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1 PUREZA E PERIGO: O QUE COMPARTILHAM POVOS INDÍGENAS, NEGROS, MULHERES E HOMOSSEXUAIS QUANDO SE TRATA DIREITOS HUMANOS? Aislan Vieira de Melo (IFMS) Resumo: A presente proposta parte do pressuposto de que os direitos humanos, antes de fazer parte do campo jurídico, corresponde a uma ética de comportamento, cujo fundamento é o reconhecimento da alteridade e o, consequente, diálogo entre as partes visando um senso comum. Nas relações sociais, percebe-se que o Outro o que é percebido como diferente é sempre outrificado a partir de uma visão de mundo proposta por grupos dominantes econômica, política e simbolicamente. Ou seja, ao Outro são atribuídas características que o tornam inferiorizados no contexto social, minimizando suas influências, cujo objetivo é o de manter a pureza da ordem social/da visão de mundo. Nesse sentido, propõe-se analisar os processos de outrificação sofridos por povos indígenas, população negra, mulheres e homossexuais no Brasil, argumentando que eles não podem ser realizados isoladamente, pois constituem versões de um processo de normalização de padrões de conduta e pensamento em que as particularidades são hierarquizadas segundo uma lógica dominante que pressupõe a exclusão daqueles que põem em perigo a pureza da ordem social/da visão de mundo. Analisando alguns enfrentamentos no campo jurídico e/ou administrativo, e as influências das/nas relações sociais, pretende-se refletir acerca dos mecanismos institucionais e sociais no contexto brasileiro caracterizados pelo não reconhecimento das particularidades do Outro em sua plenitude. Para tanto, trago exemplos das leis e/ou da sua prática dificultada relacionados a cada um desses grupos onde a outrificação é constatada e a possibilidade da construção de relações baseadas no conceito jurídico de Direitos Humanos como devir é questionada. Palavras-chave: direitos humanos; discriminação; ordem social; pureza e perigo; ética de comportamento 1 INTRODUÇÃO É notório que alguns direitos garantidos na legislação brasileira voltados à negros, povos indígenas, comunidades quilombolas, mulheres e homossexuais não são colocados em prática ou são dificultados, muitas vezes, respaldados por instrumentos jurídico-administrativos. Assim, a questão que orienta esta reflexão é: se as leis são instrumentos instituídos para arbitrar sobre as contendas geradas pelas interações sociais entre grupos com interesses variados, sendo instrumentos dotados de legitimidade para tal (SEGATO, 2006), o que impede que os direitos já consagrados nos instrumentos jurídicos e/ou administrativos sejam aplicados para alguns sujeitos detentores destes Anais do XIV Congresso Internacional de Direitos Humanos. Disponível em http://cidh.sites.ufms.br/mais-sobre-nos/anais/

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PUREZA E PERIGO: O QUE COMPARTILHAM POVOS INDÍGENAS,

NEGROS, MULHERES E HOMOSSEXUAIS QUANDO SE TRATA DIREITOS

HUMANOS?

Aislan Vieira de Melo (IFMS)

Resumo: A presente proposta parte do pressuposto de que os direitos humanos, antes de

fazer parte do campo jurídico, corresponde a uma ética de comportamento, cujo

fundamento é o reconhecimento da alteridade e o, consequente, diálogo entre as partes

visando um senso comum. Nas relações sociais, percebe-se que o Outro – o que é

percebido como diferente – é sempre outrificado a partir de uma visão de mundo proposta

por grupos dominantes econômica, política e simbolicamente. Ou seja, ao Outro são

atribuídas características que o tornam inferiorizados no contexto social, minimizando

suas influências, cujo objetivo é o de manter a pureza da ordem social/da visão de mundo.

Nesse sentido, propõe-se analisar os processos de outrificação sofridos por povos

indígenas, população negra, mulheres e homossexuais no Brasil, argumentando que eles

não podem ser realizados isoladamente, pois constituem versões de um processo de

normalização de padrões de conduta e pensamento em que as particularidades são

hierarquizadas segundo uma lógica dominante que pressupõe a exclusão daqueles que

põem em perigo a pureza da ordem social/da visão de mundo. Analisando alguns

enfrentamentos no campo jurídico e/ou administrativo, e as influências das/nas relações

sociais, pretende-se refletir acerca dos mecanismos institucionais e sociais no contexto

brasileiro caracterizados pelo não reconhecimento das particularidades do Outro em sua

plenitude. Para tanto, trago exemplos – das leis e/ou da sua prática dificultada –

relacionados a cada um desses grupos onde a outrificação é constatada e a possibilidade

da construção de relações baseadas no conceito jurídico de Direitos Humanos como devir

é questionada.

Palavras-chave: direitos humanos; discriminação; ordem social; pureza e perigo; ética

de comportamento

1 INTRODUÇÃO

É notório que alguns direitos garantidos na legislação brasileira voltados à

negros, povos indígenas, comunidades quilombolas, mulheres e homossexuais não são

colocados em prática ou são dificultados, muitas vezes, respaldados por instrumentos

jurídico-administrativos. Assim, a questão que orienta esta reflexão é: se as leis são

instrumentos instituídos para arbitrar sobre as contendas geradas pelas interações sociais

entre grupos com interesses variados, sendo instrumentos dotados de legitimidade para

tal (SEGATO, 2006), o que impede que os direitos já consagrados nos instrumentos

jurídicos e/ou administrativos sejam aplicados para alguns sujeitos detentores destes

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direitos no contexto brasileiro?

O argumento principal é o de que os desrespeitos aos direitos garantidos aos

povos indígenas, às comunidades quilombolas, às populações negras, às mulheres e às

pessoas homossexuais não são aplicados ou são dificultados porque a relação entre, de

um lado, os grupos dominantes política, econômica e simbolicamente e, de outro, os

grupos considerados minorias, estão pautadas numa ideologia de outrificação que

estabelece certas características a esses últimos que impossibilitam uma relação simétrica

entre os grupos, visando sempre a perpetuação da hierarquia social.

Nesse sentido, argumento que, embora as análises sobre as questões que

envolvem as minorias sejam realizadas de modo particularizado a cada grupo – o que se

justifica pelas singularidades e complexidades inerentes ao contexto vivido por cada

grupo –, o pano de fundo dessas questões está no mesmo chão social, político e cultural,

qual seja, num contexto de normalização de padrões de conduta e pensamento em que

as particularidades são hierarquizadas segundo uma lógica dominante que pressupõe a

exclusão dos grupos minoritários dos espaços sociais mais valorizados.

Em termos mais amplos, a proposta aqui é refletir acerca das possibilidades de

se construir uma sociedade pautada em interações sociais racionalizadas, tendo como

referência um conjunto de valores que pressupõem a centralidade do indivíduo e a

garantia de direitos a ele atribuídos como inatos – como predominam as ideologias

dominantes do cenário mundial inspiradas nas ideias liberais consagradas nos chamados

Direitos Humanos. Não é objetivo discutir aqui, diretamente a sustentabilidade dos

valores liberais propagados pelos Direitos Humanos, pois, ao contrário, a argumentação

tem corpo dentro desse paradigma epistemológico.

2 DIREITOS HUMANOS: VALORES UNIVERSALIZADOS E

PADRONIZAÇÃO DE CONDUTAS

Embora seja resultado de um processo histórico de desenvolvimento de

pensamentos e embates ideológicos, os chamados direitos humanos têm origem

institucional com as revoluções políticas Americana e Francesa do século XVIII. Ambos

movimentos consagraram profundas transformações na ideologia dessas regiões que,

posteriormente, foi absorvida por (imposta aos) outros locais e hoje se tornou dominante

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no cenário mundial e é linguagem das relações internacionais.

Em termos históricos, a Revolução Francesa instituiu uma Declaração dos

Direitos do Homem (1789), estabelecendo direitos políticos e civis aos indivíduos

que seriam, de fato, os detentores do poder, enfatizando o contrato social. Foram

garantidos direitos de participação na vida política como votar e ser votado, constituir

agremiações políticas, religiosas, dentre outras liberdades, sobretudo econômicas, de

ação individual, diante do poder centralizado.

O indivíduo passou a ser visto como possuidor de direitos inatos e, por isso, era

preciso consolidar uma legislação que garantisse a prevalência natural do Homem diante

do mundo. A ideia fundamental que paulatinamente passou a ser hegemônica no cenário

mundial é a de que o indivíduo deve estar no centro das relações sociais, e todas as

decisões políticas e previsões futuras deveriam estar baseadas no visando o “bem-estar”

individual.

Aproximadamente um século depois, em meados do século XIX, o contexto de

desigualdades sociais exacerbadas e a consolidação de uma ideologia de cunho socialista,

exigiram transformações na ideologia individualista dominante, incluindo no rol dos

direitos do Homem, além das liberdades políticas e civis, também os direitos sociais,

econômicos e culturais, ou seja, direitos à educação, à saúde, ao trabalho. A conjunção

desses direitos deu origem ao Estado de Bem-Estar Social.

Foi no período pós Segunda Guerra Mundial que a Declaração Universal dos

Direitos do Homem foi instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) em

1948, consagrando os direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais atribuídos

ao indivíduo numa normativa jurídica aceita por todos os países membros da ONU e

incorporadas em suas constituições nacionais. Consagrou-se, portanto, de modo

institucional a predominância da ideologia liberal acerca de direitos inatos do indivíduo.

Após o final da guerra, o século XX se caracterizou por questões de impacto

mundial, entre outras: pela insurgência dos povos das ex-colônias exigindo direitos

particulares; pela consciência do esgotamento dos recursos naturais; pela compreensão

da limitação da ciência; pela compreensão de que o capitalismo só aumentou as

desigualdades sociais; pelo avanço das tecnologias de comunicação que possibilitaram a

diminuição do espaço e do tempo.

Esse contexto trouxe novas demandas à ideologia dominante, fazendo com que

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novos valores fossem consagrados como direitos naturais do indivíduo, quais sejam, os

direitos coletivos e étnicos.

O fim da Segunda Guerra Mundial deu novo fôlego ao tema dos

direitos humanos, introduzido como relevante para o sistema

internacional. Além da reiteração da importância dos direitos de

primeira e de segunda geração, uma nova geração de direitos emerge

vinculada ao aspecto da diversidade. Comissões e órgãos do sistema

ONU são especialmente predispostos a isso. Surgem os chamados

direitos de terceira geração que, a exemplo das duas primeiras,

representam demandas daqueles que se sentem prejudicados. Essa

geração de direitos tem como titulares grupos de humanos, como a

família, o povo, a nação, coletividades regionais ou étnicas e a própria

humanidade (Lafer, 1990) (VIGEVANI, OLIVEIRA, LIMA, 2008, p.

33).

Vigevani, Oliveira e Lima (2008, p. 36), apontam que “na literatura sobre

direitos humanos, o Estado de direito e de bem-estar social são essenciais”. E continuam:

“A igualdade dos indivíduos perante a lei, o respeito às características de identidade de

cada pessoa e grupo de pessoas, a provisão pelo Estado de condições materiais que

permitam aos indivíduos exercer sua igualdade e diferença são fundamentais para os

direitos humanos”.

Entretanto, os ideais dos direitos humanos caem num paradoxo existente ao

modo de ser/estar em sociedade, a saber, o de que as relações sociais ocorrem entre

atores individuais que agem tendo como referência grupos sociais variados, cujos valores

e visões de mundo podem ser distintos, e, nesse sentido, a socialidade é composta por

conflitos e cooperações.

Foucault (2004) e Weber (2004), por exemplo, já apontaram que é inerente à

vida em sociedade a disputa política entre grupos sociais, que procuram impor seus

valores e visão de mundo sobre os demais, de modo que a sua ideologia seja absorvida

pelos demais grupos que passam a não questioná-la, considerando-a legítima. Esta

legitimidade é conquistada por um conjunto de saberes que justificam a dominação de

certos valores que passam a ser considerados próprios da sociedade como um todo, e não

mais pertencendo a algum grupo em particular.

É esta lógica da dominação legítima, a partir de um arcabouço de saberes,

que vemos crescer por intermédio do sentimento e da certeza de que o sistema

democrático de governo estaria melhor preparado para amparar os “direitos naturais” do

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indivíduo, por isso, no âmbito das relações internacionais, há uma crescente pressão para

que os Estados com outros regimes de governo se tornem democráticos, Estados de

Direito.

Essa perspectiva se baseia na ideologia de que o sistema democrático de direito

é o mais desenvolvido (para não dizer perfeito) recurso de ordenação das contendas

sociais construídas pelo homem. O fundamento reside em crer na existência de um

progresso social, e nesse sistema ontológico a sociedade Ocidental ocupa posição de

destaque.

O processo de dominação de valores construídos num determinado espaço

(Europa-Estados Unidos), consagrados sobre o título de direitos universais da

humanidade, traz consigo um processo de padronização moral que Santos (2002) definiu

por “localismo globalizado”. Tal padronização ocorre porque norte-americanos e países

europeus, os principais centros dessa visão liberal, detém o poder político, econômico,

militar e, principalmente, simbólico – podendo ser compreendida a partir do conceito de

hegemonia proposto por Gramsci.

Na prática, essa moralidade liberal nos incita a agir tendo em vista “o

politicamente correto”, ou seja, respeitando a diferença na sua diferença. Assim, às

mulheres, aos povos indígenas, aos quilombolas, aos homossexuais, por exemplo, são

permitidas certas garantias de direitos diferenciados para que os protejam de certas

injustiças sociais, entendidas como discriminação e preconceito.

Num contexto em que, por um lado, como responsável por garantir as condições

materiais e simbólicas para que todos os membros da sociedade – independentemente

do grupo social do qual fazem parte – possam gozar das benesses sociais, o Estado de

Direito institui um conjunto de instrumentos jurídicos e administrativos considerados

imparciais e legítimos; e, por outro, os operadores do direito – entendidos como sendo

os fazedores de leis, isto é, os legisladores; aqueles que executam as leis, como juízes,

advogados, delegados, policiais; e aqueles que vigiam as regras normativas, o que inclui

além de todos os anteriores, a mídia e a população como um todo –, compartilham de

uma moralidade dominante que afirma um modo de ser/estar neste mundo; a pergunta

que que interessa é: qual o espaço dado à diferença no âmbito de um saber que pressupõe

a defesa da diferença a partir de um padrão de visão de mundo?

Para tentar responder, acrescento mais uma ideia que norteia a argumentação,

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qual seja, a de que a normatividade social é perseguida e defendida pela sociedade a

partir do momento em que um conjunto de valores é tomado como dominante e legítimo.

3 PUREZA E PERIGO: QUANDO O DIFERENTE É ABSORVIDO SEM

PREJUÍZOS AO TODO

Para as Ciências Sociais, de modo geral, a vida em sociedade seria impossível

sem um sistema de comunicação que fosse inteligível aos membros de uma coletividade.

Algumas correntes, ainda, afirmam que o que diferencia a humanidade dos demais

animais é a capacidade e a realização da construção de um sistema complexo de

comunicação baseado em crenças compartilhadas sobre o que as coisas são, tal sistema

permitiria normatizar regras de pensamento e conduta, resultando na vida social. Em

outras palavras, fora da vida em sociedade, a humanidade não seria possível.

Salvo engano, foi da escola culturalista norte-americana da antropologia quem

disse que os homens não se alimentam somente de comida, mas também, e

principalmente, de símbolos. Essa argumentação representa que, além do contexto

material, há um aspecto da vida humana tão ou mais importante para a existência da

humanidade que é a cultura.

Weber (2004), um dos principais teóricos das Ciências Sociais, através de

sua reflexão sobre as comunidades étnicas, possibilitou o desenvolvimento de teorias

que afirmam que é a crença no compartilhar uma mesma história e uma mesma visão de

mundo que torna um conjunto de pessoas um grupo social. Cresceu, portanto, entre os

teóricos sociais, a certeza de que há pouco (eu diria: não há nada) de material que

leve as pessoas, à priori, a viverem em sociedade, pois, a força da coesão social estaria

na eficácia desse sistema de comunicação em gerar em cada pessoa a crença de que tudo

aquilo em que acredita e faz é o modo natural de ser e estar, assim o pertencimento a

uma coletividade passa pela crença na naturalização dos pensamentos e das práticas

sociais. Isto explica porque a maioria dos grupos se autodenomina humanos, em

contraposição aos demais, não humanos.

Como pontuado há pouco, a construção de uma visão de mundo resulta de

embates políticos entre os variados grupos que compõem uma coletividade. Os embates

políticos residem na imposição da visão de mundo do grupo, bem como na busca para

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ter o privilégio de acessar bens materiais e simbólicos disponíveis. Impondo sua visão

de mundo e fazendo com que os demais grupos a tomem como a visão de mundo o

coletivo como um todo, o acesso aos bens materiais e simbólicos estão mais facilmente

garantidos ao grupo dominante.

Alguns autores apontam que os principais grupos em conflito são a burguesia e

a classe trabalhadora, que são grupos antagônicos. Outros autores, por sua vez, destacam

que a esfera econômica gera grupos sociais com visão de mundo variadas, porém, não

são as únicas nem as principais visões de mundo existentes numa sociedade.

Marc Augé (1994) esclarece que a sociedade é composta por mundos que

são habitados por pessoas da sociedade que fazem parte de mais de um desses mundos.

Tomo a ideia de mundo social de Augé como tendo origem em todas as diferenciações

que uma sociedade pode realizar entre os seus membros ou não membros, pois, parto

da ideia de que a cultura compartilhada por um grupo é percebida de modo particular

a cada um dos grupos sociais que compõem o coletivo, do mesmo modo como cada

membro ou não membro tem acesso particular a aspectos da cultura – a concepção

distributivista e perspectivista da cultura proposta por Hannerz (1997). Nesse sentido,

estou relacionando diretamente grupo social, perspectiva de mundo e, consequentemente,

moralidade.

Esses mundos sociais são os vários núcleos de organização do social e possuem

e transmitem certos valores, principalmente, àqueles atores que dele fazem parte. Alguns

mundos sociais são, por exemplo, o mundo da política, da religião, da economia, da

cultura, do social, sendo que, percebidos como partes de um coletivo, cada um deles

pode ser percebido como orientador de moralidades particulares. Entretanto, cada um

compreende outros mundos sociais, como, por exemplo: no mundo da política há os

variados partidos ou ideologias políticas; no mundo da religião existem as várias religiões

e religiosidades; no mundo da economia existem variadas profissões, variados modos de

trabalho; no mundo do social existem divisões por famílias, gênero, idade, escolaridade.

Cada um desses mundos, portanto, proporciona moralidades particulares que

podem ser distintas ou semelhantes das moralidades compartilhadas em outros mundos

que compõem uma mesma sociedade. Apesar das moralidades serem particularizadas,

nenhuma fere a moralidade da sociedade como um todo, ou seja, existem inúmeras

formas possíveis de pensar ou fazer algo dentro do padrão estabelecido pelo grupo. O

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modo de cumprimento é um exemplo disso. Existem vários modos de se cumprimentar

uma pessoa no Brasil: entre os homens podemos usar um aperto de mãos ou abraço; entre

homens e mulheres ou entre mulheres podem ser vistos, um abraço, um ou mais beijos

no rosto ou aperto de mãos; isso sem mencionar palavras que devem prescritiva ou

normativamente ser proferidas. Entretanto, não veremos no Brasil alguém cumprimentar

outra pessoa se curvando levemente para frente ao estilo japonês, muito menos dois

homens se cumprimentando com um beijo no rosto como é costume em alguns países

árabes, ou mesmo dois homens encostando os narizes três vezes consecutivas ao estilo

maori mais tradicional.

Uma pessoa pode habitar os mesmos mundos que outras pessoas, ao

mesmo tempo em que fazem parte de mundos diferentes. Ao entrar em contato com os

mundos da sociedade, o ator social vai tendo contato com as moralidades compartilhadas

por cada um desses mundos, ou seja, com as moralidades possíveis na sociedade da qual

faz parte.

Nesse processo de acúmulo de moralidades, o ator vai se identificando com

certas moralidades, por razões variadas como: idade, gênero, sexo, etnia, profissão,

estado civil, escolaridade, capital cultural, afinidade, entre outros. Essas identificações

vão proporcionando ao ator social a construção de uma visão de mundo bricolada, tendo

origens, não raras vezes, em moralidades distintas, mas que ao nível individual não é

incongruente, ao menos até o momento em que é contraposto diante de um

acontecimento que lhe coloca num impasse de escolha. Ressalto que, tanto as

moralidades de cada mundo, como a moralidade individual não são aspectos prescritivos

das práticas sociais, mas apenas orientações normativas, aos moldes da teoria da

estruturação proposta por Giddens (1991).

Percebo a sociedade, portanto, como sendo resultado das interações sociais

realizadas por atores sociais que recebem orientações morais dos mundos sociais dos

quais fazem parte, num contexto em que as moralidades transmitidas e (re)produzidas

pelas relações sociais internamente a cada mundo podem ser, não só diferentes, mas

também distintas. Tais orientações morais são filtradas pelo ator que bricola ao nível

individual uma moralidade particular, tendo referência dos variados mundos com os quais

tem contato durante sua biografia.

Nesse complexo jogo de interações sociais, as pessoas constituem outros grupos

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sociais, que são transversais aos mundos sociais mais estruturais, baseados nas

identificações sociais, criando moralidades transversais que funcionam como

comunidades propriamente políticas. É no nível das comunidades propriamente

políticas dos mundos transversais que os embates políticos ocorrem com mais

propriedade e são mais importantes para a constituição da moralidade da sociedade como

um todo. Pois, é nesse nível que as moralidades individuais se aglutinam em prol de um

‘nós’ que deve ser defendido.

Os mundos transversais são onde as coisas acontecem1. Eles constituem as

fronteiras onde as moralidades dos mundos sociais, trazidas pelas pessoas, confrontam-

se para comporem, através de uma bricolagem, uma moralidade que deverá ser adotada

e defendida por todos os membros da sociedade. A heterogeneidade dessa moralidade

coletiva – pois nunca haverá homogeneidade moral dentro de uma sociedade, dadas as

características estruturais sociais aqui apontadas – não é impedimento para que todos os

membros da sociedade, a despeito de qual comunidade propriamente política ou grupo(s)

social(is) do qual faz parte, reconheçam-se e acreditem num ‘nós’ em contraposição aos

‘outros’.

Ressalto, ainda, que a moralidade da coletividade é constituída por uma dialética

sincrética (CANEVACCI, 1996) que ao bricolar moralidades diferentes e distintas,

produz novas possibilidades para novas moralidades, dentre as quais uma se torna a

representativa do grupo. É justamente nesse ponto que a legitimidade de uma moralidade

com base nos valores e visão de mundo de um grupo social dominante é alcançada, e

passa a ser (re)produzida por todos os membros. Ocorre que, a situação hegemônica não

é definitiva, pois, na medida em que são fictícias, as moralidades podem ser questionadas

por novas moralidades advindas dessa dialética sincrética.

A constituição de uma moralidade social, nesse sentido, não significa que os

conflitos cessarão, pois, os grupos sociais, por intermédio das comunidades propriamente

políticas, desprivilegiados irão tentar, aos poucos, confrontá-la, dando continuidade

infinita às contendas advindas do contexto em sociedade. Temos um contexto em que,

na medida em que todos os membros de uma sociedade reconhecem a existência de uma

moralidade particular compartilhada – o que os diferencia dos outros –, há práticas

1 Esta ideia é inspirada na teoria dos fluxos e contrafluxos culturais de Ulf Hannerz (1997).

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discursivas e efetivas (FOUCAULT, 2008) que procuram deslegitimar visões de mundo

de grupos sociais e/ou comunidades propriamente políticas que pretendem implementar

transformações na moralidade hegemônica haja vista a busca por prestígio simbólicos e

material.

As práticas discursivas e efetivas percebem toda e qualquer tentativa de

alteração dos valores como um atentado à pureza da sociedade, portanto, são perigos

(DOUGLAS, 1991) que devem ser evitados e protegidos por todos os membros da

sociedade. Nesse contexto, aquilo que representa o perigo deve ser domesticado para ser

incorporado no sistema moral, diminuindo ou neutralizando suas consequências

nefastas. Com o mundo globalizado em termos fluxos culturais, econômicos, sociais,

culturais, políticos e ambientais, as interações sociais tomam dimensões também globais.

Edward Said (2004), num estudo significativo acerca da visão que o Ocidente

possui sobre os povos e os pensamentos do Oriente, elaborou o conceito de

orientalismo para definir como a moralidade Ocidental enfrentou os perigos advindos das

visões de mundo originadas no oeste do globo e realizou uma outrificação do mundo

oriental. O processo de outrificação do Oriente e o seu sucesso, baseia-se num corpus de

saber que garante à ideologia do Ocidente um lugar confortável de exposição das

diversidades humanas, apontando de modo “racionalizado” as barbaridades ocorridas no

Oriente. As benesses também passam por processos de pasteurização antes de ser

incorporado, como, por exemplo, a incorporação de alimentos e modos de vida orientais

como partes da medicina preventiva que passa a explicar cientificamente as benesses

dessas práticas para a vida humana, como se os orientais as praticassem por instinto ou

coisa parecida.

De fato, a perspectiva do evolucionismo social implementada com propriedade

pelos Iluministas, mostra-se ainda vigorosa e norteadora das ideologias e práticas sociais

de origem Ocidental. É o discurso da ciência, percebida como o conhecimento mais

desenvolvido pelos humanos ao longo da história, que possibilita a ressemantização

racionalizada das ideologias e práticas sociais originadas além das fronteiras da

moralidade Ocidental. Veremos mais adiante como esse processo de domesticação ocorre

no tocante aos movimentos que defendem espaço social maior para grupos minoritários.

É buscando, também, (re)afirmar a certeza da sua visão de mundo que

países hegemônicos procuram estratégias de expansão de suas moralidades além de suas

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fronteiras territoriais. Dada a fragilidade dos discursos morais, entende-se, com efeito,

no nível do simbólico, as razões da busca incessante dos países que possuem hegemonia

da moralidade liberal em fazer com que os demais adotem sua perspectiva de mundo.

Penso que é aqui, no nível das moralidades, que podemos compreender a

dificuldade dos grupos considerados minorias em terem efetivados certos direitos

consagrados pela moral liberal.

4 ADMINISTRANDO O PERIGO

Na perspectiva trabalhada até aqui, procurarei apontar como alguns direitos já

garantidos pelo sistema jurídico brasileiro não são colocados em prática quando os

sujeitos dos direitos são os grupos minoritários. O argumento é o de que colocar esses

direitos em prática é contribuir para que impurezas comprometam a pureza da moralidade

compartilhada.

4.1 O CASO DOS POVOS INDÍGENAS E COMUNIDADES QUILOMBOLAS

Reúno povos indígenas e comunidades quilombolas por entender que a

questão que está na ordem do dia para ambos é o reconhecimento territorial. Trago, então,

exemplos que acompanhei de perto e que são evidências claras da administração dos

direitos.

Quando passei a acompanhar mais diretamente as lutas territoriais de indígenas

e quilombolas, um aspecto me chamou muita atenção: em muitos casos, em contextos

de disputas territoriais, nas etnografias2 há o reconhecimento por parte da população

regional de que o espaço geográfico reivindicado por indígenas ou quilombolas,

realmente, em quase todas as disputas, sempre foi local de moradia do grupo, portanto,

um território étnico. Entretanto, quando a disputa é levada ao foro jurídico3, o

2 Tanto dos laudos antropológicos, quanto dos relatórios técnico-científicos. 3 Tanto o processo de reconhecimento territorial indígena ou quilombola tem início com um processo

administrativo na FUNAI – Fundação Nacional do Índio – ou no INCRA – Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária –, respectivamente. No entanto, há instrumentos jurídicos que permitem

o questionamento dos trâmites e decisões administrativas na justiça, o que fatalmente ocorre nessas

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reconhecimento regional só será destacado nas etnografias dos laudos antropológicos

solicitados pelo juiz, porém, não basta para garantir o reconhecimento territorial, pois

outros artifícios são utilizados, como uma releitura dos artigos da Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988 que promove, principalmente, uma releitura do

termo “terras tradicionalmente ocupadas”, no caso indígena, enquanto que para o caso

quilombola a questão recai, sobretudo, acerca do próprio reconhecimento de comunidade

remanescente de quilombo, bem como, também sobre o da temporalidade de ocupação

na data da homologação da constituição.

Enfim, muitos instrumentos jurídicos, desde 1988, foram criados para impedir

que tais direitos fossem garantidos a esses grupos, mas o que interessa reter aqui é que,

embora tais direitos estejam amparados na ideologia da justiça social e individual

propagada pelos Direitos Humanos e implementada pela moralidade liberal, para se

conseguir os direitos territoriais garantidos, não raras vezes, indígenas e quilombolas

travam disputas que chegam a alcançar 30 anos.

Em muitos casos, há até amizade entre o grupo étnico e seus vizinhos, mas

quando a contenda ganha proporções legais, os não indígenas e não quilombolas se

mostram avessos às garantias constitucionais, por entenderem, sobretudo, que é “muita

terra pra pouco índio/quilombola”.

Pacheco de Oliveira (1998) aponta que a dificuldade em terem garantidos

seus direitos territoriais tem origem na esfera econômica, pois áreas definidas como

territórios étnicos deixariam de estar disponíveis ao capitalismo. Souza Lima (2005),

destaca o mesmo que Little (2002): que o Estado reluta em garantir territórios

específicos dentro do território nacional porque feriria a sua soberania enquanto poder

político-administrativo. Wagner (2011) segue a mesma linha, que territórios étnicos

trazem novidades à administração territorial hegemônica no Estado.

Acrescentemos outra perspectiva, cujas origens últimas estão no nível do

simbólico, da defesa de uma ideologia que indianiza ou quilomboliza os povos indígenas

e os quilombolas.

A questão econômica, ao meu ver, está num nível secundário se considerarmos

contendas. O processo administrativo se baseia nos relatórios técnico-científicos, os processos jurídicos

se baseiam nos laudos antropológicos.

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que o discurso se refere a uma moralidade de produção capitalista, e se tomarmos que a

organização da sociedade em Estado nação é uma moralidade possível dentro do mundo

da política. Portanto, ambos discursos apontam para um modo de ser e estar no mundo.

Nesta perspectiva, aos índios e aos quilombolas são atribuídas certas

características que não combinam com o modo econômico capitalista, ou seja, o modo

tradicional de gestão dos recursos naturais existentes ou inseridos no território é

desvalorizado pela ideologia dominante.

Meu argumento é o de que, ao reconhecer outros modos de ser e estar no mundo

– no caso, diretamente ligados ao mundo da economia e da política – o coletivo nacional

se depara com a fragilidade da moralidade compartilhada, e outras moralidades,

propostas por comunidades propriamente políticas, que estão à espreita para se tornarem

dominantes podem ganhar força. Assim, artifícios são criados para que casos como esses

sejam minoritários, haja vista o diálogo que a ideologia dominante precisa estabelecer

com outras ideologias, bem como e, principalmente, praticar a própria perspectiva liberal

dos direitos humanos por ela implementada.

Ao reconhecerem a existência de grupos etnicamente diferenciados dentro do

Estado nação – o que é premissa democrática dos direitos humanos –, comunidades

propriamente políticas, unidas em torno da moralidade dominante, por intermédio de

discursos e práticas fundamentadas num evolucionismo social pretensamente científico,

outrifica a diferença sociocultural existente e realiza ao nível da moral um processo de

purificação das características que podem ser nefastas à moralidade dominante.

Ganham destaque, não só, mas principalmente, argumentos do tipo: “eles já

estão aculturados e nem são índios/quilombolas mais”, “eles querem muita terra para

não trabalhar”, “somos todos brasileiros, por que eles têm privilégios?”, entre outros.

Todos, contudo, elaborados com uma perspectiva outrificada que não reconhece um

modo diferenciado de ser e estar no mundo, é impensável para essa ideologia reconhecer

que indígenas e quilombolas têm algo a ensinar.

4.2 O CASO DAS MULHERES

As mulheres parecem padecer da mesma exclusão. Seja no mundo do trabalho,

da família, do público, ocupa lugar secundário diante dos homens. Argumento, também,

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que o aspecto secundário decorre de um não reconhecimento dos pensamentos e práticas

originárias do mundo das mulheres.

Mesmo que os dados estatísticos apontem que as mulheres são maioria no

ensino superior e na pós-graduação, que já tivemos uma mulher na presidência da

República, ainda a moralidade dominante ressente em reconhecer a similaridade entre

homens e mulheres.

No mundo econômico, por exemplo, recebem salários menores, ocupam

cargos e funções menos valorizados e são-lhes proibidos ocupar certos espaços

produtivos. Ainda não encontrei nenhuma mulher ocupando espaço de destaque no plano

econômico ou político que não tenha que se apresentar com características reconhecidas

coletivamente como sendo dos homens: firmeza, racionalidade, seriedade, são alguns

deles.

Na família, são raras as mulheres que se impõem diante dos cônjuges, e quando

o fazem recebem críticas. Assim como devem, em público, portar-se de modo mais

restritivo que as limitações demandadas aos homens.

As diferenças sociais sempre irão existir, como é próprio da vida em sociedade,

mas o que gostaria de reter é que às mulheres não é dada escolha para que façam de

modo diferente do que são obrigadas a fazer e a pensar. É nesse sentido que a ideologia

dominante impõe certas limitações.

A Lei Maria da Penha, Lei n. 11.340, foi implementada em 07/08/2006. A

essência é a de que os molestadores das liberdades e vontades das mulheres no foro

doméstico deverão ser punidos de modo severo. Para o contexto brasileiro isso é um

avanço no sentido de defesa dos direitos humanos, haja vista que até quase no final do

século XX homens, que sentissem sua honra maculada por atos das mulheres com quem

eram casados, poderiam matar seus cônjuges em defesa da honra.

Um caso exemplar, mas não isolado, da fragilidade da não efetividade desta lei

foi o ocorrido em Campo Grande/MS. O ex-marido vinha fazendo ameaças à ex-esposa,

que já havia efetuado 3 boletins de ocorrências, porque ela estava namorando outro

rapaz. Um dia o ex-marido tentou matar a ex-esposa e só não conseguiu porque o

namorado dela o desarmou e o matou com a própria arma. A mulher estava indignada

porque fez os boletins de ocorrência, respeitando e confiando na legislação, mas poderia

a esta altura estar morta. Seria mais uma fatalidade noticiários policiais e mais um motivo

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para afirmar que a violência está insuportável.

De outro lado, há o que considero não menos importante, ou seja, um

movimento em prol da aplicação da mesma lei em prol de homens que sofrem, ao

inverso, violência de suas cônjuges. Para mim, essa atitude que já teve aplicação jurídica,

despolitiza toda a luta das mulheres e descontextualiza os conflitos de gênero homem-

mulher existentes no país.

Recentemente, vemos no Brasil uma série de mulheres prestes a dar à luz

que se deslocam até o hospital, mas os médicos ou enfermeiras lhes dão um

medicamento e mandam retornar para suas casas porque ainda não é o momento da

criança nascer. Em muitos desses casos ocorre a morte das crianças ou das mães. Há um

descaso com relação aos sentimentos e ao corpo da mulher. A coisa fica mais explícita

quando se relaciona classe econômica e raça.

O caso dos abortos previstos em lei (em casos de estupro, perigo para a

saúde da mulher, anencefalia) é outro ponto em que lei e operadores do direito não estão

afinados. Há muita resistência por parte dos médicos para realizarem o procedimento,

numa perspectiva de que é uma vida que está sendo ceifada. A vida, o corpo, os desejos

e a liberdade da mulher são desprezados em favor de um pensamento da sociedade.

Esses casos podem ser enquadrados a partir do conceito de feminicídio,

proposto por Segato (2006a), ou seja, uma violência por parte dos homens com relação

às mulheres pelo simples fato delas serem de um grupo diferente. Há um

desconhecimento da alteridade da mulher que é concebida como um sujeito para uso

e desfruto.

Podemos compreender esse fenômeno como sendo produto de relações sociais,

cuja moralidade predominante é aquela que estabelece um padrão superior de pessoa, a

saber: homem, branco, heterossexual, casado, com filhos (de preferência um casal), que

pratica a religião cristã (preferencialmente católica), com ensino superior completo, com

uma profissão valorizada, com salário alto, que possui bens. Nesse contexto, quanto

mais a pessoa se distancia do perfil, mais estereotipada e desvalorizada é a pessoa. A

hierarquização das diferenças acompanha o processo de gestão da diferença, em que as

particularidades sempre outrificadas a partir de um corpus discursivo que garante e

reafirma continuamente a prevalência de certa moralidade.

O exemplo das características da pessoa não é um devir, como as práticas

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sociais, pois a mulher e o homossexual, jamais serão homem e heterossexual, o negro e

o índio, jamais serão brancos. Entretanto, o exemplo nos mostra alguns devires sociais

exigidos pela ideologia dominante, qual seja, a de formação escolar, adquirir bens,

estabelecer-se profissionalmente, seguir uma religião.

4.3 O CASO DOS HOMOSSEXUAIS

Os homossexuais compartilham muitas das angústias das mulheres por estarem

diretamente relacionadas às questões de gênero.

Um ponto que eu gostaria de destacar, trata-se da união civil entre pessoas do

mesmo sexo. Apesar de ter se tornado lei, aqueles que desejam se unir civilmente

enfrentam barreiras dos operadores do direito. Logo após a lei entrar em vigor, houve

um caso na cidade de Goiânia em que um juiz anulou a união civil entre dois homens, e

outros tantos que enfrentaram resistência de cartórios para oficializarem a união. Os

argumentos, geralmente, utilizados para tais feitos têm origem na religião cristã, e a ideia

é a de que a bíblia condena tal prática social, e os operadores do direito se colocam como

alguém que se sente na liberdade de ‘não parte dessa baixaria’.

O fato é que uma normativa que prega a vida conjugal entre pessoas de

sexos diferentes busca formas para que as diferenças sejam incorporadas, mas com

certos limites. É a história de que aceitam homossexuais desde que esteja na casa do

vizinho.

Entretanto, muitos homossexuais estão galgando status econômicos e

profissionais valorizados, portanto ocupando espaços simbólicos importantes, o que

força a certas transformações morais. De outro lado, têm-se a ideologia liberal da defesa

da liberdade individual, o que permite que demandas variadas sejam defendidas no

contexto democrático. Nesse sentido é que o direcionamento, no âmbito das relações

sociais, não recai sobre o sujeito em si, mas sobre sua conduta explícita que fere a moral

das ‘pessoas de bem’. Portanto, o espaço aos homossexuais é permitido, desde que sua

visão de mundo e práticas sociais decorrentes dessa moralidade particular não venham

à tona em público, o que lhe custará sanções sociais morais. Essa estratégia permite que

o sistema democrático permita que tais demandas sejam atendidas parcialmente,

demonstrando-se que no nível da ‘racionalidade moral’ alcançamos um consenso que

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corresponda às expectativas das partes.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurei sistematizar um pensamento em torno das questões que estão na ordem

do dia para alguns grupos sociais minoritários na sociedade brasileira. Parti da

perspectiva de que compomos uma coletividade que (re)constrói continuamente uma

moralidade que nos representa diante dos outros e, fruto, de embates políticos das

comunidades propriamente políticas, a moralidade coletiva enfrenta ataques de outras

visões de mundo que procuram ser incluídas no complexo jogo de normatividade social.

A partir da hegemonia da moral liberal, que defende a liberdade individual e

propõe a democracia como sistema de decisão que melhor atende as demandas dos

grupos sociais que compõem uma sociedade, procurei demonstrar que certas

particularidades são incluídas após serem pasteurizadas e terem seus aspectos nefastos

minimizados ou neutralizados.

Nesse sentido, mulheres, negros, povos indígenas, comunidades quilombolas e

homossexuais compartilham o não reconhecimento pela sociedade nacional mais ampla

das suas, respectivas, alteridades. Assim, devido às suas particularidades, cada qual sofre

níveis e diferentes tipos de preconceitos, discriminações e exclusões nos campos político,

social, cultural, econômico e simbólico. Reside ai, o elo que aproxima as exclusões

enfrentadas cotidianamente por cada um desses grupos. O não reconhecimento da

alteridade dá espaço para o processo de outrificação do Outro, ou seja, a sociedade

nacional mais ampla dota cada um desses grupos sociais com certas características, o que

delineia o modo como são tratados, bem como dificulta (impede) que suas, respectivas,

moralidades sejam tomadas como possíveis, existentes e consideradas na construção das

relações sociais.

Partindo numa perspectiva de convivência sem distinções negativas, penso que

uma possibilidade de convivência plena das diferenças num contexto social passa pela

construção e absorção de uma ética de comportamento, mais ou menos como propõe

Segato (2006b) quando conceitualiza direitos humanos.

Segundo a autora, a ética do não conforto com o que está posto, estaria no nível

individualizado e seria inerente ao ser humano. Esse desconforto seria o que leva o sujeito

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a questionar a ordem vigente e a propor novidades. Nesse sentido, haveria uma busca

por reconhecer a alteridade do outro porque a sua própria moralidade é vista como

imperfeita, inacabada e no outro seria possível corrigir essas imperfeições.

A ética de comportamento, para mim, apresenta-se como um processo não

inerente ao ser humano, mas como resultado das próprias relações sociais que produzem

no sujeito uma busca incessante por novos modos de ser e estar no mundo. Com o

encurtamento do espaço e do tempo, as pessoas hoje têm contato com mundos variados,

muitos dos quais distintos do seu. Esse turbilhão de informações que chegam de várias

maneiras, pode gerar no coletivo um processo de recrudescimento da tradição (entendida

como aquilo que se repete ao longo do tempo, baseado numa crença do que é

tradicional), enquanto em outros cresce o sentimento de busca por absorver o diferente e

ressemantizá-lo, domesticá-lo, construindo novas formas de ser e estar no mundo.

Essa ética de comportamento que reconhece a alteridade é possível

coletivamente porque alguns povos já a possuem, e aplicam-na em suas relações com o

estrangeiro. Vide os povos indígenas do Brasil, que buscam ao seu modo sempre a

amizade, o conhecer o estrangeiro para saber como lidar com ele. Nesse processo de

reconhecimento, surgem novos modos de se realizar certas coisas, novas formas de se

pensar sobre as coisas que podem ser processos inconscientes. Os relatos históricos dos

encontros entre ameríndios e europeus são cheios de exemplos desse tipo.

Portanto, acredito que poderemos viver uma sociedade em que a diferença será

plena quando a moralidade dominante possuir uma base no reconhecimento da

alteridade, isto é, numa ética de comportamento que pressupõe que o outro sempre terá

algo a ensinar, ao passo em que sempre terá algo a aprender.

Infelizmente, parece que estamos longe dessa moralidade coletiva, mas estamos

bem próximos daqueles que podem nos apresentar o s c am i n h o s p a r a a l a n c a r

esta ideologia. Vale ressaltar que uma ética de comportamento não livra as relações

sociais dos conflitos morais, pois os grupos sociais continuarão existindo e procurando

se impor sobre os demais, embora com mais sabedoria em bricolar elementos oriundos

de vários mundos.

6 REFERÊNCIAS

AUGÉ, Marc. Por uma antropologia dos mundos contemporâneos. Rio de Janeiro:

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Bertrand Brasil, 1994.

CANEVACCI, Massimo. Sincretismos. São Paulo: Nobel, 1996.

DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. Lisboa: Edições 70, 1991.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.

GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

HANNERZ, Ulf. Fluxos, fronteiras e híbridos: palavras chave da antropologia

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PACHECO DE OLIVEIRA, João. “Terras indígenas, economia de mercado e

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Companhia das Letras, 2004.

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SEGATO, Rita. Que és um feminicidio?. Série Antropologia (401), 2006a.

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SOUZA LIMA, Antônio Carlos. “Os relatórios antropológicos de identificação de

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VIGEVANI, Tullo; OLIVEIRA, Marcelo; LIMA, Thiago. Diversidade étnica,

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