PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO OU O RISCO DE SEPULTAR O ...LISE... · Psicanálise e Educação ou O...
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PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO
OU
O RISCO DE SEPULTAR O DESENVOLVIMENTO MENTAL *
Alicia Beatr iz Dorado de L isondo
Esta é uma reflexão, a partir da psicanálise, sobre a experiência da autora como
professora em diferentes níveis de escolaridade, e a experiência clínica como
psicanalista de crianças, adolescentes e adultos. Os “problemas de aprendizagem”
revelam as falhas e/ou perturbações na construção da subjetividade. O
“desenvolvimento cognitivo” (Money-Kyrle, 1968) é uma conquista dessa continuidade
da existência do SER, como Winnicott prefere, a partir do encontro humano de uma
mãe, um pai e um bebê, encontro este reconhecido por todas as teorias psicanalíticas
como estruturante e fundante de um ser humano.
Trata-se de um trabalho dirigido a psicanalistas, uma ousadia da “psicanálise
extramuros” , termo cunhado por Laplanche, na educação.
A autora ainda supõe que o leitor esteja familiarizado com conceitos das
diferentes teorias psicanalíticas, especialmente as de Bion.
Que pode um psicanalista dialogar com um educador? É este o tema deste
trabalho:
A) A Educação Formal Alcança Seus Objetivos?
B) Que Significa Aprender a Pensar e Atuar à Luz da Psicanálise?
C) Além de Piaget e Freud
D) A Educação Mutilada. Uma Perspectiva Psicanalítica
E) Perspectivas
A) A EDUCAÇÃO FORMAL ALCANÇA SEUS OBJETIVOS?
Os princípios que fundamentam a educação têm as suas raízes em complexas
relações filosóficas, sociais, culturais, políticas, econômicas e históricas, e revelam a
concepção sobre o ideal do homem. Tais princípios se referem ao desenvolvimento
integral do ser humano para formar um ser capaz de pensar e de se socializar, afim de
alcançar uma consciência reflexiva e livre, que lhe permita um compromisso
responsável para atuar na transformação do mundo.
* Trabalho apresentado no III Congreso Latinoamericano de Psicoanálisis de Niños y Adolescentes. FEPAL. Cartagena, Colômbia, agosto de 1998.
Psicanálise e Educação ou O Risco de Sepultar o Desenvolvimento Mental
Alicia beatriz Dorado de Lisondo
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Entretanto, a educação, salvo raras exceções, é ainda fiel ao mito do reinado da
razão absoluta do século XVIII, escrava do cientificismo positivista e objetivista do
século XIX e, como enamorada de seu tempo, é fiel neste século XX a uma cultura pós-
moderna, era do vazio, do culto à imagem (Ahumada, 1997; Meyer, 1998), quando se
enquista a patologia cultural (Klimovisky, 1995). A revolução tecnológica invade, cuja
presença penetra em nome da modernidade sem uma reflexão crítica sobre seu uso e
função. A tecnologia é uma dimensão inegável da realidade. A questão é que sua única
presença não é garantia de uma ferramenta para o trabalho mental, assim como a
presença de uma cortadora automática de grama não assegura a beleza do jardim. O
jardineiro é quem pode re-presentar e então executar o jardim (Alves, 1998). A
educação não constrói o caminho ao andar, como disse o poeta, fundamentada em seus
princípios, em direção a seus objetivos. Estes fins, por definição, são inalcançáveis,
impalpáveis. O “O” , informe, infinito, inominável, da teoria de Bion.
O propósito desta comunicação é revelar que a educação não se sustenta nos
seus princípios, mas se desvia de seus objetivos. Perde-se cega nas emboscadas. Ela se
detém e dorme no tempo para despertar atormentada com os pesadelos dos alunos com
“problemas de aprendizagem”, os repetentes, os que são expulsos por problemas de
comportamento, a apatia dos adolescentes, as escolas para “excepcionais ou especiais” -
às vezes sepulcros de seres vivos -, os professores descontentes etc.
Sustento neste trabalho que as novas alternativas de pensamento e fé propostas
pela ciência contemporânea, as revoluções epistemológicas, são exiladas da prática da
educação, como diz Morais (1993): princípio de indeterminação, teoria quântica, teoria
da relatividade, o azar... A própria teoria psicogenética piagetiana, que explica a gênese
dos conhecimentos no construtivismo, muitas vezes é tão empobrecida que se desfigura.
A psicanálise, que deveria ser sua aliada, também sofre o exílio, como mostro nos
exemplos.
A educação, neste final de milênio, exorciza o inconsciente e a experiência
emocional, como se fossem espíritos malignos perigosos e perturbadores que ameaçam
o poder das ciências da educação. Entretanto, para Sor e Senet (1987), toda
aprendizagem se realiza em uma experiência emocional. A simplificação mutiladora do
ser humano não permite a mudança catastrófica necessária ao perceber a crise.
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B) QUE SIGNIFICA APRENDER A PENSAR E ATUAR À LUZ DA PSICANÁLISE?
Para a psicanálise, é no espaço vital do mundo interno onde se gera o
significado. O Ics. é muito mais algo vivo (Freud, 1915). A propriedade de ser ou não
consciente é a única luz na obscuridade da psicologia das profundidades e, em sua obra
póstuma, Freud (1940) declara que o ponto de partida para a indagação da estrutura do
aparato psíquico dá o eixo da consciência, eixo sem comparação que desafia todo
intento de explicitá-lo e descrevê-lo.
Desde o célebre Projeto, Freud (1895) estuda uma rica teoria cognitiva que Bion
continua com a teoria da aprendizagem e do pensamento. O ego é una organização, que
mais tarde será a instância metapsicológica, a qual exerce todas as funções da
aprendizagem:
A consciência como o órgão para a percepção das qualidades psíquicas.
A percepção - consciência. Depende da atenção. Ela indica a direção a ser tomada. Estes
processos perceptivos envolvem a consciência e produzem efeitos psíquicos depois de
se tornarem conscientes.
A atenção como a exploração periódica do mundo para o exame da realidade, em que
importam os indicadores de qualidade. A atenção rastreia, seleciona, organiza e põe em
marcha o aparato do pensamento para infundir significado à imagem. O objeto da
realização alucinatória do desejo se diferencia da percepção do objeto no mundo
externo. Real e imaginário, externo e interno, fora e dentro, constituem polaridades
dialéticas que permitem a construção do espaço no tempo. No modelo estrutural, a
segunda censura entre o Pcs. e o Cs. seleciona, mais que deforma, para evitar a aparição
de preocupações perturbadoras e favorecer o exercício da atenção. Esta atenção psíquica
enlaça estados afetivos e freqüenciais. Ela percorre o caminho até a percepção e dali até
o objeto sensível (Maldavsky, 1994).
A memória como um registro, um traço mnemônico enraizado nos movimentos do
próprio corpo do sujeito (Freud, 1895), ativado por facilitações, marca o aspecto
retrospectivo (Pribram; Gill, 1976). A motivação marca o aspecto prospectivo.
Capacidade de ser permanentemente modificado pelas experiências. Freud, com o
colapso da teoria da sedução, descobre que a memória, à diferença da lembrança, é
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dinâmica e re-construtiva, estando sujeita a todo tipo de deficiências, distorções,
incorporações e adições. (Meltzer, 1987).
O julgamento que discriminará a coisa, ingrediente constante, e o predicado, sua
atividade ou propriedade. Um complexo perceptivo é descomposto. Há um
discernimento. Uma comparação entre o objeto de percepção e a lembrança de um
objeto gratificante. Uma identidade de percepção. Uma identidade de pensamento.
A ação é conseqüência do pensamento. A alteração apropriada da realidade é ação
transcendente. (Freud, 1911). Esta ação pensada é essencialmente diferente da atuação
impulsiva quando se perde a cabeça, e a questão, como revela Bion, é a descarga, a
evacuação de elementos beta que não se podem metabolizar. “Não deu para segurar”
mentalmente provoca a explosão da emoção não transformada, em estado bruto, quando
a mente funciona como um músculo. Muitos dos mal chamados transtornos de conduta
se originam pelas falhas na estruturação, ou na desestruturação do aparato mental para
pensar os pensamentos, sonhar os sonhos e sentir os sentimentos.
A linguagem era para Freud inseparável do pensamento. Em seus trabalhos
metapsicológicos, o pensamento verbal, sediado na espessura do pré-consciente, a
representação de palavra, constitui a forma simbólica primária para a representação de
significados. Os desenvolvimentos da psicanálise contemporânea e da psicolingüística
(Castro, 1998) não deixam dúvidas de que a lalação e os jogos vocálicos são atividades
lúdicas que expressam relações emocionais. A mãe interpreta ao bebê na especularidade
simétrica e a complementaridade. A fala surge de uma relação intersubjetiva e o bebê
comunica complexas experiências emocionais. A gramática surge de uma alfabetização
emocional (Ferro,1995).
Pensar é procurar alterar a realidade de acordo com algumas finalidades. Não se
representava o que era agradável, mas o que era real, ainda que fosse desagradável
(Freud, 1911). É mérito do mestre a descoberta dos pensamentos inconscientes.
Freud ausculta, a partir da psicopatologia, a metapsicologia. A psicanálise nasce
ao privilegiar a singularidade do funcionamento tópico, dinâmico e econômico do
sujeito. O genial neurólogo se afasta do estudo das funções neurológicas, que a
psicologia empírica perpetua.
M. Klein (1930) revela porque Dick não aprende e assim nasce a psicanálise de
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crianças e adolescentes e também a de psicóticos. Dick era um menino aterrorizado por
seu sadismo, que inibia seu jogo e linguagem, bloqueava seu instinto epistemofílico por
medo de destruir o ventre materno – primeiro cenário onde se desdobram os interesses e
impulsos – cheios de mistérios. Ele paralisava, como defesa, sua vida de fantasia e a
formação de símbolos que se criavam a partir dos objetos primários, os corpos dos pais.
H. Segal (1955) nos mostra porque um paciente internado não podia tocar
violino publicamente. Para ele, o violino estava equacionado, era igual aos seus genitais,
não era a metáfora da potência amorosa orquestrada em música para penetrar os
corações vibrantes. Ele sabia música! Para esta autora (1992), pensar é estabelecer
relações, e o primeiro modelo de relação humana é o casal parental que dá origem à
vida. Bion (1953) mostra como o paciente pode atacar os órgãos dos sentidos, a
capacidade de pensamento verbal com um splitting sádico e cruel.
A “ contra-inteligência” (Luzuriaga, 1972) é a manifestação do instinto de morte
que age sem cessar no plano intelectual. Sua essência é a desconexão de vínculos
significativos. A inteligência é vida, união, conexão, e seu trabalho é a afirmação de
uma realidade. O paradoxo é que a criança deve possuir uma boa dose de inteligência
para conseguir não ser inteligente. O processo de auto-aniquilação intelectual funciona
como um mecanismo de defesa inconsciente. Na escola francesa, M. Mannoni (1982)
mostra com aterradoras evidências clínicas que a debilidade mental deve ser
compreendida como um hieróglifo, à semelhança do sonho. Nestes quadros os desejos
inconscientes dos pais modelam a deficiência. F. Guinard (1997, p. 32), nas suas
pesquisas multidisciplinares sobre deficiência mental endógena leve, escreve: “algumas
dessas crianças são bobas para não serem loucas” . Os pais e o educador percebem, às
vezes, o resultado do sujeito que não aprende, mas eles desconhecem o processo.
A desmentalização, mindlessness (Meltzer, 1975) implica o desmantelamento
do self nos componentes sensoriais devido à suspensão da função egóica da atenção.
Cada fragmento ou componente se reduz a um estado primitivo, dominado pelo Id na
sua economia e dinâmica, como Freud revela nos trabalhos metapsicológicos.
Os “eventos” , nas crianças autistas, ao invés das experiências, são descontínuos,
não aptos para ligarem-se, e inaptos para a lembrança. Os eventos são os restos do
desmantelamento. É o que fica da parede de tijolo derrubada por falta de cimento. Os
sentidos vagam, o self é desmantelado e o aparelho mental cai em pedaços. Este
mecanismo é passivo, à diferença da dissociação. A atenção mantém os sentidos unidos
em consensualidade para apreender os objetos com “sentido comum” em forma
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multifacetada.
O mesmo autor traz um precioso aporte ao fazer referência à dimensionalidade
como um parâmetro do funcionamento mental. A bidimensionalidade foi de alguma
forma abordada por Freud (1923) ao conceber o objeto como uma superfície. O ego é
uma superfície sensível que percebe as qualidades sensoriais do objeto. Neste mundo
não cabe a introjeção nem a memória, nem o pensamento, e o tempo é circular. “De ahí,
de ahí e de ahí” era a escrita que eu fazia de uma criança psicótica, que ditava em
sessão seu “texto” . Durante muito tempo usou os potes virados como superfícies
fazendo com que a água se espalhasse, debaixo da torneira aberta, já que não tinha um
objeto continente introjetado, nem espaço mental. “Dentro de”, não fazia ainda sentido
para ela. Não há existência separada do objeto.
Da superficialidade do mundo bidimensional se evolui até a tridimensionalidade,
que implica a consciência de orifícios no objeto e no self, agora continente de espaços
potenciais. O sentimento de ser contido adequadamente é uma condição para a
experiência da capacidade de contenção. O tempo começa a ter uma direcionalidade
própria. O objeto se diferencia do self. A profundidade aparece.
A. Alvarez (1996) mostra as dificuldades de um paciente que não podia
escrever, com 19 anos, conjunções sintáticas como o “e”, para estabelecer união, que
cria um vínculo mais estreito e próximo entre as palavras. A promessa do “e” era, para
ele, insuportável, um pesadelo, pelo déficit nos vínculos primários para internalizar uma
forma no tempo. É oportuno lembrar que, para Freud, a atemporalidade do sistema
inconsciente na formulação topográfica corresponde ao Id na teoria estrutural.
A relação da mãe presente e ausente, que se vai e volta, que gratifica e frustra
dosadamente, ensina o tempo no ritmo - “Era uma vez...” e o espaço em seu corpo
(Anzieu,1995). Também apresenta ao pai, o terceiro. A mãe, em seu papel de
espelhamento, permite a construção de um terceiro (Winnicott, 1967). Para este autor, o
bebê a cria, descobre e a destrói criativamente. Os “objetos transicionais” e “fenômenos
transicionais” (Winnicott,1951) designam a área intermediária de experiência entre o
erotismo oral e a verdadeira relação de objeto. Nesta área está a substância da ilusão, e
que na vida adulta é inerente à arte e à religião. Assim, as realidades interna e externa
chegam a se separar, após compartilharem deste território intermediário, ainda que
ambas precisem se manter inter-relacionadas. Este espaço permite que a representação
da metáfora paterna se encarne no papel de ” insofismável importância” como pajem
condutor do filho... à independência (Graña, 1998). O pensar, o fantasiar e a vida
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cultural se enraízam neste espaço potencial. O objeto transicional permite experimentar
a diferença e a similaridade. A mãe é mistério, como revela Leonardo na Gioconda,
também objeto estético (Meltzer,1995).
A escritura do psicótico é concreta, telegráfica; seu desenho pode ser a revelação
de objetos bizarros e não uma criação artística que exige o contato entre o processo
primário e o secundário. O pensamento do paciente psicossomático é operatório (Marty,
1995), isto é pobre, repetitivo, factual e atual. Uma atividade maquinal pobre em
representações.
As dificuldades na escrita não são só um problema pedagógico. A pontuação
exige a experiência da união e da separação em um vínculo articulado. A sintaxe exige a
capacidade de tolerar a espera e a suspensão, origem do subjuntivo, para escrever uma
prosa. A interpretação de um texto exige a capacidade de apreensão do significado, o
acesso ao pensamento simbólico. A narração reclama um sujeito intérprete, o EU
subjetivo e o OUTRO, pronomes separados, para que o verbo se conjugue em tempos,
em um texto simbólico e metafórico contextualizado. O primeiro verbo a ser conhecido
é o verbo SER. “Eu existo porque sou amado” . Justamente na depressão essencial,
(Marty, 1995), o descenso dos instintos de vida no nível das funções mentais apaga os
verbos.
Para Bion, o conhecimento psicológico precede o conhecimento do mundo
físico. A primeira forma de pensar se esforça para conhecer qualidades psíquicas e
resulta das experiências emocionais na íntima relação da mãe com o bebê. Esta relação
é decisiva e estruturante da capacidade para pensar. Pensar como falar não são
processos mentais abstratos, nem funções autônomas, automáticas do ego, nem
resultado da maturação, como entendem às vezes certas correntes organicistas,
pedagógicas e psicológicas. A repetição de um ano escolar, por exemplo, pode ser a
“repetição” potencializada dos transtornos do desenvolvimento, além de traumatizar o
aluno repetente, porque somente a passagem do tempo não é garantia de transformação
mental. Pensar e falar são processos e conquistas do desenvolvimento emocional, com
a criação de um aparato mental na constituição da intersubjetividade. Do Eu-pele ao
Eu-pensante (Anzieu, 1995). Pensar é a experiência de se conhecer a si mesmo e ao
outro em uma relação de alteridade humana (K), com alívio pela integração e também
com dor. O mal entendido (-K) é o despojamento da compreensão quando há uma
relação cruel, degenerativa, como por exemplo a relação tirânica do amo e do escravo,
em que a superioridade arrogante do amo humilha ao escravo até que ambos se
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despojem dialeticamente da dignidade da condição humana. A criatura humana transita
do ego de prazer momentâneo, evacuando o desprazer, para um ego realidade na
conquista de um prazer mais seguro, quando tem introjetada a função pensante.
Há conflito entre as partes primitivas – concretas, sensoriais, irracionais,
rudimentárias, a-simbólicas – da mente, sempre presentes, e a parte científica, capaz de
pensamento e simbolização. Estas fases não se superam em uma seqüência linear, de A
a B.
O acúmulo de conhecimentos em um modelo cartesiano é diferente do poder de
conhecer em um vínculo K com amor. Bion chama parte científica da personalidade
àquela capaz de ter contato com a realidade externa (eixos sensoriais) e interna (eixos
não sensoriais).
A questão que a psicanálise estabelece a partir de Bion é tomar consciência das
implicâncias da experiência emocional do vínculo K (Sor; Cortiñas, 1997). Como
ressalta Rezende, não basta que um aluno tenha conhecimentos sobre física nuclear.
Será este conhecimento usado em um vínculo de amor para pensar o combate ao câncer,
ou precisa-se dominar esta ciência em um vínculo de ódio, para fabricar a bomba
atômica? O filme “O Aprendiz” revela com eloqüência que o adolescente queria
aprender com o velho nazista as lições para ser um refinado psicopata. E quando não se
pensa na relação emocional do sujeito com o objeto de conhecimento, a educação
também não enterra seus fins junto com a vida emocional dos sujeitos - professor e
aluno? A educação corre o risco de se perder em um splitting forçado (Bion, 1962),
mecanismo que dissocia o animado e o inanimado na relação objetal. O emocional se
separa, se aparta do processo. Para sobreviver, estabelece-se uma relação inanimada ou
material entre um aluno e um professor coisificado. Responde-se, por exemplo, a um
questionário de múltipla escolha com uma cruz, que um scanner corrige
automaticamente. Onde está a relação entre o conhecer e o ser “O”, entre o professor e o
aluno? O traumático vestibular no Brasil é só mais um exemplo.
A onipotência substitui o pensar e a onisciência substitui o aprender com a
experiência em um ego desastrosamente confuso, não desenvolvido e frágil
(O’Shaughnessy, 1981). Onipotência, onisciência, arrogância e estupidez fazem parte
do conjunto de menos K. Este conjunto, para Sor y Senet (1987), é uma ativa obstrução
ao conhecimento, como aparece nos mitos da Torre de Babel, Éden ou na fábula dos
mentirosos.
O vínculo K significa também, além de tomar consciência das implicâncias da
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experiência emocional ao conhecer, o contato com o cone de sombra (Sor; Cortiñas,
1997). A capacidade negativa está diretamente ligada à expansão do pensamento. Em
outras palavras, Rezende (1998) nos coloca que a capacidade negativa, segundo
Derrida, é a própria capacidade de desconstruir do alto para baixo, o que na linguagem
de Bion corresponde a uma verdadeira mudança catastrófica.
Uma verdadeira “ teoria psicanalítica do pensamento se baseia no
reconhecimento do tremendo potencial criativo da capacidade negativa: um potencial
em aberto” . Para Rezende, conhecemos o conhecido, mas continuamos pensando no
desconhecido.
A experiência emocional do contato com o cone de sombra implica:
a) Tolerar a frustração, a não-coisa. A espera, “ todavia não” . A dúvida, “será?” ,
“como?” ;
b) Tolerar não saber, assentir à “magnífica ignorância” ;
c) Tolerar a brecha entre a pré-concepção - a expectativa - e a realização - o encontro;
d) Tolerar a evolução. Isto acarreta crise, transformação, novos desenvolvimentos;
e) Tolerar a relação finito-infinito. Aceder ao processo de humanização. O homem é
mortal, incompleto, limitado. Como o conhecer aumenta o campo do desconhecido, se
acede ao estranho sentimento de infinitude. “Somente sei quanto me falta saber” ;
f) Tolerar a relação entre a mente primitiva e a mente separada evolucionada.
Uma experiência com uma adolescente, na sala de aula, é fonte de reflexão sobre
o vértice deste trabalho:
Na sétima série, Maria, filha de imigrantes argentinos, elege a Argentina, com
seu grupo, para um trabalho escolar de geografia e história. A Internet entra como
recurso e folhas impressas são reunidas. Material visual, deslumbrante para
“ empapelar a classe” e fascinar com a imagem, ocupa o tempo. Filmes de vídeo não
podiam faltar no auge do mundo tecnológico. Nada se comenta sobre a escolha
significativa deste país, a origem dos pais. Enquanto a imagem a aprisiona (fotos,
filmes, vídeos, recortes etc.), ela lê e comenta secretamente a história de Evita. Como
ser mulher, como tampar a fragilidade psíquica, como conquistar um povo e um
homem, como não morrer pela fascinação do poder, pareciam ser as questões
relevantes. A investigação, o aprofundamento encontravam grandes barreiras no
grupo. “ Já estamos com 10 assegurado. É suficiente!”
“ É a nota o que importa? Não será esse 10 o brilho que mata a chance de vir a
aprender de verdade? Quais as questões? Que curiosidade pode estar sufocada sobre
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esta origem?”
No dia da apresentação, Maria alcança, eufórica, o 10, felicitada pelo excelente
trabalho de investigação. É importante que se continue com a vontade de conhecer e
saber sobre uma história. O 10 talvez seja o triunfo para tampar o que é tão difícil, tão
doloroso, tão angustiante. Ela é diferente dos pais. Há línguas, códigos culturais, terras
diferentes.
A questão que as professoras haviam proposto como tema, igual para toda a
classe, era: “ Se vocês fossem guias de turismo e se encontrassem em X, quais seriam os
lugares a visitar?” . A pobreza da questão proposta para adolescentes é preocupante
em uma escola inspirada no construtivismo piagetiano. Nesta perspectiva pedagógica,
toma-se conhecimento dos objetos a partir da inteligência sensoriomotora. Nas
operações formais aparece o pensamento científico dedutivo, abstrato e conceitual . A
ação é anterior à consciência da ação. A tomada de consciência acarreta a
interiorização de ações em representações semiotizadas (Lajonquiére, 1992) ou a
reconstrução conceitual da ação em um nível superior. Uma conceitualização que
implica a superação dos períodos anteriores: sensoriomotor e operatório. O
pensamento conceitual acaba por reunir dados múltiplos e sucessivos em estruturas de
conjunto. A tomada de consciência é transformadora e implica superações. Ela é
“ resultado do trabalho do pensamento” (Freitag-Rouanet, 1996). Para Piaget,
aprende-se e avança-se nas estruturas cognitivas ao desafiar, com um alimento
perturbador, ao sujeito que alcançou um certo nível de estruturação. Toma-se
consciência ante o mal-estar da desadaptação para buscar novos caminhos. O mundo
sensorial da imagem ofusca a consciência na procura de sentido e mais sentidos.
Se o construtivismo, palavra de honra, é assim desvirtuado neste exemplo
metafórico, a psicanálise é uma heresia desterrada. Se a construção da subjetividade, a
dimensão inconsciente da vida humana, e o pensamento à luz da psicanálise realmente
entrassem como uma revolução epistemológica na pedagogia, ao menos algumas
questões mudariam a proposta:
a) Quando se pensa em subjetividade, a singularidade do sujeito é destacada. Dar a
mesma proposta para todos é desconsiderar a história dos membros de cada grupo, é
padronizar e estandardizar. Argentina como objeto de conhecimento é, em psicanálise,
diferente para cada aluno, porque cada um tem com este país uma diferente relação
afetiva. Argentina não é a coisa em si, despojada da “ sujeira” ou do “ ruído” afetivo
que existe entre o Sujeito e o Objeto.
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b) Por que a fi lha de imigrantes argentinos elege o país de origem de seus pais? Quais
os sentidos conscientes e inconscientes que pulsam nesta escolha? Será que a Argentina
não está cravada na origem de sua vida como um mito? Será que não está nua em um
projeto identificatório entre duas culturas?
c) Pensar à luz da psicanálise é ter em conta a relação emocional com o objeto do
conhecimento. É também reconhecer no cone de sombra a capacidade negativa. É
desenvolver a humildade ante o saber que não se sabe. A solução não é mudar o país e
não respeitar sua significativa escolha. Justamente se se pensasse psicanaliticamente,
com um horizonte mais amplo e profundo, a questão seria dar voz ao terreno onde a
escolha se enraíza.
d) Estudar geografia é entrar em contato com a investigação do corpo materno e do
próprio corpo adolescente em profundas e perturbadoras transformações hormonais e
metafóricas ante um outro lugar no mundo. Na geografia e na história mental dos pais
argentinos, nasce sua própria história como sujeito que transcende seu ser epistêmico
na construção da subjetividade.
e) Se o adolescente precisa encontrar sentido para o mundo em que vive e re-significar
sua história à procura de ideais, a investigação histórica passada - presente, como
matriz geradora de sentido, lhe permitirá um pensamento crítico sobre o mundo. É
expandir o pensamento para além das fronteiras de um país e do presente imediato. Até
para Piaget nascem, com as operações formais, os sentimentos idealistas. Para ele, a
partir da perspectiva empírica, ao indivíduo e não ao sujeito, se lhe atribui um papel
social e objetivos na sociedade em que vive. A escola, ao não se dar conta da dimensão
inconsciente na construção da subjetividade e do que implica pensar, perdeu a preciosa
oportunidade de ajudar a sua aluna a mergulhar fundo em uma evolução
transformadora e transcendente sobre o lugar de origem de seus pais e sua própria
origem psíquica. A questão não é somente Argentina como um país sobre o qual se
podem colecionar dados de informação. Está em jogo o processo “ de dar-se conta ou
de ter consciência” (Sor; Senet, 1987) sobre questões maiores. Quando se separa a
experiência emocional, mutila-se a consciência.
“ Quais as questões que fariam pensar?”
Qual era o cenário histórico, social e político quando seus pais imigraram?
Qual a relação entre o holocausto e a chamada guerra suja na Argentina? Qual é o uso
que países como Argentina, Brasil, Nigéria podem fazer de uma Copa do Mundo? Que
questões enunciaria como duvidosas, misteriosas, paradoxais em sua investigação
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histórica e geográfica deste país?
Quando a educação valoriza o que não se sabe, a dúvida, a incógnita, o erro, as
questões?
O adolescente precisa trabalhar com a geografia como corpo vivo; a história
como re-significação da própria história em um processo de historicização na
conquista da própria identidade; e a busca do sentido significativo de sua existência,
para transcender a busca do sentido da existência humana na sua “ sábia loucura” ,
com as “ virtudes da incerteza” (Guignard, 1997).
C) ALÉM DE PIAGET E FREUD
Segundo Freitag-Rouanet (1996), não é possível integrar a Piaget e a Freud em
um modelo metateórico. Mesmo quando se reconhece que há temas em comum, é
preciso ter em conta que cada autor parte para sua aventura, com uma sustentação
epistemológica própria e diferente de outro autor.
Piaget pretendia ajustar e assimilar a psicanálise aos cânones de uma psicologia
experimental. Isto é impossível. O pensamento psicanalítico não se pode subordinar ao
pensamento de Piaget. O autor do construtivismo queria transformar em positividade os
esquemas afetivos e cognitivos, aqueles que para a psicanálise são aparato mental,
pulsão, inconsciente topográfico e dinâmico, sonho, lapsos, sintoma, conflito, Eros e
Thanatos, afeto... A originalidade da psicanálise instaura a revolução epistemológica, a
dimensão inconsciente do ser, a significação oculta.
O autor de Genebra considera a afetividade e a inteligência como aspectos
inseparáveis do mesmo desenvolvimento mental. Não são desenvolvimentos autônomos
ou paralelos. Entretanto, a psicogênese tem relações de parentesco com a ciência
empírica, com a experimentação, nas diferentes etapas do intercâmbio com o exterior;
assimilação, acomodação e equilíbrio.
A concepção dos estados do desenvolvimento é absolutamente diferente para a
psicologia genética e para a psicanálise. A primeira estabelece uma seqüência universal,
ordenada, linear, irreversível, determinista, mecanicista e racional, desde a inteligência
sensório-motora até as operações formais na inteligência verbal. As regressões não são
admitidas. Os esquemas de Piaget se conservam através da vida. Os esquemas de cada
estado têm uma consistência, coerência e duração específica. Eles são condição de
possibilidade para a passagem descontínua - depois de uma fase de desestruturação e
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crises - ao próximo nível de equilíbrio, hierarquicamente superior ao anterior. Cada
esquema é superado por outro esquema mais evoluído que dá conta das ações,
operações e interações como um processo de adaptação.
Freud foi pioneiro ao compreender a afetividade a partir de uma perspectiva
genética, passando por estados bem caracterizados (oral, anal, fálico etc.), ainda que
conceitualizando a regressão tópica, temporal, formal, em qualquer momento da vida.
Sincronia e diacronia se articulam. Em seu pensamento não cabe uma seqüência
estática. O sujeito se constitui em uma tensão dialética durante o processo de criação e
negação na interdependência do sujeito e objeto (Ogden T, 1992). M. Klein introduz o
conceito de posições esquizoparanóide (PS) e depressiva (D) que, ainda que se situem
em um tempo cronológico, não se restringem a ele, mas coexistem em relação dialética.
Elas são, para Ogden, formas de atribuir significado à experiência, sendo que cada
posição implica uma qualidade particular de ansiedade, formas de defesa e relação
objetal, tipo de simbolização e qualidade de subjetividade. Estas posições não são
etapas de amadurecimento a serem superadas, mas organizações psicológicas em
permanente oscilação, como enfatiza Bion.
Para a psicanálise, o desenvolvimento mental, a construção da subjetividade
exigem permanente trabalho mental. Nunca se alcança o troféu. O pensamento, para
Piaget, é diferente do pensamento para a psicanálise, que inclui a realidade psíquica,
como mostrei na parte anterior. Piaget faz uma intelectualização da afetividade. Tomar
consciência em sentido piagetiano é uma operação lógica que não leva em conta a
metapsicologia. Pensar em sentido psicanalítico é tomar consciência da realidade
psíquica. K caminha até O. Do conhecimento ao ser. Do conhecido ao desconhecido,
considerando que nunca o desconhecido será positivamente conhecido. Do
desconhecido para o pensamento, e deste para uma ação pensada, transformadora e
esperançosa.
O mundo concreto de Piaget, em sua psicologia genética, é diferente do mundo
concreto e primitivo da metapsicologia psicanalítica. O primeiro considera o concreto
como uma etapa da evolução do conhecimento em desenvolvimento que não leva em
conta a construção da subjetividade. Para Freud, por exemplo, a psicose surge como
polaridade econômica da destruição daquelas partes da mente com capacidade de
conhecer, onde impera o ego do prazer, afastado do princípio de realidade e da
capacidade de simbolização (1915). Penetramos da mão de Freud no núcleo sombrio do
mundo concreto como expressão patológica.
Psicanálise e Educação ou O Risco de Sepultar o Desenvolvimento Mental
Alicia beatriz Dorado de Lisondo
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A questão alarmante é que a educação pode empobrecer até Piaget, quando se
vale do modelo da associação bem sucedida entre o estímulo e a resposta dada,
suscetível de controle científico (Lajonquière, 1992) através da experimentação. Ao
intervir sobre os estímulos, se pretende controlar o comportamento. Com exercício e
reforço se tortura a subjetividade do ser que grita seu drama quando está aprisionado na
reabilitação e na exercitação, e/ou na repetição escolar. A tentação do cientificismo
positivista segue na prática, um simples behaviorismo reflexológico, no mais lato senso,
a Pavlov.
Será que a psicologia genética, mesmo quando o psicólogo tenha conhecimentos
de psicanálise, pode dar conta de uma criança autista? Ou de uma criança psicótica, com
a concretude de um mundo a-simbólico, diferente do pensamento concreto de Piaget?
Ou de um adolescente psicopata como o personagem do filme, mesmo quando opere
com a inteligência formal? A experiência mostra na sala de aula e no consultório que a
inteligência formal não é sinônimo nem garantia de desenvolvimento mental,
estruturação edípica e, portanto, “assimilação” da lei. Adolescentes e crianças que
realizam com êxito as experiências “do laboratório piagetiano” podem estar muito longe
de alcançar uma convivência social com respeito e consideração pelo Outro, na
alteridade humana, aceitando a incompletude, a finitude, a impotência da condição
humana, a castração na construção da subjetividade.
Mais além de Freud porque a psicanálise se desenvolveu a partir do mestre. A
psicanálise contemporânea se enriqueceu com os aportes do pensamento Kleiniano, de
Bion, de Winnicott, de Tustin, de Lacan e o pensamento francês que tem ampliado,
transformado, aberto novas perspectivas para a psicanálise.
Por sua vez, nem todos os problemas de aprendizagem são um sintoma neurótico
como certas teorias psicanalíticas ou pedagógicas pretendem. Assim se aprisiona, num
determinismo histórico, a questão do discurso, do desejo inconsciente dos pais.
Foi um grave erro cometido no passado não compreender a realidade
metapsicológica da criança autista ou da criança com déficit no desenvolvimento mental
(Houzel, 1997).
D) A EDUCAÇÃO MUTILADA: UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA
“A inicial desvalia do ser humano é a fonte primordial de todos os motivos morais”
(Freud, 1895).
Psicanálise e Educação ou O Risco de Sepultar o Desenvolvimento Mental
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a) Apresento a experiência de observação de um bebê, segundo o método Esther Bick,
de 4 m. e 25 dias, depois de 7 dias na creche. O gesto materno de buscar um refúgio
psíquico na instituição para se libertar do bebê nasce do próprio rechaço materno. A
instituição recebe o bebê depois de tramitações burocráticas.
F. é o segundo filho, não desejado, de um matrimônio muito perturbado
emocionalmente. Pai alcoólatra, ausente, e mãe borderline.
Em meu contato telefônico, a diretora não o reconhece por seu nome. Ele é um
número. “ Aqui há poucas pessoas. Seria importante se a Sra. pudesse passar algumas
horas e cuidar de algumas crianças. Tem que dar remédios. Cada um tem um horário.”
A responsável me diz o dia da visita. “ F. estranhou muito na primeira semana.
Agora já sabemos de seus caprichos! A questão é que parou, depois de arrebentar de
tanto chorar. Aqui nada se apega a nada. Nós mudamos sempre para que não se
acostumem. O berço está encostado na parede, para que não solicite quando a gente
passa!” . Vivo na contratransferência a angústia, a dor, a violência, a indignação.
Imagens do filme “ A lista de Schindler” me surpreendem.
F. está sozinho, com berços vazios a seu lado e a parede à sua frente. Como
observadora, me aproximo do berço. Existo. Ele me olha esquivo e me encontra. OHH!
FERNANDO! Está desperto, inquieto e desconfortável. Os braços estendidos, cerra
com força os punhos. Ele se olha. Segura com as mãos fortemente cerradas as pontas
da fralda estendida abaixo da cabeça. O barulho das outras salas é infernal. Gritos de
crianças e atendentes, choro, TV.
Esta creche é um depósito de seres vivos, e nele presencio o inferno de Dante.
Aceita-se a um bebê sem uma escuta analítica da mãe, em que pulse o inconsciente para
além do conteúdo manifesto. Aceita-se junto a fichas médicas, sem uma história afetiva
do bebê na sua família. Um bebê é desqualificado de sua condição humana quando não
é reconhecido por seu nome, berço de sua identidade e porta de entrada ao mundo
simbólico. É desatendido psiquicamente por uma enfermeira que muda todos os dias,
aborrecida do trabalho com 20 crianças entre 3 e 18 meses, muito aturdidos com a TV.
Evita-se de todas as formas o contato afetivo. Os turnos rotativos são justificados para
evitar o apego e a relação humana. F. tem uma parede fria à sua frente e dois berços
vazios a seu lado, quase sem acesso ao mundo humano. Não pode olhar, se espelhar,
reconhecer e ser reconhecido por um rosto humano. A pessoa humana é quase
inacessível. Seus gestos, em vez de compreendidos, caem no “vazio negro”, de uma
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função materna muito pior que a da mãe morta (Green, 1980). Aqui jaz a estruturação
de um ”objeto buraco” (Quinodoz, 1993) e do hospitalismo que pode levar até a morte
(Spitz, 1969). O silêncio mortal de quem desistiu, desesperançado, de pedir e lutar; a
mórbida passividade, já que gestos, súplicas e pranto não têm sentido quando não são
interpretados em seu valor expressivo por um Outro substituto da função materna. F.
começa a construir seu defensivo refúgio autístico. Com os punhos cerrados, se auto-
contém onipotentemente para sobreviver à dor, ao terror sem nome e ao desamparo.
Cria uma segunda pele (Bick,1968) para evitar a vivência do estado não-integrado e a
ansiedade catastrófica ao perder a experiência de continuidade entre a necessidade e a
satisfação da pulsão promotora do desejo e do sentido do encontro humano. A
aterradora descontinuidade e o vazio é o que a instituição promove (Houzel, 1997).
A mãe o retira da creche depois de uma internação por diarréia e desidratação.
F., aos 18 m., sofre uma convulsão. Creio que sua cabeça explode ante o que não pode
assimilar, conter, compreender. Com 8 anos, já repetiu 3 vezes a pré-escola, por falta de
atenção, compreensão, falta de vocabulário, pobreza nos desenhos, falta de coordenação
motora, falta de discriminação de formas. É este o informe escolar. A função faz ao
órgão. Um menino não desejado, sem rosto em quem se espelhar, sem ser interpretado
nem estimulado a fazer suas graças, jogos, balbucios, relações, descobertas, explorações
para um Outro... morre psiquicamente.
A professora faz uma rica descrição de F., só que as funções necessárias para
aprender são para ela funções do cérebro e não de uma mente. Então, a neurologia
organicista entra em cena. A pedagogia é desafiada, exercícios a repetir! A psicanálise
não tem espaço.
b) “Para que nasci?” , Felipe grita em uma sessão.
F. inicia sua análise com 11 anos de idade. Seus pais se casam por seu embaraço
inesperado. O casamento sempre atravessou sérias crises numa relação sadomasoquista
entre seus pais. Ele escrevia SOCORRO na agenda de ambos os pais. Aos 7 anos,
mudaram-no para uma escola muito exigente. Na primeira instituição se sentava no
fundo da classe, isolado. Quando tentava se relacionar, brigava. Não conseguia
acompanhar sua segunda escola em geometria, desenho, matemática e português. Os
deveres eram um martírio para todos. Os pais reforçam a exigência escolar, já que o
teste de Wisc, administrado na escola, mostra inteligência superior. Interpretam-no
como preguiçoso e malcriado. Ele só escrevia em letra de forma e não conseguia
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amarrar seu tênis. Sofre de astigmatismo e hipermetropia, além de rinite alérgica.
F. não suportava perder jogo algum. A convivência familiar era um inferno com
os pais e a irmã menor. Idéias megalomaníacas pareciam ser sua salvação, como
construir uma nação em uma ilha, projeto para o qual economizava todo seu dinheiro.
Os jogos de computador eram seu refúgio, se recusava a praticar esportes e não tinha
vida social. Sua ansiedade era tal que urinava até 15 vezes por noite.
Com os pais analiso, durante a avaliação psicanalítica, antes de iniciar o
tratamento, o teste de Wisc, que eles espontaneamente trazem da escola, junto com uma
tarefa escolar. Advirto sobre os riscos de tecer hipóteses sobre um protocolo fora de
contexto. Também revelo que precisam me mostrar um filho inteligente, ante a dor, a
angústia e as dificuldades ao se defrontarem com um filho com sérias perturbações
emocionais e motoras.
É útil para o tema deste trabalho mostrar o uso equivocado que se pode fazer de
um teste. Seu QI é de 117. Mas ele consegue 129 na parte verbal e 101 em execução.
Em informação alcança 19 pontos sobre 20. Ao armar objetos, 5 sobre 20, que
corresponde a 5 anos e 10 meses de idade mental. Este exemplo é suficiente para
mostrar como, frente ao fascínio do cientificismo positivista, não se aprofunda o
sentido, mesmo que reduzido, nem se interpreta detalhadamente o instrumento que se
usa na psicologia. Para que serviu este teste? É plausível pensar que ele não pode
escrever com letra cursiva, nem aprender geometria, porque não tem a coordenação
visomotora suficiente pela imaturidade, a impulsividade, a angústia psicótica, a falta de
atenção, para poder fazer uma boa discriminação e síntese harmônica e modulada do
movimento entre formas no espaço. A mão dança sobre o papel na redonda letra
cursiva, ao invés dos movimentos rígidos e angulosos da impulsiva letra de imprensa.
Os pais, ao tomarem consciência da realidade psíquica do fi lho, decidem mudá-
lo para uma terceira escola, de exigência menor. Aceitam iniciar o tratamento
psicanalítico 3 vezes por semana e o tratamento pedagógico, depois do encaminhamento
a um neuropediatra. O exame neurológico evolutivo se encontra defasado em 5 anos. O
informe neurológico acusa instabilidade neuropsicomotora, associada a densa
dispersividade, disgrafia importante e crises de ansiedade.
F. se expressa verbalmente de forma comovente, com uma vasta cultura que usa
para me deslumbrar e mostrar sua superioridade arrogante. É uma criança atormentada
em seu mundo persecutório, que sofre depressão primária. Ele apela para a onipotência
e onisciência para poder compensar sua fragilidade e o pavor ante o desmoronamento
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psicótico. Aos 3 meses sai da terceira escola narcisicamente ferido. A convivência é
insuportável. Ele se sente humilhado ao estar em uma escola de menor status
educacional, onde seus conhecimentos de história e geografia não são elogiados. Na
anterior, sua cultura era um baluarte defensivo que escamoteava suas deficiências. Ele
não podia conviver com seus pares. Conta-me em sessão que, ao ser perguntado sobre o
descobrimento do Brasil pela classe, sentou em círculo, com a platéia ao seu redor, em
um recreio, e começou com o que, em sessão, havíamos chamado seu “show” . Depois
de discursar durante todo o recreio, ironicamente o derrubaram do pedestal narcísico
(Chasseguet-Smirgel, 1991) quando lhe disseram “o cobertor descobriu o Brasil” . Foi
seu último dia nesta escola. É transferido a uma quarta instituição, “uma escola para
loucos”. Compartilha sua série com sua prima, primeira aluna da classe.
Depois de 3 anos e meio de análise, F. será novamente transferido à segunda
exigente escola que muito o assusta.
Foram necessários 3 anos e 6 meses em análise para que F. pudesse ter o
primeiro sonho que divide comigo na sessão:
“ Sou um mendigo que está na rua pedindo esmola. Minha prima é a rainha que vive
em um palácio. Quando atende à porta, não me convida a entrar. Me manda comida” .
Associa. “ É uma humilhação não ser o melhor da classe. Apenas em história tenho a
nota máxima..... Carmem não gosta de mim. Creio que já se cansou de me escutar falar
sobre o socialismo. Eu não vou me casar. Sou horrível e doente. Quem vai gostar de
mim? Serei seminarista.”
Meu consultório é em minha casa, um palácio ante seus olhos. F. revela no
sonho seu verdadeiro self. O pobre mendigo à procura de amor, errante em um mundo
sem continência, sem um firme ego, sem objeto bom estruturante, humilhado em sua
condição humana e dignidade, mesmo quando é alimentado psiquicamente por sua
analista, a prima, se sente expulso do palácio, do coração, do corpo da analista com
tesouros e mistérios. As férias anunciadas se aproximam. Ele precisa entrar no espaço
íntimo e privado do palácio - o corpo da analista - como único rei no auge do poder e
saber absoluto para poder SER alguém. Seu narcísico ideal de ego cai de rei a mendigo.
Ele entra em contato com a vivência de impotência e a consciência dolorosa de seu
estado mental. Não pode conquistar com a verdadeira potência seu primeiro amor,
Carmem, a analista em sessão que o abandona. Sente-se depreciado ao se sentir fora do
poder de decisão, do trono. Ele é o ser diminuído porque não foi legitimado pelo desejo
dos pais. Usa arrogantemente seus conhecimentos de história. Ser religioso é o refúgio
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para coroar defensivamente o celibato, e evitar o contato com a assustadora sexualidade
genital anunciada em seu corpo púbere. Horrível é ainda seu mundo mental. Para ele, o
modelo de relação humana é a tirania, o domínio, a perversidade sadomasoquista. Uma
mulher aparece no sonho oferecendo a maldita esmola humilhante, o carimbo de
mendigo. Com sua voracidade ele se decepciona, porque em sua lógica inconsciente ele
quer muito mais e não pode dar valor e receber a bondade do gesto, o alimento bendito.
Creio que seja importante acentuar que ele aspira a um lugar de justiça e dignidade- o
socialismo que nivela as diferenças - ante as privações sofridas. Ele quer ter direito a
poder ser um ser humano, para tanto é preciso trabalhar com sua perigosa voracidade
que perpetua a fome existencial, a inveja, a arrogância, o splitting entre a potência
racional - a cabeça nobre - e a potência genital - o pênis degenerado.
Em quatro escolas particulares, F. não foi percebido. O resultado de um teste de
rotina é usado para mascarar o verdadeiro estado emocional de um aluno que suplica
por socorro. Faz-se vista grossa ante a disgrafia, a desorganização espacial, a falta de
coordenação motora, a impossibilidade de escrever com letra cursiva. A ansiedade
psicótica explodia no papel. Interpreta-se a falta de participação nos esportes coletivos
como se se tratasse de opções, preferências, gostos. A equipe pedagógica não se dava
conta de seu isolamento defensivo diante da incapacidade de se relacionar
emocionalmente com os pares, da incapacidade de poder disputar humanamente com os
rivais, dada sua fragilidade, da impossibilidade de viver a experiência da derrota ao não
suportar frustração alguma. Ele não aceitava norma alguma porque era o rei. Ele não
podia jogar o perigoso jogo da vida!
Seu arrogante despotismo tirânico, no uso de seu enciclopedismo indigesto
através da intelectualização, não foi observado como una questão psíquica alarmante,
para além da nota. Ele ia muito mal em sua história de vida! Os pais pedem ajuda ao
perceber nas próprias terapias o estado emocional do filho. Não é a escola a detectar as
perturbações emocionais. F. exige uma abordagem multidisciplinar.
E) PERSPECTIVAS:
1) Para Ogden (1992), não vivemos a um tempo duas vidas, consciente e
inconsciente, senão uma única vida no interjogo dos aspectos conscientes e dos
(dinamicamente) inconscientes da experiência. Não aceitar a dimensão inconsciente e
consciente da mente humana é perpetuar a cegueira ao invés de perceber os problemas
Psicanálise e Educação ou O Risco de Sepultar o Desenvolvimento Mental
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de visão que estreitam a perspectiva e obscurecem o horizonte. O vértice psicanalítico
na educação pode permitir repensar e provocar mudanças fundamentais nas ciências da
educação, pedagogia, psicologia escolar, didática, filosofia da educação, metodologia.
O sistema educativo pode ser reformulado, à luz da psicanálise, em seus
fundamentos.
2) É evidente que o processo educativo não é o único responsável diante do
deterioro mental. A complexidade do psiquismo humano não se pode estrangular em
um modelo causal simplista e determinista. Mas a educação não se pode evadir de seu
compromisso e responsabilidade para promover o desenvolvimento mental. Observe-se
o exemplo de F.
3) A função do educador é fundamental para construir a subjetividade humana. Ele
precisa SER UM SUJEITO PENSANTE COM UMA IDENTIDADE ESTRUTURADA
para poder alfabetizar emocionalmente aos bebês e crianças pequenas, para ser um
modelo de identificação para os adolescentes e jovens. A sensibil idade é uma condição
necessária, mas não suficiente. A sensibilidade precisa fazer o caminho até a palavra
simbólica e o pensamento que permita ensinar e formar no contato com a realidade.
4) Se o professor é um agente de saúde mental, como dizia Bleger, precisaria de um
influxo analítico como assinala Freud. Somente ao se perceber a si mesmo em uma
consciência que se amplia, o educador será capaz de perceber nos alunos o mundo
mental. A detecção precoce dos transtornos emocionais é de fundamental importância
para o ser em formação. E justamente porque uma boa observação depende do “olho”
do observador.
5) Corre-se o terrível risco que o destino dos seres em formação, vítimas do atual
sistema, seja o autismo, a psicose, a deficiência mental, a enfermidade psicossomática, a
psicopatia, os problemas de aprendizagem, os transtornos de conduta, a perversão, a
adição, a delinqüência, o suicídio, a adolescência abortada ou tardia etc. (Carvajal,
1998). Alertar sobre o desastre, quando “os signos de alerta” (Houzel, 1997) não são
percebidos na educação e a deterioração mental se cristaliza, é um dos sentidos desta
comunicação. É o compromisso da ciência com a ética (Klimovsky; Dupetit; Zysman,
1992). Para tanto, um psicanalista com formação em crianças e adolescentes, num
trabalho interdisciplinar, deveria ter seu lugar reconhecido na creche, na escola, na
universidade.
6) Advertir sobre o perigo de uma “psicanálise silvestre” (Freud, 1910) na
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educação é outro dos sentidos desta comunicação. Surgiu em moda a liberalidade como
proposta educativa, com máscara de vanguarda. A questão é a oposição à repressão que
se entende na acepção comum. Desconhece-se a metapsicologia da repressão na origem
da constituição do inconsciente e na psicologia normal. Em uma abordagem simplista,
causal e linear, na tentativa de se prevenir a neurose - como se isto fosse possível -,
propicia-se a psicose, a psicopatia, a confusão. A liberdade, a bondade e a tolerância,
afirma Winnicott (1946), são tão nocivas para o desenvolvimento mental como a
rigidez. Há aqui uma perigosa migração de conceitos entre diferentes disciplinas onde
se dilui a especificidade dos conceitos no seu contexto (Fédida, 1998).
Para derrubar um modelo autoritário na relação professor-aluno (Carvajal,
1998), com o qual também não concordo, gera-se a desordem, o caos e a confusão, ao
negar o lugar de autoridade do professor, lugar assimétrico e diferente, como outro
significante da função paterna. A elaboração da situação edípica exige apreender a
relação de alteridade, a passagem geracional, e a diferença sexual ao instaurar a lei e
permitir a socialização no processo civilizatório como o mestre ensina.
A educação sexual também é aplanada quando desarraigada da vida pulsional e
afetiva. A prevenção da gravidez e da Aids na adolescência, por exemplo, se reduz a
uma questão mecânica e/ou intelectual do uso de preservativos. A significação dos
gestos é abortada.
Assim acredito que a participação do psicanalista em grupos operativos de
trabalho, e como consultor da equipe pedagógica ante as inquietações, seja de
fundamental importância. Exemplo: na 8a. série, anonimamente, um aluno coloca fogo
na classe. A escola procura o culpado. A classe se une e conjuntamente assume o
acontecido, sendo suspensa então na sua totalidade. A solidariedade grupal é condenada.
Se um psicanalista houvesse sido chamado a pensar com a equipe pedagógica, outros
caminhos seriam possíveis. Qual é o sentido do grupo, e do fogo na adolescência? Que
implica a expulsão? etc. etc.
7) Sempre é oportuno alertar que a clínica psicanalítica exige, além do
conhecimento teórico da psicanálise, uma estrutura de caráter, psicanálise pessoal e
uma experiência clínica dialogada com um Outro, para pensar a técnica (teckné). A
psicanálise, como ciência, se diferencia das ciências humanas ao trabalhar, num
processo transferencial e contratransferencial, com a dimensão consciente e
inconsciente do ser, em um setting específico. A instituição escolar pode oferecer
terapia psicanalítica, desde que se tenha uma clara consciência do lugar da equipe
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pedagógica e do terapeuta, sem confusão entre papéis e funções.
8) Está longe do espírito deste paper propor somente a abordagem clínica
psicanalítica de “crianças e adolescentes problema” . Certas mudanças aparentes na
educação estão condenadas ao fracasso porque, sem pensar nos fins e sem paciência
histórica, são sepultadas no túmulo do pragmatismo. Na realidade, o psicólogo escolar
hoje fica encarcerado em sua sala para fazer os psicodiagnósticos daqueles alunos
problema.
E quais são os alunos problema? Aqueles com transtornos na aprendizagem
e/ou no comportamento, que incomodam ao sistema. Os que não incomodam não são
percebidos, mas podem sofrer sérias perturbações no desenvolvimento emocional, como
F. existe a tendência a se livrar da criança objetável, seja por expulsão ou afastando-a
mediante uma pressão indireta (Winnicott, 1946). Não é o psicanalista especializado em
crianças e adolescentes o profissional que pode questionar o sistema sobre quem é um
aluno problema e o que a educação pode fazer por ele. É necessário também apontar o
caminho quando a problemática excede a especificidade de seu campo.
9) E que psicodiagnóstico se faz na educação geralmente? Medir, tabelar,
demostrar são as palavras de ordem. Um ser humano pode ser etiquetado pelo resultado
numérico de um teste como o Wisc, usado pela psicologia para medir faculdades
mentais na inteligência, empobrecido, sem uma interpretação qualitativa. O furor do
positivismo psicológico pretende dissecar o ser em faculdades e atitudes até para
determinar a “orientação vocacional” . A ordem do biológico é também convocada ao
conclave para encontrar a bendita causa e a resposta, quando uma criança não aprende
e/ou não se comporta. O psíquico é entendido como derivação do biológico. O resultado
da desordem anatômica e/ou funcional, quando existe, é usado, nesta filosofia da
ciência, como uma lápide mortuária onde se inscreve o assassinato do sujeito psíquico
que aprende e do que não pode aprender. Exames genéticos, neurológicos, metabólicos,
fonoaudiológicos, psiquiátricos, mesmo quando necessários, são às vezes usados como
pesados fardos, que tudo pretendem explicar, ainda quando desafiados na banal
“normalidade” , quando não se preconiza a salvadora chave da lógica de maturação do
organismo ou a psicologia evolutiva ou do desenvolvimento. “O tempo resolverá!” .
Aqui se aposta em um processo predeterminado de maturação intelectual, afetiva ou
neurológica a se desenvolver naturalmente. Justamente ao não compreender as
perturbações emocionais como um câncer psíquico, em que há uma urgência ante o
deterioro e o sofrimento humano, espera-se a mágica solução enquanto se posterga a
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necessária intervenção psicanalítica. O tempo é ouro para uma oportuna avaliação
psicanalítica (Lisondo, 1997) e um projeto terapêutico. Cada ciência tem seus próprios
pilares de sustentação epistemológica (Camargo; Lisondo, 1995) e uma não pode
suplantar a outra, nem se erguer como dona do caso sem delimitar seu campo de
possibilidades e limitações em um enfoque multidisciplinar.
10) A escola pode entrar em conluio, “Você não faz a tarefa, mas me deixa dar
aula”; negar, “é um problema da idade” ou condenar, “você está expulso” , fazendo uma
analogia com o que Symington (1980) encontra na relação do analista com os pacientes
psicopatas. É preciso alertar que nenhuma das três posturas são ajudas verdadeiras.
O termo utopia deriva da expressão grega ou topos, que significa o que ainda
não teve lugar. Utopia é o termo que se abre para o redimensionamento futuro com
esperança (Moraes, 1993) ante o desejo de transformação como apelo ético.
Segundo as palavras de Eizirik (1998), nossa chave (a psicanálise) já foi usada
para abrir muitas portas, mas há mil outras esperando por nós. A educação é uma das
portas a ser aberta com humildade. Encontrar uma maneira é nosso desafio.
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