

leitor e sim mostrar um estado de espírito e sua importância no desenvolvimento da

narrativa. Não é a história em si nem sua estruturação que, por fim, interessa em

primeiro lugar, mas antes o “processo de memória apanhado nas suas constantes

decorrências”51.

Embora as recordações de Graça surjam muitas vezes relacionadas

com as pessoas com quem conviveu, não podemos dizer, entretanto, segundo

Seixo, que o romance As Palavras Poupadas estrutura-se em núcleos de

personagens e sim em núcleos de tempo. Na medida em que Graça vai evocando

diferentes períodos do seu passado, a narrativa vai sendo tecida a partir dessas

recordações que, no entanto, aparecem de forma um tanto ordenada, pois Graça

não anexa o passado ao presente. Distingue-os bem, diferentemente de

personagens de Vergílio Ferreira, por exemplo, como cita Seixo:

Isso, aliás, não contraria a atitude da sua personagem que, nunca é demais repetir, não mistura os diversos níveis de tempo na sua consciência e permanece lúcida ao encarar tudo o que lhe aconteceu, a despeito da sua inserção quase completa na atmosfera das recordações52 .

49 Ibidem, p. 187-88. 50 Ibidem, p. 188. 51 Ibidem, p. 188. 52 Ibidem, p. 191.

37

Navas faz uma interessante análise das crônicas jornalísticas escritas

por Maria Judite de Carvalho. A crítica afirma ter interesse em criar hipóteses

teóricas, mostrando de que maneira as crônicas de Maria Judite de Carvalho podem

ser lidas a partir de uma rede de associações, que traduzem, segundo ela, o

pensamento crítico da escritora sobre a desumanização da vida na cidade de

Lisboa.

A primeira obra publicada de Maria Judite data de 1959 (Tanta Gente,

Mariana). Ao iniciar sua colaboração de maneira regular, escrevendo os

“Rectângulos da vida” no Diário de Lisboa, em 1968, Maria Judite de Carvalho já não

era, logo, ao que julgávamos, um nome totalmente desconhecido.

No capítulo introdutório do seu livro, Navas opta por apresentar-nos

uma espécie de panorama da crítica relacionada aos textos juditeanos, dando

destaque às recensões críticas publicadas inicialmente nos jornais. Desta forma, a

crítica pretende demonstrar não só a genialidade desta escritora portuguesa, como

também o seu súbito mas já declarado prestígio junto à crítica literária.

Segundo Navas, o primeiro ato que legitimou Maria Judite de

Carvalho como autora perante os leitores foi a publicação, na íntegra, em 1962, do

discurso proferido por Jacinto do Prado Coelho, no momento da entrega do Prêmio

Camilo Castelo Branco, referente à obra As Palavras Poupadas (1961). Tendo sido

a sua segunda obra publicada, este volume já rendeu à escritora um prêmio que iria

consagrar Maria Judite de Carvalho como uma escritora de excelência. Estas foram

algumas das palavras ditas por Coelho, sobre a citada obra da escritora:

Antes de As Palavras Poupadas, Maria Judite só publicara outro voluminho, Tanta Gente Mariana igualmente constituído por uma novela e alguns contos. Dir-se-á que nunca o Prémio Camilo Castelo Branco valorizou tanto a qualidade, abstraindo na quantidade; ou que nunca melhor correspondeu ao propósito de chamar a atenção para um escritor que, logo nos primeiros passos, se revelou como uma notável promessa.53

Seguem as palavras de Jacinto do Prado Coelho, agora referentes ao estilo da

autora:

53 COELHO, J. P., (1962), p. 275. apud NAVAS, R. (2004), p. 10.

38

No estilo, Maria Judite de Carvalho obedece a uma estética de sóbria simplicidade. Nunca um sinal de rebusca ou uma palavra a mais. Pelo contrário: o estilo diz mais do que exprime, sugere, penetra, define, magoa, pela estrita economia das palavras, por uma admirável contenção, o mesmo pudor singulariza a confissão de Graça. Assim ajustado à própria alma da protagonista, tenso, inquieto e magoado como ela, é um estilo original.54

Segundo Navas, após esse primeiro momento, Maria Judite de

Carvalho já havia passado a ser reconhecida “como uma autora que sabia escrever

a realidade feminina, de uma forma actual e moderna”55. Navas afirma que Jacinto

do Prado Coelho revelava, em seu discurso, que havia uma relação entre o texto de

Maria Judite de Carvalho e a realidade vivida pelas mulheres das décadas de 50 e

60: “De uma forma empenhada pretendia-se demonstrar que as reflexões mais

importantes e profundas da autora eram representadas pelas vivências das

personagens femininas”56.

Podemos dizer, desta forma, que o ano de 1962 foi realmente decisivo

para Maria Judite de Carvalho como escritora. Do ponto de vista da crítica, a autora

passou a ser reconhecida por sua genialidade e por sua capacidade criadora “fora

do comum”, como ressalta Navas.

Esta crítica dá a este acontecimento, no entanto, uma maior

relevância. Considera que, especialmente nessa época, ler a obra de Maria Judite,

assim como a de outros autores da época, podia ser uma forma de intervenção

social. Na década de 60, Portugal encontrava-se sob um regime político repressivo,

com a presença da censura, inclusive:

Se, por um lado, o regime repressivo do Portugal dos anos sessenta e a censura prévia provocaram estas formas de intervenção, por outro, o discurso historicista vigente convidava o crítico a estabelecer uma relação da obra com os contextos culturais e as condições sócio-econômicas vividas, nos meios citadinos. Transformar o comentário das obras publicadas em notícia jornalística favorecia as intenções comunicativas que os críticos da literatura queriam igualmente assumir como escritores junto ao leitor. Maria Judite de Carvalho contava histórias de uma forma aparentemente espontânea, criando personagens e ambientes, próprios do espaço sócio-afetivo de muitas mulheres portuguesas da época57 .

54 Idem, p. 278. apud Idem. 55 NAVAS, R. (2004) p. 10. 56 Idem, p. 11. 57 Ibidem, p. 11.

39

Reforçando ainda mais essa ideia acerca dos textos escritos por Maria

Judite de Carvalho, Urbano Tavares Rodrigues, no final dos anos 60, escreve um

artigo intitulado “Imagens da Mulher na Literatura Portuguesa” e, sobre a autora,

comenta:

Propõe-nos ela imagens entre ridículas e pungentes—e tão nossas—das noivas eternas, das viúvas e das mulheres abandonadas ou dos que sofrem a desatenção espiritual dos homens. Pode-se objectar que todas estas mulheres são como reflexos, que renunciaram a uma vida própria, independente do varão. Mas não é essa a condição de mais de 90% das mulheres portuguesas?58

Navas considera, logo, que esta atitude decisivamente marcou a

predisposição do público leitor para reconhecer Maria Judite de Carvalho como

“autora que escrevia as histórias das vidas quotidianas, a partir dos conflitos da

sociedade, e deixava transparecer o ponto de vista da mulher, no seu olhar

introvertido e íntimo”59. E esta imagem foi sendo pulverizada na imprensa dos anos

60.

Além da crítica elogiosa destes dois autores anteriormente referidos,

Navas também evoca outros, como João Gaspar Simões, que considerou a primeira

obra de Maria Judite de Carvalho uma “estréia excepcional” e sua segunda obra

como “só equivalente à de Virginia Woolf, Katherine Mansfield ou mesmo à de

Tchekov”60. Navas também cita outros críticos que elogiaram a obra de Maria Judite

de Carvalho: Eduardo Lourenço, Óscar Lopes, José Cochofel, Alexandre Pinheiro

Torres e Maria Alzira Seixo. Faremos a seguir uma breve alusão aos comentários de

cada um desses autores, acerca da obra juditeana.

Eduardo Lourenço publicou um artigo na revista O tempo e o modo,

referindo-se à Maria Judite de Carvalho como pertencente ao que ele chamou uma

“nova literatura” e afastou a relação da autora com o movimento neo-realista:

“Sublinhava a acuidade intelectual da autora na análise dos conflitos humanos,

focalizados em grupos sociais onde cada personagem se apresentava com uma

‘desenvoltura física e moral’”61.

58 RODRIGUES, (1969). apud NAVAS, R. (2004), p. 11. 59 NAVAS, R. (2004) p. 11-12. 60 SIMÕES, J. G. s/d, p. 279-283. apud NAVAS, (2004), p. 12. 61 NAVAS, R. (2004), p. 12.

40

Óscar Lopes escreveu também um artigo para a revista Modo de ler,

sobre Maria Judite de Carvalho. Neste artigo, o autor afirmava:

A mais recente das grandes revelações, Maria Judite de Carvalho, também, muito reconhecivelmente, assenta na adolescência feminina os seus volumes de contos verdadeiramente excepcionais, mas a sua atitude humoral não é a de reivindicação ou esperança, seja ela qual for (mesmo a religiosa, se essa se não reduz a uma pura aceitação anestesiada): ela é, em toda a literatura portuguesa de hoje, a mais extrema manifestação de uma arte schopenhaueriana: uma arte que se limita a apreender os ritmos mais sinceros e discretos da angústia, do fracasso ainda sem nome, apenas captável pelo desenho exacto de uma situação em que se solta uma dada frase culminante, na sua entoação viva e única62 .

Há também um outro crítico, João José Cochofel (1982), que escreveu um artigo

sobre uma das obras de Maria Judite de Carvalho—Flores ao telefone—(1968)

Neste artigo, o autor ressaltava:

Na autora de As Palavras Poupadas, o processo assemelha-se a um jogo, um jogo muito feminino, ao mesmo tempo negligente e certeiro, em que vai reunindo farrapos da intriga, miudezas da amizade ou do amor, recordações, sentimentos desgarrados, minúcias de observação das fisionomias, das atitudes, dos gestos, até compor o quadro definitivo e muito nítido que a pouco e pouco se completa63 .

Apesar de quase todas as críticas terem sido extremamente elogiosas,

no que diz respeito aos textos de Maria Judite de Carvalho, com a publicação de Os

Idólatras (1969), houve reações contrárias. Este texto juditeano saía um pouco da

linha até então seguida por Maria Judite de Carvalho. Eram contos fantásticos que,

aparentemente, não contavam mais as verdadeiras vivências das mulheres do dia-a-

dia e não obedecia a critérios convencionados. Maria Judite de Carvalho publicava,

naquele momento, uma obra que cultivava um tema popular da ficção científica: a

cidade do século XXI, na era tecnológica, como nos salienta Navas. Nesse ano

(1969), João Gaspar Simões escreveu uma crítica para o jornal, reagindo

violentamente aos contos presentes em Os Idólatras: chamava-os de “contarelos” e

evidenciavam, segundo ele, uma “técnica literária” que o crítico esperava ser a

“última”.

62 LOPES, O. s/d, p. 139-140. apud NAVAS, R. (2004), p. 12 63 COCHOFEL, J. J., (s/d), p. 267 apud NAVAS, (2004), p. 13.

41

Entretanto, a recepção deste texto não foi totalmente negativa por

parte da crítica. Outros críticos, como Alexandre Pinheiro Torres, conseguiram

integrar Os Idólatras no projeto de escrita de Maria Judite de Carvalho, salientando

aspectos positivos. Este crítico publicou no Diário de Lisboa (1970) uma recensão

crítica sobre esta obra, focando sua dimensão “cósmica e universal”, que apelava

para uma tomada de consciência por parte do leitor acerca do mundo que o

rodeava:

Que mundo é o nosso, o mundo que consciente (ou não?) todos ajudamos a preparar? Aqui e ali um grito de protesto. E Os Idólatras, sem retórica, nem roupagens de libelo, nem admoestações moralizantes, sem filosofemas, nem recurso a mitiofilias, é um desses protestos isolados. Uma série modelar de parábolas para meditação da “barbárie perfeitamente ordenada” em que o Homem vai transformando o universo64 .

Da mesma maneira, Maria Alzira Seixo, também viu em Os Idólatras qualidades

positivas. Escreveu um artigo para a revista Colóquio, em fevereiro do mesmo ano,

(...)analisando o modo como o argumento narrativo se definia a partir de uma leitura que projectava o leitor para um outro mundo caracterizado pelo ‘aperfeiçoamento tecnológico’, para chegar à conclusão que aquilo que se evidenciava era a impossibilidade de viver, num espaço (in)temporalizado.65

Neste artigo, Seixo afirmava que “em Os Idólatras, o espaço (baía, rio, lagoa) é o

próprio símbolo do tempo que a personagem fixa para não deixar perder-se” 66.

Após fazer esta breve apresentação do panorama da crítica ligada

aos textos de Maria Judite de Carvalho, Navas chama a atenção para o fato de, a

partir de 1968, a autora ter iniciado uma longa carreira de jornalista, escrevendo

crônicas para os jornais. Para Navas, a opção jornalística de Maria Judite de

Carvalho fez parte de um percurso que se iniciou com a escrita dos contos e novelas

e se desenvolveu posteriormente “numa outra expressão, da escrita de si” 67.

Desta forma, Navas segue seu texto, agora analisando com maior

vagar esta importante contribuição de Maria Judite de Carvalho, no âmbito do

64 TORRES, A. P., 1970. 65 SEIXO, M. A. apud NAVAS, R. (2004), p. 14. 66 Idem, p. 14. 67 Expressão utilizada por NAVAS, R. (2004), p. 15.

42

jornalismo. As crônicas escritas para os jornais portugueses serão o foco da análise

de Navas, no decorrer do seu texto.68 Alegando o fato de que essa contribuição da

autora para os jornais foi significativa, implicando, por isso, numa quantidade

considerável de textos, Navas propõe enfatizar sua leitura em cima dos

“Rectângulos da vida”, crônicas que Maria Judite escrevia para o jornal Diário de

Lisboa, fase que terminou, segundo a crítica, em 1975.

Navas declara abertamente, em seu texto, que o compromisso

fundamental de seu estudo é pedagógico: pretende mostrar, a partir de uma leitura

hipertextual, a ideia da desumanização. Focalizando sua atenção no período em que

Maria Judite de Carvalho esteve comprometida com sua escrita de crônicas

jornalísticas no Diário de Lisboa (especialmente em se tratando dos “Rectângulos da

vida”), Navas pretende demonstrar como o trabalho de escrita da autora esteve

ligado à representação da história de um período vivido em Portugal, na cidade de

Lisboa.

O estudo de Navas divide-se, segundo ela, em três momentos

distintos: no primeiro deles, a crítica irá descrever e analisar os textos de Maria

Judite de Carvalho, sublinhando o projeto literário da autora; em um segundo

momento, irá discutir a escrita hipertextual como um poder limitado do leitor e, num

terceiro momento, que Navas classifica como “experimental”, pretende expor o plano

de um tutorial de leitura das crônicas, transpondo os textos de Maria Judite de

Carvalho para versões eletrônicas. Sublinharemos aqui, apenas o pensamento de

Navas em relação a esse primeiro momento, pois nos é muito mais interessante e

proveitoso, já que nesta seção de nossa Dissertação estamos justamente

apresentando Maria Judite de Carvalho e sua obra.

Segundo Navas, a formação acadêmica de Maria Judite de Carvalho

(cursou Letras, especificamente Filologia Germânica) e a sua inserção no meio

intelectual lhe proporcionaram conviver de forma intensa com escritores

politicamente empenhados e opositores ao regime salazarista. Em 1968, a autora

inicia uma longa carreira de cronista. O jornalismo foi, para Maria Judite de Carvalho,

uma decisão importante e, mais ainda, uma opção de escrita.

68 É interessante destacar que Navas (2004, p. 16) nos fornece, em seu texto, a preciosa informação de que as crônicas de Maria Judite de Carvalho escritas originariamente nos jornais portugueses foram posteriormente compiladas em três volumes: A Janela Fingida (1975), O Homem no Arame (1979) e Este Tempo ( 1991).

43

Apesar de serem escassos os estudos sobre o jornalismo anteriores a

1950, como afirma Navas, sabemos que o jornal Diário de Lisboa, fundado em 1921,

acolhia desde os anos 30 escritores que resistiam clandestinamente ao Estado

Novo. A partir de 1968, como já mencionamos anteriormente, os leitores desse

jornal estavam tendo contato com uma nova coluna: “Rectângulos da vida”, assinada

por Maria Judite de Carvalho (ou simplesmente MJC) e acompanhada de uma foto

da escritora. Estabelecia-se, a partir daquele momento, uma espécie de pacto

silencioso da cronista com o leitor, que passaria a ler, a partir daquela data, o que a

autora de As Palavras Poupadas e Tanta Gente Mariana tinha a dizer sobre os

acontecimentos da vida lisboeta.

Navas relembra-nos que esse pacto estabelecido com o leitor inseria-

se num contexto delicado, “pautado por valores tradicionalistas e provincianos, pela

prática da censura prévia e da perseguição ao intelectual com posicionamentos

públicos e críticos face ao regime”69. Apesar de, como Navas nos explica, ter havido

uma liberalização do Estado Novo, no final da década de 60, a população

continuava confinada a um isolamento que não proporcionava o livre debate de

ideias. Vivia-se ainda um momento tenso, nesta época, em Portugal e os escritores

de certos jornais escreviam seus textos com intenções bem claras: denunciar,

mesmo que clandestinamente, o poder instituído.

Havia também, como destaca a crítica já referida, uma cumplicidade

entre o meio jornalístico e o literário, pois os escritores de ambas as áreas

compactuavam dos mesmos objetivos: estavam socialmente empenhados em

transformar a sociedade portuguesa.

Em seguida, Navas aborda o surgimento do que ficou conhecido

como “novo jornalismo”, inserindo depois Maria Judite de Carvalho nesse contexto.

Devido aos acontecimentos no âmbito político-social dos finais dos anos sessenta,

em particular nos Estados Unidos e na Europa, o jornalista começava a expressar-

se subjetivamente na maneira que escrevia as notícias. Citando Nelson Traquina,

Navas descreve, com precisão, o que significou o surgimento deste novo jornalismo:

A crise social dos anos 60 em vários países capitalistas, os fortes movimentos de protesto contra a autoridade (Maio de 68; luta contra a Guerra do Vietname), o questionamento de valores dominantes da sociedade de consumo não deixaram incólumes nem a comunidade

69 NAVAS, R. (2004), p. 18.

44

jornalística nem a comunidade acadêmica. Nos Estados Unidos, o Novo Jornalismo questionou as formas sagradas da notícia e sacudiu os dogmas tradicionais, como o da objectividade, que ajudavam a orientar a actividade jornalística.70

Esse chamado “novo jornalismo” legitimou, pois, a intervenção política e social no

meio da comunicação social. O jornalista passou a ser uma pessoa que não só

escrevia as notícias, mas expressava claramente o seu pensamento acerca

daqueles acontecimentos noticiados. Por isso, Navas irá considerar que a escrita de

Maria Judite de Carvalho pode ser interpretada à luz da escrita do “novo jornalismo”:

A estratégia comunicativa desempenhava as mesmas intenções que os textos escritos pelos jornalistas americanos sobre a guerra do Vietname, só que cada “rectângulo da vida” apresentava uma interpretação psicológica e subjectiva da realidade lisboeta.71

Para conseguir estabelecer esse pacto silencioso com o leitor, a cronista

fazia uso de certas estratégias discursivas. Estabelecia-se um “jogo retórico”, como

afirma Navas, no qual a citação de obras e autores fazia parte, assim como a

referência constante a revistas estrangeiras, obras literárias, filmes que eram

exibidos em Lisboa. Essas estratégias ajudavam a criar um espaço de identificação

com o público. Além disso, ao tecer os seus comentários sobre as notícias

publicadas nos jornais, a cronista mostrava ao leitor como lentamente se incutiam

crenças e atitudes ilusórias, imaginários de uma realidade lisboeta que não se vivia.

No momento em que a cronista lançava uma crítica a essa realidade “virtual”,

transmitida pelos jornais, demonstrava ter uma postura de resistência em face dos

acontecimentos e do “estado de coisas”:

Cada crônica apresentava um contexto quotidiano que fazia lembrar o leitor do seu papel social: o leitor deveria lembrar-se da realidade criada pelos jornais e pela publicidade, ou seja, do mundo virtual em que vivia. O pacto comunicativo e interpretativo centrava-se, antes de tudo, num sentimento comum de insatisfação com o momento vivido. Por isso podemos considerar que muitos dos escritores que escreviam crônicas para o jornal, no período do Estado Novo, deixavam transparecer uma postura ideológica e ética face ao regime: revelavam, na escrita jornalística, uma resistência militante ao estado de coisas.72

70 TRAQUINA, N. s/d, p. 24 apud NAVAS, R. (2004), p. 19. 71 NAVAS, R. (2004) p. 21 72 Idem, p. 22

45

Navas considera que Maria Judite de Carvalho, enquanto cronista

conciliava, portanto, dois papéis em simultâneo: ser autora de obras literárias

representativas da realidade citadina de Lisboa e ser a cronista que dava, no espaço

jornalístico, a outra versão dos fatos noticiados nos jornais. Esperamos ter deixado

clara a importância dessa fase da escrita de Maria Judite de Carvalho,

contextualizando a obra da escritora no início de sua carreira literária, embora não

pretendamos nos deter nesta fase em específico, já que nossa proposta é analisar a

obra final de Maria Judite de Carvalho: Seta Despedida. Porém, consideramos

importante essa apresentação panorâmica da obra da autora, a fim de ampliar nossa

visão sobre esta excelente escritora portuguesa.

46

3 O HOMO SACER: UMA VISÃO AGAMBIANA DA CRUELDADE

3.1 A figura enigmática e obscura do homo sacer e sua sacralidade

Neste capítulo abordaremos o tema da crueldade, levando em conta a

visão específica do filósofo Giorgio Agamben, que escreveu Homo Sacer: o poder

soberano e a vida nua. Este texto não trata especificamente da crueldade, como os

autores que citamos no capítulo anterior, como Antonin Artaud, Clément Rosset e

Renato Cordeiro Gomes. Mesmo assim, consideramos que há uma estreita relação

entre as considerações feitas por Agamben sobre o homo sacer e a crueldade.

Faremos aqui, logo, uma breve exposição do pensamento deste filósofo e, em

seguida, explicitaremos em que medida o diálogo com a crueldade existe,

especialmente com a acepção de crueldade de que tratamos aqui: aquela que se

manifesta sem a presença do sangue e do horror, mas através do silêncio e da

estética da delicadeza, forma essa utilizada nos textos de Maria Judite de Carvalho,

objeto de nosso estudo.

No seu texto, Agamben recorre a uma figura enigmática e obscura

proveniente do direito romano: o homo sacer. A partir desta imagem, cuja

interpretação permanece complexa até hoje, por concentrar em si traços à primeira

vista contraditórios, Agamben irá tecer todas as suas reflexões. Segundo o filósofo

italiano, Festo foi quem melhor definiu a figura complexa do homo sacer. Segundo

Agamben, Festo, no verbete sacer mons do seu tratado Sobre o significado das

palavras, assim definiria o homo sacer:

At homo sacer is est, quem populus iudicavit ob maleficium; neque faz este um immolari, sed qui occidit, parricidi non damnatur; nam lege tribunicia prima cavetur “si quis eum, qui eo plebei scito sacer sit, occiderit, parricida ne sit”. Ex quo quivis homo malus atque improbus sacer appellari solet73 .

73 Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que “se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida”. Disso advém que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado sacro. (FESTO, s/d, apud AGAMBEN, G. 2002, p.79)

47

Segundo Agamben, muito se tem discutido sobre o homo sacer, mas

sua complexidade é tamanha que muito acerca desta enigmática figura permanece

ainda inexplicado. Em um ensaio de 1930, Bennett—citado por Agamben—

salientava que a definição do homo sacer proposta por Festo parecia “negar a

própria coisa implícita no termo”74, já que, ao mesmo tempo em que sanciona a

sacralidade da pessoa autoriza a sua morte. Qualquer um poderia matar

impunemente aquele considerado sacro mas, por outro lado, esta morte não poderia

ser realizada nas formas sancionadas pelo rito.

Em que consiste, porém, a sacralidade do homem sacro? Qual o

significado da expressão sacer esto, que implica, ao mesmo tempo, uma morte

impunível e a exclusão do sacrifício? Estas são as interrogações feitas por

Agamben, o que torna ainda mais visível a complexidade da questão, obscura até

mesmo para os próprios romanos, como adverte o filósofo italiano. Para Macróbio,

por exemplo, autor das Saturnais, também citado por Agamben (2002), a questão da

sacralidade do homo sacer lhe parecia igualmente carente de explicações mais

precisas:

Que esta expressão resultasse obscura até mesmo para os romanos é provado além de qualquer dúvida por um trecho das Saturnais (III, 7, 3-8) no qual Macróbio, depois de ter definido sacrum como aquilo que é destinado aos deuses, acrescenta: “Neste ponto não parece fora de lugar tratar da condição daqueles homens que a lei comanda serem sagrados a uma determinada divindade, pois que não ignoro que a alguns pareça estranho (mirum videri) que, enquanto é vetado violar qualquer coisa sacra, seja em vez disso lícito matar o homem sacro”. Qualquer que seja o valor da interpretação que Macróbio acredita dever fornecer neste ponto, é certo que a sacralidade parecia aos seus olhos bastante problemática, a ponto de ter necessidade de uma explicação75

Após explicitar toda a complexidade que é inerente à sacralidade do

homo sacer, Agamben parte para uma possível explicação do problema. Segundo o

filósofo italiano, há divergências entre os autores modernos que trataram do tema,

mas existem claramente dois grupos bem distintos de pensadores, com duas visões,

portanto, bem diferentes acerca da complexidade que envolve a sacralidade do

homo sacer. Na visão de um desses grupos de pensadores, a sacratio estava

relacionada a um resíduo de uma fase na qual o direito religioso e penal não eram

74 AGAMBEN, G. (2002), p. 79. 75 Idem, p.80

48

ainda distintos. A condenação à morte representaria, assim, um sacrifício à

divindade. O outro grupo vê a questão reconhecendo no homo sacer uma “figura

arquetípica do sacro” que seria consagrada aos deuses ínferos, relacionada, na sua

ambiguidade, à noção de tabu: “augusto e maldito, digno de veneração e suscitante

de horror” 76. Segundo Agamben, entretanto, nenhum dos dois grupos consegue

esclarecer suficientemente a obscura questão relacionada à sacralidade do homo

sacer.

O primeiro grupo de estudiosos dá conta do impune occidi, mas não

consegue explicar de maneira convincente o veto do sacrifício; já para o segundo

grupo, o veto do sacrifício torna-se mais claro, já que o que é sacer já estaria sob a

posse dos deuses não sendo necessário um ritual para instaurar tal condição.

Contudo, ambos os grupos de estudiosos, segundo Agamben, não conseguem

evidenciar o porquê de o homo sacer poder ser morto por qualquer um, sem que

essa pessoa seja manchada de sacrilégio. Fica evidente, desta forma, que apesar

de muito já se ter discutido sobre tal questão, a mesma ainda necessita ser revista.

Segundo Agamben, “ambas as posições não conseguem explicitar econômica e

simultaneamente os dois traços característicos cuja justaposição constitui, na

definição de Festo, a especificidade do homo sacer: a impunidade da sua morte e o

veto do sacrifício”77 .

Agamben questiona, então, o que seria a vida do homo sacer, se a

mesma se situa no cruzamento entre uma matabilidade e uma insacrificabilidade, ou

seja, tanto fora do jus humanum quanto do jus divinum? Segundo o filósofo, tudo

nos leva a crer que estamos diante de um “conceito-limite” do ordenamento social

romano que, desta forma, dificilmente pode ser explicado satisfatoriamente enquanto

permanecer no interior do direito humano e do direito divino. Este impasse pode, por

outro lado, ajudar-nos a lançar um olhar sobre os limites recíprocos de ambas as

áreas. Agamben pretende, pois, longe de resolver a questão, ao menos tentar lançar

uma luz sobre uma “estrutura política originária”, que teria o seu lugar em uma zona

que precede a distinção entre sagrado e profano, entre religioso e jurídico. Contudo,

antes disso, seria necessário, segundo ele, desobstruir o que ele chama “o campo

de um equívoco”, analisando com mais vagar a questão da pretensa “ambivalência

do sacro”.

76 Expressão utilizada no texto de AGAMBEN, G. (2002), p. 80. 77 AGAMBEN, G. (2002), p. 81.

49

3.2 A desconstrução da ambivalência do sacro: o homo sacer entendido através

da dupla exceção

Esse mitologema científico, denominado por Agamben (2002) como

“teoria da ambiguidade do sacro”, tomou forma, segundo o filósofo, na antropologia

tardo-vitoriana e, mais tarde, transmitiu-se à sociologia francesa. Sua influência fora

tão significativa, tanto no tempo quanto na sua transmissão às outras disciplinas

que, após ter influenciado pesquisas de Bataille sobre a soberania, o mitologema

está ainda presente em obras da linguística do século XX, como, por exemplo, na

obra de Emile Benveniste.

Segundo o filósofo, a primeira formulação do mitologema da

ambiguidade do sacro estaria em uma obra de Robertson Smith78, que teria por sua

vez exercido forte influência na composição da obra de Sigmund Freud, Totem e

Tabu. A noção de tabu estaria, assim, intimamente relacionada, segundo Agamben,

amparado em Smith e Freud, à formulação da ideia da ambiguidade do sacro:

Junto a tabus que correspondem exatamente a regras de santidade e que protegem a inviolabilidade dos ídolos, dos santuários, dos sacerdotes, dos chefes e, em geral, das pessoas e das coisas que pertencem aos deuses e ao seu culto, encontramos uma outra espécie de tabu que, em um âmbito semítico, tem seu paralelo nas regras de impuridade. As mulheres após o parto, o homem que tocou um cadáver, etc., são temporariamente tabus e são separados do consórcio humano, assim como, nas religiões semíticas, estas mesmas pessoas são consideradas impuras. Nestes casos a pessoa tabu não é considerada santa, porque é isolada tanto do santuário quanto de todo o contato com os homens...Em muitas sociedades selvagens, entre as duas espécies de tabu não corre uma clara linha de demarcação, e mesmo em povos mais desenvolvidos a noção de santidade e aquela de impuridade frequentemente se tocam79

Igualmente importante para se entender a ambiguidade do sacro é a

análise do bando, segundo Agamben, com respaldo em Smith: “É significativo que,

entre as atestações desta ambígua potência do sacro, Robertson Smith enumere

aqui também o bando”80. E, desta forma, Agamben, cita novamente Smith:

78 SMITH, R. Lectures on the religion of the Semites. 1889. 79 SMITH, R. (1894), p. 152-53 apud AFAMBEN, G. (2002), p. 84. 80 AGAMBEN, G. (2002), p. 84.

50

Uma outra notável usança hebraica é o bando (herem), com o qual um pecador ímpio, ou então inimigos da comunidade e do seu Deus, eram votados a uma total destruição. O bando é uma forma de consagração à divindade, e é por isto que o verbo “banir” é às vezes vertido como “consagrar” (Miq. 4.13) ou “votar” (Lev 27.28). Nos tempos mais antigos do Hebraísmo, ele implicava, porém, a completa destruição não somente da pessoa, mas de suas propriedades...somente os metais, depois de terem sido fundidos ao fogo, podiam ser incorporados no tesouro do santuário (Jos. 6.24). Mesmo o bestiame não era sacrificado, mas simplesmente morto, e a cidade consagrada não devia ser reconstruída (Dt. 13.16; Josh. 6.26). Um tal bando é um tabu, tornado efetivo pelo temor de penas sobrenaturais (Rs., 16.34) e, como no tabu, o perigo nele implícito era contagioso (Dt. 7.26); quem porta à sua casa uma coisa consagrada incorre no mesmo bando81 .

Agamben conclui que, tanto a análise do bando como a do tabu são

essenciais para se compreender a gênese da ambiguidade do sacro, pois “a

ambiguidade do primeiro, que exclui incluindo, implica aquela do segundo”82.

A “teoria da ambivalência do sagrado”, como coloca Agamben (2002),

uma vez que foi formulada, facilmente se difundiu em todos os setores das ciências

humanas sem encontrar resistências. Foram surgindo outros estudos sobre o tema,

como o de Hubert e Mauss (1899), publicado como se vê dez anos após o estudo de

Smith. Surge também o estudo de Wundt, no qual

(...) o conceito de tabu exprime exatamente a originária indiferença de sacro e impuro que caracterizaria a fase mais arcaica da história humana, aquela mescla de veneração e de horror que Wundt, com uma fórmula que haveria de fazer fortuna, define “horror sacro”83 .

Somente mais tarde essa originária ambivalência do sacro acabaria

dando lugar à antítese de sacro e impuro. Mesmo assim, em 1912, Emile Durkheim

publicou as Formes élémentaires de la vie religieuse, texto no qual dedica um

capítulo completo à “ambiguidade da noção de sacro”. Durkheim classifica, neste

estudo, as “forças religiosas”, opondo-as em duas categorias distintas: as “fastas” e

as “nefastas”:

Sem dúvida os sentimentos que inspiram estas e aquelas não são idênticos: uma coisa é o respeito e outra a repugnância e o horror. Todavia,

81 SMITH, R. (1894), p. 453-54 apud AGAMBEN, G. (2002), p. 84-85. 82 AGAMBEN, G. (2002), p. 85. 83 Idem, p.85

51

dado que os gestos são os mesmos nos dois casos, os sentimentos expressos não devem diferir por natureza. Existe, na verdade, algo de horror no respeito religioso, sobretudo quando é muito intenso, e o temor que inspira as potências malignas não é geralmente desprovido de algum caráter reverencial...O puro e o impuro não são portanto dois gêneros separados, mas duas variedades do mesmo gênero, que compreende as coisas sacras. Existem duas espécies de sagrado, o fasto e o nefasto; e não somente entre as duas formas opostas não existe solução de continuidade, mas um mesmo objeto pode passar de uma a outra sem alterar sua natureza. Com o puro se faz o impuro e vice-versa: a ambiguidade do sacro consiste na possibilidade desta transmutação84

Agamben, mais à frente em seu texto, cita Sigmund Freud, cujo texto

Totem e tabu fora para o filósofo extremamente significativo no âmbito das

discussões acerca da sacralidade. Segundo Agamben, Quando Freud escreveu o

referido trabalho, “o terreno” já estaria suficientemente preparado, já que

anteriormente inúmeros estudos sobre o tema já haviam surgido. Agamben afirma

que somente com este estudo passou a existir uma “genuína teoria geral da

ambivalência”85, fundamentado em bases não apenas antropológicas e psicológicas,

mas também linguísticas.

O filósofo comenta que, em 1910, Freud lera um ensaio escrito por um

linguista, segundo ele hoje desacreditado, K. Abel, sobre o Sentido contraditório das

palavras originárias. Freud escrevera uma crítica sobre este texto do linguista,

através de um artigo publicado na Imago, relacionando os estudos de Abel com

estudos seus ligados à teoria da ausência do princípio de contradição nos sonhos.

Entre os termos de sentido oposto que Abel selecionava no apêndice encontrava-se

o termo latino sacer: “santo e maldito”. Porém, curiosamente, como destaca

Agamben (2002), os antropólogos que estudaram primeiro a teoria da ambiguidade

do sacro não haviam mencionado a “sacratio” latina.

Há ainda um outro estudo citado por Agamben, que surgiu em 1911:

um ensaio escrito por Fowler denominado The original meaning of the word sacer.

Neste estudo figuram justamente reflexões acerca do homo sacer. O estudo de

Fowler abarcava a ambiguidade já implícita na definição de Festo e a relação

existente entre o termo latino sacer e a categoria de tabu.

Mencionamos anteriormente que Agamben vê o estudo de Freud com

bons olhos justamente porque o mesmo não se prende a reflexões somente

pertencentes aos campos da psicologia e da antropologia, mas estende o seu olhar 84 DURKHEIM, E. (1912), p. 446-48. apud AGAMBEN, G. (2002), p. 85-86. 85 AGAMBEN, G. (2002), p. 86.

52

para estudos linguísticos. Segundo Agamben, H. Fugier (1963), em um estudo

considerado pelo filósofo italiano bem documentado, mostraria de que maneira a

teoria da ambiguidade do sacro encontraria no campo da linguística a sua “roca

forte”. E os estudos sobre o homo sacer teriam, neste sentido, uma importância

inegável. Embora na segunda edição do Lateinisches etymologique Wörterbuch, de

Walde (1910), não houvesse nenhum traço da doutrina da ambivalência do sacro, no

Dictionnaire étymologique de la langue latine, de Ernout-Meillet (1932), o vocábulo

sacer já sancionava o duplo significado do termo, através da alusão justamente do

homo sacer.

Segundo Agamben, o trabalho realizado por Fugier fora muito

importante, entre outras coisas, por reunir contribuições de diferentes áreas, mérito

aliás que o filósofo também atribui ao estudo freudiano mencionado anteriormente:

É interessante seguir, através do trabalho de Fugier, a história dos intercâmbios entre antropologia, linguística e sociologia em torno da questão do sacro. Entre a segunda edição do dicionário de Walde e a primeira edição do Ernout-Meillet, surgira o artigo Sacer do Pauly-Wissowa, firmado por R. Ganschinietz (1920), que registra explicitamente a teoria da ambivalência de Durkheim (como Fowler havia feito com Robertson Smith). Quanto a Meillet, Fugier recorda as estreitas relações que o linguista mantinha com a escola sociológica parisiense (em particular com Mauss e Durkheim). Quando, em 1939, Caillois publica L’homme et lê sacré, ele pode assim exordiar partindo diretamente de um dado lexical já acertado: A Rome, on sait assez que lê mot sacer designe, suivant la définition d’Ernout-Meillet, celui ou ce quin e peut être touché sans être souillé ou sans souiller. (Caillois, 1939, p. 22)86 .

No final do capítulo no qual Agamben reflete sobre a questão da teoria

da ambivalência do sacro, o filósofo chega a algumas conclusões. Entende que a

enigmática figura do homo sacer, apesar de já muito discutida e estudada por

diferentes áreas do conhecimento, necessitava ainda ser explicada, pois permanecia

obscura. Agamben afirma que há momentos em que os conceitos perdem a sua

inteligibilidade imediata e, como todo termo vazio, podem carregar sentidos

contraditórios. Foi o que ocorreu com o termo sacer que, aliado à noção de tabu,

86 Idem, p. 87

53

passou a designar simultaneamente “augusto e maldito” ou “digno de veneração e

impuro”. Seja qual for o par de sentidos opostos que porventura pudesse ser

atribuído ao termo sacer, para compreendê-lo, assim como a própria figura do homo

sacer, seria necessário muito mais do que um mitologema científico que, segundo o

filósofo, nem a si mesmo conseguia explicar. Seria necessário um olhar mais atento

para a dimensão jurídico-política originária que está relacionada ao homo sacer.

Desta forma, Agamben não só questiona o valor da teoria da ambivalência do sacro,

como postula que a questão vai além do âmbito religioso, antropológico ou

sociológico. Seria necessário estendermos nosso olhar mais uma vez, para entender

o homo sacer, agora num âmbito jurídico-político.

No capítulo “A vida sacra”, Agamben irá interpretar o homo sacer

dialogando com todas as fontes citadas que trataram do tema, mas procurando

focalizar agora a questão da exceção, que ele julga ser fundamental. Assim, o autor

nos relembra primeiramente que “a estrutura da sacratio resulta, tanto nas fontes

como segundo o parecer unânime dos estudiosos, da conjunção de dois aspectos: a

impunidade da matança e a exclusão do sacrifício”87. Na visão de Agamben, o

impune occidi configura uma exceção do jus humanum. Por outro lado, o neque faz

este um immolari configura também uma exceção, mas desta vez do jus divinum.

Porém, o autor frisa que há uma sensível diferença entre uma vítima

consagrada e o homo sacer: a consagração faz com que um objeto em questão

passe do jus humanum ao jus divinum, ou do profano ao sacro. Entretanto, como

afirma Agamben, “no caso do homo sacer uma pessoa é simplesmente posta para

fora da jurisdição humana sem ultrapassar para a divina”88. O homo sacer, pois,

encontra-se em uma espécie de “limiar” e é duplamente banido de ambas as

esferas. Essa dupla exclusão é, ao mesmo tempo, na visão de Agamben, uma dupla

captura, e apresenta muito mais do que uma simples analogia com a estrutura da

exceção soberana, questão sobre a qual tratou na primeira parte do livro sobre o

qual estamos dissertando aqui:

Assim como, na exceção soberana, a lei se aplica de fato ao caso excepcional desaplicando-se, retirando-se deste, do mesmo modo o homo sacer pertence ao Deus na forma da insacrificabilidade e é incluído na

87 Ibidem, p. 89. 88 Ibidem, p. 89.

54

comunidade na forma da matabilidade. A vida insacrificável, e todavia matável, é a vida sacra89 .

Assim, o filósofo afirma que a particularidade que realmente define o

homo sacer não seria a pretensa ambivalência originária da sacralidade que lhe

seria inerente, mas o caráter da dupla exclusão a que se encontra submetido, assim

como a violência a que se encontra exposto:

Esta violência—a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele—não é classificável nem como sacrifício e nem como sacrilégio. Subtraindo-se às formas sancionadas dos direitos humano e divino, ela abre uma esfera do agir humano que não é a do sacrum facere e nem a da ação profana, (...)90 .

Para tentar compreender a violência a que está submetido o homo

sacer, Agamben (2002) irá lançar o seu olhar sobre a relação existente entre a

soberania e a sacratio: “Devemos perguntar-nos, então, se as estruturas da

soberania e da sacratio não sejam de algum modo conexas e possam, nesta

conexão, iluminar-se reciprocamente”91.

A imagem do homo sacer representaria, assim, na visão de Agamben,

a memória originária da vida que se submete ao poder soberano, simbolizando,

desta forma, a exclusão originária que primeiro constituiu a dimensão política:

O espaço político da soberania ter-se-ia constituído, portanto, através de uma dupla exceção, como uma excrescência do profano no religioso e do religioso no profano, que configura uma zona de indiferença entre sacrifício e homicídio. Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera92 .

Fica evidente, então, a estrutura formal da exceção e a relação que,

para Agamben, a figura do homo sacer tem com ela. O poder soberano existe para

produzir vidas nuas (ou vidas sacras) e estas são as vidas de todos os homines

sacri.

A relação que Agamben vê existir entre a soberania e o homo sacer

seria uma relação simétrica, pois os dois possuem a mesma estrutura e são 89 Ibidem, p. 90 90 Ibidem, p. 90 91 Ibidem, p. 90. 92 Ibidem, p. 91

55

correlatos, segundo ele, “no sentido de que soberano é aquele em relação ao qual

todos os homens são potencialmente homines sacri e homo sacer é aquele em

relação ao qual todos os homens agem como soberanos”93. Segundo o filósofo,

tanto o poder soberano quanto o homo sacer representam um agir que, retirando-se

tanto do direito humano quanto do divino, delimitam o “primeiro espaço político em

sentido próprio, distinto tanto do âmbito religioso quanto do profano, tanto da ordem

natural quanto da ordem jurídica normal”94.

Agamben salienta que a relação simétrica que mostrou existir entre a

sacratio e a soberania ajuda a vermos de uma maneira diferente a questão do sacro,

lançando uma nova luz sobre essa categoria, que está longe de corresponder à tão

abordada ambivalência, tão aludida pela maioria dos estudiosos citados:

Se nossa hipótese está correta, a sacralidade é, sobretudo, a forma originária da implicação da vida nua na ordem jurídico-política, e o sintagma homo sacer nomeia algo como a relação “política” originária, ou seja, a vida enquanto, na exclusão inclusiva, serve como referente à decisão soberana. Sacra a vida é apenas na medida em que está presa à exceção soberana, e ter tomado um fenômeno jurídico-político ( a insacrificável matabilidade do homo sacer) por um fenômeno genuinamente religioso é a raiz dos equívocos que marcaram no nosso tempo tanto os estudos sobre sacro como aqueles sobre a soberania. Sacer esto não é uma fórmula de maldição religiosa, que sanciona o caráter unheimlich, isto é, simultaneamente augusto e abjeto, de algo: ela é, ao contrário, a formulação política original da imposição do vínculo soberano95 .

Portanto, o autor deixa evidente a extrema complexidade que envolve

a questão da soberania e de sua estrutura originária e aponta, com clareza, os erros

cometidos nas análises de muitos outros estudiosos que se debruçaram sobre a

questão do sacro e do homo sacer. O termo sacer não contém, afirma Agamben, o

sentido contraditório apontado por K. Abel, muito menos é explicado de forma

coerente através de uma suposta ambivalência, como afirmava Durkheim. Agamben

afirma que o termo sacer:

(...) indica, antes, uma vida absolutamente matável, objeto de uma violência que excede tanto a esfera do direito quanto a do sacrifício. Esta dupla subtração abre, entre o profano e o religioso, e além destes, uma

93 Ibidem, p. 92. 94 Ibidem, p. 92. 95 Ibidem, p. 92-93.

56

zona de indistinção, cujo significado procuramos justamente definir. Nesta perspectiva, muitas das contradições aparentes do termo “sacro” se desfazem96 .

3.3 O homo sacer, o devoto sobrevivente e o rito fúnebre do soberano

Mais à frente, para deixar ainda mais evidente o que significa a

condição do homo sacer, Agamben irá compará-lo a duas figuras igualmente

emblemáticas: a do devoto sobrevivente e a do soberano que é submetido a um rito

fúnebre muito particular. Inicialmente, o filósofo descreve essas duas figuras,

aproximando-as, de certa forma, ao homo sacer; em seguida, mostra-nos de fato

qual é a particularidade do último, que o distingue dos outros dois.

Agamben cita inúmeros estudiosos que aproximaram a figura do

homo sacer com a do devotus, que seria aquele que consagrou a própria vida aos

deuses para salvar a cidade de um grave perigo. O devoto a que podemos

aproximar o homo sacer é aquele, porém, que após ter-se consagrado aos deuses

com a finalidade já explicitada não morre, entretanto, em combate. Trata-se, logo, do

devoto sobrevivente. Se o devotado morre em combate, estaria de acordo com o

devido; se não morre, por outro lado, seria preciso fazer um ritual no qual se

utilizaria uma imagem com sete pés de altura que seria sepultada, simbolizando o

sacrifício não cumprido.

Enquanto, porém, o devoto sobrevivente não é submetido a este

ritual, encontra-se em uma posição delicada, movendo-se num limiar entre o mundo

dos vivos e o mundo dos mortos: passa a não pertencer a nenhum desses dois

mundos, pois seu corpo fora submetido a um poder de morte e esta, entretanto, não

ocorreu:

Enquanto não cumpre esse rito (...) o devoto sobrevivente é um ser paradoxal que, parecendo prosseguir numa vida aparentemente normal, se move, na realidade, em um limiar que não pertence nem ao mundo dos vivos nem ao dos mortos: ele é um morto vivente ou um vivo que é, na verdade, uma larva, e o colosso representa justamente aquela vida consagrada que se havia já virtualmente separado dele no momento do voto97.

96 Ibidem, p. 93. 97 Ibidem, p. 106

57

Se por um lado o devoto sobrevivente se aproxima do homo sacer por

apresentar-se sujeito a um poder de morte que lhe confere uma vida nua, por outro,

afasta-se dele em um ponto específico: essa condição é para o devoto apenas

temporária, já que através de um ritual pode voltar a pertencer a um desses dois

mundos; já para o homo sacer sua sujeição ao poder de morte é absoluto e

irreversível. Como afirma Agamben: “no homo sacer, enfim, nos encontramos diante

de uma vida nua residual e irredutível, que deve ser excluída e exposta à morte

como tal, sem que nenhum rito e nenhum sacrifício possam resgatá-la”98.

Para chegarmos a tratar da relação entre o soberano e o homo sacer,

temos primeiramente que tocar numa questão que nos ajudará a entender melhor

essa comparação entre as duas figuras citadas. Agamben menciona um interesante

estudo realizado por Ernest Kantorowicz, na década de 50, nos Estados Unidos.

Este autor publicou, nesta época, o estudo intitulado The King’s two bodies, A study

in medieval political theology. Esse livro tratava da soberania, focalizando a sua

natureza perpétua, pela qual a dignitas real sobreviveria à pessoa física do seu

portador. No capítulo VII de tal estudo, o autor citado descreve singulares cerimônias

fúnebres dos reis franceses. Nessas cerimônias eram utilizadas efígies de cera dos

soberanos. Estas efígies ocupavam um posto importante, pois eram tratadas como

se fossem a pessoa viva do rei. Kantorowicz irá apontar que essas cerimônias teriam

tido a sua origem possivelmente na apoteose dos imperadores romanos. Segundo

Kantorowicz, a presença da efígie de cera nestes rituais fúnebres estaria relacionada

certamente com a perpetuidade da dignidade real.

Havia, entretanto, rituais fúnebres bastante similares de origem pagã

em Roma. Kantorowicz, no entanto, prefere não se aprofundar neles, alegando que

o precedente pagão, apesar de sua similaridade com o rito francês, não influenciara

este último. Giesey, seu discípulo, dedica sua atenção, porém, a este ritual romano,

pouco tempo depois, no estudo Dois Corpos: the royal funeral ceremony in

Renaissance France (1960). Giesey não ignorou o fato de que estudiosos

renomados como Julius Schlosser e Elias Bickermann haviam estabelecido uma

conexão entre os ritos fúnebres francês e o romano. Mas, curiosamente, como frisa

Agamben (2002), Giesey suspende o juízo sobre esta questão, retomando a ideia e

98 Ibidem, p. 107.

58

interpretação do seu “mestre” Kantorowicz acerca do vínculo entre a efígie e o

caráter perpétuo da soberania.

Agamben parece desconfiar desta atitude de Giesey e aponta

possíveis razões para a desistência do autor em relação a ideia da aproximação

entre o rito francês e o romano. A seu ver, na consecratio romana, nada permitiria

relacionar a efígie do imperador com o “aspecto mais luminoso da soberania, que é

o seu caráter perpétuo”99. Pelo contrário, o rito romano, por ter um caráter “macabro

e grotesco”100, em que uma efígie de cera era primeiramente tratada como uma

pessoa viva e depois queimada em uma solenidade, explicitaria um lado obscuro

deste ritual, através do qual o corpo do rei aproximar-se-ia, como afirma Agamben

(2002), até quase confundir-se, com o corpo matável e insacrificável do homo sacer.

Agora, por que Agamben vê traços em comum entre o homo sacer e o

corpo do soberano? Assim como a figura do devoto sobrevivente é considerada,

mesmo que temporariamente, sacer, Agamben considerará que também, em algum

momento, o corpo do soberano poderá ser assim interpretado:

O que reúne o devoto sobrevivente, o homo sacer e o soberano em um único paradigma, é que nos encontramos sempre diante de uma vida nua que foi separada de seu contexto e, sobrevivendo por assim dizer à morte é, por isto, incompatível com o mundo humano. A vida sacra não pode de modo algum habitar a cidade dos homens: para o devoto sobrevivente, o funeral imaginário funciona como um cumprimento vicário do voto, que restitui o indivíduo à vida normal; para o imperador, o funeral duplo permite fixar a vida sacra que deve ser recolhida e divinizada na apoteose ; no homo sacer, enfim, nos encontramos diante de uma vida nua residual e irredutível, que deve ser excluída e exposta à morte como tal, sem que nenhum rito e nenhum sacrifício possam resgatá-la101 .(grifo nosso) (...) E se para o devoto sobrevivente ao seu voto é a morte faltante que libera essa vida sacra, para o soberano é, ao contrário, a morte que revela este excedente que parece inerir como tal ao poder supremo, como se este não fosse mais, em última análise, que a capacidade de constituir a si e aos outros como vida matável e in sacrificável .102 .(grifo nosso)

Agamben aproxima, inicialmente, o homo sacer do corpo do soberano

e do devoto sobrevivente para, depois, distanciá-lo dos últimos. Deixa, assim, ainda

mais evidente o que é o homo sacer, através da exemplificação e da comparação 99 Ibidem, p. 101-102. 100 Expressões utilizadas por AGAMBEN, G. (2002), p. 102. 101 Ibidem, p. 107. 102 Ibidem, p. 108.

59

com outras duas figuras emblemáticas. Em algum momento de seu texto, o fiósofo

italiano irá declarar que, na verdade, a condição de homo sacer não pode mais ser

entendida como algo restrito a uma parcela de indivíduos. Ele dirá que, na verdade,

hoje todos somos, de certa forma, “virtualmente homines sacri”103

António Horta Fernandes e Helena de Carvalhão Buescu concordarão

com ele, na medida em que retomam e reforçam essa afirmação. No texto

“Soberania”, Fernandes (s/d) toca novamente na questão do homo sacer, quanto

aponta que “no fundo, o homo sacer somos todos nós enquanto expostos,

abandonados à mercê do soberano. E um homem exposto não é mais que uma vida

nua, indefesa”104. Buescu também reabre essa discussão em torno do homo sacer,

ao estabelecer brilhantemente uma conexão entre o mesmo e os personagens dos

contos de Seta Despedida, livro de Maria Judite de Carvalho. Nas palavras de

Buescu: “A condição de homo sacer, entende-a Agamben como típica da

modernidade, embora juridicamente construída, com vimos, ao longo de vários

séculos”105.

103 Ibidem, p. 117. 104 FERNANDES, A. H. s/d, p. 137. 105 BUESCU, H. C. (2008), p. 214.

60

4 MERGULHADOS NOS ABISMOS DE SI MESMOS: a cruel realidade dos

personagens de Seta Despedida

Neste capítulo abordaremos mais diretamente os seis contos

selecionados de Seta Despedida de Maria Judite de Carvalho. Analisaremos os

textos referidos, à luz das reflexões teóricas abordadas nos capítulos precedentes.

Lembramos que o eixo central de nossa Dissertação é a crueldade, mas esse tema

aparecerá na obra juditeana de maneira muito particular, uma vez aliada à estética

da delicadeza. Faremos referência, portanto, a uma crueldade do inelutável, que não

necessita de uma gota de sangue sequer para se manifestar (como já foi dito no

texto de Renato Cordeiro Gomes).

Trata-se de personagens que vivem situações terríveis das quais não

podem escapar: uma mulher sem identidade própria, vivendo à sombra da mãe e do

marido; uma pintora que não se fixa a lugares e pessoas, sempre partindo em busca

de algo que não encontra; uma mulher que parte por motivos políticos e, mais tarde,

descobre ter sido banida da esfera familiar, por conta de uma mentira tida como

verdade...São muitas as situações vividas por essas personagens, na maioria

mulheres, que sofrem caladas, sem direito a um grito, a um pedido de socorro, a

uma tentativa de mudança. Trata-se, portanto, da crueldade do inelutável, como já

foi antecipado em capítulo precedente, no qual abordamos as reflexões feitas por

Clément Rosset.

4.1 A crueldade agambiana e a crueldade do inelutável

Antes de passarmos à análise dos contos propriamente ditos,

achamos pertinente tecer algumas considerações a respeito da crueldade presente

no pensamento de Agamben, no que diz respeito ao homo sacer, estabelecendo,

assim uma conexão com algumas reflexões de Helena Carvalhão Buescu, autora

que faz uma interpretação agambiana de alguns contos de Seta Despedida.

Buescu interpreta a dupla exceção a que está exposto o homo sacer,

como um duplo “banimento”. Segundo a autora, esse estado de banimento, referido

61

no pensamento agambiano, está igualmente presente na obra de Maria Judite de

Carvalho, mesmo que de maneira extremamente particular:

Este estado de banimento é, pois, do ponto de vista de Agamben, “constitutivo” da noção e do exercício do poder soberano, na medida em que qualquer exceção é, como ele brilhantemente demonstra, uma forma de “exclusão inclusiva” que apenas faz sentido se lida em função da lei relativamente à qual funciona como exclusão. O mesmo estado de banimento parece-me surgir, de modo igualmente forte e constitutivo, nas narrativas de Maria Judite de Carvalho, onde as margens habitadas pelas personagens testemunham, afinal, da força de um poder difuso, legível em todas as formas da “vida nua” dos indivíduos, enformando-os e exercendo, nelas, um controle que testemunha, afinal, do caráter decisivamente biopolítico de tal “vida nua”106 .

Para a autora, apenas aparentemente as histórias vividas pelas

personagens dos contos de Maria Judite de Carvalho se passam no âmbito do

privado, onde nenhum poder supostamente interfere. Contudo, como Agamben—e

também Foucault—reconhece, é também na esfera do privado que há uma atuação

decisiva do poder soberano. O espaço privado apresenta-se, assim, como um

espaço biopolítico (para usar o termo adotado por Foucault e retomado por Giorgio

Agamben):

Esta biopoliticização do privado significa, então, que as questões da soberania e do poder, da exceção, da regra e do exemplo se jogam e manifestam na “vida nua” do indivíduo enquanto tal, e não apenas no terreno da sua ação externa e pública. O poder joga-se, assim, também (e cada vez mais decisivamente) na esfera do privado, por assim dizer “intramuros”(...)107 .

Desta forma, Buescu (2008) entenderá esse espaço—com respaldo

em Agamben—como sendo um espaço “concentracionário”, dentro do qual um

poder soberano ditará as regras aos corpos que ali se movimentam, fazendo com

que estes constituam “corpos de exceção”:

(...) Dentro de casa, dentro de cada família, dentro de cada espaço de solidão partilhada as imagens do poder e as instâncias de soberania jogam e interagem, biopoliticizando os homines sacri (e as mulieres sacrae, de que adiante falarei) que habitam esses espaços e neles se agitam—as mais das vezes em murmúrio de reconhecimento infrutífero108 .

106 Idem, p. 211 107 Ibidem, p. 212-13. 108 Ibidem, p. 213.

62

Tendo em vista a condição a que estão submetidas essas

personagens, o que lhes restará—afirma Buescu (2008)—é a tentativa de uma fuga,

na maioria das vezes apenas ilusória. O texto de Buescu centra-se, então, na

análise destas três questões, para ela fundamentais na obra juditeana em questão,

Seta Despedida:

1. O exercício do poder e da soberania no privado, com a conseqüente

biopoliticização do corpo e da “vida nua” que ele vive; 2. A articulação entre o privado e espaço concentracionário, em que o

indivíduo é forçado a viver em função de uma lei da qual foi formalmente banido e, por isso, excluído;

3. As estratégias de fuga que “suspendem” a execução da morte decorrente do estado de banimento, e levam por isso o indivíduo a viver uma vida em estado de negatividade, cuja constituição violenta é sublinhada por Agamben, na esteira de Benjamin109 .

A exposição e discussão destas três questões selecionadas por

Buescu na sua análise de alguns contos do livro Seta Despedida, de Maria Judite de

Carvalho, nos ajudarão a evidenciar em que medida existe a relação entre as

reflexões de Giorgio Agamben sobre o homo sacer e a crueldade do inelutável que

detectamos estar presente nos mesmos textos.

Antes, porém, de Buescu adentrar precisamente nestas três questões

fundamentais destacadas por ela na obra de Maria Judite de Carvalho, a autora

comenta um outro aspecto que julgamos ser igualmente fundamental. Na maioria

das vezes, os indivíduos que figuram nas narrativas juditeanas são personagens

femininas. Buescu chega a chamá-las de mulieres sacrae, ao invés de denominá-las

homines sacri, como já encontramos formulado no pensamento do filósofo Giorgio

Agamben. Entretanto, a autora destaca que, apesar de Agamben não ter tocado

nesta questão específica da mulher, esta extensão do conceito não invalida, no

entanto, as reflexões propostas pelo filósofo italiano, pelo contrário; são

extremamente pertinentes.

Como já foi assinalado, então, as personagens dos contos de Maria

Judite de Carvalho são, em sua grande maioria, e em particular no livro Seta

Despedida, do qual nos ocuparemos aqui, mulheres, que ocupam, como afirma

Buescu, o “espaço murado do privado”110. Essas personagens femininas

109 Ibidem, p. 214. 110 Ibidem, p. 215.

63

representam, assim, uma condição histórica de mulheres que bem poderiam ter

existido, pois se encontram, como muitas mulheres já se encontraram, encarceradas

em um espaço privado, que pode ser a própria casa. A mulher foi historicamente

excluída da esfera pública e “encapsulada” em uma esfera privada, numa espécie de

exclusão inclusiva, como veremos, o que reforça e confirma as regras do poder

soberano (masculino), como assinala Buescu (2008).

Esse espaço privado, que se quer não-político, é, na verdade, tão ou

mais político (ou biopolítico) que qualquer outro espaço, pois o poder soberano ali

está presente, estabelecendo as suas regras nesses homines sacri (ou mulieres

sacrae).

Em seguida, Buescu (2008) prossegue em sua análise, selecionando

quatro contos da coletânea Seta Despedida, a partir dos quais tecerá suas reflexões.

O primeiro conto a que faz alusão chama-se “A absolvição” (conto esse sobre o qual

também iremos tratar, mais à frente, neste trabalho). Neste conto, Buescu escolhe

focalizar a primeira das três questões que elencou anteriormente: de que forma

constrói-se o exercício do poder e da soberania na esfera do privado.

O espaço privado do qual tratará este conto é o próprio seio familiar,

no qual Lúcia—personagem protagonista—convivera no passado e em relação ao

qual está afastada agora, no presente. As razões deste afastamento é que, no

entanto, só ficam mais claras no decorrer do conto.

Lúcia se auto-exclui do convívio familiar e parte para outro país,

inicialmente por razões políticas, por encontrar-se sob ameaça de prisão. Porém,

como assinala Buescu (2008), “no início do conto, o que não se encontra explicitado

é qual a regra—ou o universo de regras—perante a qual Lúcia representa a sua

condição de banida: em exílio de si, dos amigos (ou conhecidos?), da família, do

país”111.

Essa situação inicial se altera quando Lúcia recebe um telefonema de

Eduarda, amiga e cunhada que, na iminência da morte, liga para tentar obter de

Lúcia a “absolvição” de uma culpa que carregara até então, mas que só agora fora

assumida. Lúcia, no entanto, não só não tinha conhecimento dessa culpa, como

atribuía a sua partida exclusivamente ao seu envolvimento político. Neste

telefonema, Eduarda conta a Lúcia que, no passado, insinuara que sua fuga estaria

111 Ibidem, p. 218-219.

64

relacionada a uma vida sexual promíscua, possivelmente ligada à prostituição.

Como era querida por todos, Eduarda, ao insinuar tal fato, cria uma “verdade”, uma

regra que teria efetivamente o poder de banir Lúcia do convívio familiar.

A voz de Eduarda funciona, neste conto, como o poder soberano que,

no âmbito privado, exercita o seu poder e promove a exclusão. O máximo que

ocorre ali é uma transferência de culpas, agora de Eduarda para Lúcia. Como afirma

Buescu (2008):

O corpo de Lúcia tinha sido objeto de uma biopoliticização atuando na esfera do privado e da família, na medida em que esta acolhera a regra de Eduarda, e a instituíra como palavra de poder soberano. E, por outro lado, a promiscuidade e prostituição que todos tinham aceite como verdade para Lúcia dão conta de que esse corpo privado é alvo de decisões judicativas que o fato de serem silenciadas não torna (bem pelo contrário) ineficazes: a expulsão de Lúcia dera-se, então, não no momento em que fugira por razões exteriores à família e reconhecidamente políticas, mas no preciso momento em que, antes, a política de um poder soberano a tinha banido da sua própria casa, do seu lugar à mesa e da sua vida perante os pais. A “vida nua” de Lúcia tinha começado precisamente aí—ou melhor, precisamente aí operara a condição de banimento que, enquanto relação política original, liga o banido à regra que o bane, e o torna assim mais uma instância de exercício do poder e sua afirmação enquanto soberano. Lúcia julgara fugir por razões políticas: fugira, na realidade, por razões políticas—mas diferentes, mais amplas e decisivas do que as que ela julgara: porque das primeiras há hipótese de um regresso, houve efetivamente um regresso, depois de 1974. Das segundas, que repousam sobre a biopoliticização do corpo e da “vida nua” que ele vive, não é possível voltar atrás112 .

Desta forma, Lúcia vai vivendo, mas sua existência passa a ser uma

espécie de “morte em vida”. Para esta “mulier sacra”, duplamente banida, não há

mais regresso: a seta já fora lançada e está no ar, rumo ao alvo. Não pode mais

retornar ao arco, ao ponto de partida. Só lhe resta continuar vivendo esta “espécie

de existir negativo”113, como frisa Buescu (2008), que a torna próxima do homo

sacer referido por Giorgio Agamben, condenada a uma morte impunível e

insacrificável, da qual não há definitivamente um regresso.

O próximo conto a que faz alusão Buescu (2008) é aquele que dá

nome à coletânea: o conto “Seta Despedida”. Analisando-o, Buescu, irá refletir a

respeito da relação entre o privado e o espaço concentracionário, “dentro do qual os

muros servem para dar conta de uma ordem interna regulada que, ao erigir-se como

112 Ibidem, p. 221-22. 113 Ibidem, p. 210.

65

soberana, remete inevitavelmente para a sua margem, sem todavia os eliminar de si,

alguns sujeitos e seus corpos”114. A esta situação alia-se a “exclusão inclusiva”,

termo utilizado por Agamben e que diz respeito a uma regra que bane um sujeito

mas, ao mesmo tempo, o força a viver de acordo com aquilo que a própria regra

institui.

Para iniciar a análise deste conto, a autora parte primeiramente de

uma análise do título: “Seta Despedida” é como já vimos, a “imagem visível de um

poder exercido—o do arco e do movimento que, em conjugação com um braço, agiu

sobre um instrumento, a ‘seta’”. E a autora continua:

E porque foi “despedida”, também ela está para lá do regresso. E, porque “despedida” significa também, em português, quer o fim de um laço de trabalho, fim esse determinado pela instância empregadora (as “criadas” eram “despedidas”), quer o momento em que alguém se despede do que vai ficar para trás, aquando da partida, as ressonâncias que este título, na aparência tão simples, implica interagem mutuamente até não sabermos se quem parte se quer despedir ou foi apenas despedido. Mas sabemos que não há volta (...)115 .

Em relação ao conto “A absolvição”, a autora estabelece, inicialmente,

uma breve comparação: enquanto a personagem Lúcia, protagonista desse texto,

partira realmente “despedida”, mesmo sem o saber, em “Seta Despedida”, a

personagem protagonista (referida apenas através do pronome “ela”) não partira em

nenhum momento, pelo contrário: sua trajetória de vida sempre esteve ligada ao fato

de “ficar”: primeiro na casa da mãe, depois na do marido. Esses dois espaços

funcionam no conto como espaços de opressão e de não-pertencimento. Aliás, “ela”

nunca pode dizer que teve, em algum momento da vida, algo que fosse efetivamente

seu: nem ao menos a sua rotina era efetivamente sua:

Porque o que lhe caíra aos pés dizia que a rotina, pois claro, mas a rotina do marido. E que ela vivia, desde o dia em que se tinham encontrado, na rotina dele, e antes disso na da mãe. Que, em suma, nem a rotina era sua, nunca fora. Houvera uns gritos a rasgar o silêncio mas quase todos estavam esquecidos. E isso, que talvez fosse sem importância, que faria decerto rir as pessoas se ela resolvesse dizer em voz alta: “Olhem, descobri uma coisa sensacional, querem ouvir? Nem rotina tenho, escolheram-na para mim (qual escolheram, nem isso), e tenho vivido nela, sem dar por nada”116 .

114 Ibidem, p. 222. 115 Ibidem, p. 223. 116 CARVALHO, M. J. de. (1995), p. 22.

66

A respeito desse espaço onde vive esta personagem, Buescu dirá que

se trata de um espaço “concentracionário”, pois se configura como um espaço

“dentro do qual existe uma regra que simultaneamente dele a bane e nele a

inclui”117. Neste sentido, a autora afirma que a vida desta personagem constitui,

assim, uma “vida nua”, regulada pelo poder soberano que, neste caso, seria a mãe e

o marido:

A sua “vida nua” decorre sob a presença da mãe e do marido, ambos representantes da lei que regula o espaço e estabelece os muros do que pode e não fazer, do que deve e não dizer, dos limites de uma incompreensão que só ela saberá medir118 .

Buescu também salienta que o gesto de empurrar para debaixo do

maple o isqueiro de Arlette (ou Ivette) e, logo depois, guardá-lo numa gaveta

esquecida, poderia parecer uma estratégia de fuga daquela terrível realidade, mas

na verdade este gesto constitui apenas uma forma de “docemente” aceitar o status

de “ladra” que lhe fora dado na infância. Desta maneira, o segredo do roubo—que

permanecerá segredo até o fim—somente confirma ainda mais a vida nua desta

personagem que permanecerá vivendo em um espaço que não é seu, aceitando a

rotina que não é sua, e o status de ladra que lhe conferiram. Nesta medida, “ela”

permanecerá vivendo banida mesmo estando no mesmo espaço, o que exemplifica

o que Buescu—apoiada em Agamben—chamará de “exclusão inclusiva”.

Buescu faz referência a um outro conto de Maria Judite de Carvalho,

mesmo que rapidamente, para abordar também esta questão do espaço

concentracionário. O conto referido chama-se “A alta”. Nele, uma mulher idosa, após

ter alta em um hospital fica sabendo através do filho que não poderá mais voltar

para a sua casa, onde vivia sozinha. Passará a viver na casa do filho. Este gesto,

salienta a autora, passa longe de ser um gesto nobre e caridoso da parte do filho,

pois não é recebido assim pela senhora idosa, que perde o seu espaço e as suas

coisas, deixadas forçadamente para trás:

117 BUESCU, H. C. (2008), p. 224. 118 Idem, p. 225

67

O terror da mãe nasce, entretanto, de que é a sua casa que lhe é negada, os seus objetos, as suas coisas, a sua vida: foi banida por encarceramento, numa casa que não é a sua, com regras e distribuições de poder que não conhece nem nunca poderá dominar. Esta morte em vida faz dela o exilado impossível, outra seta despedida sem regresso, outra condenação a uma morte que nenhum rito pode redimir: morrerá de acordo com as regras que os outros ditaram para si, num espaço cuja apropriação lhe é negada119 .

Por fim, a autora analisa o conto “George”, levando em consideração

as estratégias de fuga que, como a autora afirma, “suspendem a execução da morte

decorrente do estado de banimento, e levam por isso o indivíduo a viver uma vida

em estado de negatividade”120.

A primeira questão analisada neste conto por Buescu é em relação ao

nome da personagem protagonista: George. Inicialmente não se sabe se se trata de

um homem ou uma mulher, pois esse é um nome que carrega certa ambiguidade.

Mais tarde sabemos que nem de nome se trata: George constitui o pseudônimo da

pintora que regressa à sua cidade natal para apenas vender a antiga casa. Essa

questão do nome atribuído a essa personagem pode ser interpretada, segundo a

autora, como a identidade que lhe é negada. Essa personagem, assim como as de

outros contos de Maria Judite de Carvalho, também vive uma existência “pelo

avesso” ou “em negatividade”. Além de ser o nome “George” a ocultação de um

verdadeiro nome que existe por trás deste pseudônimo masculino e estrangeiro, a

autora afirma que o mesmo representa também o desejo de partida da personagem,

de um espaço de clausura, da vila natal, da mentalidade fechada do país e dos

próprios familiares.

George terá dois encontros marcantes no conto: no começo encontra

Gi; mais à frente, Georgina. No decorrer da leitura, perceberemos que ambos são

fantasmas temporais de George: Gi representa o passado do qual George não

consegue se desprender, mas que também não pode mais viver; Georgina, por sua

vez, representa o fantasma do futuro a ser recusado. Segundo Buescu, George

sempre será o que Gi e Georgina não foram e o único nome que a representa é

aquele que a identifica como pintora e não como um indivíduo. Portanto, sua vida é

nula ou ainda “nua”, nos termos agambianos:

119 Ibidem, p. 228. 120 Ibidem, p. 214.

68

Digamos que o seu verdadeiro nome é nulo, tão fantasmático e exilado como o de ninguém, tão impossível de ser reconhecido que nunca é dito: o nome dos refugiados é isso mesmo, apenas a sinalização do seu estado de banimento, não uma identidade ( que o seu estatuto de refugiados aliás torna impossível). Uma condição de não-integração. E, por outro lado, o fato de George viver, exilada, em função dos tempos que não são, porque nunca podem ser, o presente arrasta consigo essa des-realização do hoje, “que entretanto não funda a realidade nem do passado nem do futuro”. George vive uma “vida nua” de algum modo fora do tempo121 .

Segundo Buesco, enfim, George vive em permanente estado de

exceção, como deveria ser o estado de uma refugiada: sem nome, sem moradia,

sem coisas suas ou amigos, nada que a prenda a lugar ou pessoa qualquer. Mas a

fuga da personagem é, no entanto, apenas ilusória: o passado continuará

perseguindo-a, assim como o estado de banimento a que foi votada, sem direito a

regresso. George tenta fugir de uma lei que, no fim, sempre a acompanha, na

condição de homo sacer, como assinala Buescu.

Desta forma, percebemos, mais uma vez, que as temáticas existentes

nos contos de Maria Judite de Carvalho relacionam-se a uma crueldade

manifestada, porém, sem uma gota de sangue, como diria Renato Cordeiro Gomes:

seja no fato de não se conseguir fugir de uma realidade dolorosa, seja no fato de

tentar ilusoriamente uma fuga, as personagens juditeanas em Seta Despedida

encontram-se sempre mergulhadas nos abismos de si mesmas, são setas

despedidas sem regresso possível, são homines sacri—ou mulieres sacrae, como

dirá Buescu—sem direito a uma morte ritualizada, que daria origem, assim a uma

outra vida. Veremos agora, então, com mais vagar, cada um desses contos,

retomando as questões já anteriormente apontadas.

4.2 “Seta Despedida”: vivendo como quem se despede de si e da vida

Neste capítulo trataremos especificamente do conto “Seta

Despedida”, que dá nome também ao livro de que estamos tratando neste trabalho.

Este conto nos parece ter um caráter metonímico, pois antecipa questões que serão

abordadas nos outros contos do livro.

121 Ibidem, p. 231.

69

Já a partir do título, aparentemente simples, mas que carrega uma

pluralidade de significados, podemos já esboçar as principais discussões

apresentadas por esse texto maravilhosamente escrito por Maria Judite de Carvalho.

Em primeiro lugar, “Seta Despedida” nos remete a uma imagem que traduz algo que

não pode ser revertido: a seta já fora despedida, lançada e não há volta. Há também

uma duplicidade no termo “despedida”, que pode significar alguém que se vai—

portanto uma despedida, um adeus—ou o fato de alguém ser despedido—lançado,

demitido, jogado a um determinado destino contra a sua vontade. Desta forma, há a

questão do “partir”, só que essa partida poderá significar a trajetória de alguém que

parte por sua própria vontade ou alguém que é banido, “despedido”, de maneira

forçada. Vejamos de que maneira Manuel Gusmão (1996) interpreta essa questão

do título:

(...)Permitam-me que em torno deste seu novo título abra caminho para dizer algumas coisas sobre essa arte e esse mundo. Num gesto que vem repetindo, o título do livro retoma o título de um dos contos nele reunidos (aqui, como em outros livros, o primeiro). Esse gesto reúne sinédoque e metonímia—desculpem-me se assim o refiro--, mas essas são figuras importantes também para caracterizar o modo como os seus contos constroem, fragmentária e contiguamente, cenas parciais de um mundo que é um todo, entretanto, intotalizável. Para além disso, e como João Gaspar Simões reparara a propósito do título Flores ao Telefone (1968), num artigo de que encontro uma passagem transcrita na badana de Os Idólatras (1969), este título pode ler-se pelo menos de duas maneiras. Por um lado, lendo “Seta Despedida” como nome + adjectivo. No interior do primeiro conto, a expressão chamada a título é inequivocamente assim, na frase do seu mais curto parágrafo: “E o tempo foi passando. Seta despedida não volta ao arco” (p. 19). A “seta despedida” é assim uma figura para o irremediável de um destino que se sofre. É uma figura do tempo irreversível, de experiência de uma impossibilidade de recomeço, como se alguém estivesse prisioneiro ao saber que os dados foram já e para sempre lançados, e que em pleno vôo estamos. Mas extraída dessa frase, a fórmula titular diz também uma espécie de repetição do tempo e de suspensão do movimento, como que congelado no particípio passado que serve de adjectivo. Contudo, se andarmos para trás, no filme da leitura, poderemos talvez voltar à hesitação que provavelmente nos aconteceu, quando ao ler o título, na capa do livro, e antes de termos começado a ler os contos, não soubemos bem se era nome+ adjectivo, ou se era nome + nome, dois substantivos, com ausência de pontuação ou de coordenação entre eles. Se assim for, como penso que também é—nome + nome—, então a imagem da seta continua a dizer a irreversibilidade do tempo, o sentido já determinado por um arco (e um arqueiro) invisível (invisíveis); ou a suspensão do sentido pela ausência de um alvo que se escolha, ou de um alvo que não a morte. Mas, agora, a despedida, substantivo (até porque não está lá “desfechada”, “desferida” ou “disparada”) diz o gesto ou a acção de dizer adeus, o encontro/desencontro vivido por quem se separa ou se vai separar; insinua-se que alguém vive como quem se despede ou,

70

muito simplesmente, diz-se que alguém se vai. Os encontros são fugazes, os desencontros irreparáveis, o sentido em queda ou em perda. Acontece que o livro que vamos lendo sustenta esta leitura do seu título: arriscaria mesmo dizer que a premedita. São nele inúmeras as despedidas literais e/ou figuradas. Na maioria dos contos, alguém morre ou quase122.

José Manuel da Costa Esteves, em seu texto “Seta Despedida de

Maria Judite de Carvalho: uma forma abreviada sobre a dificuldade de viver” (1996),

já referido anteriormente neste trabalho, ratifica as reflexões de Manuel Gusmão

acerca do título do conto e da obra referida da autora. Em consonância com o autor

citado, Esteves cita exemplos de outros contos do livro Seta Despedida, nos quais

fica explícito que os personagens experimentam constantemente situações de morte

ou algo que se assemelhe a esta, vivendo como se, realmente, se despedissem

literal ou figurativamente da própria vida:

E acordava sempre sem vontade de viver. (“A absolvição”, p. 61) Pôs-se então a pensar com muita força, a que podia, que queria morrer e resolveu não respirar e ficou muito quieta, à espera do fim. (“A alta”, p. 71) Deixou-se escorregar para uma cadeira que havia no quarto do filho e fora a sua cadeira de trabalho, e fechou para sempre os olhos. (“As impressões digitais”, p. 85) O motor ia diminuindo de velocidade e ela sentiu-se muito cansada [...]. Então caminhou com dificuldade para a cama, deitou-se e fechou os olhos. (“Sentido único”, p. 109) Fora verde o seu último vestido de mulher viva. O outro seria o que quisessem, uma veste que já não lhe diria respeito. (“A mancha verde”, p.129)123

Helena Carvalhão Buescu (2008), em texto já mencionado

anteriormente, também tece alguns comentários acerca deste instigante título,

tomando como foco a ideia do poder visivelmente presente nesta imagem e que

aparecerá constantemente disseminado nos contos:

E gostaria de começar já pelo título—que, como frisei, é também o título da coletânea, aspecto que gostaria mais uma vez de sublinhar pelo efeito metonímico e também alegórico que constrói. Na realidade, a “seta despedida” é a imagem visível de um poder exercido—o do arco e do movimento que, em conjugação com um braço, agiu sobre um instrumento, a “seta”. E, porque foi “despedida” significa também, em português, quer o

122 GUSMÃO, M. “A arte narrativa de Maria Judite de Carvalho” (1996). 123 CARVALHO, M. J. de. Seta Despedida. (1995) apud ESTEVES, J. M da C. “Seta Despedida de Maria Judite de Carvalho: uma forma abreviada sobre a dificuldade de viver”. (1996), p. 6.

71

fim de um laço de trabalho, fim esse determinado pela instância empregadora (as “criadas” eram “despedidas”), quer o momento em que alguém se despede do que vai ficar para trás, quando da partida, as ressonâncias que este título, na aparência tão simples, implica interagem mutuamente até não sabermos se quem parte se quer despedir ou foi apenas despedido. Mas sabemo que não há volta (...)124.

De qualquer forma, essa imagem presente no título irá nos

encaminhar a um significado inerente a ela: a irreversibilidade do tempo, do destino;

a impossibilidade de recomeço, de reconstrução, de renovação. E comprovaremos

essa metáfora do arqueiro invisível desfechando a sua seta na trajetória do tempo

no decorrer da leitura dos contos do livro Seta Despedida. Esta obra traz

personagens que vivenciam essa impotência diante de uma força superior: seja ela

o poder soberano mencionado por Buescu, seja ela o próprio tempo irreversível,

como afirma Esteves.

Todas essas citações que trazem interpretações do título do

conto/romance referido de Maria Judite de Carvalho deixam evidente o caráter

plurissignificativo do termo selecionado pela autora. Há uma aparente simplicidade

que esconde, na verdade, uma enorme complexidade e refinamento. Essa

característica pode ser atribuída não só ao título, mas ao texto como um todo.

Talvez seja esse o diferencial da autora: através da sutileza, Maria Judite de

Carvalho constrói um texto extremamente rico de significados e tecido, em sua

estrutura, de maneira bastante peculiar.

Voltemos a tratar especificamente do conto “Seta Despedida”, como

assinalamos que faríamos no início desta seção. O conto inicia-se com a

personagem principal acessando suas lembranças da infância. É interessante

destacar que essa personagem, embora seja a protagonista do conto, é

propositadamente não nomeada. Ao referir-se à personagem o narrador usa apenas

o pronome pessoal “ela”. Esse fato se conjugará perfeitamente com a temática

desenvolvida no conto: a ausência de identidade própria, de autenticidade da

personagem, que vive uma rotina que nem é sua, mas imposta primeiro pela mãe e

depois pelo marido.

124 BUESCU, H. C. “Somos todos homines sacri: uma leitura agambiana de Maria Judite de Carvalho”. In: DUARTE, Lélia Parreira (org). De Orfeu e de Perséfone: Morte e Literatura. (2008), p. 223.

72

Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade, trata

especificamente desse assunto. Nesse texto, o autor defende a ideia da “crise de

identidade” experimentada pelo sujeito na modernidade tardia (segunda metade do

século XX). Hall irá afirmar que, aos poucos, as identidades unificadas e estáveis

foram sofrendo um descentramento, acarretando, por isso, a fragmentação do

sujeito:

(...) as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social125 .

O autor salienta que essa ideia defendida por ele—a de que as

identidades eram unificadas e coerentes e que agora estão se tornando

deslocadas—é uma forma demasiadamente simplista de entender o problema, mas

que nos possibilita, por outro lado, esboçar um quadro aproximado de todo esse

processo de mudança na concepção da identidade.

Hall apresenta-nos três concepções de identidade, relacionadas a

diferentes sujeitos. São eles:

1) Sujeito do Iluminismo:

(...)baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo—contínuo ou “idêntico” a ele—ao longo da existência do indivíduo126 .

2) Sujeito sociológico:

De acordo com essa visão, (...) a identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com

125 HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. (2006), p. 7. 126 Idem, p. 10-11.

73

os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem127 .

3) Sujeito pós-moderno:

(...) conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas128 .

Essa terceira concepção de identidade apresentada por Stuart Hall

diria respeito ao descentramento do sujeito de nossa sociedade atual. Podemos

estabelecer uma relação entre esta concepção de identidade e a personagem

protagonista do conto de que estamos tratando nesta seção. “Ela” possui uma

identidade nula, e sem direção, o que se pode exemplificar através do trecho abaixo,

como em muitos outros trechos do conto:

A caneca mandarim caiu-lhe das mãos—terá caído?—e fez-se em cacos. Mas nem uma gota de sangue se perdeu. Porque a caneca era, de súbito, uma caneca de loiça que se quebrou, acontece, tudo está condenado. Sentia-se num lugar estranho, quieta e um pouco atordoada, e sem bússola 129 . (grifos nossos)130

127 Ibidem, p. 11. 128 Ibidem, p. 12-13. 129 CARVALHO, M. J. de. “Seta Despedida” in Seta Despedida (1995), p. 25-26. 130 É interessante destacar aqui a proximidade que se pode estabelecer entre Maria Judite de Carvalho e o poeta português Fernando Pessoa. Já vimos, em “George”, a presença de uma herança cultural que se traduz na aproximação que se pode estabelecer entre o conto juditeano e a obra pessoana. Existe em “George” o tema da dispersão do sujeito e da fragmentação da identidade, facilmente apreendido através da presença de “Gi” e “Georgina”, outros “eus” da personagem “George”. O mesmo ocorre na obra pessoana, criada a partir da construção de seus heterônimos, em um jogo de fingimento literário. O trecho citado, presente em “Seta Despedida”, poderia muito bem remeter-nos ao poema “Apontamento” de Álvaro de Campos: “A minha alma partiu-se como um vazo vazio/ caiu pela escada excessivamente abaixo/ caiu das mãos da criada descuidada/ caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso...”. Apesar de a autora não fazer uma referência explícita a Fernando Pessoa em sua obra, podemos, sem dúvida, sublinhar esta herança cultural, que emerge em diversos momentos na sua obra Seta Despedida (1995).

74

O episódio retratado no trecho acima—a caneca que cai, partindo-se

em cacos—ocorre quase no final do conto, momento em que a personagem já havia

tomado consciência de sua situação: não possuía uma identidade própria e nada

que pudesse chamar de seu, além do isqueiro roubado furtivamente de Ivette (ou

Arlette) e de outros objetos guardados numa caixa. Da mesma forma que a caneca

parte-se em estilhaços, o interior desta personagem assim estaria configurado, a

partir da fragmentação e consciência de sua nulidade.

Entretanto, em diferentes partes do conto, a personagem manifesta

vontade de mudar, tentando reconfigurar sua identidade, embora não obtenha êxito

algum nesta empreitada. Em determinado momento do texto, a personagem

demonstra ao marido uma imensa vontade de mudar. Em uma conversa que

transcorre durante um jantar, expõe a ele esse seu desejo, mas não é ouvida nem

compreendida por ele. Instala-se a incomunicabilidade e a personagem constata o

malogro da relação intersubjetiva, retornando ao estado inicial, de passividade e

anulação da própria subjetividade:

—Não te apetecia às vezes mudar?—perguntou ao marido com ar natural e a voz de todos os dias. —Mudar o quê?—espantou-se ele sem exagero. —Sei lá. Mudar. De casa, por exemplo. Nasci aqui, estou farta. Mudar de cara. Às vezes olho para o espelho e sinto um cansaço...Tu não? Mudar de língua. De rua. De país. Mudar de vida. Arranjar papéis falsos, sei lá!131

Essa questão da anulação identitária e da tentativa frustrada de

reconfiguração da mesma ocorre também em outro momento, quando “ela” se

contempla num espelho. Esse momento do conto terá um significado extremamente

simbólico. Ao recorrermos ao Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alain

Gheerbrant, além de diversos sites encontados na Internet, podemos entender, de

forma mais ampla, que significados podem emergir desta cena do conto.

Speculum (espelho) deu origem posteriormente à palavra especulação.

Especular, hoje, significa observar, analisar, refletir. Originalmente, especular

significava observar o céu e os movimentos das estrelas, com o auxílio de um

espelho. Sidus (estrela) deu origem à consideração, que significa, etimologicamente,

131 Idem, p. 26.

75

olhar o conjunto de estrelas. Essas duas palavras, bastante abstratas, hoje

designam operações extremamente intelectuais, mas originaram-se de estudos

relacionados à observação dos astros. O espelho, enquanto superfície que reflete,

passou a ser o suporte de inúmeros simbolismos em variadas culturas, relacionados

ao conhecimento.

Muitos são os significados simbólicos que o espelho pode assumir, mas

quase todos estão associados à verdade, à sinceridade e à pureza. O mito de

Narciso, que conta a história do jovem que se observa no espelho das águas, traz a

questão da autocontemplação. Nos contos de fadas, havia frequentemente a

presença de espelhos mágicos, que revelavam a verdade, por mais que esta

pudesse ser dolorosa, como no tão conhecido conto da “Branca de Neve”.

Ao revelar a verdade ao sujeito que o contempla, o espelho pode trazer

sensações como o medo ou o terror: “O aspecto numinoso do espelho, isto é, o

terror que inspira o conhecimento de si, é caracterizado na lenda sufista do Pavão.

O espelho é o instrumento de Psique e a psicanálise acentuou o lado tenebroso da

alma”132.

O espelho significa, em algumas culturas, o instrumento que refletiria a

verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência. Como está escrito

num espelho do museu chinês de Hanói, segundo Chevalier: “Como o Sol, como a

Lua, como a água, como o ouro, seja claro e brilhante e reflita aquilo que existe

dentro do seu coração”133.

Levando em consideração os significados simbólicos do espelho,

enumerados acima, podemos tecer algumas considerações acerca da presença

deste objeto, em “Seta Despedida”. A personagem protagonista se vê, em

determinado momento do conto, diante de um grande espelho e, por instantes,

contempla-o, mas não por muito tempo. Como o espelho revelaria a verdade, a

personagem acaba por recuar, pois uma aproximação poderia parecer ainda mais

“perigosa”:

Esquece-se em frente dos espelhos, principalmente do grande, do hall. Vai avançando devagar, estaca como se não pudesse dar mais um passo ou como se dá-lo fosse perigoso, portanto desaconselhável. O espelho é, de súbito, um lago imóvel e a sua imagem reflecte-se com nitidez na água de

132 CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. (1995), p. 396. 133 Idem, p. 393.

76

vidro. A luz é fraca e isso ajuda a profundidade dos pegos. E ela bóia à superfície, desfaz-se, refaz-se134 .

Ao tentar ver-se no espelho, objeto que mostra a verdade das

imagens, a personagem estaca e desiste de avançar. Tamanho fora o incômodo que

sua própria identidade refletida lhe causara, que a personagem decide “reconfigurar-

se” apenas externamente. Esta é a próxima situação do conto: “Amanhã vou pintar o

cabelo, decide. Porque no amanhã de certos dias pinta sempre o cabelo ou compra

um bâton diferente, mais claro, mais escuro, incolor, pinta os olhos ou ignora-os, usa

ou não óculos escuros”135 .

Entretanto, a reconfiguração identitária consiste em apenas simulacro,

já que a mudança se dá apenas no nível exterior, na aparência: “Porque além da cor

do cabelo, ou do lápis com que pintou os olhos, tudo está absolutamente igual”136 .

O fato de não conseguir mudar significativamente, tanto o seu ser quanto a sua vida,

faz com que esta personagem entre em um permanente estado de melancolia. A

melancolia torna-se, como afirma Faria, um traço da subjetividade da personagem:

“Resta a presença de uma mulher na ‘casa-arca’, ‘mais ou menos à deriva’, ‘à

espera sabe-se lá de que’, ‘à espera de coisa nenhuma’”137 .

A narração se passa praticamente o tempo todo no espaço interior da

personagem que, em sua introspecção, alterna suas reflexões sobre o presente com

lembranças de sua infância, concluindo, no fim, que, em ambos os períodos de sua

vida, vivenciara a ausência e a solidão. O espaço da casa tem grande importância

no conto. Esse espaço exterior é o primeiro a ser referido no texto, logo na primeira

linha. É a imagem do espaço privado que, neste caso, não trará conforto e sim o

aprisionamento.

Ao consultarmos, novamente, o Dicionário de Símbolos, de Chevalier

e Gheerbrant, encontramos o verbete “casa”. Ao analisar minuciosamente as

diversas simbologias de diferentes culturas relativas a esse termo, os autores citam

Bachelard, que também tratou da casa em seu texto A poética do espaço:

134 CARVALHO, M. J. de. (1995), p. 12-13. 135 Idem, p. 13. 136 Ibidem, p. 13. 137 FARIA, A. B. de C. (2002), p.8.

77

A casa significa o ser interior, segundo Bachelard; seus andares, seu porão e sótão simbolizam diversos estados de alma . O porão corresponde ao inconsciente, o sótão, à elevação espiritual. A casa é também um símbolo feminino, com o sentido de refúgio, de mãe, de proteção, do seio maternal138 .

Gaston Bachelard (1993) desenvolve, no texto citado, essa ideia

de que a casa simboliza o interior do ser e que representa, para ele, conforto e

proteção. Através de uma escrita belamente tecida, com um tom poético claramente

presente, o autor exemplifica essa questão fazendo alusão a diversas obras

literárias, dentre elas alguns romances de Henri Bosco. Ao tratar do romance

Malicroix, de Bosco, Bachelard nos revela uma morada que protege o seu habitante

dos perigos do mundo externo:

A casa lutava bravamente. A princípio ela se queixava; as piores rajadas a atacaram de todos os lados ao mesmo tempo, com um ódio nítido e tais urros de raiva que, durante alguns momentos, eu tremi de medo. Mas ela resistiu. Quando começou a tempestade, ventos mal-humorados dedicaram-se a atacar o telhado. Tentaram arrancá-lo, partir-lhe os rins, fazê-lo em pedaços, aspirá-lo. Mas ele curvou o dorso e agarrou-se ao velho vigamento. Então outros ventos vieram e, arremessando-se rente ao solo, arremeteram contra as muralhas. Tudo se vergou sob o choque impetuoso; mas a casa, flexível, tendo-se curvado, resistiu à fera. Sem dúvida ela se prendia ao solo da ilha por raízes inquebrantáveis, e por isso suas finas paredes de pau-a-pique e madeira tinham uma força sobrenatural. Por mais que atacassem as janelas e as portas, pronunciassem ameaças colossais ou trombeteassem na chaminé, o ser agora humano em que eu abrigava meu corpo nada cedeu à tempestade. A casa apertou-se contra mim, como uma loba, e por momentos senti seu cheiro descer maternalmente até o meu coração. Naquela noite ela foi realmente minha mãe139 .

A casa que aparece no texto de Bosco é, segundo Bachelard,

carregada de significados simbólicos criados a partir do devaneio. Carregada de

subjetividade, a descrição desta casa, presente no romance de Bosco, é feita com

traços humanos. A casa é antropomorfizada, a partir da perspectiva do sonhador

que a concebe.

Muito diferente será, por outro lado, o espaço da casa no conto de

que estamos tratando aqui. Em “Seta Despedida”, a casa apresenta-se como o

espaço de clausura, de aprisionamento da personagem. A casa onde a personagem

138 CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. (2006), p. 197. 139 BOSCO, H. Malicroix. P. 115 apud BACHELARD, G. A poética do espaço. (1993), p. 61.

78

do conto vive está muito longe de ser a “choupana” ou a “cabana” descrita em

Bachelard. Poderíamos até dizer que, de certa forma, a casa irá representar o

espaço da intimidade, o espaço interior da personagem. Porém, não representará o

conforto e a proteção descritos na casa-natal de Bachelard.

Para a personagem de “Seta Despedida”, a casa-natal é a referência

de um lugar onde os afetos eram escassos, é o espaço da solidão. No início do

conto, logo na primeira frase, a personagem se defronta com suas lembranças da

infância. A casa surge, logo, como o palco dessas dolorosas memórias do passado.

A descrição do seu interior pode, a nosso ver, ser associada à situação íntima da

personagem, já que esse espaço se apresentará de maneira muito pouco

confortável, assim como, provavelmente, se sente a própria personagem: “Às vezes

faz um esforço e vê a casa como se ela fosse nova, com os traços nítidos e com as

cores vivas da primeira vez das coisas, móveis pesados, volumosos, quase

agressivos e paredes bem lisas” 140.

Em outro momento, a casa é mencionada como o espaço onde são

tomadas as decisões do marido (no tempo presente, agora). Logo, esse espaço está

associado novamente ao desconforto e à clausura, pois essa personagem nem

rotina tinha: vivia na rotina do marido, recebendo as pessoas em casa porque ele

não gostava de sair à noite: “Às vezes há reuniões de amigos. Sempre em casa

porque o marido nunca gostou de sair à noite, sempre no primeiro sábado dos

meses”141.

Desta forma, o espaço da casa, em “Seta Despedida”, estaria muito

mais próximo do “espaço concentracionário” de que trata Buescu, apoiada em

Agamben, do que o espaço maternal e acolhedor de que trata Bachelard. Porém, o

tratamento dado ao espaço da casa não é idêntico em todos os contos. Veremos,

mais à frente, de que maneira a casa é tratada em outros textos breves de Maria

Judite de Carvalho.

No que diz respeito à apresentação dos outros personagens, estes

nos são mostrados um a um, destacando que estes também se configuram nas

lembranças da personagem como ausentes, “ideias fúnebres”, como coloca Duarte

(2008). O primeiro personagem mencionado é o pai: “homem ausente mesmo

140 CARVALHO, M. J. de. (1995), p. 9. 141 Idem, p. 19.

79

quando falava”142. Era—sempre fora—um homem de pouco diálogo, que sorria

raramente mas que, de certa forma, constituía o referencial de afeto da personagem

na infância. Em seguida nos são apresentados a mãe, também sempre ausente

porque sempre doente; a avó, que “sempre tinha sido velha”; as criadas, “sem rosto”

e “sem nome”, sempre substituídas, mas com características em comum: todas

“baixas, fortes, morenas, beiroas”; o gato, animal de estimação que não traz, assim

como os outros personagens não o trazem, a sensação de conforto e afeto: “foi

enorme e imponente”, mas depois “mirrou”, reduzindo-se a uma “mancha amarela”.

Ao acessar o passado, através de suas lembranças, a personagem

constata, porém, a imprecisão da memória, que resgata os fatos de maneira

fragmentada. Essa constatação instaura uma desertificação existencial, pois, nem

no presente, e nem no passado, a personagem consegue viver: o presente parece-

lhe intragável, angustiante e insuportável, enquanto que o passado existe apenas

como um “vislumbre”, mas logo vem um “nevoeiro”, que acaba apagando tudo. A

sensação de nulidade apresenta-se como imperativa, seja em relação ao não

lembrar perfeitamente do que aconteceu, seja ao não conseguir e não querer viver o

que se apresenta a “ela” agora.

Rememorando o seu passado, a personagem se defronta com uma

lembrança dolorosa ocorrida em seu tempo de escola: o furto da caneta. O motivo

desse furto só nos é apresentado posteriormente e então compreendemos a

angústia da personagem. O pai brigara com a mãe e saíra de casa um dia antes de

ocorrer o furto da caneta. Na impossibilidade de saber lidar com essa dor, a

personagem encontra uma forma de evadir-se, “transgredindo as regras”,

preenchendo um vazio existencial, ao apropriar-se de uma caneta, o que acaba

ocasionando o seu banimento pela instituição de ensino: “A senhora condenou-a

então a pena suspensa”143.

Contudo, convém interrogarmo-nos: a personagem é o tempo todo

excluída pelos outros ou se auto-exclui? Como já foi mencionado em algum

momento neste trabalho, ao nos aproximarmos do final do conto, há um trecho em

que a personagem “tenta dialogar” com o seu marido, expondo-lhe as suas

angústias, manifestando a sua insatisfação e seu desejo de mudança.

142 Ibidem, p. 9. 143 Ibidem, p. 17.

80

Porém, diante desta manifestação repentina de insatisfação e desejo

de mudança, o marido não reage da forma esperada. Em primeiro lugar, tenta mudar

de assunto diversas vezes, mas “ela” busca insistir, retomando a conversa. No

entanto, não se estabelece o diálogo, pois o marido não a ouve e não a

compreende. Diante disso, a personagem retoma sua postura resignada, indo

buscar o frango com ervilhas, prato preferido do marido. Desta forma, constatamos

que a personagem é excluída pelo outro e se auto-exclui, ao mesmo tempo, pois há

a desistência diante do primeiro obstáculo.

A incomunicabilidade que se instaura nesse momento traduz e

evidencia o fracasso da relação a dois. No entanto, a personagem, frustrada, já

havia recorrido, novamente, a outra transgressão, furtando o isqueiro de prata de

Ivette (ou Arlette?) durante uma reunião “de amigos” em sua casa. Essa

transgressão, entretanto, se dá apenas no nível aspectual. A rotina da personagem

permanece inalterada, assim como suas questões internas, que não são resolvidas.

“Ela” permanece, então, como o alvo que está diante de uma seta

irremediavelmente despedida, aguardando as feridas que, no entanto, não

cicatrizarão.

Seria interessante, antes de passarmos à análise dos outros contos,

fazermos alusão a duas autoras, já mencionadas nesta Dissertação, que teceram

importantes reflexões sobre os textos de Maria Judite de Carvalho, em especial os

que estão no livro Seta Despedida. Lélia Parreira Duarte, em seu texto “Maria Judite

de Carvalho: Seta Despedida não volta ao arco”, centra-se na questão da

ambiguidade morte/vida. Interpreta as personagens dos contos como seres que

vivem nesse limiar, experimentam a morte em vida. Ou, ainda, utilizando as palavras

da própria autora, vivem uma vida em “estado de negatividade”. Já segundo Helena

Carvalhão Buescu, no texto “Somos todos Homines Sacri: uma leitura agambiana de

Maria Judite de Carvalho”, as personagens partilham um “modo de vida específico”:

“uma míngua de viver que, no entanto, corresponde a uma situação de existência

efetiva”144 . Assim como Duarte, Buescu também menciona a questão da vida em

negatividade:

144 BUESCU, H. C. (2008), p. 209.

81

(...) no momento em que a história tem início, nos situamos sempre de algum modo “para lá” do dernier moment e assistimos, portanto, ao desenrolar de algo cuja forma de existir passa simultaneamente pelo reconhecimento da insustentabilidade da situação intramundana, por um lado, e por outro lado, pelo fato de que tal insustentabilidade não tem efeitos sobre o fim da vida, antes a prolonga numa espécie de existir negativo145 .

A interpretação de Buescu dos contos de Maria Judite de Carvalho

terá seu foco, entretanto, em outras questões. A leitura feita pela autora, como

vimos, fará alusão a reflexões feitas por Giorgio Agamben sobre o “homo sacer”, “o

poder soberano” e a “vida nua”. Desta forma, ao tratarmos deste assunto discutido

pelo filósofo italiano, continuamos abordando o cruel limiar morte/vida em que se

encontram as personagens de Seta Despedida; mas, obviamente, os textos de

Duarte e Buescu possuem seus olhares focados em diferentes dimensões desta

questão.

Um dos aspectos que se destacam neste conto, assim como em

outros contos de Maria Judite de Carvalho, é a diluição de fronteiras entre morte e

vida. No texto de Duarte, anteriormente mencionado, é abordada justamente esta

questão. Por vezes não se consegue distinguir morte e vida: ambos os signos

tornam-se quase semanticamente idênticos, como no trecho de “Seta Despedida”,

que se segue:

Todas as pessoas foram morrendo, mais tarde ou mais cedo, de mortes diferentes que podem ter sido a chamada morte ou a chamada vida (...) Foram-se tornando vagos habitantes de uma mente desmemoriada, como eram, que vozes tinham?146 .

Duarte afirma que há no livro “casos de mortes menos radicais”, mas

que possuem, segundo ela, “a mesma força de inacabamento que subtrai respostas

e certezas, para deixar apenas um texto literário que inquieta o presente de quem

lê”147. Ao tecer esse comentário, a autora alude ao conto “A absolvição” (do qual

trataremos mais à frente) e “Seta Despedida”, conto sobre o qual estamos tratando

nesta seção do nosso trabalho.

145 Idem, p. 210. 146 CARVALHO, M. J. de. (1995), p.11. 147 DUARTE, L. P. (2008), p. 258-259.

82

Segundo Duarte, o conto trata de uma personagem que se reconhece

na situação existencial de “morta/viva”, tem consciência de sua real condição, “sem

volta possível de sua situação de proscrita, para sempre condenada ao não-

lugar”148. É por isso que, segundo a crítica, a personagem tenta fazer mudanças

aparentes em sua vida: muda a cor dos cabelos, pinta ou não os olhos, usa ou não

óculos escuros. Porém, essas transformações não vão além da aparência, pois tudo

continua exatamente igual: sua rotina, sua condição existencial, seu estado de

negatividade, de “não-ser”.

A ideia de morte não se resume, como afirma Duarte, à condição

existencial da personagem protagonista. Os outros personagens de “Seta

Despedida”, como já foi destacado, passam também a mesma “ideia fúnebre”: o pai,

a mãe, a avó, as criadas e até mesmo o gato. Nenhum dos outros personagens com

os quais a protagonista do conto convivera consegue transmitir uma imagem que

trouxesse algum conforto ou proteção. Percebemos, então, que “ela” sempre esteve

sozinha e assim permanecerá, já que com o marido, também não seria possível

estabelecer esse vínculo de afeto, mesmo se houvesse uma tentativa. A relação

conjugal no presente da vida da personagem mostra-se praticamente falida, pois no

único momento em que “ela” tenta travar um diálogo, não encontra ressonância por

parte do marido.

A morte apresenta-se, também, segundo Duarte, através da palavra

“ladra” que, na infância, no episódio do furto da caneta, nem fora pronunciada, mas

nem por isso fora menos eloquente. Por conta desse episódio, a personagem sofre

uma espécie de morte social, é banida da escola (ou ela mesma se auto-exclui), não

conseguindo mais retornar àquele espaço nada acolhedor. “Ela” passa, desde

então”, a viver mais do que nunca esse estado de negatividade, tentando preencher

esse vazio com o apetite voraz que lhe assoma repentinamente, cada vez que algo

dá errado ou cada vez que não consegue lidar com uma questão. Além disso,

apesar de, ao recordar o episódio da caneta, a personagem não conseguir se

lembrar se realmente a furtara, toma para si essa identidade imposta por outrem,

repetindo o ato supostamente cometido na infância. Na reunião de amigos (os

amigos do marido), Ivette (ou Arlette) deixa cair no chão o isqueiro prateado e “ela”

148 Idem, p. 259.

83

chuta-o furtivamente para debaixo do mapple, para depois guardá-lo na gaveta onde

outros objetos ligados a sua vida íntima jaziam secretamente:

Embora quieta abriu e fechou gavetas silenciosas e sem segredos. Todas menos uma onde havia, dentro de uma caixa de madeira pintada, uma flor que alguém lhe dera há eternidades, dois lenços cuja existência tinha esquecido, uma pulseira de pechisbeque também já sem história, a lembrança de uma caneta preta com um nome em letras doiradas. Nessa gaveta há também, agora, um isqueiro149 .

Abordamos, de maneira breve, algumas das colocações feitas por

Duarte a respeito do conto “Seta Despedida”. Tratemos das reflexões da outra

autora mencionada, Buescu, iluminando de que maneira esta crítica interpretou

importantes questões no texto referido. Pautada no pensamento do filósofo Giorgio

Agamben, como já foi aludido anteriormente, Buescu interpreta o espaço privado no

conto “Seta Despedida” como sendo um “espaço concentracionário”. Segundo a

autora, a personagem protagonista tinha uma série de “dons” negativos e um deles

seria o de nunca ter tido um espaço efetivamente seu. Vivera, na infância, na casa

da mãe, que escolhia até mesmo a cor dos seus vestidos: “O vestido era azul,

vestiam-na sempre de azul, era decerto a cor que a mãe preferia”150 . Depois, passa

a viver na casa do marido, espaço que igualmente não lhe trazia a sensação de

pertencimento. Esses espaços privados aparecem no conto, logo, como espaços de

clausura, verdadeiras prisões das quais, entretanto, a personagem não poderia

escapar.

Segundo Buescu, o espaço privado em que vive essa personagem no

conto assemelha-se a um espaço concentracionário porque, afinal constitui um

espaço “dentro do qual existe uma regra que simultaneamente dele a bane e nele a

inclui”. Trata-se da “exclusão inclusiva”, referida por Agamben, através da qual o

poder soberano institui e mantém as suas regras de poder. Este poder soberano

age, no conto, através da instituição escolar (responsável pelo primeiro banimento),

da mãe e do marido, conferindo à personagem protagonista a já referida “vida nua”,

termo também utilizado por Agamben:

A sua “vida nua” decorre sob a presença da mãe e do marido, ambos representantes da lei que regula o espaço e estabelece os muros do que

149 CARVALHO, M. J. de. (1995), p. 24-25. 150 Idem, p. 18.

84

pode e não fazer, do que deve e não dizer, dos limites de uma incompreensão que só ela saberá medir151 .

Neste sentido, a condição vivida pela personagem protagonista de “Seta

Despedida” assemelha-se àquela explicitada através da figura do homo sacer

agambiano. “Ela” é, assim como o homo sacer, um ser verdadeiramente banido, sem

direito a uma nova possibilidade de reintegração, condenada para sempre a uma

condição de morte em vida e sem direito a uma morte sacrificial, que pudesse lhe

conferir uma nova vida, um novo começo.

Analisamos, nesta seção, o conto que deu título ao livro de Maria

Judite de Carvalho, selecionado para este trabalho: “Seta Despedida”. No começo

de nossa análise mencionamos o fato de podermos considerar que este texto possui

um caráter metonímico, pois antecipa questões que permearão outros contos do

mesmo volume. Veremos, agora, como estas mesmas questões irão surgir em

“George”, próximo conto a ser analisado aqui, assim como também em “A

absolvição”, “A alta”, “Impressões digitais” e em “Frio”.

4.3 “George”: partir e chegar, para depois partir

Logo no começo do texto há um elemento que causa estranhamento:

a descrição dos vestidos daquelas que, a princípio, seriam duas personagens:

“Trazem ambas vestidos claros, amplos, e a aragem empurra-os de leve, um deles

para o lado direito de quem vai, o outro para o lado direito de quem vem, ambos na

mesma direção, naturalmente”152 .

O trecho transcrito nos remete à imagem do espelho, já que os

dois sujeitos que caminham têm seus vestidos empurrados em sentido contrário,

mas “ambos na mesma direção, naturalmente”, como uma imagem refletida em

espelho. A partir da leitura desse trecho e de tal reflexão, sugere-se a possibilidade

de tratar-se de uma só pessoa e não duas como se havia imaginado antes.

151 BUESCU, H. C. (2008), p. 225. 152 CARVALHO, M. J. de. “George” in Seta Despedida (1995), p. 32.

85

A questão, portanto, que nos parece ser a principal deste conto,

(mas não a única) é a fragmentação da representação unitária da identidade, já que

a personagem (George) dialoga com seu passado e com seu futuro personificados

em Gi e Georgina, respectivamente. Diversos críticos, como o já citado Stuart Hall, já

apontavam para uma compreensão da identidade como algo complexo e

fragmentado: “O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e

estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias

identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas”153.

Esta afirmação de Stuart Hall parece curiosamente estar

descrevendo a conduta identitária de George. Aponta, desta forma, uma nova

maneira de entender a questão da identidade.

Fernando Pessoa, grande poeta do modernismo português, deixou

incontestavelmente a seus sucessores uma herança cultural. A obra poética deste

fabuloso escritor levou ao último grau o conceito literário de “fingimento” e instaurou

na literatura uma compreensão do ser multifacetado e em dispersão.

De uma forma extremamente sutil, Maria Judite de Carvalho resgata

esse conceito de fingimento instaurado e tão bem desenvolvido pelo poeta

português. Quando o leitor depara-se com o conto “George”, percebe que a cena

inicial do texto insinua a existência de duas personagens. No primeiro parágrafo já

existe o uso de verbos no plural, contribuindo para que haja essa insinuação de

pluralidade:

Andam lentamente, mais do que se pode, como quem luta sem forças contra o vento, ou como quem caminha, também é possível, na pesada e espessa e dura água do mar. Mas não há água nem vento, só calor, na longa rua onde George volta a passar depois de mais de vinte anos154 .

Porém, no decorrer da narrativa, começa-se a duvidar se realmente se

trata de duas personagens ou apenas de uma só. Tratar-se-ia, neste momento da

narrativa, de uma outra figuração da mesma personagem? Instala-se, desta forma,

logo no início da narrativa, a possibilidade de haver em “George” uma personagem

que apresenta desdobramentos, o que é confirmado no decorrer da leitura.

153 HALL, S. (2000), p. 12 154 CARVALHO, M. J. de. (1995), p.31.

86

Gi, essa suposta “outra” pessoa com quem George se encontra,

revela-se como alguém mais jovem. A descrição de Gi apresenta-se extremanente

difusa: faltam-lhe contornos precisos. Ora, se considerarmos Gi uma outra figuração

de George, essa descrição imprecisa poderia ser explicada como o resgate pela

memória, já que esta sempre recupera fatos de forma difusa. George estaria, então,

travando um diálogo com o seu passado, através da mediação da memória, que o

resgata sem precisão. Gi seria quem George foi um dia e quer esquecer.

Para complexificar ainda mais esta questão, surge na narrativa

Georgina. Agora, mais velha que George, em oposição à Gi, Georgina passa a

aconselhar a artista plástica renomada. Seria uma possível figuração futura da

personagem George? A narrativa dá diversos indícios de que se trata, de fato, de

um desdobramento do próprio sujeito que finge ser outro, ao projetar-se, agora no

futuro.

À maneira de Fernando Pessoa, Maria Judite de Carvalho constrói um

ser disperso, sem unidade aparente. George aparece multifacetada e, tentando

compreender-se, trava um intenso diálogo (ou monólogo?) consigo própria. A

interioridade anímica de George fica transfigurada na narrativa através do monólogo

narrado. O narrador apresenta ao leitor o que se passa no espaço interior de

George: a batalha incessante entre esses diferentes “eus”. Tentando compreender e

esquecer o que foi, George dialoga com Gi, jovem de 18 anos e ainda ingênua e

inexperiente em relação às decisões importantes da vida. Tentando visualizar seu

futuro, George dialoga com Georgina, senhora de quase 70 anos, já vivida,

experiente e fisicamente decrépita que não é, contudo, quem George quer ser.

Nesta busca incessante e permanente, a personagem George procura

uma explicação que confira sentido à sua existência interior. Terá encontrado? Ou

julga ter encontrado pelo fato de ser bem sucedida, artística e financeiramente?

Apesar das visíveis rupturas com o modelo de narrativas tradicionais,

uma questão constante em “George” e que se mantém desde os tempos de

Camões, é a febre de Além. Na narrativa de Maria Judite de Carvalho, essa questão

apresenta-se amalgamada com outra, esta sim, atual e transgressora: a quebra de

valores destinados à mulher. Conforme Magalhães (1994), durante o período das

grandes navegações, “estabeleceu-se uma distinção entre a cosmovisão feminina e

87

a masculina: os homens partiam e as mulheres ficavam”155. A ruptura desse padrão

ocorre em “George”, no momento em que a protagonista do conto deseja abandonar

a sua terra e os padrões patriarcais referentes ao seu lugar de origem: “Já não sabe,

não quer saber, quando saiu da vila e partiu à descoberta da cidade grande, onde,

dizia-se lá em casa, as mulheres se perdem. Mais tarde partiu por além terra, por

além mar”156 .

Contradizendo o condicionamento das mulheres, estabelecido durante

o período áureo do povo português, Gi abandona seu lar e seus costumes,

rompendo com o paradigma inerente à cultura portuguesa até meados do século XX.

A saída da personagem de sua terra natal revela um desejo voraz de além, de

liberdade e de reconfiguração identitária: “Fez-se loiros os cabelos, de todos os

loiros, um dia ruivos por cansaço de si, mais tarde castanhos, loiros de novo,

esverdeados, nunca escuros, quase pretos, como dantes eram157 .

A personagem vê sua versão mais jovem de forma esfumada, como

quem se recusa a enxergar sua origem, e, mais tarde, vê sua versão futura (a

senhora experiente que dá conselhos) e se irrita quando esta sugere que sua visão

de liberdade lhe trará solidão. Para remediar esta situação a personagem abriga-se,

por hora, em pensamentos e em determinadas certezas que só poderão vir a ser

desconstruídas com a maturidade.

Ao se deparar com seu passado, aos dezoito anos, George descobre

uma jovem fechada em um local enraizado, no qual o tempo parara e o acesso ao

conhecimento desejado jamais chegaria. A casa dos pais e a vila circunscrevem os

anseios de Gi ao casamento, à maternidade e ao exercício da pintura como

distração: “E eles acham que eu tenho muito jeitinho, que hei-de um dia ser uma boa

senhora da vila, uma esposa exemplar, uma mãe perfeita, tudo isso com muito jeito

para o desenho. Até posso fazer retrato das crianças quando tiver tempo (...)”158 .

Dessa forma, Gi seria respeitada na casa (espaço privado) e na vila

(espaço público) e reproduziria o modelo feminino imposto pela sociedade na qual

nascera. As relações de poder estabelecidas, nos espaços pertencentes à jovem

Gi, são, para George, um profundo aprisionamento. A protagonista não é incluída ou

ela mesma se exclui do modelo predeterminado.

155 MAGALHÃES, I. A. de. (1994), p.189. 156 CARVALHO, M. J. de. “George” in Seta Despedida (1995) p. 33. 157 Idem, p. 33-34. 158 Ibidem, p. 37.

88

Por não aceitar os espaços designados para Gi, George resolveu

partir. Em busca de uma identidade, o sujeito da narrativa torna-se transgressor,

rompe com as antigas relações, transforma sua aparência e habita novos espaços.

Ao abandonar a sua raiz—a casa na vila—George cria asas e, ao não desejar criar

vínculos, aluga casas com mobília (novo espaço privado) e adota o estilo de vida da

cidade grande (novo espaço público).

Assim como, na Europa pós-guerra, as relações de poder foram

repensadas no plano político, as mesmas também passaram a ser questionadas no

plano familiar e social. George se lembra de seus pais e percebe o quanto os

espaços deles e as relações neles estabelecidas não se assemelhavam ao seu novo

modo de vida.

Na cidade, a personagem se desenvolve cultural e economicamente.

Torna-se uma profissional das artes: a pintura, que seria um hobby para Gi,

transforma-se em profissão para George. Ela ganha o mundo, ao viajar para vários

países. A relação de submissão, na casa dos pais e na vila, é substituída por uma

relação de poder absoluto sobre si.

Nesse novo espaço público e privado, a estabilidade do sujeito não

depende do casamento ou dos filhos que a completarão como mulher. A

possibilidade de completude se baseia nas várias experiências amorosas e

realizações profissionais. O respeito adquirido não se associa a seu caráter como

exímia dona de casa, mas como alguém que multiplicou seu capital através do

próprio trabalho.

No encontro com Georgina, a narrativa propõe uma reflexão a

respeito da efemeridade do poder em uma sociedade excludente. De acordo com a

futura versão de George, a casa mobiliada e a cidade grande não lhe farão sentido

em sua velhice. Sua capacidade de produção não será mais a mesma e ela será

excluída do jogo de interesses. Através da fala de Georgina, a narrativa nos deixa a

seguinte questão: nessa constante troca de espaços, de valores e de ausência de

determinados conhecimentos, chegará George a algum lugar? : “E, se for um pouco

sensata, ou se souber olhar em volta, descobrirá que este mundo já não lhe

pertence, é dos outros, dos que julgam que Baden Powell é um tipo que toca

guitarra e que Levi Strauss é uma marca de calças”159 .

159 Ibidem, p.42.

89

A vontade da personagem é o motor que impulsiona todas as suas

conquistas, principalmente, a ânsia de liberdade. Por isso, George, ao optar pela

não criação de laços afetivos permanentes, não quer se prender a móveis e família.

Dessa forma, estará sempre pronta a partir.

Há, inclusive, uma incerteza quanto à sexualidade da personagem,

que assumiu um pseudônimo ambíguo (masculino/feminino), tanto que não se sabe

se “o último dos seus amores” é um homem ou uma mulher: “... Vai morar com o

último dos seus amores”160.

Além disso, o nome George não é um nome próprio típico de Portugal.

Uma família portuguesa tradicional não nomearia um de seus membros por George,

o que reafirma a negação de uma identidade originária e o desejo de ser outro.

Observa-se, assim, uma diluição de fronteiras antes demarcadas, no que diz

respeito às questões de gênero, à temporalidade (passado, presente, futuro) e aos

níveis do real e do imaginário, presentes no espaço textual.

O aparente diálogo apresenta-se, ao longo do conto, ora em itálico,

representando a voz do imaginário (Gi/Georgina). “- Ninguém ouve ninguém, não

sabes? Que pretendeste com a vida, mulher?”161, ora em redondo, representando a

voz situada no real (George). Tais recursos gráficos possibilitam ao leitor uma

interpretação mais precisa, no que se refere à distinção das “vozes” das possíveis

personagens.

Antes de passarmos para a discussão do próximo conto, julgamos

pertinente destacarmos, aqui, algumas das colocações feitas sobre “George” por

duas autoras: Ângela Beatriz de Carvalho Faria e Helena Carvalhão Buescu. No

texto de Buescu, umas das questões analisadas pela autora nos contos de Seta

Despedida são, como já mencionamos anteriormente, as estratégias de fuga que

suspendem a execução da morte decorrente do estado de banimento. Um dos

textos no qual a autora trata desta questão é, justamente, “George”. A personagem

protagonista deste texto é, assim, vista por Buescu, como uma verdadeira

“refugiada”, pois é praticamente forçada a viver em constante processo de fuga da

realidade inelutável na qual se encontra imersa.

Achamos pertinente concordar com Buescu, no momento em que ela

interpreta esse processo de fuga da personagem George como uma “reafirmação da

160 Ibidem, p.44. 161 Ibidem, p.38.

90

regra que conduziu à exclusão162”. Ao tentar viver sem apego a pessoas, lugares e

coisas, morando em casas alugadas e mobiladas e tendo romances passageiros

(mesmo os que julga definitivos), a personagem não conquista, em verdade, a sua

liberdade; vivencia, de fato a condição de banimento característica do homo sacer, a

“exclusão inclusiva”, que a força a viver “fora” mesmo “dentro”. Nada pode chamar

de seu, nem ao menos o seu nome, questão que já discutimos previamente nesta

seção, pois George é o pseudônimo de pintora, não o nome que lhe conferiria de

fato uma identidade real:

De novo, muito pouco sabemos sobre George—que o seu nome é, ambivalentemente, um nome masculino que só depois compreendemos corresponder ao pseudônimo da pintora cujo brevíssimo regresso à sua cidade natal seguimos, para vender a casa. (...) Assim, por um lado, não sabemos (e nunca nos é explicitamente dito) qual o verdadeiro nome que foi negado e se oculta debaixo deste nome masculino e estrangeiro—apenas sabemos estar ele ligado a uma vontade de partida de um espaço enclausurado, a vila limitada, o país fechado, os pais fechados também. (...) O nome dos refugiados é isso mesmo, apenas a sinalização do seu estado de banimento, não uma identidade (que o seu estatuto de refugiados aliás torna impossível). Uma condição de não-integração163 .

Desta forma, George está, como afirma Buescu, em constante condição

de não-integração. Não se prende à família, amigos, lugares e objetos que poderiam

lhe trazer lembranças, dores de consciência de perda. Mas não se prende porque

não pode. Não há regresso possível para esta mulier sacra, condenada para sempre

ao “não lugar”, vivendo, como afirma mais uma vez a crítica citada, “fora do espaço”

e também “fora do tempo”, pois nega o seu passado e o seu futuro, mas vive em um

presente que, no fim, não lhe trará conforto, satisfação e plenitude. Estamos mais

uma vez diante de uma seta despedida (que se despede, mas que também é

despedida) que não poderá jamais voltar ao arco.

A vida de George é, portanto, para Buescu (pautada, como sabemos,

nas reflexões de Agamben), uma “vida nua”, porque é nulificada no mais alto grau.

Afinal, se George não é Gi nem Georgina, quem ela é? Buescu afirma, também,

que George vive, portanto, um permanente “estado de exceção” (mais um termo

agambiano):

162 BUESCU, H. C. (2008), p. 229. 163 Idem, p. 229-231.

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George vive então em permanente estado de exceção, que o próprio estatudo de refugiada pressupõe: sem nome próprio, apenas um nome profissional; sem casa nem coisas nem amigos, nada que seja verdadeiramente seu, que a prenda a um lugar e a uma gente; sem um verdadeiro passado—que é aquele que se sabe ter sido vivido, mas justamente como passado. Ora, George não “enterrou” o passado: a sua fuga é, no fundo, a mesma que teve início no momento em que saiu da sua vila natal, apenas em círculos mais largos164 .

Outra autora também interpreta o conto “George” e gostaríamos de

fazer aqui uma breve menção às reflexões realizadas por ela a respeito deste texto.

Trata-se de Ângela Beatriz de Carvalho Faria. Segundo Faria, o conto “George”, ao

revisitar um dos eixos paradigmáticos da ficção portuguesa—o partir e o ficar—

“inscreve a errância de um sujeito pelo mundo, capaz de viajar por dentro de si

mesmo, em tempos e espaços diferenciados, desdobrando-se e dispersando-se

naquela que foi, aos 18 anos (“Gi”) e naquela que jamais gostaria de ser (“a velha

Georgina”)”165

O tempo, como vimos, é fragmentado e superposto (passado,

presente e futuro se interceptam), mas também o é o espaço (espaço interior e

exterior se mesclam). Os espaços externos são apresentados de forma

extremamente significativa, já que, ao encontrar Gi, George está numa rua (espaço

de trânsito) e, quando se defronta com Georgina, a personagem está num comboio

(igualmente um espaço de trânsito). Tais espaços conectam-se perfeitamente à

temática apresentada no conto, já que a personagem é uma eterna errante: parte

para chegar a algum lugar, com o único intuito de, depois, novamente partir. Não se

contenta com a vida começada na vila onde nascera e busca novos espaços onde,

entretanto, não assenta morada permanente. O espaço de “George” é, justamente, o

de um sujeito errante, que não quer se prender, quer se sentir livre. Faria salienta

que “esse ser itinerante [George] rompe com o vínculo e com a tradição, cria a sua

própria história e deliberadamente não quer criar raízes166” .

Apesar de o comportamento da personagem ser, como já vimos, uma

quebra do vínculo com a tradição, um rompimento de barreiras estabelecidas

secularmente, especialmente para as mulheres, George revela-se,

164 Ibidem, p. 232. 165 FARIA, A. B. de C. (2002), p.9-10. 166 Idem, p.10.

92

momentaneamente, como afirma Faria, “um ser melancólico e fragilizado

emocionalmente, instável no teatro do mundo, envolvido com vários amores que se

sucedem, com ‘uma lágrima no olho direito, enquanto o outro, que esquisito, sempre

se recusa a chorar’”167 . Desta forma, vemos que George busca (sabemos que

inutilmente) “auto iludir-se e diluir, euforicamente, a melancolia que poderia vir a se

apoderar dela”168 . Quando, na conversa com o seu outro eu, a velha Georgina, é

tomada momentaneamente pela melancolia, “George fecha os olhos com força e

deixa-se embalar por pensamentos mais agradáveis, bem-vindos: a exposição que

vai fazer, aquele quadro que vendeu muito bem o mês passado, a próxima viagem

aos Estados Unidos, o dinheiro que pôs no banco”169 . Porém, como salienta Faria,

esta personagem é apenas alguém que apenas “parece superar a ideia de perda,

defendendo-se contra a melancolia, buscando sair de seu calabouço e encontrar a

chave, julgando vivenciar o triunfo da alegria e denegando o luto”170 .

Desta forma, podemos concluir que George, assim como outras

personagens de Seta Despedida, não pode deixar de ser o alvo de uma seta

despedida que, irremediavelmente, a atingirá. Pode, somente, iludindo-se, tentar não

vivenciar a dor de suas feridas, mas encontra-se, assim como as outras

personagens dos contos que veremos adiante, na irreversível condição de homo

sacer, como frisou Buescu e Agamben. Condenada a uma morte em vida, como

salientou Duarte (a respeito de outros contos), George estará sempre nesse limiar,

sem direito a uma morte ritual que pudesse devolvê-la à vida, em sua plenitude.

4.4 O tribunal do silêncio e “A Absolvição”

Em “A absolvição”, temos uma personagem protagonista—Lúcia—que

deixara para trás o convívio social com o círculo familiar e encontrava-se, agora,

“além-mar”, em alguma cidade ou parte do mundo não definida. Aqui há novamente

167 Ibidem, p. 10. 168 Ibidem, p. 11. 169 CARVALHO, M. J. de. (1995), p. 43. 170 FARIA, A. B. de C. (2002), p. 11.

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a questão do “partir e ficar”, já desenvolvida em “George” e tão recorrente na

literatura portuguesa. Há, neste conto, uma mulher que, diante da ameaça de ser

presa por questões políticas, na época da repressão salazarista, foi obrigada a fugir

do seu país de origem.

Desta forma, Lúcia é, literalmente, despedida e, ao mesmo tempo, se

“despede” de seu passado, sem, no entanto, expor as razões da sua atitude. Logo

no início do texto, nos deparamos com outra personagem, que se tornara, sem que

ela soubesse, sua antagonista: Eduarda, que fora sua amiga e, mais tarde, tornara-

se cunhada. Eduarda era, em tudo, oposta à Lúcia: enquanto esta amava as “belas

letras”, aquela tinha grande afeição, como nos diz ironicamente a narradora do

conto, pelos “belos números”. Ambas conheceram-se, entretanto, no liceu e foram

também colegas de faculdade. Porém, ao longo do tempo, outros “ideais” passaram

a nortear a vida de Eduarda que, por isso, fora se afastando da amiga. Enquanto

Lúcia passa a se interessar por política, Eduarda passa a interessar-se por um “bom

casamento” e por dinheiro.

Eduarda casa-se, então, com Vicente, irmão de Lúcia, fato que

coincidira, entretanto, com o fim da amizade entre ambas:

O casamento de Eduarda coincidiu, sem que Lúcia tivesse percebido logo porquê, com o fim da amizade entre ambas. Só se encontravam nos jantares de domingo, mas nessas ocasiões Lúcia sentia-se pouco à vontade, como se, de súbito, fosse uma estranha na sua própria casa171 .

Como nas narrativas de Maria Judite de Carvalho costuma-se ter

acesso às informações paulatinamente, apenas no decorrer da leitura do conto

podemos compreender a real condição de Lúcia, que ultrapassará, como veremos, a

de alguém que apenas parte por vontade própria. Neste conto está presente de

forma marcante a questão do banimento e da “exclusão inclusiva”, tão frisada por

Agamben e Buescu. Lúcia será, portanto, um exemplo claro do homo sacer ou da

mulier sacra, como coloca com propriedade Buescu. Mas de que forma isso se dá

no conto em questão? Como está expressa a crueldade do inelutável no texto

referido?

171 CARVALHO, M. J. de. (1995), p. 49.

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Helena de Carvalhão Buescu, em texto já referido anteriormente,

tratará justamente desta questão. Para esta autora, em “A absolvição”, ocorre um

caso claro da construção do exercício do poder e da soberania em um espaço

privado, que é o espaço preferido por Maria Judite de Carvalho em seus textos. O

espaço privado constituirá, como salienta a autora, um local onde esse poder

soberano será exercido por intermédio da família (Eduarda, Vicente e os pais de

Lúcia), transformando Lúcia em uma “foragida”, em um homo sacer. No entanto,

cabe ressaltar que o primeiro movimento de exclusão coube ao espaço público,

representado pelo poder vigente repressor—fato silenciado ou ocultado por Lúcia.

Ocorre que, no presente da narrativa, essa personagem recebe um

telefonema de Eduarda que, na iminência da morte e orientada por Padre Maurício,

resolve pedir a “absolvição” à Lúcia. Esta não conhecia até então o motivo da culpa

carregada por Eduarda. Compreendera o afastamento dos pais e a distância do

irmão, assim como a ocupação do seu espaço familiar pela cunhada e atribuíra isso

tudo à sua precipitada. Segundo Buescu, Lúcia constrói um corpo “por ausência e

negatividade”:

(...) um corpo biopolítico na medida em que lhe não são reconhecidos direitos, na medida em que é avaliado por uma regra que não é sua, mas a de Eduarda: a regra do ‘bom casamento’, dos mútuos interesses unidos numa aparência de conjugalidade feliz172 .

Se a situação familiar, da maneira que era compreendida por Lúcia, já

lhe poderia ter causado cicatrizes difíceis de serem curadas, agora, com o

telefonema de Eduarda, tudo ficou ainda pior. Eduarda agira como verdadeiro

“instrumento” do poder soberano, ao insinuar que a fuga de Lúcia estava relacionada

à prostituição173, o que indicia a estética da delicadeza, na acepção de Lopes. A

palavra de Eduarda, pessoa querida por todos na família, é tida como verdade.

Através desta atitude da cunhada, formara-se um “tribunal do silêncio” que julga e

condena Lúcia sem proferir, no entanto, a sentença. Ela é condenada à exclusão, é

172 BUESCU, H. C. (2008), p. 220. 173 No texto de Maria Judite de Carvalho a palavra “prostituição” não está escrita, há apenas o registro de “vários homens” e do “dinheiro que pagavam”.

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banida da família. Esse silêncio por parte da família não torna, entretanto, essa

realidade menos cruel, pelo contrário. Como afirma Buescu:

(...) a promiscuidade e a prostituição que todos tinham aceite como verdade para Lúcia dão conta de que esse corpo privado é alvo de decisões judicativas que o fato de serem silenciadas não torna (bem pelo contrário) ineficazes: a expulsão de Lúcia dera-se, então, não no momento em que, antes, a política de um poder soberano a tinha banido da sua própria casa, do seu lugar à mesa e da sua vida perante os pais. A “vida nua” de Lúcia tinha começado, precisamente aí—ou melhor, precisamente aí operara a condição de banimento que, enquanto relação política original, liga o banido à regra que o bane, e o torna assim mais uma instância de exercício do poder e sua afirmação enquanto soberano. Lúcia julgara fugir por razões políticas: fugira, na realidade, por razões políticas—mas diferentes, mais amplas e decisivas do que as que ela julgara: porque das primeiras há hipótese de um regresso, houve efetivamente um regresso, depois de 1974. Das segundas, que repousam sobra a biopoliticização do corpo e da “vida nua” que ele vive, não é possível voltar atrás174 .

A razão do telefonema era o pedido de perdão de Eduarda para Lúcia.

Este perdão é concedido pela personagem, mas, na verdade, o que acontece

efetivamente é apenas uma transferência de culpas: antes, a culpa pesava nos

ombros de Eduarda; agora nos de Lúcia, uma vez que o pai sofrera o “primeiro

enfarte”, logo após a sua partida, julgando-a uma prostituta, e, anos depois, sofrera

outro. O silêncio de Lúcia, portanto, sobre suas atividades clandestinas e políticas

teria contribuído para isso e para a frieza com que fora recebida pelos pais, por

ocasião de uma visita à casa deles.

Lúcia encontra-se, portanto, em uma situação da qual não pode

escapar: a crueldade do inelutável. Sua condição real no final do conto nos lembra

novamente a seta despedida e sem regresso, imagem utilizada no título da

coletânea e no primeiro conto já analisado, mas, como dissemos, presente também

nos outros textos de forma simbólica. Lúcia não poderia mais tentar um regresso

familiar, pois os pais já haviam falecido e o irmão encontrava-se casado com

Eduarda, e esta prestes a morrer. A condição de Lúcia é a mesma de outras

personagens presentes em outros contos do mesmo livro: ela é uma “morta viva”.

174 BUESCU, H. C. (2008) p. 221-222.

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Passa a experimentar uma vida “em negatividade”, como já colocara Duarte, a

respeito de “Frio”, “Seta Despedida”, “A alta” e “Impressões digitais”:

Lúcia dera-lhe essa paz, mas sobre os seus ombros pesava agora, para sempre, a culpa, pensou. Quase todas as noites sonhava com os pais, principalmente com o pai, sempre silencioso, sem uma pergunta, sem uma censura. E acordava sempre sem vontade de viver. Depois, foi vivendo175 .

A ideia de morte em vida passa, portanto, a dominar Lúcia. Após o

telefonema de Eduarda, a personagem passa a carregar uma “ideia fúnebre”, como

frisou Duarte, a respeito dos personagens de “Seta Despedida”.

4.4 Banida por encarceramento: “A Alta”

O conto já se inicia com uma linguagem extremamente contida e

sugestiva. Tudo é apresentado ao leitor paulatinamente: o espaço, os personagens.

O leitor já se depara, logo nas primeiras linhas, com um texto que trabalha com

“silêncios”, ou melhor, lacunas de significação:

O mais estranho não era aquele quase silêncio, rasgado às vezes por uma ou outra campainhada, que talvez fosse um grito de desespero ou medo, e depois, muito depois, pelos passos tantas vezes reticentes que consentiam em lhe responder176 .

No primeiro parágrafo do conto, não há certezas. A linguagem

prepara o leitor com certo suspense, deixando claro somente o ambiente de

angústia e de desespero, onde alguém, que se encontra sem saída, pronuncia-se,

através de um monólogo interior. Nas linhas seguintes já há a sugestão de que o

ambiente referido se trate de um hospital, por conta da descrição da dor, aliada à

descrição do espaço:

(...)nem a novidade monótona do cenário, todo ele feito de altas paredes lisas e um pouco sujas como se tivessem sido mil vezes tocadas, enquanto

175 CARVALHO, M. J. de. (1995) p. 61. 176 CARVALHO, M. J. de. (1995), p.63.

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mulheres vivas e mulheres mortas iam passando por aquelas oito camas de ferro estreitas e iguais177 .

A protagonista do conto apresenta-se, assim, ao leitor de forma

imprecisa, aludindo ao seu próprio corpo precário e problemático, que requeria

“cautela”: “Não, o mais estranho era ela própria, aquele seu corpo de súbito tão

importante, manejado como se fosse de vidro e pudesse quebrar-se a um gesto

menos cauteloso178. Até aqui só temos a certeza de que se trata de uma

personagem do sexo feminino, que está em um local não muito bem definido, e que

considera o seu corpo e a si própria “estranhos”, além de sentir mas muita angústia

e solidão. No segundo parágrafo, já há a alusão, através da voz de um narrador, a

essa mesma personagem: “ ‘Porquê tantos cuidados?’, pensava a velha

professora179”, o que nos dá um perfil mais delineado da mesma. Sabemos agora

que se trata de uma personagem mulher, idosa e cuja profissão é (ou foi) o

magistério.

Essa personagem é apresentada, ao longo do texto, como alguém

que usa o próprio pensamento como forma de evadir-se do presente. A velha

professora parece se encontrar em um local onde há outras pessoas, com quem

poderia se comunicar, mas prefere se isolar, se encerrar em profunda melancolia e

solidão: “(...)Nunca gostara de conversar, e menos ainda de ouvir as conversas dos

outros(...)”180 . A insatisfação é algo constante e a personagem não possui desejo de

viver. Não entende e até desconfia dos constantes cuidados que recebe no local

onde se encontra internada. A vida apresenta-se para ela, como já foi dito

anteriormente, como uma espera pela morte, que chega mesmo a desejar: “Porquê

tudo aquilo? Um corpo a mais ou a menos neste mundo cada vez mais

superpovoado...Um velho corpo, ainda por cima, tão descarnado e doente, tão sem

esperança... Seria isso o juramento de Hipócrates?”181

Em uma das passagens destacadas acima, além da visão

desencantada com a vida, há a maneira negativa de como a própria personagem se

vê: idosa, doente, “descarnada”, quase imprestável. A velhice recebe aqui um

177 Idem, p.63. 178 Ibidem, p. 63-64. 179 Ibidem, p. 64. 180 Ibidem, p.64 181 Ibidem, p. 64

98

tratamento muito crítico, sendo sinônimo de enfermidade, de degenerescência do

corpo, ausência de esperança e desistência da vida. A visão que a personagem tem

de si mesma e de sua importância para o mundo figura-se repleta de morbidez e

melancolia e, por isso, preferiria ter morrido.

É constante, no conto, a tentativa de evasão por parte da

protagonista. Fechando os olhos, a mesma tentava transportar-se a outro local,

distante, diferente daquele, em seu imaginário. O pensamento aparece aqui como a

única forma de se sentir segura, pois uma evasão física, mesmo que tentada,

resultara impossível: “Lembrava-se que estivera à porta da paz, que tentara mesmo

forçar a fechadura, mas que não a tinham deixado ir em frente. Fora uma luta corpo

a corpo num pré-purgatório (chamavam-lhe recobro), uma luta inglória que

perdera”182 .

Um desses locais acessados, através do imaginário, pela

protagonista, é a sua casa, símbolo de conforto, proteção e segurança. Este

elemento—a casa—é extremamente significativo no conto. É somente na sua casa,

evocada através da lembrança, que a personagem consegue ter algum conforto. A

casa aparece aqui como um espaço de refúgio e de segurança, a “cabana” distante

e segura, configurada através do devaneio, como já descrevia Bachelard: “(...) na

sua própria casa, um sonhador de refúgio sonha com sua cabana, com o ninho, com

os cantos onde gostaria de se encolher como um animal em sua toca”183 .

Como um animal acuado, fora de seu ninho, a velha professora

busca, através da imaginação, um ambiente seguro. Relembra-o, recria-o em sua

mente, isolando seus pensamentos das vozes desagradáveis das outras hóspedes

que nunca se calam, ao seu lado; das vozes dos médicos “semideuses” que sempre

reaparecem, falando frases pela metade, preocupados já com outras questões mais

importantes.

Curiosamente, há um momento em que o tom melancólico da

narrativa parece alterar-se um pouco. Ao referir-se aos médicos como “semideuses”,

acompanhados de suas “assépticas sereias sorridentes”, a narrativa equilibra o tom

angustiado de até então com uma fina dose de humor. Apesar de toda a situação

conduzir ao desespero, pois nunca há saída, este momento do conto apresenta-se

182 Ibidem, p. 64. 183 BACHELARD, G. (1993), p.47.

99

com uma leveza impressionante, carregada de um humor leve e uma fina ironia. A

postura do médico é vista de forma muito crítica, pela perspectiva da protagonista. A

narrativa apresenta-nos, através do monólogo interior, a intimidade do pensamento

desta velha professora que, sem saída numa cama de hospital, não deixa de olhar

criticamente para os que a circundam.

A começar quando a personagem critica o juramento de Hipócrates—

juramento esse feito pelos médicos por ocasião de sua formatura—a personagem

nos passa a sua visão desencantada em relação a esses profissionais. E não só em

relação aos médicos: a visão desta personagem em relação aos “outros” é

extremamente desencantada, frustrada, com exceção de uma única pessoa: o seu

filho. Por esta única pessoa, a velha professora ainda nutre alguma esperança que é

frustrada, também, ao final do conto. Quando a personagem recebe alta, conclui que

vai, finalmente para o seu espaço de conforto. Tudo lhe aguardava, reconfortante:

sua casa, seus móveis, seus retratos que lhe traziam boas lembranças. Porém, é

justamente o filho quem tira isso dela, ao impor que a personagem saia do hospital e

não volte à sua casa:

—Olá, mãe. Falei com o doutor. Ele disse-me que vai sair na segunda-feira. —Que bom, meu querido! —Mas também me disse que a mãe não pode viver sozinha, não pode mais viver sozinha. —O quê?— perguntou, incrédula. —Foi o que ele disse. Não pode mesmo. Já combinei tudo com a Alice, e ela põe-lhe uma cama no quarto dos miúdos... —Que ideia a tua— e quase não podia respirar.—Claro que vou para a minha casa. Talvez não na primeira semana, mas depois... —Tem que ser, não há outra alternativa. Até vai ser bom, a mãe toma um pouco conta deles. Sabe como é a Alice...Até vai ser bom, mãe. Para nós e para as crianças. E para si, claro. —E a minha casa?—perguntou a medo.—As minhas coisas? —Não são assim tão importantes, pois não?—disse ele sorrindo, também, como se falasse com uma criança184 .

É interessante notar nesta passagem que, apesar de ter havido

diálogo, a incomunicabilidade permanece, pois o filho não consegue compreender a

fala da mãe. Ao tentar se comunicar, a personagem se frustra mais uma vez, 184 CARVALHO, M. J. de. (1995). p. 70

100

fechando-se permanentemente em seu espaço interior: único espaço, agora, de

segurança, mesmo que apenas imaginária. O mundo externo acaba por frustrá-la

totalmente. Até mesmo o seu filho, única esperança de não ser um “outro” mostra-se

como tal. A solução para a velha professora é a fuga para o interior de si mesma, a

alienação, a prostração, à espera de um possível fim:

Pôs-se então a pensar com muita força, a que podia, que queria morrer e resolveu não respirar e ficou muito quieta, à espera do fim. Mas, claro, não conseguiu atingir o ponto necessário e respirou bem fundo e sentiu lágrimas, embora elas não caíssem, nem mesmo se debruçassem nos seus olhos185 .

A personagem apresenta, desta forma, uma espécie de “doçura

natural”, não possuindo uma voz/ linguagem capaz de subverter o poder político e

soberano do filho, contrário ao direito da mãe de permanecer em casa. Este

personagem, que inicialmente parecia ser para a velha senhora a única “tábua de

salvação”, o único em quem ela ainda poderia confiar, revela-se, enfim, como os

“outros”, igualmente estranho a ela. O filho age, também, como verdadeiro

instrumento do poder soberano—de que trata Agamben--, pois é ele quem decide

sobre o destino da personagem. Configura-se, assim, a “vida nua” daquela mulier

sacra que tem a sua liberdade e felicidade anuladas, através da escravidão que se

instaura a partir do poder decisório do filho. O estado de exceção surge, então,

como a ordem que exclui e, ao mesmo tempo, se apropria da vida nua. A

personagem é, assim, simultaneamente excluída (não pode mais voltar à sua casa,

às suas coisas) e incluída (aprisionada na casa do filho, onde seria “lançada às

crianças”). Da mesma maneira podemos entender o papel do médico no conto. Este

também pode ser entendido como um instrumento do poder soberano, pois tem o

poder de decisão sobre o destino da personagem.

Helena de Carvalhão Buescu186 tece alguns comentários a respeito do

conto “A alta” e gostaríamos de trazê-los à luz de nossa discussão aqui. Segundo a

autora, neste conto ocorre uma espécie de “banimento por inclusão” ou “banimento

por encarceramento”. Após ter alta no hospital, a velha senhora é banida do seu

espaço, sendo forçada a viver (ou morrer) na casa do filho, onde seria “lançada às

185 Idem, p. 71. 186 BUESCU, H. C. (2008), p. 227 e 228.

101

crianças”, “demônios brancos” que até já lhe tinham agredido algumas vezes.

Vejamos o que Buescu tem a dizer a respeito desta questão:

Não se trata aqui senão de um gesto exteriormente louvável—um filho que recebe a mãe envelhecida. O terror da mãe nasce, entretanto, de que é a sua casa que lhe é negada, os seus objetos, as suas coisas, a sua vida: foi banida por encarceramento, numa casa que não é sua, com regras e distribuições de poder que não conhece nem nunca poderá dominar. Esta morte em vida faz dela o exilado impossível, outra seta despedida sem regresso, outra condenação a uma morte que nenhum rito pode redimir: morrerá de acordo com as regras que os outros ditaram para si, num espaço cuja apropriação lhe é negada187 .

Buescu afirma ainda que este tipo de banimento (“banimento por

encarceramento”) é de uma violência sem limites e constitui, sem dúvidas, a uma

exclusão inclusiva em um espaço concentracionário, o que determina, também,

estratégias de fuga. Estas estratégias de fuga suspenderiam, segundo a crítica, ao

menos momentaneamente, a execução da morte que decorre do estado de

banimento, mas prolongam a existência do indivíduo no já abordado “estado de

negatividade”, pois o sujeito passa a pensar a sua vida “por negação relativamente

àquela da qual foi banido” 188 .

É por esse motivo que Duarte afirma que esta personagem passa a

experimentar uma “morte em vida”. Ao tomar consciência de que nada poderia ser

feito para mudar aquela situação, a velha senhora acaba se conformando, desistindo

assim de tentar questionar a decisão do filho, ou de contar o que sentia às outras

senhoras que dividiam com ela o mesmo quarto de hospital. Afinal, “Como podiam

elas perceber o horror de perder uma guerra e ser refém?” 189 . A crueldade do

inelutável está aqui presente, mais uma vez, mostrando sua terrível e inevitável face,

impondo a direção de uma seta já despedida e que, irremediavelmente, não

possibilita um regresso possível. Só resta a esta mulher idosa a tentativa—de certa

forma ingênua—de tentar parar de respirar, o que não lhe garante a morte, quando o

ar adentra soberano em seus pulmões, fazendo com que lágrimas brotem em seu

ser, embora nem ameaçassem tornarem-se pranto. Nesse sentido percebemos que

187 Idem, p. 228. 188 Ibidem, p. 228. 189 CARVALHO, M. J. de. (1995), p. 71.

102

há uma inversão irônica do significado presente no título deste conto, pois “A alta”

representa, ao contrário do que poderíamos esperar, um aprisionamento e não uma

libertação de um ambiente de dor e sofrimento.

4.5 “Impressões digitais” de uma vida sem história

Esse conto focaliza o ambiente deserto e solitário em que vivia uma

personagem protagonista masculina, embora, na maioria dos textos juditeanos, as

mulheres sejam o foco central da narrativa. Este personagem irá, entretanto,

vivenciar as mesmas inquietações, angústias e solidão semelhantes àquelas

vivenciadas pelas personagens femininas, presentes nos demais contos. Há,

inicialmente, uma referência ao tempo e à mudança:

Havia três meses que tudo mudara. Vozes de sempre—de quase sempre—tinham sido silenciadas, ruídos familiares de teclados sem música tinham desaparecido. Era como se alguém tivesse erguido um muro burocrático deixando-o sozinho do outro lado, do lado do deserto190 .

Já nas primeiras linhas, percebemos que ocorreram mudanças

significativas na rotina desta personagem masculina que, embora ainda se

levantasse à hora antiga, logo “um nó se lhe apertava no peito cortando-lhe a

respiração191 . Até aqui o leitor ainda não pode perceber, com nitidez, o porquê

desse “nó” apertando-lhe o peito, nem da sua errância pela casa, na tentativa de

preencher inutilmente o vazio que sentia. Apenas mais à frente, no decorrer da

leitura, pode-se entender melhor a crueldade do inelutável presente na “vida nua”

desta personagem.

Desta forma, é apenas no decorrer da leitura que percebemos que

essas “vozes silenciadas” eram as vozes de seus entes queridos que, um a um,

partiram, deixando-o cada vez mais só: primeiro o filho, “morto sabia-se lá como, em

que circunstâncias. Em combate, fora-lhe comunicado192”; depois a esposa Rina:

“No tempo de Rina, do pequeno, era mais fácil. Agora, porém...193”. Percebemos,

190 Idem, p. 73. 191 Ibidem, p. 73-74. 192 Ibidem, p. 76. 193 Ibidem, p. 77.

103

então, paulatinamente, que a vida desta personagem masculina fora constituída de

um somatório de significativas e dolorosas perdas. Uma a uma, as pessoas

importantes em sua vida foram desaparecendo, deixando apenas as lembranças ou

nem isso. Até mesmo a irmã, a quem não via há tempos, mas que ainda estava viva,

custava-lhe a fazer-se presente em seus pensamentos: “Se a visse, se a

encontrasse na rua, pensava às vezes, não a reconheceria. Até a voz lhe perdera,

mas isso era normal, nunca conservava durante muito tempo as vozes das

pessoas”194.

Além de ter perdido as pessoas pelas quais nutria laços de afeto, este

homem perdera, também, algo que lhe era de extrema importância: o seu trabalho.

Com a reforma (aposentadoria), é praticamente banido da esfera laboral, não

podendo mais retornar à sua vida produtiva na pólis. Todas essas situações aliam-

se, perfeitamente, à temática central desta Dissertação, que é a crueldade do

inelutável: mais uma vez estamos diante de uma personagem (neste caso, como já

afirmamos, masculina) que vivencia situações irreversíveis, é cruelmente lançado de

encontro a um destino inelutável, do qual não pode escapar. Apenas lhe resta

percorrer errantemente a casa, de cômodo em cômodo, acompanhado apenas de

objetos que funcionavam, para ele, como “marcos” de sua vida: “O homem passava

devagar do quarto para a sala, às vezes entrava no outro quarto, o mais pequeno,

que fora do filho. Também esse estava cheio de memórias195 .

O enredo centra-se, assim, na ruptura com a rotina à qual o

personagem estava acostumado e na expoliação de objetos que traziam as histórias

de sua vida, funcionando como marcas identitárias. Daí vem o título do conto: “As

Impressões Digitais”, que alude metaforicamente a essas marcas identitárias, como

veremos mais detalhadamente no decorrer desta análise.

Não conseguindo superar as perdas de entes queridos e do trabalho,

esse personagem vivencia um dia-a-dia angustiante e sem sentido. A única

motivação que ainda encontra para viver está nos seus objetos repletos de

lembranças: a taça de vidro amarelado; a colcha da cama, que a mulher levara um

inverno a fazer; os retratos; o Cristo de pedra-sabão, que ganhara de presente; o

cinzeiro de prata, que fora presente de casamento; a caixa de estanho; o delicado

solitário de cristal com trepadeiras de casquinha; além de outros objetos que jaziam

194 Ibidem, p. 77. 195 Ibidem, p. 75.

104

no quarto do filho, em particular: livros; a viola que comprara um ou dois anos antes

de partir para a guerra; um cinzeiro de madeira.

Poderíamos fazer, aqui, uma breve comparação entre o

comportamento desta personagem com o da personagem protagonista do conto

“George”. A pintora levava a sua vida fugindo de suas lembranças e não se

apegando à nada que pudesse remeter às mesmas, morando, por isso, em imóveis

alugados e mobilados:

Uma casa mobilada, sempre pensou, é a certeza de uma porta aberta de par em par, de mãos livres, de rua nova à espera dos seus pés. As pessoas ficam tão estupidamente presas a um móvel, a um tapete já gasto de tantos passos, aos bibelots acumulados ao longo das vidas e cheios de recordações, de vozes, de olhares, de mãos, de gente, enfim. Pega-se numa jarra e ali está algo de quem um dia apareceu com rosas. (...) Queria estar sempre pronta para partir sem que os objectos a envolvessem, a segurassem, a obrigassem a demorar-se mais um dia que fosse196 .

Por outro lado, a personagem de “As Impressões Digitais” age na

direção inversa: o sentido de sua existência resumia-se às lembranças que eram

deflagradas ao contemplar cada objeto presente na casa. Aliás, este espaço—

novamente, a casa, tão abordada anteriormente—funciona neste conto como o local

de onde este personagem não consegue quase nunca sair, a não ser quando decide

reencontrar a irmã, após anos de afastamento. A casa é, neste conto, o único

espaço que proporcionava à personagem alguma espécie de conforto.

A recusa da personagem George de não se apegar à nada e à

ninguém não pode ser entendida, entretanto, como uma vitória sobre o sofrimento, a

dor e a frustração. Esta personagem apenas age de forma diferente, recusando-se a

vivenciar a experiência trágica da existência, enquanto que a personagem masculina

de “As Impressões Digitais” está mergulhada nesta dor, experimentando-a no mais

alto grau.

Sentindo-se totalmente sozinho (sua única companhia era a

empregada doméstica, Dona Augusta, com quem quase nunca falava), o

personagem lembra-se da existência de uma irmã, a quem não via há anos, mas

com quem trocava cartas frequentemente. Ocorre o reencontro entre os dois, mas

196 Ibidem, p. 34-35.

105

esse reencontro mais se parece com um encontro de solidões: “Eram no fundo dois

estranhos que, de vez em quando escreviam superficialidades um ao outro”197 .

Apesar da descoberta de tanta coisa em comum entre os dois irmãos

(a viuvez, a solidão), estes não conseguem romper a barreira da incomunicabilidade.

Não ocorre diálogo. O personagem sente-se extremamente frustrado com esse

encontro e decide voltar à sua casa, seu espaço de conforto. Porém, ao retornar à

casa, o personagem, cansado e frustrado, só pensa em dormir (como que para fugir

de tudo aquilo) e não percebe que o ambiente em que se encontra já não era o

mesmo.

Ao amanhecer, o personagem percebe que os objetos por que nutria

tanta afeição, suas “impressões digitais”, haviam desaparecido. Antes, encontrara

um bilhete da empregada, dizendo que não voltaria. Insinua-se que fora roubado

pela mulher, a única em que ainda poderia se fiar. Essa mulher faz desaparecerem

as “impressões digitais de sua vida sem história”198 .

A “mulher-a-dias” representa, assim, o poder soberano que irá

evidenciar a “vida nua” da personagem masculina, já que a perda dos objetos

representa para ele a perda das únicas coisas que ainda o prendiam, de certa forma,

à vida: suas “impressões digitais”. A “vida nua” relaciona-se, neste caso,

curiosamente, à “casa nua”. A atitude da personagem D. Augusta provoca, até

mesmo, a morte do protagonista, como veremos mais à frente. Porém, o poder

soberano não está representado apenas através de D. Augusta, que evidencia as

relações interpessoais perversas da contemporaneidade; podemos relacioná-lo,

também, ao sistema político que provocou a morte do filho na guerra colonial e às

normas vigentes no sistema trabalhista, que ocasionara a reforma da personagem.

Para Duarte, o que ocorre é novamente a “morte em vida”, pois o

personagem apenas subiste em função dos seus objetos que são carregados de

lembranças. Vivencia uma solidão extrema, pois a única pessoa com quem convive

é D. Augusta, a “mulher-a-dias”, que trabalha em sua casa, mas fala com ele apenas

o essencial e trata dos seus objetos com a devida dedicação e veneração. Se antes

sua existência já não fazia sentido algum, devido às perdas dolorosas que tivera,

após o desaparecimento desses objetos tão queridos, o que lhe resta é apenas a

espera pela morte. O personagem não se conforma com isso, deixa-se cair em uma

197 Ibidem, p. 79. 198 Ibidem, p. 85.

106

cadeira no quarto do filho (que havia sido sua cadeira de trabalho, o que é

extremamente significativo, pois simbolicamente nos relembra uma “primeira morte”

desta personagem: a reforma) e fecha “para sempre” os olhos. A expressão utilizada

no texto evidencia um eufemismo para designar a morte real (física) do personagem,

e não apenas a sua morte simbólica. Manifesta-se, mais uma vez, a estética da

delicadeza, na acepção de Lopes, pois uma situação cruel é aqui filtrada pelo

delicado, através de uma linguagem sutil, que trabalha com insinuações, sugestões

e lacunas de significação.

4.7 O “frio” encontro com a face da morte

Como já foi dito por Lélia Parreira Duarte, as histórias escritas por

Maria Judite de Carvalho podem ser vistas a partir de uma elaboração discursiva

que “leva a dor para o campo da beleza” 199 . A partir desta afirmação, percebemos

que, mais do que nunca, o conto “Frio”, último texto de sua última coletânea

contística publicada em vida, desempenha inegavelmente esse papel. É uma das

histórias mais terríveis do livro, a começar pelo título, seco, constituído apenas de

um substantivo: “Frio”. A linguagem contida manifesta-se aqui, mais uma vez, a

começar pela proposital dispensa do artigo definido, que está presente em outros

títulos, mas no último conto a autora faz questão de deixar aquela palavra ali,

sozinha, mas imponente, a ser preenchida de diferentes formas.

O nome título conferido a esse conto é, em nossa visão,

extremamente instigante, embora, aparentemente, simples. Antes de iniciarmos a

leitura, não podemos ter a mínima noção do se pode tratar, entretanto, à proporção

em que vamos nos inteirando do seu enredo, percebemos a presença deste “frio”,

que tem significados não apenas literais, mas também simbólicos. Por vezes

estamos diante de um frio que traduz a temperatura de um determinado lugar:

“Estava sozinha no mundo e o mundo era aquela rua tão fria e deserta200 . Mais à

frente, porém, começamos a duvidar se esse “frio” diz respeito somente ao seu

significado literal, à temperatura baixa de determinado ambiente, ou se o mesmo

199 DUARTE, L. P. (2008), p. 254. 200 CARVALHO, M. J. de. (1995), p. 131.

107

signo poderá referir-se simbolicamente a um outro significado: “(...) e como se a

única maneira de fugir do frio fosse caminhar para ele, estar cada vez mais perto do

seu pólo201 . Seria esse frio um mero detalhe relacionado à descrição de um

ambiente ou poderia estar ele relacionado ao flerte com a morte, que parece ser

vivenciado pela personagem?

Já foi dito, em algum momento deste trabalho que os textos de Maria

Judite de Carvalho utilizam uma linguagem que não fixa os sentidos, abalando as

certezas. Dificilmente afirmam-se ideias. Tabalha-se, na maioria das vezes, com

conjecturas, possibilidades, mas há sempre a presença da dúvida, da incerteza.

Frequentemente vemos a repetição de expressões que figuram um discurso

modalizante, como, por exemplo, a expressão “como se”. Neste conto está muito

presente “aquela força subtrativa que retira certezas e poderes” 202, como afirma

Duarte.

A história trata de uma mulher idosa (mais uma vez estão presentes,

na escrita juditeana, a mulher e a velhice, temas extremamente recorrentes) que se

percebe em perigo, quando não consegue explicar o que acontecera a ela mesma:

vê-se com o vestido sujo de lama e um homem, naquele local curiosamente

chamado de “Paraíso”, diz que poderia ter um elo de parentesco com ela. A

personagem toma (novamente?) a consciência de que perdera a memória e,

“abaladas as certezas, a personagem acaba por concluir: ‘—Não, claro que não

estou certa, não posso estar certa se não me lembro de quem fui...’”203 . Esta

personagem é, também, alguém que se encontra em trânsito. Ela caminha, sem

saber ao certo em que direção ou rumo a que está indo, mas encontra-se errante

“por uma estrada fora”. Seria essa estrada o limiar entre a vida e a morte? Estaria a

personagem fazendo a sua derradeira “passagem”?

Como afirma Duarte, em seu texto já mencionado, a palavra “Pai”, dita

(ou pensada) ao final do conto, revela ambiguamente o reconhecimento de Ivo, seu

pai, mas também o filho. Neste sentido, condensam-se, no mesmo nome, pai e filho,

passado e presente, sonho e realidade, morte e vida. Ocorre a diluição de fronteiras,

característica já ressaltada da literatura portuguesa contemporânea e muito presente

na ficção de Maria Judite de Carvalho. O texto é construído de maneira que

201 Idem, p. 132. 202 Idem, p. 255. 203 Ibidem, p. 255.

108

dificilmente sabemos ao certo onde começa o espaço onírico, onde a personagem

relembra o passado e onde começa a realidade. A única “certeza” é o quarto de

hospital, onde seu filho espera que acorde. Apenas, no final do conto, isso fica mais

claro, quando, ao verbalizar (ou pensar) a palavra “Pai”, parece que a personagem

volta “à vida”, toma consciência de seu estado real, mas, ao fechar novamente os

olhos, sorri ao outro Ivo, “que fora seu pai e morrera jovem, tão jovem que mal o

tinha conhecido”204.

Esse é um caso radical da chamada “morte em vida”, aludida por

Duarte, assim como também do “limiar” entre morte e vida, característica do homo

sacer agambiano, referido por Buescu. Dizemos que é radical porque, neste conto, a

personagem não chega efetivamente a tomar consciência de seu estado mórbido:

ela sonha e parece compreender-se ao abrir os olhos ao filho, mas ao fechá-los

novamente mergulha cruelmente no seu estado inicial de inconsciência. Mais uma

vez, estamos diante da “seta despedida”, sem direito ao regresso possível, ao

recomeço. A crueldade do inelutável manifesta-se, neste conto, de forma imperativa.

Além disso, curiosamente, neste conto em especial, parecem estar encenadas as

estéticas da crueldade e da delicadeza. Através de uma das falas do personagem

Ivo, podemos perceber uma sutil alusão a estas duas estéticas que, como vimos,

complementam-se, no texto de Maria Judite de Carvalho:

—Todos matamos por pensamentos, palavras ou obras, todos, senhora. Uns derramaram o sangue do seu próximo...os assassinos, que grande palavra!...outros fizeram-no mais discretamente, por cobardia. Quantas pessoas mortas por palavras, com o assassino à solta e considerado, por ele próprio, pessoa de bem!205

Uma outra questão, já abordada em outros contos de Maria Judite de

Carvalho, parece se repetir em “Frio”, mas de maneira extremamente peculiar: a

questão da identidade. A personagem, neste caso, é nomeada ao final do texto

(“Luizinha”), mas sabemos que esse nome liga-se à infância e não à fase adulta ou à

velhice daquela mulher. Podemos afirmar que houve a perda do nome e a rasura da

identidade na fase adulta, já ela é referida no fim da vida apenas como “a velha

senhora” ou “a velha”. Estaria a perda do nome e da identidade, aqui, em específico,

204 CARVALHO, M. J. de. (1995), p. 143. 205 Idem, p. 141.

109

relacionada à completa indiferenciação a que é submetida a personagem por estar

morta (ou muito próxima da morte)? Ou a perda da identidade já ocorrera em vida e

esta corresponderia a uma morte (vida em negatividade)?

Para encerrar nossas considerações, citamos José Manuel da Costa

Esteves que, ao tratar do livro Seta Despedida, como um todo, faz alguns breves

comentários a respeito deste conto:

(...) a constatação da proximidade da morte (morte figurada, escolhida ou por doença) em títulos como Vínculo Precário, A Absolvição, Impressões Digitais, Sentido Único, O grito, passando pela sua revelação através do sonho em Frio (com o qual termina o livro), fez pensar na seta desferida deste o título até ao alvo (o frio), o fim do tempo, o fim da vida. Significativamente Seta Despedida é o último livro da autora, sendo impossível não ver nele uma despedida magoada de um tempo esvaziado para onde o homem foi empurrado, prisioneiro desde que os dados foram lançados(...)206 .

Este autor traz uma interessante visão, tanto do conto em questão,

como do livro como um todo. Não é à toa que o conto “Frio” é o último do livro.

Poderíamos interpretar, como o faz Esteves, o signo que dá título ao conto de

maneira simbólica. Este insistente “frio” não poderia ser a própria face da morte, tão

próxima, terrível e inevitável, quase a tocar a pele da personagem? Até porque todos

os contos, de certa forma, tratam da irreversibilidade do tempo e da velhice, logo,

um dos temas preferidos, por Maria Judite de Carvalho, ganha uma dimensão

aterrorizante: representa o fim da vida, a desesperança, o fim de tudo.

Além disso, é interessante também a maneira como o autor citado vê

o livro Seta Despedida no contexto da carreira de Maria Judite de Carvalho: ele

simboliza (por que não?) uma despedida deste mundo desencantado, no qual

somos obrigados a viver a crueldade do inelutável, sermos o alvo de uma seta

despedida e sem volta, rumo ao fim. Rumo ao nada. Fica apenas a esperança que

emerge da própria obra de arte, que resiste, e acaba sendo, como afirma Esteves, “o

grito pressentido, e sempre abafado, vitorioso sobre a morte, porque esse dizer

literário é ainda uma forma última, e talvez a única, da esperança e o entrever de

uma alegria”207 .

206 ESTEVES, J. M. da C. (1999), p. 6. 207 Idem, p. 7.

110

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Tentamos, através desta Dissertação, demonstrar de que forma está

presente em alguns contos de Seta Despedida, de Maria Judite de Carvalho, a

estética da crueldade aliada à delicadeza. Consideramos ser a delicadeza, de certa

forma, e nesse contexto específico, uma “outra face” desta crueldade, que não se

manifesta, como já foi dito, através de imagens impactantes e sanguinárias, mas

sim, através da representação do “inelutável”, de que tratou Clément Rosset. Nos

contos de Maria Judite de Carvalho que selecionamos para análise, nesta

Dissertação, encontramos a presença da “crueldade do inelutável”, termo que

julgamos pertinente utilizar para designar a crueldade que se manifesta através do

silêncio, da sutileza e do subentendido.

A crueldade está relacionada, assim, à dor trágica da existência, à

realidade terrível da qual não se pode fugir, ao destino inexorável, à

incomunicabilidade, à solidão, à ausência de identidade própria de determinadas

personagens, à decrepitude do corpo, à repressão, à “vida nua” das personagens

que são subjugadas às regras de um poder soberano, configurando a condição de

homo sacer, discutida por Giorgio Agamben. Pudemos ver, desta forma, como nos

ilustra Renato Cordeiro Gomes, que não é preciso nem um pouco de “sangue

verdadeiro” para se manifestar a crueldade. Talvez esta seja, realmente, a pior das

crueldades, por se manifestar no silêncio e na sutileza, capaz de, subrepticiamente,

anular a vida do indivíduo.

No capítulo 2 (“A delicada narrativa do inelutável”), apresentamos,

panoramicamente, os principais estudiosos que trataram da estética da crueldade e

da delicadeza. Vimos, com Clément Rosset, os princípios em que se baseia a ética

da crueldade: o princípio da realidade suficiente e o princípio da incerteza, assim

como também nos defrontamos com o que ele chama de “dupla crueldade do real”,

pois “uma realidade penosa é também, e por cúmulo de crueldade, uma realidade

real208“. Vimos também, no texto de Rosset, que o que caracteriza a crueldade é,

indiscutivelmente, seu caráter inelutável.

208 ROSSET, C. (1989), p. 18.

111

No mesmo capítulo citado, destacamos também a importante

contribuição para o estudo da estética da crueldade, através da obra de Antonin

Artaud, intitulada O teatro e seu duplo. Nela, Artaud aborda o “Teatro da Crueldade”

que, segundo ele, deveria existir para efetivamente renovar a cena teatral do

Ocidente, pois o público necessitava, segundo ele, de um teatro que lhe despertasse

nervos e coração, não um espetáculo vazio e desgastado, que fazia o público

“penetrar na intimidade de alguns fantoches209”. Desta forma, seria necessária uma

reformulação do teatro e isso deveria ser feito, segundo Artaud, através da criação

do “Teatro da Crueldade”. O espetáculo teatral deveria ser feito com uma linguagem

que fosse além das palavras, “um espaço bombardeado de imagens, de sons, um

teatro feito por uma mobilização intensa de objetos, de gestos, de signos210”, como

afirma Gomes, ao tratar do teatro de Artaud em seu texto “Narrativa e paroxismo:

será preciso um pouco de sangue verdadeiro para manifestar a crueldade?”,

presente no livro Estéticas da crueldade, organizado por Ângela Maria Dias e Paula

Glenadel.

Renato Cordeiro Gomes retoma, em seu texto, as reflexões propostas

por Rosset e Artaud, considerando o teatro deste último autor citado a “expressão de

um paroxismo”. Propõe, em seguida, a análise de narrativas brasileiras

contemporâneas tomando por base o que ele denomina o “contrário do paroxismo”,

através dos procedimentos do “deslocamento” e da “condensação”.

Ainda no capítulo 2, tentamos expor, brevemente, também, alguns

autores que trataram da estética da delicadeza. Denílson Lopes e Ana Cristina

Chiara nos evidenciaram como a delicadeza e seus temas transversais (o sublime

no banal, a leveza, a sutileza, etc) aparecem, hoje, como algo que

fundamentalmente se contrapõe a uma tendência da literatura que se relaciona ao

excesso e ao paroxismo de imagens. Em seguida, em outro subitem no mesmo

capítulo, apresentamos Maria Judite de Carvalho e a sua obra, tentando explorar,

primeiramente, aspectos importantes de sua vida e de sua obra como um todo, para,

em seguida, começarmos a nos aprofundar na obra selecionada para esta

Dissertação que foi, também, sua última coletânea de contos publicada em vida:

Seta Despedida. Neste sentido, apresentamos a fortuna crítica que se debruçou

sobre a obra desta admirável escritora portuguesa contemporânea.

209 ARTAUD, A. (2006), p. 95. 210 GOMES, R. C. (2004) p. 143.

112

No capítulo 3 ( “O Homo Sacer: uma visão agambiana da crueldade”),

abordamos a importante obra de Giorgio Agamben (Homo Sacer I: O Poder

Soberano e a Vida Nua), que julgamos importantíssima para estabelecermos uma

relação entre as reflexões feitas pelo autor acerca desta enigmática figura (o homo

sacer) e a condição de determinadas personagens presentes nos contos

selecionados de Seta Despedida. “A vida exposta à morte e insacrificável do homo

sacer” assemelha-se, de certa forma, à vida de personagens dos contos a que

aludimos anteriormente. Segundo Buescu, que nos apresenta uma leitura

agambiana de alguns contos do mesmo livro de Maria Judite de Carvalho, a “dupla

exceção” a que está exposto o homo sacer (a impunidade de sua morte e o veto do

sacrifício) pode ser entendida como um “duplo banimento”. Neste sentido, o homo

sacer é, segundo a autora, verdadeiramente o banido (tanto do jus humanum como

do jus divinum).

Ocorre que algumas personagens em “Seta Despedida”, “George”, “A

Alta”, “As Impressões Digitais”, “A Absolvição” e “Frio” estão submetidas ao poder

soberano que lhes confere uma “vida nua”, condição bem semelhante àquela

vivenciada pelo homo sacer. Como, na maioria das vezes, essas personagens são

mulheres, Buescu escolhe, com propriedade, fazer uso do termo mulieres sacrae, o

que julgamos extremamente pertinente. A exclusão a que são submetidas essas

personagens não é, entretanto, simples e sim complexa: trata-se de uma espécie de

“exclusão inclusiva”, na medida em que, o poder soberano, ao excluir o indivíduo,

simultaneamente se apropria de sua “vida nua”, penetrando no corpo do sujeito e em

sua vida em todas as circunstâncias (relembrando o conceito de “biopolítica,

abordado primeiramente por Michel Foucault e retomado por Giorgio Agamben).

Desta forma, formam-se “corpos dóceis”, que são controlados e oprimidos, tanto na

esfera pública como na privada, sem direito a um regresso possível desta condição,

sem direito a uma morte sacrificial, que lhes pudesse conferir uma nova vida, um

novo começo.

No capítulo 4 (“Mergulhados nos abismos de si mesmos: a cruel

realidade das personagens de Seta Despedida), tentamos “mergulhar”,

efetivamente, nos “abismos particulares” de cada uma dessas personagens,

tentando ilustrar de que maneira, em cada conto, estão presentes as estéticas da

crueldade e da delicadeza. Vimos que, em cada um desses textos, as personagens

113

vivenciam a dor trágica da existência. Estão imersas na “crueldade do inelutável”,

em realidades terríveis das quais não conseguem, ou não podem escapar.

Esperamos ter conseguido analisar de forma pertinente, a narrativa de

Maria Judite de Carvalho, ainda tão pouco estudada e lida, tanto pela academia

como pelo público em geral, explorando alguns aspectos que julgamos fundamentais

em sua obra. Consideramos, enfim, que estudar Maria Judite de Carvalho é

desafiador e instigante, pois o texto desta autora contém uma intensidade disfarçada

em contenção; trabalha com a dor, elevando-a ao campo da beleza, como afirma

Duarte (2008). Diversos são os enfoques que poderiam ser dados ao estudar o texto

Seta Despedida e esse é apenas um deles.

Gostaríamos de encerrar esta Dissertação retomando um trecho do

texto de Ítalo Calvino sobre a “Leveza” que é, para ele, umas das propostas para o

próximo milênio (o milênio em que estamos):

Em nenhum outro escrito como nesse poema, de 1953, Montale evocou uma visão tão apocalíptica; mas o que os seus versos melhor valorizam são os minúsculos traços luminosos, que ele contrapõe à escura catástrofe211.

Segundo Calvino, essa “leveza” (ou delicadeza) é uma qualidade que o texto literário

não deveria perder, dentre “alguns valores literários que mereciam ser preservados

no curso do próximo milênio212”, como afirma Esther Calvino, no texto de

apresentação do livro. Na verdade, as Seis Propostas para o Próximo Milênio foram

conferências escritas por Calvino que não chegaram a ser, entretanto, proferidas.

Mas foram publicadas, posteriormente. Existem exatamente como propostas,

desejos que o autor tinha acerca da literatura e de seu destino no próximo milênio.

Curiosamente, neste trecho que usamos como epígrafe desta Dissertação estão ali

presentes, de certa forma, as estéticas da crueldade e da delicadeza, já que, no

poema de Montale que ele toma como exemplo, existe (por que não?) a evocação

de uma “visão tão apocalíptica” ( a estética da crueldade), que os versos do poeta

melhor valorizam através de “minúsculos traços luminosos” (a estética da

211 CALVINO, I. (1990), p. 18 212 CALVINO, E. Trecho do textto de apresentação do livro de CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. (1990), p. 5.

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delicadeza). A união destas duas estéticas daria origem à “Leveza” de que trata

Calvino, qualidade essencial do texto literário e que deveria ser preservada, segundo

ele. E Maria Judite de Carvalho já estava engajada, em nossa visão, a essa

proposta, nunca deixando de lado a delicadeza, mesmo quando pudesse tratar de

temas profundos, dolorosos e cruéis. E este é, sem dúvida, apenas um dos méritos

da escritora que, para nós, deveria, sem dúvida, ser mais lida e mais estudada, até

mesmo nos cursos de graduação e pós-graduação das principais universidades.

Esperamos, enfim, ter contribuído para que isso aconteça com mais vigor, fazendo

fomentar a curiosidade de outros leitores na investigação da obra de Maria Judite de

Carvalho. Não é fácil sentir que temos uma preciosidade nas mãos, que está, em

certa medida, ocultada do mundo, mas que merecia mostrar seu brilho a todos que

puderem contemplá-la.

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