Psf Em Volta Redonda

download Psf Em Volta Redonda

of 147

Transcript of Psf Em Volta Redonda

MINISTRIO DA SADE FUNDAO OSWALDO CRUZ ESCOLA NACIONAL DE SADE PBLICA SUBREA: Planejamento e Gesto de Sistemas e Servios de Sade Mestrando: Jos Manuel Monteiro dAguiar Orientadora principal: Prof. Maria Alcia Dominguez Ug Segunda orientadora: Prof. Maria Helena Machado

DISSERTAO DE MESTRADO

O Programa Sade da Famlia no Brasil. A resolutividade do PSF no municpio de Volta Redonda (RJ)

ENSP/FIOCRUZ Rio de Janeiro, maro/2001

Jos Manuel Monteiro dAguiar

O Programa Sade da Famlia no Brasil. A Resolutividade do PSF no municpio de Volta Redonda (RJ).

ENSP/FIOCRUZ Rio de Janeiro, maro/2001

2

O Programa Sade da Famlia no Brasil. A Resolutividade do PSF no municpio de Volta Redonda (RJ)

Jos Manuel Monteiro dAguiar

Orientadora principal: Prof. Maria Alcia Dominguez Ug Segunda orientadora: Prof. Maria Helena Machado

Dissertao apresentada no curso de mestrado em Sade Pblica da Escola Nacional de Sade Pblica como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Cincias na rea de Sade Pblica

ENSP/FIOCRUZ Rio de Janeiro, maro de 2001

3

A Fil de Lola, minha esposa Lara e Mrio, meus filhos pela pacincia, carinho e apoio demonstrados ao longo dos trs anos que levou a elaborao deste trabalho A Marina Lpi, me querida minha inspiradora e guia

4

Agradecimentos

Agradeo ao povo de Cabo Verde que, apesar dos tempos difceis, consentiu o sacrifcio para me proporcionar esta formao s minhas orientadoras Prof. Maria Alcia Domnguez Ug e Prof. Maria Helena Machado que no pouparam esforos para que o meu sonho se tornasse realidade A Prof. Eliana Labra, carinhosa e sempre disponvel para ajudar nos momentos de dvida e angstia s autoridades municipais de Sade e todos os integrantes das equipes do Programa Sade da Famlia de Volta Redonda (RJ), verdadeiros co-autores deste trabalho Aos prof. Ana Lusa Viana, Francisco Javier Uribe Rivera, Lgia Bahia e Maria Helena Mendona que aceitaram prontamente compor a banca examinadora Escola Nacional de Sade Pblica e todo o seu colegiado pela oportunidade que me deram A todos os colegas que facilitaram a minha integrao no curso Aos muitos amigos brasileiros com destaque para Maria Jos Lins e Cesar Edney Martins que me proporcionaram conhecer um pouco este maravilhoso pas

5

Resumo O objetivo principal da dissertao analisar o Programa Sade da Famlia tomando como eixo central a questo da resolutividade, definida como uma ao ou cuidado que consiga suprimir, minorar ou abreviar o perodo de manifestao dos sintomas, promover a remisso ou a cura do processo mrbido no menor tempo possvel, limitar a incapacidade superveniente e evitar a evoluo para o desfecho letal. Faz-se um percurso que comea na dcada de 1960 com as discusses que tiveram lugar no Brasil visando a implementao de programas de sade voltados para a comunidade e ncleo familiar. Aborda-se igualmente a influncia de pases como Estados Unidos da Amrica, Reino Unido, Canad e Cuba nesse processo. A implementao bem sucedida do Programa dos Agentes Comunitrios de Sade, em 1991, veio a constituir o propulsor do Programa Sade da Famlia, criado em 1994, como uma nova estratgia para a ateno bsica voltada para a famlia e a comunidade onde se insere com o objetivo de alargar o acesso aos cuidados e servios de sade a toda a populao. Para confrontar os propsitos tericos do programa e a prtica realizou-se um trabalho de campo no municpio de Volta Redonda (RJ) onde se constatou algumas particularidades que so ressaltadas, tais como a inadequao do atual sistema de coleta de dados referente produo dos profissionais das equipes do PSF, o deficiente funcionamento do sistema de referncia e contra-referncia dos pacientes, a existncia de vrios fatores que condicionam a produtividade e resolutividade dos profissionais, a precria integrao do programa na rede local dos servios de sade, alta rotatividade dos mdicos e uma ateno mais voltada para o campo assistencial com poucas aes de promoo da sade. Dessas constataes so avanadas algumas propostas visando adequar a prtica do programa aos pressupostos tericos formulados pelo Ministrio da Sade e contribuir para a melhoria qualitativa dos servios.

6

Lista de abreviaturas ABEM Associao Brasileira de Educao Mdica ABRASCO Associao Brasileira de Ps-graduao em Sade Coletiva AHA Area Health Autorities AMA Associao Mdica Americana CENDES Centro de Estudos do Desenvolvimento CIB Comisso Intergestora Bipartite CIT Comisso Intergestora Tripartite CMS Conselho Municipal de Sade CNRM Comisso Nacional de Residncia Mdica CNS Comisso Nacional de Sade COAB Coordenao da Ateno Bsica COSAC Coordenao de Sade da Comunidade DAB Departamento da Ateno Bsica DHA District Health Autorities ENSP Escola Nacional de Sade Pblica FEPAFEM Federao Pan-americana das Associaes das Faculdades e Escolas de Medicina FIOCRUZ Fundao Instituto Oswaldo Cruz FMI Fundo Monetrio Internacional FMS Fundo Municipal de Sade FNS Fundo Nacional de Sade GP General Practitioner (Mdico Generalista) HMO Health Maintenance Organization IDA Integrao Docente Assistencial IPEA Instituto de Pesquisas Econmicas Aplicadas MEC Ministrio da Educao e Cultura NHS National Health Service NOB Norma Operacional Bsica OMS Organizao Mundial da Sade OPAS Organizao Pan-americana de Sade PAB Piso de Ateno Bsica PACS Programa dos Agentes Comunitrios de Sade PAR Programa de Apoio s Residncias PEC Programas de Extenso de Cobertura PIASS Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento PSF Programa Sade da Famlia REFORSUS Projeto de Reforo Reorganizao do Sistema nico de Sade SAS Secretaria de Assistncia Sade SES Secretaria Estadual da Sade SIAB Sistema de Informao da Ateno Bsica SMS Secretaria Municipal da Sade SUS Sistema nico de Sade UBS Unidade Bsica de Sade USF Unidade de Sade da Famlia

7

Lista de Anexos ANEXO 1 Tabela A: Alguns dados sobre o saneamento bsico no municpio de Volta Redonda (RJ) ANEXO 2 Quadro A: Unidades e servios dos Distritos Sanitrios do municpio de Volta Redonda no primeiro semestre de 2000 ANEXO 3 Guia de referncia e contra-referncia ANEXO 4 Tabela B: Cotas mensais de exames complementares de diagnstico dos mdulos do PSF de Volta Redonda no primeiro semestre de 2000 ANEXO 5 Quadro B: Especialistas que integram a rede de atendimento ambulatorial no municpio de Volta Redonda no primeiro semestre de 2000 ANEXO 6 Lista padronizada de medicamentos da Farmcia Bsica dos mdulos do PSF de Volta Redonda no primeiro semestre de 2000 ANEXO 7 Quadro C: Composio das equipes do PSF de Volta Redonda ANEXO 8 Ficha de cadastramento das famlias ANEXO 9 Tabela C (C1-C6): Movimento mensal nos mdulos do PSF de Volta Redonda no primeiro semestre de 2000 ANEXO 10 Proposta de modelo de registro para atendimento dirio nos mdulos do PSF ANEXO 11 Tabela D: Tempo mdio de espera por consulta de especialidade no mdulo Mariana Torres do PSF de Volta Redonda no primeiro semestre de 2000 ANEXO 12 Impresso para relatrio de produo e de marcadores para avaliao do Sistema de Informao da Ateno Bsica ANEXO 13 Roteiro de entrevistas com os mdicos e enfermeiros do PSF de Volta Redonda ANEXO 14 Roteiro da entrevista com a Secretria Municipal de Sade de Volta Redonda ANEXO 15 Roteiro da entrevista com a Coordenadora Municipal do PSF de Volta Redonda

8

SUMRIO Introduo Captulo 1: A experincia internacional no domnio da Medicina de Famlia e Medicina Comunitria e sua influncia na Amrica Latina e Brasil Reino Unido Estados Unidos da Amrica Canad Cuba Captulo 2: O surgimento do Programa Sade da Famlia (PSF) no Brasil como nova estratgia de remodelao do modelo assistencial Captulo 3: A pesquisa: alguns aspectos terico-metodolgicos Captulo 4: A resolutividade do Programa Sade da Famlia no municpio de Volta Redonda (RJ) O Programa Sade da Famlia: a viso oficial O Programa Sade da Famlia: a viso emprica dos servios A produo no Programa Sade da Famlia de Volta Redonda Atendimento mdico A resolutividade no Programa Sade da Famlia de Volta Redonda Referncia e contra-referncia Tempo de espera por atendimento especial Internao Atividades de promoo da sade Formao profissional Rotatividade dos profissionais Prticas negativas dos usurios Remunerao Intersetorialidade Participao comunitria Captulo 5: Consideraes finais Bibliografia Anexos

9

INTRODUO A publicao do Relatrio Flexner, nos Estados Unidos da Amrica, em 1910, levou a uma profunda reforma do ensino e da prtica da medicina que ganhou corpo, importncia e autonomia. Melhor organizados e com o apoio do Estado, os mdicos conseguiram gradualmente reforar a sua posio, hegemonia e prestgio no seio da sociedade, desencadeando um feroz combate aos concorrentes que, de diversas formas, atuavam na rea da sade (inclusive, os enfermeiros) e excluindo as prticas alternativas. A partir de ento, estabeleceu-se um sistema centrado no mdico com suporte legal e que atribua a esse profissional o monoplio do exerccio da medicina, atravs de uma regulamentao rgida que proibia a prtica mdica a todos os que no obtivessem a devida autorizao, concedida pelas organizaes representativas da classe, aps a passagem obrigatria por um curso de formao em escolas devidamente credenciadas. A partir de ento, refora-se a prtica da modalidade de medicina familiar em que o mdico, como profissional liberal, atendia a todos os membros de uma famlia, mediante uma remunerao. Todos os demais intervenientes na rea da sade cujo exerccio fosse considerado legal, passaram a trabalhar na dependncia e sob superviso dos mdicos. Aps a primeira guerra mundial, deu-se incio a um desenvolvimento acelerado das cincias biolgicas (apoiadas nas descobertas da microbiologia) e da indstria (inclusive, farmacutica), que servia de suporte para o aperfeioamento e diversificao das tcnicas de interveno na rea da medicina, resultando no aparecimento de novas especialidades. A partir de ento, a especializao passou a ocupar o ponto central do ensino mdico, inteira e expressamente voltado para o campo curativo e atendimento individual, uma vez que a sade era, ento, entendida como ausncia de doena. Essa concepo levou fragmentao da medicina, passando os especialistas a ocupar um lugar de destaque, enquanto o mdico generalista registrava uma progressiva perda de prestgio. A constituio das especialidades mdicas baseou-se muito na

10

incorporao de novas tecnologias cada vez mais complexas e voltadas para o atendimento individual, reforando cada vez mais o carter individualista da prestao de cuidados mdicos. O profissional passou a assumir uma postura cada vez mais tecnicista que viria a ter uma influncia negativa na relao mdico-paciente. Nos meados do sculo XX, no continente europeu, estabelece-se o estado de bem-estar social que mobiliza amplos recursos pblicos para o setor sade canalizados, sobretudo, para a assistncia clnica e hospitalar especializadas, reforando a dicotomia preveno/cura. Consequentemente, registrou-se um aumento de custos de tal ordem que os gastos com a sade por parte do Estado tornavam-se incomportveis, levando a uma srie de ajustes e reformas. Em 1970, nos EUA, o relatrio Carnegie declara a existncia de uma crise da Medicina Flexneriana e props mudanas no ensino mdico: integrao docente-assistencial, expanso e aceleramento da formao de pessoal auxiliar e tcnico, integrao de matrias bsicas e profissionalizantes e estruturao de planos nacionais de sade (Silva Jnior, 1998:56). Esta crise levou ao estabelecimento gradual de princpios liberais que olham para o setor sade sob um ponto de vista estritamente economicista, tendo como critrio bsico de alocao de recursos a relao custo-efetividade baseada sobretudo na reduo dos gastos (via conteno dos custos). Esta nova viso fez com que organizaes ligadas ao setor, como a OMS, perdesse a sua fora e coeso inicial, a favor de outras da rea econmica, como o Banco Mundial e o FMI. Surgiram novos posicionamentos a favor da sade pblica que levaram ao aparecimento de um novo paradigma a produo social da sade iniciado com a publicao do Relatrio Lalonde, em 1974, no Canad, que viria a influenciar, ao longo de toda a dcada de 70, todos os congressos, conferncias e simpsios internacionais, culminando, em 1978, com a Conferncia de Alma-Ata, onde foi formulada a nova filosofia da Ateno Primria da Sade com forte apoio da OMS

11

que passou a ser o seu principal difusor enquanto o Banco Mundial assumia uma importante parcela do seu financiamento. nessa altura que se cria o marco terico da Medicina Comunitria que propunha uma abordagem da sade voltada para a coletividade e integrando as vertentes promoo/preveno/cura. O Brasil no ficou margem desses acontecimentos, pois, emergia um forte movimento que defendia uma profunda reforma sanitria e que levaria, nos marcos de um sistema de sade universal e integral, ao aparecimento de diversas iniciativas concordantes com a prtica da medicina comunitria. A luta do movimento para a reforma sanitria teve o seu apogeu quando conseguiu que fosse incorporado na Constituio Brasileira, de 1988, importantes princpios, entre os quais a declarao da sade como um direito dos cidados e dever do Estado. Passaram a surgir novas propostas para o setor sade, entre as quais se inscreve o Programa Sade da Famlia sob a influncia de abordagens inovadoras em curso em diferentes pases e diversas experincias focalizadas em diversos estados do Brasil. A escolha do Programa Sade da Famlia para tema da nossa dissertao deu-se aps algum tempo de amadurecimento de idias e consolidou-se durante a participao num seminrio de grupo que abordou o tema O desenvolvimento do Programa Sade da Famlia e do Programa de Agentes Comunitrios no perodo de freqncia da disciplina Polticas de Sade no Brasil, do curso de Mestrado da Escola Nacional de Sade Pblica. O atual momento poltico de Cabo Verde, pas de origem, cria um espao propcio para a implementao de um programa com as caractersticas do PSF, capaz de contribuir para melhorar o acesso aos cuidados e servios de sade e reforar a precria integrao das vertentes promoo/preveno/cura, pois, hoje predomina a assistncia curativa propiciada por uma poltica nacional de sade mdico-hospitalocntrica voltada para a ateno especializada com forte

12

discriminao e circunscrio da ateno bsica, determinando a marginalizao de uma parcela importante da populao constituda pelas pessoas mais carentes. O nosso trabalho pode ser dividido em quatro partes: na primeira, fazemos uma resenha sobre o aparecimento, a nvel internacional, de diversos movimentos com diferentes caractersticas mas objetivando a ampliao do acesso aos cuidados e servios de sade; na segunda parte, analisamos como esses diversos movimentos influenciaram o aparecimento de um movimento sanitrio no Brasil que desempenhou um papel de capital importncia para o redesenho dos rumos da poltica nacional de sade, assim como as diversas propostas de modelo de prestao de cuidados de sade que foram surgindo no Brasil, a partir da dcada de 70; na terceira parte, analisamos, atravs de um estudo de caso, como ocorre na prtica a resolutividade do PSF, realizando um trabalho de campo no municpio de Volta Redonda (RJ); a quarta parte reservada para as consideraes finais. De incio, era grande a nossa ansiedade porque, como cidado estrangeiro, fazer um trabalho de campo numa cidade completamente desconhecida, sem qualquer referncia ou contato prvio e sobre um assunto muito propalado no momento, poderia despertar sentimentos de desconfiana por parte dos futuros entrevistados. Inmeras questes afloravam a nossa mente, aumentando cada vez mais a ansiedade: teramos um acolhimento adequado e as pessoas mostrarse-iam suficientemente abertas para fornecer as informaes necessrias? Como proceder para que no se sentissem avaliadas e no camuflassem as situaes, mostrando apenas o que de melhor os servios produziam? Como abordar questes sensveis que mexem com o ego das pessoas, tais como relacionamento com os colegas de trabalho, remunerao, condies de trabalho? Enfim, os momentos que antecederam os primeiros contatos foram, mais que de ansiedade, angustiantes. Uma angstia infundada, pois, absolutamente nenhuma das nossas suposies negativas tiveram espao durante todo o tempo em que decorreu o trabalho de campo que, no total, somaram onze dias. Pelo contrrio, no poderamos ter sido acolhidos de melhor forma. A disponibilidade e abertura

13

dos entrevistados foi de tal ordem que passamos a ter receio de estar a perturbar a sua rotina de trabalho. Mais do que um trabalho de campo integrado no processo de elaborao da dissertao de mestrado, o convvio com os profissionais do PSF em Volta Redonda revelou-nos outras dimenses que, na certa, marcaro, de forma indelvel, o nosso desempenho profissional futuro. Por isso, no foi pouco o esforo para separar os dados objetivos, de interesse para a pesquisa, de outros sujeitos nossa apreciao e julgamento pessoais. Como resultado, somos profundamente gratos a todos aqueles que participaram na nossa pesquisa de campo e consideramos que, em grande parte, este trabalho fruto dessa participao e, portanto, tambm deles.

14

CAPTULO 1 - A EXPERINCIA INTERNACIONAL NO DOMNIO DA MEDICINA DE FAMLIA E MEDICINA COMUNITRIA E SUA INFLUNCIA NA AMRICA LATINA E BRASIL O advento da medicina mais voltada para o atendimento famlia e comunidade est relacionada com a crise do setor sade. Os primeiros passos nesse sentido tiveram lugar nos Estados Unidos da Amrica, ainda na dcada de 1960, e era dirigida para uma parcela delimitada da populao cuja incapacidade de compra direta dos servios pudesse para ser enquadrada a faixa nos da limites institucionalmente estabelecidos demarcar pobreza

(Nunes,1980:187). Da mesma forma, no Canad e em vrios pases da Europa ocorreram reformas do sistema que possibilitaram a implementao de novas estratgias visando alargar o acesso aos servios de sade. Em seguida, apresentamos a experincia do Reino Unido, Estados Unidos, Canad e Cuba, que, de formas distintas, incorporaram novas idias que foram evoluindo at a configurao do atual sistema que, em cada um desses pases, apresenta caractersticas prprias distintivas dos demais.

Reino Unido No Reino Unido, a organizao da administrao sanitria comeou em 1875, com o Ato da Sade Pblica. A figura do Mdico Generalista (General Practitioner GP) existe desde ento, com a funo de cobrir 5 reas bsicas: clnica, cirurgia, ginecologia, obstetrcia e pediatria. Em 1920, foi publicado o Relatrio Dawson que props a reestruturao dos servios de sade baseada na regionalizao, com integrao das aes preventivas e curativas em que o Estado deveria assumir o papel de provedor e controlador de polticas de sade. A partir dessa altura, os mdicos generalistas foram separados dos mdicos especialistas e mdicos hospitalares, passando a ocupar-se, exclusivamente, da ateno primria da sade.

15

Em 1948, foi criado o Servio Nacional de Sade (National Health Service NHS) na seqncia de uma srie de reformas do aparelho do Estado e da proteo social, tendo como uma das finalidades bsicas garantir o acesso universal aos cuidados e servios de sade. Houve uma clara diviso entre a assistncia primria e secundria. O Sistema Nacional de Sade do Reino Unido compreende 3 nveis: O primeiro nvel com servios mdicos gerais prestados pelos mdicos generalistas contratados pelo NHS com a funo de assegurar as consultas mdicas entrada do sistema. O segundo nvel com servios de assistncia mdica, sade pblica, materno-infantil, vacinao e imunizao, educao para a sade, ambulncia e visitas domicilirias. Este nvel administrado pelos governos locais e tem como estrutura de referncia os hospitais distritais. O terceiro nvel compreende os centros de ensino universitrio e servios de alta especializao. Em 1964, foi criado o Cdigo do Mdico Generalista, atravs do qual o profissional pode formar parcerias e empregar pessoal especializado em prticas generalistas. Comearam, ento, a surgir equipes de ateno primria que integravam GP, enfermeiras, visitadores domiciliares e, caso necessrio, dentistas. Com a finalidade de integrar os vrios nveis do sistema e reduzir o gasto pblico, em 1973, publicou-se o National Health Service Reorganization Act, que criou uma hierarquia no sistema encabeada pelo Ministrio da Sade, que nomeia os membros para a District Health Autorities (DHA). Estas tm por funo coordenar os servios das Area Health Autorities (AHA), sediadas nos Hospitais Gerais Distritais que, por sua vez, coordenam as aes a nvel local. De acordo com Justin Allen, representante do Royal College of General Practitioners do Reino Unido, no Primeiro Seminrio de Experincias Internacionais em Medicina de Famlia realizado em Braslia, entre 13 e 16 de julho de 1998 (apud MS,1999), os aspectos fundamentais do Servio Nacional de

16

Sade, no seu comeo, determinavam que ele seria absolutamente livre no contato, universalmente acessvel a todos os cidados e o acesso deveria ser feito atravs do GP. Cada cidado tinha o direito de ser registrado com um GP e a Autoridade Distrital de Sade tinha o dever legal de assegurar a disponibilidade de GP para cada cidado. A nica cobrana feita era a de medicamentos prescritos. A assistncia sade privada foi permitida, desde o incio, para aqueles que quisessem continuar a pagar, mas esta modalidade representa menos de 10% da assistncia prestada no Reino Unido. Estes elementos chaves esto presentes at hoje e permanece o fato de que o paciente no paga nada para consultar-se com o GP, ou com especialista, ou para internar-se em hospital. Em 1989, levou-se a cabo uma nova reforma proposta pela Working for Patients que instituiu o mercado interno e controle oramentrio. Segundo Almeida (1999:273), esta reforma tinha como princpio orientador a separao entre proviso e financiamento de servios, com redefinio do papel do Estado, que deixa de ser provedor, mas continua a financiar, coordenar e regular os servios. Privilegiando o setor privado, os princpios econmicos e o mercado, a nova reforma acabou reforando o papel e o prestgio do GP no sistema, com a criao de dois tipos de compradores GP e DHA e dois tipos de prestadores GP e Hospitais empresas (NHS trusts). Na compra de servios, enquanto as Autoridades Distritais de Sade (DHA) baseiam-se na necessidade da populao do distrito referente, os mdicos clnicos gerais baseiam-se nas necessidades do paciente que atende, uma vez que o sistema de alocao de recursos, que era por volume de servios prestados, passou a ser per capita. Financeiramente os GPs tambm saram beneficiados, uma vez que, em 1997, foi criado o Fund Holding do GP, atravs do qual clnicas individuais (consultrios) podem receber um oramento que cobre o pessoal administrativo, medicamentos e servios hospitalares (excluindo emergncias). Para Almeida (1999:274), esta nova forma de alocao dos recursos permite-lhes no s fazer uma seleo de riscos como utilizar os saldos dos oramentos para melhorar a capacidade instalada de seus consultrios.

17

O sistema de sade do Reino Unido limita o acesso assistncia secundria baseada em tecnologia de alto custo e apresenta duas portas de entrada: o mdico geral, que cobre a ateno primria e absorve 90% dos recursos, e os servios de emergncia. O mdico generalista realiza 90% dos atendimentos em seu consultrio e 10% no domiclio (antes eram 22%) e pode referenciar para o segundo nvel de assistncia (hospitais), quando necessrio. Ao contrrio dos especialistas, que tm uma relao episdica e intermitente com o paciente, o generalista mantm um relacionamento estreito e contnuo com o mesmo. Conforme afirmou Allen (apud MS,1999), para o GP muito mais importante saber quem tem uma doena, do que a doena que a pessoa tem. O mdico clnico geral tem uma lista de pacientes e recebe per capita, independentemente do volume de servios prestados. Esta forma corresponde a 50% da renda do GP, sendo os restantes 50% provenientes do salrio anual (30%), que varia conforme a experincia e o regime de trabalho tempo integral ou parcial, e pagamento por servios prestados ou procedimentos (20%). Hoje, no Reino Unido, todas as escolas mdicas tm currculos voltados para a prtica generalista tanto na graduao como na ps-graduao (residncia mdica), tendo sido inscrito um programa de quatro meses para a prtica generalista. Desde 1996, para a admisso como general practitioner, o mdico passa por um treinamento especfico, findo o qual submetido a uma avaliao supervisionada por autoridade competente. Periodicamente submetido a uma prova de avaliao para renovao de sua licena para poder continuar a exercer. Vale ressaltar que estes profissionais tm conquistado um grande prestgio e popularidade, determinando uma procura elevada com cerca de dez candidatos por vaga. O impacto do seu trabalho to grande que, em 1990, realizava 74% das consultas por 10% do custo total do NHS. Esta configurao do sistema de sade no Reino Unido destaca-se pelas seguintes caractersticas: universalidade de acesso;

18

-

integralidade da ateno; grande predomnio do setor pblico na oferta de servios; forte papel regulador do Estado; baixo peso do setor privado.

Estados Unidos da Amrica Nos Estados Unidos da Amrica, ao contrrio do que sucede no Reino Unido, o setor privado sempre teve uma hegemonia sobre o setor pblico na oferta e proviso dos servios de sade, assumindo o Estado a cobertura da populao que no consegue, por seus prprios meios, acessar os servios privados de proteo social: pobres, idosos e desempregados. Os mdicos recebem honorrios por servio prestado e atuam como agentes independentes exercendo a profisso de forma livre, s respeitando as leis do estado onde atuam. O governo federal, com base na soberania do Estado Federativo, no se sente responsvel pela coordenao de uma poltica nacional de sade. Por isso, nunca se conseguiu criar um sistema nico de sade nesse pas, apesar da tentativa de vrios presidentes eleitos, e sempre prevaleceram as iniciativas privadas de carter associativo para o desenvolvimento de aes de saneamento urbano e assistncia mdica, coordenadas pelas autoridades locais ou estaduais. A publicao do Relatrio Flexner, em 1910, teve, como consequncia imediata, o fechamento de 124 das 155 escolas mdicas existentes, ento, nos Estados Unidos. Dentre as suas propostas salientam-se: redefinio dos padres de acesso aos cursos de medicina, expanso do ensino clnico com envolvimento dos hospitais, ensino laboratorial, vinculao das escolas mdicas a universidades, estmulo especializao mdica, controle do exerccio profissional pela profisso organizada (Silva Jnior, 1998:44-45). Como j foi mencionado, a concepo flexneriana da medicina levou tecnificao do ato mdico tendo como resultado o desenvolvimento da engenharia biomdica que associa a cincia tecnologia, criando grandes

19

expectativas em torno da medicina como produtora de melhoria da qualidade de vida, reforando ainda mais o seu prestgio social. A qualidade do ato mdico passou a ser correlacionado com a incorporao tecnolgica da prtica mdica, o que impulsionou o desenvolvimento das indstrias farmacutica e de equipamentos mdicos que constituem os dois principais suportes da medicina curativa, consumidora da maior parte dos recursos disponibilizados para a rea da sade, sobretudo, os hospitais urbanos por concentrarem os principais centros de diagnstico e tratamento. Comeou-se ento uma corrida para a especializao mdica, especialmente nas dcadas de 1950 e 1960, quando os mdicos generalistas representavam em torno de 70% do total de mdicos, contra 30% de especialistas. O pagamento era feito por servios prestados e os mdicos e suas associaes controlavam os medicamentos. O desenvolvimento da biomedicina proporcionou o aparecimento de novas drogas e novas tecnologias, projetando a medicina curativa para um lugar de destaque e, na dcada de 80, o nmero de especialistas j ultrapassava o de mdicos generalistas. Em 1965, foram criados dois sistemas no setor pblico: o MEDICAID, de carter assistencial e destinado cobertura dos indivduos comprovadamente pobres e o MEDICARE, sistema de seguros voltado para a cobertura dos idosos. Paralelamente, uma rede de servios filantrpicos de sade, subsidiados pelo Estado dava cobertura s populaes dos bairros perifricos com alto ndice de pobreza. Atualmente, o Medicare cobre 15% da populao com uma ntida tendncia para o aumento devido ao envelhecimento da populao. Por sua vez, o Medicaid experimenta uma enorme expanso, ou seja de 22 milhes, em 1975, para de 39 milhes de beneficiados, em 1998 (de acordo com as informaes do professor Bernard Salafsky, representante dos EUA no Primeiro Seminrio de Experincias Internacionais em Sade da Famlia, realizado em Braslia, em julho de 1998, apud MS,1999). Estes programas provocaram um aumento considervel do gasto pblico, enquanto, em relao ao setor privado, o gasto total tende a diminuir, pois

20

registra-se um aumento da afluncia em relao ao seguro privado e uma reduo em relao ao gasto direto. A fim de fazer face ao aumento da complexidade tecnolgica da medicina, tendncia hospitalizao e especializao, que contribuem de forma decisiva para o aumento dos custos e gastos em sade, a legislao norte americana especificou, em 1965 Social Security Amendments e, em 1966 Compreesive Area-wide Health Planning Act para a proviso da assistncia mdica integral comunidade (Albagli,1978:93). Vrias organizaes participaram nesse processo, entre as quais, a poderosa Associao Mdica Americana (AMA), que encabeou um movimento que criou as bases da Medicina Familiar e os fundamentos de uma poltica federal e estatal para o financiamento da formao de mdicos de famlia em cursos de ps-graduao (Paim,1985b:208). Em 1969, a Medicina da Famlia foi reconhecida, nos Estados Unidos da Amrica, como a vigsima especialidade mdica, sendo o mdico de famlia definido pela AMA como profissional com capacidade para ...servir ao pblico como mdico de primeiro contato e de seu intermedirio com o sistema de assistncia mdica; avaliar as necessidades totais de sade de seus pacientes, assumindo a responsabilidade de orientar a assistncia global de que eventualmente necessitem, agindo como coordenador dos servios de sade dos seus pacientes, incluindo o uso de mdicos consultores, tendo em conta o seu ambiente comunitrio e familiar, bem como a unidade social equivalente a que pertencem (Carneiro,1978:19). Os mdicos de famlia eram encaminhados para o exerccio da medicina nas reas rurais onde a populao tinha pouco acesso e para a populao pobre das reas perifricas urbanas, possibilitando a mobilizao de recursos pblicos (provenientes de impostos) para a implementao e desenvolvimento dos programas de formao na rea de medicina familiar, o que no era possvel em relao s outras especialidades. H que ter em conta que o mdico de famlia, nos Estados Unidos, sempre foi e continua sendo um profissional liberal que atende em seu consultrio, de forma individualizada, os membros de uma famlia, mediante o pagamento da consulta.

21

A partir da dcada de 70, este movimento difundiu-se pela Europa, Canad e Amrica Latina (atravs do Mxico) com forte apoio da Organizao Mundial da Sade e Organizao Pan-americana de Sade. Em 1978, em New Orleans (EUA), realizou-se a VII Conferncia PanAmericana de Educao Mdica onde foram sistematizadas as atividades impulsionadoras da estratgia de medicina familiar. Dois anos depois, em 1980, tambm em New Orleans, teve lugar a 9a Conferncia Mundial de Medicina Familiar que analisou a experincia e propostas de diferentes pases e organizou um conjunto de publicaes para a discusso do movimento: Boletim Informativo del Centro Internacional para la Medicina Familiar, Revista Internacional de Medicina Familiar, Boletim da FEPAFEM (Paim,1985b:209). Nessa altura, os mdicos especialistas atendiam sem necessidade de qualquer referncia dos generalistas, pois, no existia nenhum processo para conter a demanda por atendimento especializado. Os custos dos cuidados mdicos aumentavam consideravelmente uma vez que no tinham sido criados, at ento, mecanismos para o controle dos gastos. Nos anos 80, o Managed Care teve um grande impulso quando foi institucionalizado como uma alternativa para o controle e conteno dos altos custos da assistncia mdica que continuavam crescentes empurrando a inflao no setor. O Managed Care assume, ento, a forma de administrao da ateno mdica voltada, fundamentalmente, para o controle da utilizao de servios, que abrange tanto o lado da oferta quanto da demanda, e pretende articular prestao e financiamento e, simultaneamente, conter os custos atravs de medidas reguladoras da relao mdico-paciente. Privilegia o atendimento bsico, e estabelece a porta de entrada atravs da obrigatoriedade da passagem pelo mdico generalista, para diminuir o acesso ateno especializada e hospitalar e controlar rigidamente a atuao profissional segundo parmetros de prtica mdica definidos pela empresa, basicamente centrados nos custos dos procedimentos (Almeida,1999:271). Dessa forma, os mdicos generalistas que atuam na porta de entrada do sistema contendo a demanda para os especialistas e procedimentos mais

22

onerosos, passaram a desempenhar um papel fundamental no controle e conteno dos custos. Com a finalidade de estabelecer as regras de funcionamento do Managed Care, foi criado o Managed Competition (competio administrada) que, curiosamente, no teve o incremento que se esperava no pas onde foi criado, mas tem sido adotado, com as devidas alteraes e adaptaes, em outros pases, independentemente do sistema de sade prevalecente (baseado no setor pblico ou privado). S a partir de 1995, com a criao dos Health Maintenance Organization (HMO) foi introduzido o sistema de pagamento dos servios per capita e, hoje, segundo Salafsky, professor da Escola de Medicina da Universidade de Illinois EUA (apud MS,1999), os valores per capita gastos com a sade atingem os US$ 3.500. O sistema de sade nos Estados Unidos da Amrica apresenta uma assistncia primria que no cobre de forma uniforme todo o pas, deixando de fora as pequenas cidades e as regies do interior. O mercado de trabalho tem estimulado a formao de mdicos especialistas. Ainda segundo Salafsky (idem), o clnico geral recebe entre US$ 135 e 200 mil/ano, enquanto o especialista recebe valores que variam entre US$ 200 mil/ano a US$ 1 milho/ano ou mais. E acrescenta que o governo est mobilizando recursos a fim de ampliar o acesso aos servios de sade em todo o pas. Para isso, foram definidas algumas prioridades: primeiro, promover o acesso qualidade do atendimento aos excludos; segundo, reduzir as desigualdades raciais e clnicas; terceiro, promover um sistema de ateno sade voltado para o conjunto da populao; quarto, assegurar programas que quebrem as barreiras junto populao e promover o desenvolvimento de um sistema de gerenciamento eficiente e com satisfatrio custo-benefcio. Quanto s escolas mdicas Salafsky (apud MS,1999) declarou que est surgindo um movimento de reforma para que o ensino mdico seja voltado para a criao de generalistas, com nfase na ateno primria de sade e comea-se a utilizar metodologias mltiplas com o objetivo de se obter um ensino integrado e j se reconhece a necessidade das escolas de medicina construrem currculos com

23

abordagens

multiprofissionais,

incorporando,

sobretudo,

as

cincias

do

comportamento e as cincias bsicas e mais voltadas para a medicina preventiva e a comunidade. Desta forma, apesar do sistema de sade se apoiar essencialmente no setor privado no que concerne a oferta de servios, o Estado americano, pressionado pelos altos custos e pela existncia de uma massa crescente de excludos, vem mobilizando recursos e estudando propostas visando a ampliao do acesso.

Canad No Canad, o governo comeou a intervir no setor sade a partir de 1887, quando foi criado o Conselho de Higiene com a finalidade de coordenar o setor sade a nvel municipal. Em 1922, este Conselho foi substitudo pelo Servio Provincial de Higiene criado pela Lei de Assistncia Pblica que obriga os municpios a prestar servios hospitalares aos indigentes, sendo os gastos distribudos em partes iguais entre o governo, os municpios e as instituies de caridade. Entre 1935 e 1945, o governo federal fez vrias propostas de criao de um seguro sade universal que foram sempre rejeitadas por serem consideradas anticonstitucionais, uma vez que a sade era tida como uma rea de jurisdio provincial e no federal. O ento ministrio da sade, criado em 1936, foi subdividido em dois, em 1944, dando origem ao Ministrio do Bem-Estar Social. Convm ressaltar que at o final da dcada de 40 a medicina privada dominou a ateno mdica no Canad, com o acesso limitado queles que podiam pagar. Em 1947, a provncia de Saskatchewan adotou um plano de seguro pblico para os servios hospitalares com financiamento pblico, inaugurando uma caminhada de vrias dcadas rumo criao do atual sistema de ateno mdica canadense conhecido como Sistema de Seguro de Doena e baseado no seguro doena universal. Nos anos 50, a poltica social canadense alcanou o seu

24

apogeu registrando-se um extraordinrio desenvolvimento da sade pblica e da seguridade social. Em 1956, o governo federal criou o seguro desemprego e, no ano seguinte, o seguro hospitalizao. Paralelamente, props a extenso do modelo adotado pela provncia de Saskatchewan a todo o pas, assumindo o compromisso de pagar 50% dos gastos. At 1961, esta proposta viria a ser adotada por todas as provncias. Em 1966, com a Lei da Ateno Mdica, cria-se o regime pblico de seguro doena para cobrir as visitas e os servios mdicos prestados fora dos hospitais, sendo os gastos divididos a meias entre os governos federal e provincial, desde que respeitados cinco princpios fundamentais: cobertura universal, exaustividade (integralidade) dos servios, acessibilidade, transferibilidade entre provncias da cobertura mdica, e gesto pblica. Esta lei teve aplicao gradual e, em 1972, abrangeu todo o territrio nacional canadense e, por isso, considerado o ano do nascimento do atual sistema de sade do Canad, que apresenta como principais caractersticas os seguintes princpios, contidos na Lei Canadense sobre a Sade, promulgada em 1984: Universalidade cobre 100% da populao residente admissvel; Acessibilidade - no existem barreiras a servios mdicos e hospitalares assegurados e no h cobranas adicionais aos pacientes por esses servios; Integralidade cobre todos os servios considerados necessrios sob o ponto de vista mdico (hospitalares e mdicos), incluindo medicamentos e exames complementares de diagnstico e integra os servios de sade e os servios sociais; Transferibilidade o seguro continua vlido mesmo quando se muda de uma provncia para outra ou se viaja no interior do pas ou mesmo ao estrangeiro; Gesto Pblica o plano de seguro provincial administrado e operado, sem fins lucrativos, por uma autoridade pblica responsvel perante o governo provincial, sendo o financiamento pblico assegurado

25

com fundos conjuntos dos governos federal e provincial no requerendo nenhuma contribuio financeira direta por parte dos pacientes. A administrao dos servios e a prestao dos cuidados de sade so da responsabilidade de cada provncia que planeja, financia e avalia a qualidade dessa prestao. Ao governo federal cabe a funo de estabelecer e administrar os princpios e normas nacionais que regulamentam o sistema da ateno mdica (Lei Canadense sobre a Sade), participar no financiamento dos servios de sade provinciais por meio de transferncias fiscais, prestao direta de servios de sade a grupos especficos (populao indgena, reclusos, militares, polcia) e assegurar as atividades de proteo e promoo da sade e preveno de doenas. O sistema de sade canadense cobre o custo total dos servios prestados pelos mdicos gerais, especialistas e hospitais, excluindo os servios dentrios e o custo dos medicamentos prescritos fora do hospital (excepo para os idosos). At meados dos anos 80, o financiamento do sistema de cuidados mdicos (Medicare) variava de uma provncia para outra, podendo abranger desde cobertura parcial complementada por cotas pagas por cada famlia, at a cobertura total atravs de impostos gerais. Hoje, o financiamento da ateno mdica no Canad feito principalmente atravs de tributos em forma de impostos provinciais e federais sobre a renda e os ingressos das empresas privadas. At 1996, a contribuio federal era feita por transferncia global com base em um valor per capita que se ajustava anualmente conforme as variaes do PNB. A partir de 1996, o governo federal passou a contribuir para os programas sociais e da sade provinciais numa nova transferncia global a Transferncia Social e da Sade do Canad em que o financiamento federal transfere-se para as provncias como uma combinao de contribuies em efetivo e pontos tributrios. Para a efetivao dessa transferncia, os planos de seguro de doena provinciais devem cumprir com os princpios da Lei Canadense sobre a Sade, condio que garante o direito ao pagamento completo da transferncia federal.

26

Os fundos pblicos financiam 70% e os 30% restantes so assumidos diretamente pelos clientes particulares, quando utilizam os servios no cobertos (odontologia, medicamentos) ou indiretamente, por meio dos seguros privados complementares. Os gastos so repartidos em pblicos e privados. A tendncia nos ltimos anos de diminuio gradual do gasto pblico e aumento do gasto privado que provm, sobretudo, da utilizao dos servios de sade dos profissionais no mdicos, medicamentos e medicinas alternativas. Contudo, h que ressaltar que o aumento do gasto privado no devido, exclusivamente, ao aumento dos gastos totais e a uma maior freqncia da utilizao dos servios no cobertos pelo regime do seguro pblico, mas tambm devido diminuio da cobertura pblica (exames buco-dentais para crianas maiores de dez anos, exames oftalmolgicos para adultos) e pelo aumento das tarifas exigidas pelos servios privados aos usurios. Os mdicos gozam de grande autonomia e no so funcionrios do Estado. Os honorrios mdicos so determinados a partir de uma massa salarial negociada anualmente pelo governo com as federaes mdicas e segundo diversas formas de remunerao vigentes: por prestao ou ato mdico, pela dedicao ou salrio. A maioria dos mdicos produtor independente e atende em consultrios privados, recebendo honorrios por servio prestado diretamente do plano de seguro provincial. Os usurios no pagam diretamente pelos servios segurados, pois, para o atendimento, basta a apresentao do carto de seguro uma vez que no h pagamentos deduzveis, nem comparticipao no pagamento, nem limites de cobertura dos servios segurados. O financiamento do sistema feito pelos indivduos como contribuintes, usurios ou segurados, da seguinte forma: Receitas Fiscais do Estado financiam a maioria dos servios hospitalares e mdicos, assim como os servios suplementares;

27

-

Seguros

Privados

financiam

os

servios

odontolgicos,

medicamentos receitados por mdicos, hospitalizao em estruturas privadas ou semi-privadas, servios de sade no estrangeiro; Pagamento Direto cobre diversos servios segurados s parcialmente pelos regimes pblico e privado, tais como, medicamentos de venda livre, terapias alternativas, gastos de hospedagem em hospital geritrico; Indenizao dos Acidentes de Trabalho e de Trnsito resultam da contribuio dos empregadores e dos automobilistas; Rede de Filantropia, Beneficncia e Voluntariado.

semelhana do sistema ingls, o sistema canadense tem como figura central o Mdico Generalista (de Famlia) que se ocupa dos Cuidados Primrios de Sade cobrindo 5 reas bsicas: medicina interna, cirurgia, gineco-obstetrcia, pediatria e psiquiatria. Contudo, diverge do sistema ingls, por permitir aos especialistas prover cuidados primrios (sobretudo nas grandes cidades) atendendo diretamente a populao, embora a tendncia seja que a ateno primria fique a cargo dos mdicos de famlia, que atuam sob essa designao desde 1969, quando o Colgio da Medicina Geral passou a ser chamado Colgio de Mdicos de Famlia do Canad (Mc Whinney,1982:75-91). Atualmente, mais de 95% dos hospitais canadenses funcionam como instituies privadas sem fins lucrativos e 51% de todos os mdicos em exerccio, no Canad, so generalistas. O sistema canadense considerado hoje um dos mais eficazes, tendo levado a uma ntida melhoria das condies da sade (esperana de vida de 78.6 anos, sendo de 81.4 para as mulheres e 75.8 para os homens, taxa de mortalidade infantil de 5.6 por 1000 nascidos vivos) o que contribuiu de forma decisiva para que o pas passasse a ocupar o lugar cimeiro no ndice de Desenvolvimento Humano das Naes Unidas.

28

Cuba O sistema de sade cubano sempre gozou de grande prestgio. Aps o triunfo da revoluo, em 1959, foi implementado e consolidado um Sistema Nacional de Sade caracterizado pela descentralizao, sistema nico e financiamento exclusivamente pblico. So notrios e conhecidos mundialmente os altos ndices atingidos no setor sade, apesar das adversidades enfrentadas por esse povo e seu governo, resultante do bloqueio econmico imposto, h quatro dcadas, pelos Estados Unidos da Amrica. De incio, o modelo implementado em Cuba, ainda na dcada de 60, era completamente voltado para o combate aos danos provocados na sade dos indivduos. Posteriormente, incrementou-se um modelo mais voltado para a ateno primria (com forte nfase na promoo e preveno), com programas orientados para o controle de riscos epidemiolgicos, combate de epidemias e outros programas especficos para a preveno de doenas. Graas a esses programas, Cuba conseguiu atingir um nvel de primeiro mundo em termos de indicadores de sade, o que lhe permitiu dar um saldo qualitativo e implementar um novo modelo, o atual, baseado na promoo da sade como qualidade de vida. Remando contra a mar, no incio da dcada de 80, Cuba optou pela implementao do mdico de famlia, no momento em que era intensa a discusso desse modelo, que tinha fortes opositores nos pases da Amrica Latina por ser considerado mais adequado para os pases desenvolvidos como Canad e Reino Unido que vinham investindo forte na esfera social. Com o novo modelo pretendia-se conseguir uma maior integrao das prticas preventivas, promocionais e curativas, frear a tendncia para a superespecializao e estimular o desenvolvimento de aes dirigidas para a mudana de estilos e hbitos de vida. Para tal, o novo modelo foi estruturado de forma a incorporar atividades mdicas e no mdicas com a participao dos mais diversos setores, envolver todos os nveis do sistema nacional de sade e definir estratgias de atuao assentes na realidade epidemiolgica.

29

Uma das caractersticas importantes do modelo cubano de medicina de famlia o envolvimento, desde cedo, das instituies ligadas formao mdica e outros profissionais de sade, no processo de definio e formao dos profissionais que iro integrar o programa. Com efeito, procedeu-se a uma reviso do currculo de formao e, hoje, todo o mdico formado nesse pas sai preparado para integrar o programa e sua atuao reconhecida, oficialmente, como especializada em medicina geral integral. Nesse mbito, o mdico de famlia definido como um profissional da primeira linha, que presta atendimento precoce, de qualidade e resolutiva, de forma integral e contnua ao indivduo, famlia e comunidade pelo qual responsvel, interatuando de forma permanente com outros nveis de ateno. Existe um programa de educao permanente que comea na fase de residncia e continua durante o exerccio profissional como mdico de famlia, atravs do policlnico que tambm funciona como unidade docente. A formao dos recursos humanos na rea da sade da responsabilidade do Ministrio da Sade Pblica que define as prioridades e necessidades. A rede de cuidados foi reestruturada com base na setorializao da populao adscrita: uma determinada rea dividida em setores com cerca de 130 famlias e em cada setor foi construdo um consultrio com residncia para um mdico e um enfermeiro que, dessa forma, criam um vnculo maior com a comunidade coberta. Os consultrios funcionam de segunda a sbado em dois perodos. A equipe bsica tem horrio integral e, no perodo de manh, dedica-se ao atendimento da demanda espontnea e programada, e o perodo da tarde destinado realizao de visitas domiciliares para orientao familiar, ateno individualizada, orientao epidemiolgica e controle de riscos e seguimento dos pacientes em regime de internao domiciliar. Cada grupo de 15 a 20 mdicos e enfermeiros constitui o chamado Grupo Bsico de Trabalho que cobre as reas de medicina interna, gineco-obstetrcia, pediatria e psicologia. O sistema permite e incentiva um permanente desenvolvimento cientfico e tcnico dos profissionais que, atuando como mdicos de famlia, podem especializar-se em reas especficas de sua escolha.

30

Cada rea conta com um policlnico, na regio urbana, ou um hospital, na regio rural, com planto de 24 horas, onde trabalham profissionais de vrias especialidades mdicas e outras, que atendem os casos referenciados dos consultrios. Segundo o Dr. Filiberto Perez Aires1, atualmente, o modelo de medicina familiar cubano cobre 98% da populao e as equipes tm capacidade resolutiva de cerca de 95% dos problemas que se apresentam nos consultrios da rede. Assim, em cada pas a prestao do mdico de famlia reveste-se de contornos prprios, moldados pelo sistema de sade em que est inserido: universal e gratuito, em Cuba; universal no gratuito, no Canad e Reino Unido; no universal e nem gratuito, nos Estados Unidos da Amrica.

1

Exposio oral no 1o Encontro Luso-Brasileiro de Medicina Geral, Familiar e Comunitria, realizado na cidade do Rio de Janeiro, de 24 a 27 de outubro de 2000.

31

CAPTULO 2 - O SURGIMENTO DO PROGRAMA SADE DA FAMLIA (PSF) NO BRASIL COMO NOVA ESTRATGIA DE REMODELAO DO MODELO ASSISTENCIAL No Brasil, ainda na dcada de 40, fazia-se j sentir uma grande falta de mdicos com formao geral, pois era acentuada a preferncia dos mdicos pela formao especializada, atrados pelos recursos tcnicos da cincia mdica (Abath,1985:48). No incio da dcada de 1960, a Organizao Mundial da Sade (OMS) mostrava-se preocupada com a formao do chamado Mdico de Famlia e, em 1966, nos Estados Unidos da Amrica, foram dados os primeiros passos nesse sentido que culminaram com o reconhecimento da Medicina Familiar como especialidade mdica, em 1969. Esta nova especialidade surgiu com a finalidade de conter a demanda para a especializao mdica, hospitalizao e servios especializados. Ao longo da dcada de 1960, acentuou-se a crise do setor sade, caracterizada pela baixa cobertura, pouco impacto e altos custos das aes de sade, o que levou a um aumento da presso por parte de alguns setores organizados da sociedade civil sobre o governo, exigindo a melhoria das condies de sade, tendo em conta as altas taxas alcanadas pelo PIB durante o perodo do milagre brasileiro. Surgem, ento, (ainda nessa dcada) iniciativas focais de reforma dos servios de sade atravs dos Programas de Extenso de Cobertura (PEC) e reforma de ensino atravs da Integrao Docente Assistencial (IDA) (Paim,1985a:89). Em agosto de 1961, no Uruguai, teve lugar a Conferncia de Punta del Este que definiu as diretrizes que serviram de base para a Organizao Pan-americana de Sade (OPAS), em conjunto com o Centro de Estudos del Desarollo (CENDES) da Universidade Central de Venezuela, desenvolverem um novo mtodo de planejamento das aes locais e nacionais de sade conhecido como mtodo CENDES/OPAS que foi divulgado por toda Amrica Latina e desempenhou um importante papel no processo de mudana da prtica mdica que viria a ocorrer

32

posteriormente. Baseado neste mtodo, a Escola Nacional de Sade Pblica (ENSP) iniciou, em 1967, o Curso de Especializao em Planejamento de Sade que formou tcnicos que acabariam sendo peas importantes nos movimentos de profissionais de sade, em resistncia s polticas oficiais de sade (Vasconcelos, 1987:16-23). Este movimento assume a forma de um movimento ideolgico que mobiliza um conjunto de agentes e agncias para a elaborao de representaes sobre o processo de produo de mdicos, utilizando-se de mecanismos que possibilitem a substituio de uma dada concepo de educao mdica por outra, supostamente, mais orgnica a um determinado modo de produzir servios de sade (Paim,1985b:207-208). No Brasil, foi em Ribeiro Preto que teve lugar a experincia pioneira de formao de recursos humanos em Sade Coletiva, atravs da criao de um programa de residncia que, baseado nos princpios de medicina integral, buscava treinar os mdicos, simultaneamente, em aes preventivas e curativas (Paim,1985a:88). Diversos programas de formao foram implementados em nvel de psgraduao na rea de medicina preventiva, medicina social e sade pblica, nomeadamente, na Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So Paulo (1970), Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto (1971), Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo e Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (1973), Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado de Rio de Janeiro (1974). Mas, a primeira abordagem com abrangncia nacional deste tema teve lugar no seminrio realizado em Petrpolis, nos dias 11 e 12 de maio de 1973, sobre A Formao do Mdico de Famlia patrocinado pela Organizao Mundial da Sade, Associao Brasileira de Educao Mdica (ABEM) e Faculdade de Medicina de Petrpolis. Segundo Paim (1985b:209), no discurso dos promotores do evento nota-se uma crtica tendncia especializao, nfase na ateno individual, e uma certa repulsa contra a avalanche tecnolgica. Contudo, no se conseguiu definir o perfil do mdico de famlia e o currculo que deve nortear a sua formao.

33

A partir de ento, esta questo ficou aberta at 1977, quando, pelo decreto 80.281, de 05/09/77, foi regulamentada a Residncia Mdica e criada a Comisso Nacional de Residncia Mdica (CNRM). Entretanto, desde janeiro de 1976 (portanto antes do decreto 80.281), j funcionavam dois programas de residncia em Medicina Geral Comunitria: o subprograma de internado e residncia no Hospital Regional Rural do Programa de Sade Comunitria do Projeto Vitria da Universidade Federal de Pernambuco e o programa de residncia em Sade Comunitria da Unidade Sanitria Murialdo da Secretaria de Sade e Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Atualmente chamam-se Programas de Residncia Mdica em Medicina Geral Comunitria (Abath,1985:53). Inspirado nos princpios da Medicina Geral Comunitria, foi formulado o Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento (PIASS), iniciado em 1976. O PIASS assume o carter de uma estratgia poltica dirigida inicialmente sobretudo para o Nordeste brasileiro, priorizando a implementao de uma rede de servios de sade que articula e integra diversos nveis de atendimento. Contudo, a sua a atuao ficou limitada s reas no ocupadas pela iniciativa privada por imposio de dirigentes da Previdncia Social, ligados aos interesses dos hospitais privados (Bodstein e Fonseca,1989:83). Nesta altura, a nvel internacional, encontrava-se em pauta uma ampla discusso visando a elaborao de uma nova proposta para enfrentar a crise no setor sade e que servisse de suporte para a melhoria dos indicadores sanitrios bsicos dos pases do terceiro mundo. Neste contexto, reveste-se de capital importncia a realizao da 30a Assemblia Mundial de Sade, no Quebec Canad, em 1977, onde se estabeleceu, como meta para todos os governos, a Sade Para Todos no ano 2000, que serviu de lema para a Conferncia Internacional da Organizao Mundial da Sade sobre os Cuidados Primrios de Sade realizada, em 1978, na cidade de Alma-At, capital da Repblica do Cazaquisto, da, ento, Unio das Repblicas Socialistas Soviticas. As recomendaes emanadas dessa conferncia tiveram muita aceitao e um

34

grande impacto nos sistemas e servios de sade dos pases em vias de desenvolvimento da sia, frica e Amrica Latina. Na Amrica Latina, a Federao Pan-americana das Associaes das Faculdades e Escolas de Medicina (FEPAFEM) teve um papel de destaque no impulso para a implementao da Medicina Comunitria. Entre 1972 e 1977 desenvolveu um programa para a promoo do ensino da Medicina Comunitria em que participaram cinco pases, incluindo Brasil (Ceitlin,1982:111). Este programa esteve na base da realizao de vrios seminrios e conferncias, entre os quais, o Seminrio de Campinas, realizado de 24 a 27 de maio de 1978, tendo por tema A Formao do Mdico Generalista. Patrocinado pela Associao Brasileira de Educao Mdica e pela Fundao Kellogg, este seminrio foi muito polmico, tendo suscitado calorosas discusses sobre temas que visavam a definio de uma estratgia de suporte ao movimento ideolgico de medicina familiar com base no mdico generalista em vias de extino no Brasil, quando, desde a dcada anterior, nos Estados Unidos da Amrica, esse profissional vinha ressurgindo com fora e ocupando um importante espao. Quanto designao a ser dada ao mdico com o perfil que se propunha para o programa no se chegou a consenso: mdico (simplesmente), mdico generalista, mdico geral ou clnico geral. Outro ponto que gerou muita discusso foi o relativo ao momento de formao desse mdico: a nvel da graduao ou durante a graduao continuando na ps-graduao no perodo de residncia mdica. Em 1979, a Federao Pan-americana das Associaes das Faculdades e Escolas de Medicina, com apoio e financiamento da Fundao Kellogg, preparou um programa trienal (1979-1982) que cobria toda Amrica Latina e Caribe, visando a formao e incentivo utilizao do mdico geral/familiar (Ceitlin, 1982:118). Data desta altura o esforo da Associao Brasileira de Educao Mdica para mudar o enfoque de dez residncias de ps-graduao em Medicina Preventiva e Social e transform-las em residncias de Medicina Geral. Posteriormente, a Comisso Nacional de Residncia Mdica aprovou um novo tipo de residncia em Medicina Geral Comunitria (Ceitlin,1982:124).

35

Pela Resoluo 08/79, de 15/10/79, foi regulamentada a Residncia Mdica em Medicina Preventiva e Social criando uma certa dificuldade na articulao entre os programas de residncia das diferentes reas (sade pblica, medicina comunitria, sade comunitria), isso porque, segundo Paim (1985a:90), essa resoluo contemplava um conjunto contraditrio de tendncias no que concerne a formao de recursos humanos em Sade Coletiva e, consequentemente, diferentes projetos de reforma em sade. Esta situao foi amenizada com a criao, no ano seguinte, do Programa de Apoio s Residncias (PAR) em Medicina Social, Medicina Preventiva e Sade Pblica. Entretanto, paralelamente, com o apoio de agncias internacionais e da Federao Pan-Americana das Faculdades e Escolas de Medicina, surge um movimento que opta pelo projeto de reforma mdica denominada Medicina de Famlia. Srias discusses tiveram lugar entre os defensores deste novo projeto e os de Medicina Preventiva e Social, uma vez que, de acordo com Paim (1985a:91), o Programa de Apoio s Residncias inclinava-se para uma estratgia de formao de recursos humanos que se distanciava deste novo movimento ideolgico. Em fevereiro de 1981, em Braslia, foi realizada a II Reunio do Conselho de Coordenao do Programa de Apoio s Residncias, onde foram definidos os objetivos e campos de prticas das Residncias em Medicina Preventiva e Social e o processo de formao do profissional da rea de Sade Coletiva. Devido a uma forte presso para a converso dos Programas de Residncia em Medicina Preventiva e Social em Programas de Residncia em Medicina de Famlia, a Comisso Nacional de Residncia Mdica da Secretaria do Ensino Superior do Ministrio da Educao e Cultura (MEC), aprovou a Resoluo 07/81 que revogou dois importantes artigos da Resoluo 08/79, esvaziando o seu contedo com prejuzo para os programas de residncia em Medicina Preventiva e Social. Os residentes nesta rea consideravam que a Resoluo 07/81, que regulamenta a Medicina Geral Comunitria, orienta a formao de um mdico para triagem, com pequena abrangncia em nvel tcnico-cientfico, aplacador de tenses sociais e com pequena percepo crtica da realidade de sade do pas, portanto uma

36

tentativa de transformar os programas de Medicina Geral Comunitria em Medicina Familiar, o que constitua um profundo retrocesso dos programas j existentes. A deciso da Comisso Nacional de Residncia Mdica foi considerada autoritria e suscitou uma forte reao, encabeada pela Associao Brasileira de Ps-graduao em Sade Coletiva (ABRASCO), que apoiava os programas de treinamento em Medicina Preventiva e Social, e culminou com a realizao do 1o Frum sobre a Residncia em Medicina Social, Medicina Preventiva e Sade Pblica (1981). Neste Frum foi aprovado um anteprojeto de normas para o credenciamento de programas de residncia em Medicina Preventiva e Social que foi remetido ao Ministrio da Educao e Cultura e veio a constituir-se na Resoluo 16/81 que regulamenta a residncia mdica em Medicina Preventiva e Social e revoga a Resoluo 08/79, abrindo duas alternativas para os programas de residncia: o modelo de Medicina Geral Comunitria e o de Sade Coletiva (Paim,1985b:212-213). Em novembro de 1981, foi difundida a Declarao de Petrpolis que refora a importncia da Medicina Geral Comunitria propondo sua formao atravs de programas de graduao e ps-graduao, oficialmente aprovados. Pouco depois, em 05/12/81, foi fundada a Sociedade Brasileira de Medicina Geral Comunitria que se manteve inativa durante muito tempo at ser reativada em 19/03/86, durante a VIII Conferncia Nacional de Sade (Bordin e Silva,1988). Na opinio de Abath (1982:77), a grande dificuldade na formao do mdico geral comunitrio resulta da precariedade do ensino e da deficiente organizao curricular que deixam os estudantes com a nica alternativa de optar por uma especialidade de campo de atuao mais restrito; alm disso, so estimulados pelas imagens de seus professores (tambm especialistas) e de um mercado de trabalho que privilegia, em oportunidades de concurso e remunerao, as especialidades mais fechadas. Em abril de 1983, em So Paulo, teve lugar o 1o Encontro Nacional de Residncia Mdica em Medicina Geral Comunitria e, trs anos depois, em setembro de 1986, realizou-se em Sete Lagoas (MG), o I Congresso Brasileiro de Medicina Geral Comunitria que, definitivamente, mostra-se distante da Medicina

37

de Famlia por considerar que esta tem por objeto de trabalho a famlia com uma tendncia privatizante e atuao conservadora no campo social. No ms seguinte, a Medicina Geral Comunitria foi reconhecida como especialidade mdica, pelo Conselho Federal da Medicina, atravs da Resoluo no 1.232, de 11/10/1986. As discusses sobre as designaes e os currculos de formao de especialistas em Medicina Geral Comunitria e Medicina Familiar levaram a Oranizao Pan-americana de Sade e a Associao Brasileira de Educao Mdica a encomendar um estudo dirigido pelo, ento, professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco, Guilherme Montenegro Abath, que demonstrou uma maior aceitao da designao Medicinal Geral Comunitria no Brasil, enquanto, a nvel internacional, era preferida Medicina Familiar. Abath (1985:50) faz uma breve caracterizao de cada uma das vrias designaes, pondo em evidncia os elementos que diferenciam uma das outras. Assim, temos: Medicina Familiar medicina voltada para indivduos e ncleos familiares, exercida como medicina liberal, sem considerar a comunidade como fator prioritrio. Teria sido criada nos Estados Unidos da Amrica. Medicina Geral caracteriza-se pela prestao de assistncia mdica independente da idade, sexo ou patologia dos pacientes, porm, sem centrar o foco na sade da famlia e da comunidade a que pertenam. Medicina da Famlia mesmo enfoque da Medicina Geral quanto ao indivduo considerando a relao com os integrantes do seu ncleo familiar. No se ocupa dos problemas da comunidade. Medicina Geral Comunitria incorpora uma viso mais ampla a respeito da sade e da doena. Ocupa-se igualmente de indivduos, ncleos familiares e comunidade. Medicina de Assistncia Primria restringe-se a cuidados bsicos de sade e tratamento, em ambulatrio, das doenas mais prevalecentes. Geralmente est mais ligada assistncia materno-infantil. De todas estas designaes, a Medicina Geral Comunitria a melhor aceita por ser considerada a porta de entrada do sistema e prope-se a prestar

38

aos indivduos, ncleos familiares e comunidade uma assistncia integral, contnua e personalizada, no interrompida nem mesmo quando necessrio encaminhar o paciente a outros nveis de assistncia, para confirmao ou esclarecimento do diagnstico e tratamento (...), rompendo a dicotomia entre Medicina Preventiva e Medicina Curativa e os determinantes primordiais das doenas vo alm dos fatores biolgicos e fsico-qumicos, graas valorizao de fatores psicolgicos e scio-econmicos. (Abath,1985:51). Em resumo, pode-se dizer que, no Brasil, os inmeros encontros, conferncias e congressos que abordaram a questo do perfil do mdico que estivesse voltado para uma cobertura mais abrangente populao no teve os resultados prticos pretendidos. Ao longo dos anos, as constataes foram praticamente as mesmas com algumas divergncias, em termos de pormenor, isto , que premente a necessidade de formar mdicos com um perfil mais abrangente que incorpore mais o componente humano da relao mdicopaciente e menos o componente tcnico, e esteja capacitado para trabalhar com a comunidade tendo ou no a famlia como foco de ateno. Na nossa opinio, a estratgia de implementao do movimento para a formao do mdico de novo perfil nunca passou da fase poltica, razo por que no foram registrados resultados prticos com exceo de algumas experincias focalizadas. A partir dos anos oitenta, nota-se uma alterao no rumo dessa discusso do pensamento sanitrio, passando a ocupar o centro das atenes outras questes mais genricas como: a luta pelo reconhecimento da sade como um direito de cidadania e dever do Estado, a universalizao do acesso, a integralidade da ateno sade, entre outros temas. Constituindo a bandeira da luta do movimento sanitarista, estes temas foram pontos da pauta de debate dos anos 80, culminando com a VIII Conferncia Nacional da Sade (CNS), em 1986, e a promulgao da Constituio Brasileira de 1988, onde essas reivindicaes foram incorporadas. Todo este movimento sanitarista tinha como propsito a substituio do modelo hegemnico privatista, centrado no hospital, por outro de carter universalizante com acesso alargado a toda a populao. Na realidade,

39

conseguiu-se criar um modelo que teoricamente universalizante (tipo ingls), mas, na prtica, se assenta no setor privado (tipo americano), criando o que ficou conhecido por universalizao excludente, descrita, de forma soberba, por Favaret Filho e Oliveira (1990), embora posteriormente veio a merecer algumas crticas. Para estes autores, no Brasil, cada movimento de expanso universalizante acompanhado de mecanismos de racionamento (queda na qualidade dos servios, filas, etc.) que expulsam do sistema diversos segmentos sociais. Assim, a universalizao, no caso brasileiro, torna-se eficiente para efetivar o direito social sade no por incluir sob sua responsabilidade, como subentende-se da formulao sanitarista, a totalidade da populao (paradigma ingls), mas por torn-lo apto, tendo-se em vista a limitao de sua oferta potencial de servios, a atender os setores sociais de menor poder aquisitivo (Favaret Filho e Oliveira,1990:154-156). Esta universalizao, segundo Mendes (1992:51), favoreceu o aparecimento de um modelo mdico neoliberal de sade, composto por trs subsistemas: o pblico, responsvel pelo atendimento da grande maioria da populao mas, devido crise do Estado, presta um servio de qualidade cada vez menor; o de ateno supletiva, que ganha hegemonia e tem um crescimento vertiginoso, ao longo da dcada de 80, e abarca cinco modalidades assistenciais medicina de grupo, cooperativas mdicas, autogesto, seguro-sade e planos de administrao; o de alta tecnologia, que tambm teve crescimento rpido incorporando tecnologia de ponta, tornando extremamente caros os seus servios que consomem uma parte considervel dos recursos do Sistema nico de Sade para atender a uma pequena percentagem da populao. De acordo com Carvalho (1996:118), no Brasil, sobretudo a partir do incio dos anos 90, quando se acelerou o processo de descentralizao, desenvolveramse diversas experincias municipais inovadoras, em busca de novos modelos de organizao das prticas sanitrias (...) representando diferentes nfases e estratgias de enfrentar aspectos do modelo biomdico dominante. Entre 1986 e 1988 planejado e implementado o Programa de Agentes de Sade do Cear como experincia piloto financiado pelo Programa de Emergncia

40

para o Combate aos Efeitos da Seca. Segundo Andrade (1998:50), a idia bsica era selecionar membros da prpria comunidade para que, aps um treinamento em aes bsicas de sade, pudessem desenvolver um trabalho de educao sanitria atravs de visitas domiciliares e de reunies com as famlias. Com a idade mnima de 18 anos, a vontade de realizar um trabalho comunitrio e a disponibilidade de oito horas dirias, qualquer cidado da localidade podia se candidatar a uma vaga de agente de sade. Ganhando grande apoio popular, o programa obteve sucesso no controle e preveno do clera na Regio Norte e contribuiu, de forma decisiva, para o melhoramento dos indicadores de sade, principalmente a mortalidade infantil. Por este motivo, o Ministrio da Sade criou, em 1991, o Programa dos Agentes Comunitrios de Sade - PACS, onde o agente definido como um indivduo de idade mnima de 18 anos que sabe ler e escrever e reside h, pelo menos, dois anos na comunidade e integra a equipe de sade local, estando preparado para identificar problemas, sensibilizar e orientar as famlias e a comunidade para as questes relacionadas com a sade. De acordo com Viana e Dal Poz (1998:18), o Programa dos Agentes Comunitrios de Sade foi formulado tendo como objetivo central contribuir para a reduo da mortalidade infantil e mortalidade materna, principalmente nas regies Norte e Nordeste, atravs da extenso de cobertura dos servios de sade para as reas mais pobres e desvalidas. Estes Agentes Comunitrios de Sade (ACS) tm por principais atribuies especficas: mapeamento das residncias, cadastramento e diagnstico das famlias, identificao das reas de risco, realizao de visitas domiciliares priorizando a ateno s gestantes e crianas, mobilizao da comunidade para aes coletivas e ao intersetorial. Sua formao assegurada por enfermeiros (instrutores/supervisores) com dedicao integral e que trabalham numa unidade de sade. Para o efeito, utilizam uma srie de vinte e um vdeos e vrias publicaes da Coordenao de Sade da Comunidade - COSAC (que depois passou a ser chamada Coordenao da Ateno Bsica - COAB e, hoje, Departamento da Ateno Bsica - DAB). Cada enfermeiro pode assumir a

41

formao, o acompanhamento e a superviso de, no mximo, trinta agentes comunitrios de sade. Periodicamente, o enfermeiro instrutor/supervisor avalia o resultado das atividades dos agentes comunitrios com base nas informaes colhidas pelos mesmos e registradas num formulrio do Sistema de Informao da Ateno Bsica (SIAB), que constitui a base para a elaborao dos relatrios que permitem aos gestores municipais conhecer a realidade scio-sanitria da populao, acompanhar, avaliar, (re)adequar e melhorar a qualidade dos servios de sade. Para a implementao do Programa dos Agentes Comunitrios de Sade duas condies bsicas so exigidas: primeiro, que o municpio esteja habilitado em uma das condies de gesto previstas na Norma Operacional Bsica (NOB) 1/96 - Gesto Plena da Ateno Bsica ou Gesto Plena do Sistema Municipal; segundo, que o projeto seja aprovado na Comisso Intergestora Bipartite (CIB), aps sua apresentao e discusso no Conselho Municipal de Sade. O Programa coordenado pelo Secretrio Municipal de Sade que tem a responsabilidade de definir a unidade bsica de sade para cadastramento e referncia dos agentes comunitrios de sade, garantir infra-estruturas onde devem funcionar as unidades bsicas, comprovar a existncia do Fundo Municipal da Sade ou conta especial, contratar e remunerar os profissionais das equipes, garantir educao permanente aos profissionais e solicitar a adeso ao PACS Secretaria Estadual da Sade. A coordenao nacional deste programa ficou a cargo da Coordenao da Sade da Comunidade, especialmente criada para o efeito na dependncia da Fundao Nacional da Sade (FNS). A atuao dos agentes comunitrios no est regulamentada. Trata-se de um trabalhador temporrio, contratado pela prefeitura, sem vnculo empregatcio e sem qualquer direito trabalhista. Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que pretende profissionalizar a funo dos agentes comunitrios e acabar com a caracterstica de trabalho temporrio dos mesmos. Segundo o ento deputado Srgio Arouca (1991), no era necessria a transformao do agente comunitrio

42

em funcionrio pblico municipal, mas sim, proteger este profissional sem precisar criar mais uma profisso ou mais uma funo no servio pblico. A este respeito, convm notar que existem dois tipos de agentes comunitrios de sade: os contratados temporariamente pela prefeitura e os voluntrios ligados Pastoral da Criana da Igreja Catlica, que considera o trabalho voluntrio mais eficiente, uma vez que a contratao limita o trabalho do agente que tem a sua atuao condicionada pelo horrio. Os resultados alcanados pelo PACS estimularam os secretrios municipais de sade a expandir o programa a outros profissionais da sade e operacionalizar a rede bsica. Nesse sentido, por falta de recursos financeiros, comearam a pressionar as estruturas centrais, levando realizao de uma reunio nos dias 27 e 28 de dezembro de 1993, em Braslia, durante a qual foi concebido o Programa Sade da Famlia PSF, que viria a ser implantado, oficialmente, em maro de 1994. De acordo com Viana e Dal Poz (1998:21), na sua fase inicial, o Programa Sade da Famlia apresentava caractersticas de um programa vertical da Fundao Nacional da Sade e tinha por objetivo cobrir reas de risco selecionadas a partir do Mapa da Fome, do Instituto de Pesquisas Econmicas Aplicadas (IPEA). No decurso da sua atuao, e medida em que os resultados foram aparecendo, o Programa Sade da Famlia foi sendo gradualmente moldado at assumir, a partir de 1997, a estratgia de ateno primria para a reorientao do modelo assistencial, passando o Programa dos Agentes Comunitrios de Sade a ser considerado uma fase de transio para o PSF. Atualmente, o PACS existe como programa autnomo somente nos locais de difcil captao de mdicos e onde no possvel implantar o Programa Sade da Famlia. Essa evoluo de programa para estratgia foi influenciada por vrias circunstncias, entre as quais: a experincia internacional de pases como Canad, Cuba, Reino Unido, Estados Unidos da Amrica, entre outros, no desenvolvimento de modelos de assistncia famlia; a experincia interna de alguns municpios, tais como: Silos (Salvador), Em Defesa da Vida (Campinas), Saudicidade (Curitiba), Programa Mdico de Famlia (Niteri); a inexistncia, no momento, no Brasil, de nenhuma proposta

43

concreta de assistncia bsica para o Sistema nico de Sade, uma vez que o SILOS no tinha uma definio de cobertura; o sucesso do PACS como forma descentralizada de operao da poltica de sade; e a prpria NOB/96, que criou incentivos constituio de um Sistema nico de Sade a nvel municipal e a conformao de um novo modelo de ateno bsica. Alm disso, h que ter em conta as configuraes polticas internacionais que sugeriam um alargamento da cobertura assistencial sade, sem aumento de gastos, atravs da criao de pacotes mnimos dirigidos para a populao de baixa renda. Assim, o Programa Sade da Famlia passa a ser considerado uma estratgia que visa reverter o modelo assistencial tradicional, centrado no hospital e orientado para a cura de doenas, por outro centrado na famlia com incorporao de intervenes que ultrapassam as prticas curativas, baseadas numa melhor compreenso do processo sade/doena atravs da criao de vnculos e laos de compromisso e co-responsabilidade entre os profissionais da sade e a populao. A implantao do PSF feito a partir da unidade de sade da famlia (USF) constituda por uma (ou mais) equipe multiprofissional que cobre um territrio definido e a populao a ele adscrita, no seio da qual desenvolve aes de promoo da sade, preveno da doena, tratamento e reabilitao de agravos no nvel primrio e, quando necessrio, referncia para os nveis de maior complexidade tecnolgica. A unidade de sade da famlia passa a constituir a porta de entrada do sistema, sendo a equipe de sade da famlia, basicamente, constituda por: 1 mdico de famlia ou generalista 1 enfermeiro 1 auxiliar de enfermagem 4 a 6 agentes comunitrios de sade. Contudo, a equipe pode incorporar outros profissionais, dependendo da necessidade e disponibilidade financeira. As principais funes definidas para a equipe de sade da famlia so:

44

- Conhecer a realidade das famlias (social, demogrfica e epidemiolgica) e cadastr-las; - Identificar os problemas de sade e situaes de risco da populao; - Elaborar um plano local, com a participao da comunidade, para enfrentar os problemas de sade e situaes de risco; - Prestar assistncia integral, com enfoque na preveno sem descuidar do atendimento curativo nas reas de pediatria, gineco-obstetrcia, clnica mdica e clnica cirrgica (pequenas cirurgias ambulatoriais); - Desenvolver aes educativas para enfrentar os problemas de sade identificados. O Programa Sade da Famlia implanta-se no municpio com a participao do nvel estadual. Para tal, o municpio deve estar habilitado conforme uma das condies de gesto previstas na NOB 1/96 (Gesto Plena de Ateno Bsica ou Gesto Plena do Sistema Municipal) e, aps elaborar o projeto para implementao das equipes nas unidades bsicas e submet-lo apreciao do Conselho Municipal da Sade, remeter a proposta para a Secretaria Estadual de Sade (SES) que a analisa e encaminha para a Comisso Intergestora Bipartite (CIB). Aps a aprovao nesta instncia o municpio fica, ento, autorizado a proceder ao cadastramento das unidades de sade da famlia. A Secretaria Municipal da Sade estabelece contatos com SES e CIB, por um lado, e com as unidades de sade da famlia, por outro, sendo de sua responsabilidade: a coordenao da estratgia do Programa Sade da Famlia no municpio; o recrutamento, seleo, contratao e remunerao dos profissionais integrantes das equipes; o treinamento inicial e a capacitao das equipes como processo contnuo; a elaborao de um Sistema de Informao e Relatrio de Gesto para acompanhamento, avaliao de desempenho e evoluo do trabalho das equipes; a definio do fluxo de referncia e contra-referncia para servios de maior complexidade que asseguram a realizao de consultas especializadas, apoio diagnstico e internaes hospitalares; a organizao da comunidade para a participao na gesto do sistema e exerccio do controle social.

45

No nvel estadual, a Secretaria Estadual da Sade que desempenha o papel de interlocutor entre o Ministrio da Sade e os municpios, assumindo a responsabilidade de: participar na definio das normas e diretrizes da estratgia do Programa Sade da Famlia; planejar, acompanhar e avaliar a implementao do programa; negociar com a Comisso Intergestora Bipartite, os requisitos tcnicos e financeiros; integrar os plos de capacitao, formao e educao permanente para as equipes de programa; articular com as universidades e instituies de ensino superior (inovaes curriculares, cursos de ps-graduao e especializao); promover o intercmbio de experincias e articulaes com outras instncias da esfera estadual; identificar recursos tcnico-cientficos e parcerias com organizaes governamentais e no governamentais; contribuir para o incremento da gesto plena de ateno bsica dos municpios; prestar assessoria tcnica aos municpios. O governo federal assegura o gerenciamento e a organizao da estratgia do Programa Sade da Famlia atravs do Departamento da Ateno Bsica da Secretaria de Assistncia Sade que se incumbe de: definir normas e diretrizes do programa; definir os mecanismos de alocao de recursos federais; negociar com a Comisso Intergestora Tripartite; acompanhar e avaliar a implantao e resultados da estratgia do programa nos estados e municpios; assessorar os plos de capacitao, formao e educao permanente para as equipes de Sade da Famlia; articular com as universidades e instituies de ensino superior; incentivar intercmbio de experincias; promover articulaes com outras instncias da esfera federal; identificar recursos tcnico-cientficos; identificar e estruturar parcerias com rgos governamentais e no governamentais. No que diz respeito ao financiamento, inicialmente, era assegurado por convnios entre o Ministrio da Sade, estados e municpios, o que dificultava bastante o avano do programa devido sua pouca flexibilidade e ao carter centralizador da Fundao Nacional de Sade. Por isso, em 1995, o Programa Sade da Famlia foi transferido para a Secretaria de Assistncia Sade e iniciou-se a discusso para a incorporao de aes desenvolvidas pelo programa, no sistema de remunerao pela tabela de procedimentos do SIA/SUS

46

que veio a ser implementado a partir de janeiro de 1996. Com a NOB/96, foi criado o Piso da Ateno Bsica (PAB), composto de uma parte fixa, destinada assistncia bsica (remunerao per capita), sendo o seu valor mnimo de R$ 10,00 por habitante por ano para cada municpio habilitado, e uma parte varivel, destinada a incentivos para o desenvolvimento de aes estratgicas da Ateno Bsica (programas definidos como prioritrios para o Ministrio da Sade, entre os quais, o Programa Sade da Famlia e o Programa dos Agentes Comunitrios de Sade). O PSF financiado atravs das duas partes (fixa e varivel). O Piso da Ateno Bsica (e a sua composio) foi estabelecido pela Portaria no 1.882/GM, de 18/12/1997, e, atravs dele, repassado um valor per capita pelo Governo Federal aos municpios, que, somado s transferncias estaduais e aos recursos municipais, financia a Ateno Bsica Sade, definida como "um conjunto de aes, de carter individual ou coletivo, situadas no primeiro nvel de ateno dos sistemas de sade, voltadas para a promoo da sade, a preveno de agravos, o tratamento e a reabilitao (...) e que permitem avanar na direo de um sistema de sade centrado na qualidade de vida das pessoas e de seu meio ambiente" (MS,1999:9). Desta forma, o Piso da Ateno Bsica rompe com o mecanismo de repasse baseado na produo de servios, reduz a desigualdade na repartio dos recursos e proporciona ganhos em autonomia local (COSEMS-RJ,1999:27). A Portaria no 157/GM, de 12/02/1998, estabelece os critrios de distribuio e requisitos para a qualificao dos municpios aos incentivos ao Programa dos Agentes Comunitrios de Sade e ao Programa Sade da Famlia, definindo como incentivo os seguintes valores: I. II. para cada agente comunitrio de sade, R$ 1.500,00 por ano; para cada equipe de Sade da Famlia em: a) municpios com parte fixa do PAB maior ou igual a R$ 10,00 e menor que R$ 12,00, incentivo de R$ 21.000,00 por ano; b) municpios com parte fixa do PAB maior ou igual a R$ 12,00 e menor que R$ 14,00, incentivo de R$ 19.000,00 por ano;

47

c) municpios com parte fixa do PAB maior ou igual a R$ 14,00 e menor que R$ 16,00, incentivo de R$ 17.000,00 por ano; d) municpios com parte fixa do PAB maior ou igual a R$ 16,00 e menor que R$ 18,00, incentivo de R$ 15.000,00 por ano. Como parmetros de cobertura foram estabelecidos, para cada equipe de Sade da Famlia, 2.400 a 4.500 pessoas e para cada agente comunitrio de sade, 400 a 750 pessoas. Pouco depois, foi aprovada a Portaria no 3.122/GM, de 02/07/1998, que altera o artigo 4o da Portaria no 157/GM e estabelece novos valores para os incentivos ao PACS/PSF: R$ 2.200,00/ano, para cada agente comunitrio de sade e R$ 28.000,00/ano, para cada equipe de Sade da Famlia. Pela Portaria no 1.329/GM, de 12/11/99, foi estabelecida nova sistemtica para o clculo do incentivo financeiro ao Programa Sade da Famlia, parte integrante do PAB. Como critrio para a definio do valor do incentivo financeiro anual ao programa foi tomada a cobertura populacional das equipes no municpio, distribuda em nove faixas, tendo cada uma um valor diferenciado que varia de R$ 28.000,00, para a faixa I a R$ 54.000,00, para a faixa IX. O repasse feito mensalmente, de forma automtica, atravs do Banco do Brasil, pela modalidade fundo a fundo (do Fundo Nacional da Sade para o Fundo Municipal da Sade). Os recursos financeiros do Piso da Ateno Bsica devem ser utilizados apenas em despesas de custeio e capital relacionados entre as responsabilidades definidas para a gesto da Ateno Bsica conforme o Plano Municipal da Sade, sendo vedada a transferncia de recursos para o financiamento de aes no previstas no Plano (MS,1999:30). Para a qualificao aos incentivos, o municpio deve solicitar Secretaria Estadual de Sade o preenchimento da Ficha de Qualificao que, aps obter a concordncia da Comisso Intergestora Bipartite, enviada ao Ministrio da Sade que a publica no Dirio Oficial da Unio. Aps a qualificao, o municpio deve implantar o banco de dados do Sistema de Informao da Ateno Bsica (SIAB) e mant-lo atualizado.

48

Por meio do Projeto Reforo Reorganizao do Sistema nico de Sade REFORSUS, o Ministrio da Sade apoia o equipamento bsico das unidades de sade da famlia no nvel municipal (Aguiar,1998:72). A partir de novembro de 1997, tambm com recursos do REFORSUS, passou-se a promover a implementao de Plos de Capacitao para a formao e educao continuada do pessoal integrante das equipes de Sade da Famlia. Os Plos funcionam em instituies conveniadas com as Secretarias de Sade dos estados e municpios. As propostas apresentadas pelas Secretarias Estaduais de Sade so submetidas apreciao de uma comisso de anlise, criada pelo Ministrio da Sade, que procede sua classificao hierrquica em Plos de Capacitao, Projetos de Capacitao ou Projetos de Cursos. O recrutamento, seleo e contratao dos recursos humanos so da responsabilidade do municpio, contando com a assessoria da secretaria estadual. No existe um critrio definido de seleo, podendo ser utilizadas diversas modalidades que vo desde provas (escrita, prtica, terico-prtica), at entrevista e anlise de currculo. A modalidade de contratao tambm definida pelo municpio, assim como o montante da remunerao dos profissionais, que no obedece a qualquer parmetro. Compete tambm ao municpio definir os servios disponveis para a referncia e contra-referncia de casos: consultas de especialidade, servios de apoio diagnstico e internaes hospitalares. A contratao das unidades prestadoras de servios deve respeitar as seguintes normas: Primeiro, qualquer unidade de sade privada pode prestar servios ao Sistema nico de Sade, mediante um contrato previamente estabelecido; segundo, as unidades pblicas no precisam de contrato, sendo suficiente um termo de compromisso, celebrado entre os gestores, para que um municpio possa comprar servios de municpios vizinhos; terceiro, caso no exista no municpio unidades pblicas que realizam procedimentos de ateno bsica e estes s existirem a nvel do estado, dever ser estabelecido um convnio entre o municpio e o gestor estadual; e, por ltimo, no caso do municpio, habilitado na gesto plena da ateno bsica, existir uma unidade privada que presta servios

49

bsicos e especializados (mdia e alta complexidade), dever existir um contrato com o municpio para a prestao de servios bsicos (o municpio paga esses servios) e outro com o estado (que contrata e paga os servios especializados) (MS,1999:31-32). Estas mltiplas atribuies aos municpios, sem parmetros definidores das margens de atuao, podem constituir motivos para o afastamento dos objetivos preconizados no Sistema nico de Sade e nos programas PSF e PACS. Por outro lado, a no definio, pelo Ministrio da Sade, de um esquema mnimo que dever nortear o processo de referncia e contra-referncia dos casos pode dificultar a sua implementao ou, no mnimo, a sua operacionalizao, afetando, direta e profundamente, o princpio da integralidade da ateno defendida pelo Sistema nico de Sade e constante nos objetivos do Programa Sade da Famlia, assim como a resolutividade do programa. De acordo com Machado (2000), o sistema de contratao de profissionais normalmente utilizado no Programa Sade da Famlia, cria um vnculo precrio que, associado remunerao diferenciada, constituem fatores que podem ter uma repercusso negativa na dedicao e desempenho do profissional e na qualidade da sua prestao, comprometendo, no s, a qualidade dos servios, mas tambm, a alta resolutividade que se pretende com esse programa. Alm disso, pode constituir um motivo de descontentamento dos profissionais do programa, sobretudo mdicos, dificultando a sua fixao e resultando numa alta rotatividade dos mesmos, isto , opo por outros servios que oferecem melhores condies contratuais. A estratgia de territorializao e adscrio da clientela pode confrontar-se com o princpio da universalidade de ateno preconizado no Sistema nico de Sade, uma vez que, em reas populosas, uma parcela da populao pode ficar fora do sistema dado a limitao do nmero de famlias e habitantes que a equipe do Programa Sade da Famlia deve cadastrar. Entretanto, Viana e Dal Poz (1998:27) alertam para o fato de as experincias dentro do universalismo evidenciarem que se pode ter prticas focalizadas dentro de uma poltica universal

50

e que no h necessariamente conflito entre focalizao e universalizao, isto , os dois conceitos no precisam ser excludentes. Na nossa opinio, a designao "Programa Sade da Famlia" talvez tenha sido escolhida para neutralizar as divergncias quanto ao nome atribudo aos vrios modelos que o antecederam e, assim, ser aceita por todos, tanto mais que o PSF se apresenta como uma fuso desses modelos, dos quais di