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Prólogo

Encontrei estas páginas dispersas, sopradas sobre as pedras por um vento caprichoso. Algumas estavam demasiado chamuscadas para que as palavras fossem legíveis e outras desfizeram ‑se nas minhas mãos. Mas persegui ‑as, como se contassem a minha história e não a dela.

A história de Katherine, da tia Katherine, irmã da minha madrasta. A mesma Katherine que desejei em cada momento da minha vida, du‑rante os últimos quatro anos. A Katherine que surge nos meus sonhos percorrendo trilhos estranhos. Algumas dúzias de páginas maltrata‑das, sem qualquer peso na minha mão, com flocos de neve deslizando sobre elas, demasiado frios para se colarem ao papel.

Sentei ‑me no topo das ruínas fumegantes do meu castelo, sem me importar com o fedor dos mortos empilhados. As montanhas que se erguiam em redor faziam ‑nos parecer minúsculos, transformando em brinquedos a Presença e os engenhos de cerco dispostos em redor, esgotado o seu propósito. E, com olhos ardendo do fumo, com o vento frio gelando ‑me os ossos, li as suas memórias.

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Do diário de Katherine Ap Scorron3 de outubro, 98.° ano do InterregnoAncrath. O Castelo Alto. Sala da Fonte.

A Sala da Fonte é tão feia como qualquer outra sala neste castelo medonho. Não há qualquer fonte, apenas uma bica de onde a água pinga em vez de correr. As aias da minha irmã enchem o local, bordando, bordando sempre, e reprovando com estalos da língua contra os dentes por me verem escrever, como se a mancha da tinta fosse impossível de lavar.

Dói ‑me a cabeça e a raiz ‑lombrigueira não acalma a dor. Encontrei uma lasca de cerâmica na ferida, mesmo que Frei Glen diga que a limpou. Homenzinho horrível. A minha mãe ofereceu ‑me aquela jarra quando parti com Sareth. Os meus pensamentos alvoroçam ‑se e a minha cabeça dói ‑me e esta pena não para de tremer.

As senhoras bordam os seus pontos ligeiros e hábeis, ponto alinhado, pon‑to cruzado, ponto sobreposto. Agulhas pequenas e afiadas, mentes pequenas e rombas. Odeio ‑as e à forma como me reprovam sem nada dizerem. Odeio os seus dedos ocupados e o modo preguiçoso e típico de Ancrath como arrastam as palavras.

Li o que escrevi ontem. Não me lembro de o escrever, mas as palavras dizem que Jorg Ancrath tentou matar ‑me depois de assassinar Hanna, asfixiando ‑a. Suponho que, se o tivesse desejado realmente, ter ‑se ‑ia saído melhor depois de me ter partido na cabeça a jarra na minha mãe. Tem talento para matar, mes‑mo que seja o único. Sareth contou ‑me o que disse na corte acerca de todas as pessoas de Gelleth reduzidas a cinza pelas chamas… É tudo verdade. O castelo de Merl Gellethar já não existe. Conheci ‑o na minha infância. Um homem de face tão corada e astuciosa. Parecia capaz de me comer inteira. Não sinto pena dele. Mas todas aquelas pessoas. Não podiam ser todas más.

Devia ter apunhalado Jorg quando tive oportunidade. Se as minhas mãos fizessem com maior frequência o que lhes ordeno, se parassem de tremer en‑quanto seguram a pena, se aprendessem a bordar convenientemente, se apu‑nhalassem sobrinhos homicidas quando instruídas a fazê ‑lo… Frei Glen disse que o rapaz rasgou a maior parte do meu vestido. Estará arruinado. Muito para além dos cuidados até destas senhoras ocas com as suas agulhas e linhas.

Sou demasiado má. Culpo a dor na minha cabeça. Sareth diz ‑me que seja simpática. Que seja simpática. Maery Coddin não se limita a bordar e a espa‑lhar boatos. Mesmo que, neste momento, borde e reprove como todas as outras. Suponho que Maery merecerá que fale com ela sozinha. E basta. É simpatia suficiente para um dia. Sareth é sempre simpática e vejam onde isso a levou. Casou com um velho. Nem sequer com um velho bondoso, mas com um velho

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frio e assustador. E tem o ventre dilatado com uma criança que se tornará pro‑vavelmente tão selvagem como Jorg Ancrath.

Vou ordenar que enterrem Hanna no cemitério da floresta. Maery diz ‑me que repousará aí. Todos os criados do castelo são sepultados no cemitério da floresta, a não ser que as famílias os reclamem. Maery diz que me encontrará uma nova aia, mas parece ‑me tão frio limitar ‑me a substituir Hanna como se fosse renda rasgada ou uma jarra partida. Iremos amanhã, de carroça. Um homem faz ‑lhe o caixão. Sinto que crava os pregos na minha cabeça e não na madeira.

Devia ter deixado Jorg morrer no chão da sala do trono. Mas não me pa‑receu correto. Maldito seja.

Enterraremos Hanna amanhã. Era velha e queixava ‑se constantemente das suas dores, mas isso não significa que estivesse pronta para partir. Sentirei saudades suas. Era uma mulher dura. Cruel, talvez, mas nunca comigo. Não sei se chorarei quando a baixarmos para a cova. Devia chorar, mas não sei se o farei.

Fica para amanhã. Hoje, temos uma visita. O Príncipe da Flecha visita ‑nos, acompanhado pelo seu irmão, o Príncipe Egan, e pela sua comitiva. Creio que Sareth gostaria de me encontrar um marido entre eles. Ou talvez esteja desti‑nada ao velho Rei Olidan. Não há muitas ideias de Sareth que sejam realmente suas por estes dias. Veremos.

Parece ‑me que tentarei dormir agora. Talvez a minha dor de cabeça tenha desaparecido de manhã. E os sonhos estranhos também. Talvez a jarra da mi‑nha mãe me tenha libertado desses sonhos.

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Dia do casamento

Abre a caixa, Jorg.Olhei ‑a. Uma caixa de cobre, decorada com um padrão de espi‑

nhos, sem fechadura ou tranca.Abre a caixa, Jorg.Uma caixa de cobre. Demasiado pequena para conter uma cabeça.

Um punho de criança caberia.Um cálice, a caixa, uma faca.Olhei a caixa e os reflexos mortiços das chamas na lareira. O calor

não me alcançou. Deixei que ardesse. O Sol desceu sobre o horizonte e as sombras inundaram o espaço. Demorei o olhar sobre os carvões em brasa. A meia ‑noite encheu o salão e nem assim me movi, como se fosse esculpido em pedra, como se o movimento fosse um pecado. A tensão acumulava ‑se dentro de mim. Sentia o seu formigueiro na face, tornando ‑me o maxilar tenso. Senti a aspereza da mesa sob a ponta dos dedos.

A Lua ergueu ‑se e espalhou uma luz fantasmagórica sobre as lajes do chão. O luar encontrou o meu cálice, com o vinho intocado no inte‑rior, fazendo cintilar a prata. As nuvens taparam o céu e a chuva caiu na escuridão, suavizada por velhas recordações. Noite alta, abandona‑do pelo fogo, pela Lua e pelas estrelas, estendi a mão para a lâmina. Encostei o gume de aço frio contra o pulso.

A criança continuava deitada no canto, com os membros esticados em ângulos cadavéricos, demasiado arruinada para ser reparada por

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todos os cavalos e soldados do rei, como na rima infantil. Por vezes, parece ‑me que vejo mais fantasmas do que gente, mas este rapaz, esta criança de quatro anos, assombra ‑me.

Abre a caixa.A resposta estava na caixa. Sabia ‑o. O rapaz queria que a abrisse.

Mais de metade de mim também a queria aberta, desejando libertar essas memórias, por mais sombrias e perigosas que fossem. Tinham um apelo, como o limiar de um penhasco, mais intenso com cada momento que passava, prometendo a libertação.

— Não. — Virei a cadeira para a janela e para a chuva pronta para se transformar em neve.

Trouxe a caixa de um deserto capaz de queimar alguém sem preci‑sar do sol. Guardei ‑a durante quatro anos. Não recordava ter ‑lhe toca‑do alguma vez, não sabia quem seria o seu dono. Pouco sabia além do facto de conter um inferno que quase me destruiu a mente.

Fogueiras de acampamento tremeluziram à distância, por entre o gelo. Tão numerosas que revelavam a forma do terreno, o subir e descer das montanhas. Os homens do Príncipe da Flecha ocupavam três vales. Um único vale não conseguia conter o seu exército. Três va‑les abarrotando com cavaleiros e arqueiros, peões, piqueiros, homens com machados e homens com espadas, carroças e carretas, engenhos de cerco, escadas, cordas e breu para queimar. E, ao fundo, numa ten‑da azul, Katherine Ap Scorron com os seus quatrocentos perdidos na multidão.

Ela, pelo menos, odiava ‑me. Preferia morrer pelas mãos de alguém que desejava a minha morte, para que significasse alguma coisa.

Cercar ‑nos ‑iam dentro de um dia, bloqueando o último vale e os trilhos montanhosos a leste. Depois disso, veríamos. A Presença era minha desde que a conquistara ao meu tio. Passara quatro anos como Rei de Renar. Não abdicaria dela com facilidade. Não. Seria difícil.

A criança erguia ‑se à minha direita, exangue e silenciosa. Perma‑necia na sombra, mas conseguia vê ‑la na escuridão, mesmo assim. Mesmo com as pálpebras fechadas. Fitava ‑me com olhos que se pare‑ciam com os meus.

Afastei a lâmina do pulso e encostei a ponta aos dentes.— Que venham — disse. — Será um alívio.Era verdade.Ergui ‑me e espreguicei ‑me.— Fica ou parte, espírito. Vou dormir.Mentia.

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*Os criados vieram com a primeira luz e permiti que me vestissem. Parece algo tonto, mas, ao que parecia, havia coisas que os reis tinham de fazer. Até os reis com coroas de cobre e com um único castelo feio e terras que subiam e desciam em ângulos pouco propícios, cobertas com mais cabras do que gente. Descobri que os homens dão mais facilmente a vida por um rei vestido todas as manhãs por camponeses com dedos trapalhões do que por um rei que saiba vestir ‑se sozinho.

Quebrei o jejum com pão quente. O meu pajem tem ordens para esperar à porta dos meus aposentos com ele todas as manhãs. Makin aproximou ‑se de mim enquanto caminhava até à sala do trono, com os tacões ecoando sobre as lajes. Tinha sempre um talento especial para criar alarido.

— Bom dia, Alteza — disse.— Poupa ‑me a essa merda. — Migalhas voando para todo o lado.

— Temos problemas.— Os mesmos vinte mil problemas que tínhamos à porta a noite

passada? — perguntou Makin. — Ou problemas novos?Vislumbrei a criança atravessada numa porta pelo caminho. Os fan‑

tasmas não combinam com a luz do dia, mas aquele conseguia mostrar‑‑se em qualquer sombra.

— Problemas novos — disse eu. — Caso ‑me antes do meio ‑dia e não tenho nada para vestir.

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Dia do casamento

— A Princesa Miana está entregue aos cuidados do Padre Gomst e das Irmãs de Nossa Senhora — informou Coddin. Continuava a parecer desconfortável envergando os veludos do camareiro ‑mor. A farda de Mestre da Vigia assentara ‑lhe melhor. — Há verificações que precisam de ser feitas.

— Sintamo ‑nos gratos por ninguém precisar de verificar a minha pureza. — Recostei ‑me no trono. Confortável como o raio: penas de cisne e seda. Reinar é uma dor de cu suficiente sem uma daquelas cadeiras góticas. — Que aspeto tem?

Coddin encolheu os ombros.— Um mensageiro trouxe isto ontem. — Ergueu um estojo de

ouro com o tamanho aproximado de uma moeda.— E então? Que aspeto tem?Coddin voltou a encolher os ombros, abrindo o estojo com a unha

do polegar e semicerrando os olhos para a miniatura.— É pequena.— Dá cá! — Tirei ‑lhe o medalhão das mãos e olhei. Os artistas

que demoravam semanas a pintar aquelas coisas usando um único cabelo como ferramenta não fariam um retrato feio. Miana parecia aceitável. Não tinha a expressão dura de Katherine, o tipo de expressão que fará alguém perceber que a pessoa está realmente viva, devorando cada momento. Mas a verdade é que acho a maior parte das mulheres atraentes. Quantos homens são picuinhas aos dezoito anos?

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— E então? — perguntou Makin ao lado do trono.— Pequena — repeti, guardando o medalhão num bolso da túni‑

ca. — Sou demasiado jovem para o matrimónio? Questiono ‑me quan‑to a isso…

Makin esticou os lábios.— Casei aos doze anos.— Mentiroso! — Em todos aqueles anos, nunca Sir Makin de Trent

referira uma esposa. Surpreendera ‑me. É difícil guardar segredos na estrada, entre irmãos, bebendo cerveja à volta da fogueira após um dia duro a derramar sangue.

— Não minto — disse. — Doze anos é demasiado cedo. Os dezoito anos são uma boa idade para casar, Jorg. Esperaste tempo suficiente.

— O que aconteceu à tua mulher?— Morreu. Também houve uma criança. — Pressionou os lábios.É bom perceber que não sabemos tudo sobre um homem. É bom

que haja sempre mais alguma coisa.— Então, a minha futura rainha está quase pronta — disse. —

Devo dirigir ‑me ao altar com estes trapos? — Puxei o colarinho grosso de samito que me arranhava o pescoço. Não me importava, claro, mas um casamento é um espetáculo, tanto para nobres como para plebeus, uma espécie de feitiço lançado sobre todos. E compensa fazê ‑lo da for‑ma correta.

— Alteza — disse Coddin, caminhando para trás e para diante para exorcizar a sua irritação diante do estrado em que assentava o trono. — Esta… distração… não vem no momento certo. Temos um exército às portas.

— E é justo que se diga, Jorg, que ninguém sabia que vinha até enviarem aquele cavaleiro — disse Makin.

Ergui as mãos.— Não sabia que chegaria na noite passada. Não sou mágico, com‑

preendem? — Olhei de soslaio a criança morta encolhida num canto distante. — Esperei que chegasse antes do fim do verão. De qualquer forma, esse exército terá ainda de marchar uns bons cinco quilóme‑tros para chegar aos meus portões.

— Talvez um adiamento seja pertinente? — Coddin odiava ser o camareiro ‑mor com cada partícula do seu ser. Talvez fosse por esse motivo que era o único a quem confiaria o cargo. — Até que as condi‑ções sejam menos… inclementes.

— Vinte mil homens às portas, Coddin. E uma milena dentro das nossas muralhas. Bom… A maior parte lá fora porque o meu castelo

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é demasiado pequeno para que caibam cá dentro. — Dei comigo a sorrir. — Não me parece que as condições melhorem. Será positivo permitirmos que os soldados morram também por uma rainha e não apenas por um rei, não?

— E quanto ao exército do Príncipe da Flecha? — perguntou Coddin.

— Este será um daqueles momentos em que finges não ter um plano até ao último momento? — perguntou Makin. — Desco brindo‑‑se, então, que não tinhas realmente plano algum?

Apesar da ligeireza das palavras, o seu semblante era carregado. Pensei que talvez recordasse o seu filho morto. Enfrentara a morte comigo em ocasiões anteriores e fizera ‑o com um sorriso nos lábios.

— Tu, rapariga! — gritei a uma das criadas encolhidas no extremo oposto da sala do trono. — Diz àquela mulher que me traga uma túni‑ca digna com que me casar. Nada com renda. — Levantei ‑me e pousei uma mão no pomo da espada. — As patrulhas noturnas terão regres‑sado. Desceremos à ala oriental e veremos o que têm a dizer. Enviei Kent Vermelho e o Pequeno Rikey juntamente com uma das patrulhas da Vigia. Ouçamos o que pensam sobre estes homens da Flecha.

Makin foi à frente. Coddin mostrava ‑se nervoso acerca dos assas‑sinos. Quanto a mim, sabia o que se escondia nas sombras do meu castelo e não eram os assassinos a preocupar ‑me. Makin dobrou a es‑quina e Coddin segurou ‑me o ombro para que me deixasse ficar para trás.

— O Príncipe da Flecha não me quer apunhalado por um reles sicário, Coddin. Quer esmagar ‑nos com vinte mil homens e espalmar‑‑nos contra a terra. Pensa já no trono imperial. Pensa que conseguiu enfiar um dedo do pé além do Portão Dourado. Constrói a sua lenda e não será uma lenda de facas na escuridão.

— Claro que, se tivesses mais soldados, poderia valer a pena apunhalar ‑te. — Makin virou a cabeça e sorriu.

Encontrámos a patrulha à espera, batendo com os pés no chão para espantar o frio. Algumas das mulheres do castelo ocupavam ‑se dos feridos, dando um ou outro ponto. Deixei o comandante contar a sua história a Coddin enquanto chamava Kent Vermelho para meu lado. O vulto amplo de Rike erguia ‑se atrás dele sem ter sido convi‑dado para ali estar. Quatro anos no castelo não tinham conseguido adoçar qualquer uma das suas arestas. Continuava a passar dos dois metros de altura, com temperamento medonho e uma face que condi‑zia com a alma má e brutal no interior.

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— Pequeno Rikey — disse ‑lhe. Há algum tempo que não falava com o homem. Anos. — Como está a tua esposa encantadora? — Na verdade, nunca a tinha visto, mas seria, sem dúvida, uma mulher for‑midável.

— Partiu ‑se. — Encolheu os ombros.Afastei o olhar sem comentário adicional. Havia algo em Rike que

me motivava uma postura ofensiva. Algo elementar, feito de dentes e garras. Ou talvez fosse apenas por ser tão grande.

— E então, Kent? — disse eu. — Conta ‑me as boas notícias.— São demasiadas. — Cuspiu na lama. — Parto.— Ora. — Cobri ‑lhe os ombros com um braço. Kent não tinha

grande aspeto, mas era sólido, todo feito de músculo e osso e muito rápido. Mas o que o fazia destacar ‑se era a mente de assassino. Caos, ameaça, homicídio sangrento. Nada disso o incomodava. Todos os mo‑mentos de uma crise o faziam ponderar os ângulos, procurar armas e uma abertura, aproveitando ‑a quando a encontrava. — Ora. — Puxei‑‑o para mim, cobrindo ‑lhe a nuca com a mão. Senti ‑o encolher ‑se, mas, para seu crédito, não levou a mão ao ferro. — Está muito bem. — Afastei ‑o da patrulha. — Mas imagina que não acontecia. É só uma suposição. Supõe que estavas aqui sozinho, com vinte deles lá fora. Não é muito diferente dos números que conseguiste vencer quando te encontrámos na margem daquele lago em Rutton, não é? — Por um momento, aquilo fê ‑lo sorrir. — Como vencerias, Kent Vermelho? — Chamei ‑lhe Vermelho para lhe recordar esse dia, em que se erguera trémulo e com um sorriso cheio de dentes brancos manchados pelo escarlate do sangue de outros homens.

Mordeu o lábio, fitando um qualquer local atrás de mim.— Estão apertados, Jorg. Naqueles vales. Apertados. Cada homem

contra muitos outros. Terás de ser rápido a atacar e no movimento. Cada homem é o teu escudo dos seguintes. — Abanou a cabeça, vol‑tando a olhar ‑me. — Mas não podes usar um exército como se fosse só um homem.

Kent Vermelho tinha razão. Coddin treinara bem o exército, sobre‑tudo as unidades da Vigia da Floresta, mas, durante a batalha, a coesão perdia ‑se sempre. As ordens eram esquecidas, falhando o alvo, não sendo ouvidas ou sendo ignoradas e, mais cedo ou mais tarde, ocorria a carnificina, com cada homem por si. E os números começavam a indicá ‑lo.

— Alteza? — Era a mulher do guarda ‑roupa real, trazendo nas mãos uma túnica de algum tipo.

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— Mabel! — Ergui os braços e esbocei ‑lhe o meu sorriso perigoso.— Maud, senhor.Tive de admitir que a velha tinha arrojo.— Maud. Seja — disse ‑lhe. — Devo, então, casar ‑me nisto?— Se vos aprouver, senhor. — Dobrou mesmo os joelhos num

gesto de cortesia.Aceitei a túnica. Pesada.— Gatos? — perguntei. — Terão sido necessários muitos.— Zibelina. — Uniu os lábios. — Zibelina e fio de ouro. O Conde…

— Calou ‑se.— O Conde Renar casou ‑se com ela, é isso? — perguntei. — Se

serviu para aquele miserável, servirá para mim. Parece quente, pelo menos. — O meu tio Renar era meu devedor pelos espinhos, por uma mãe e um irmão perdidos. Tirara ‑lhe a vida, o castelo e a coroa e, mes‑mo assim, a dívida mantinha ‑se. Uma túnica de pele não a saldaria.

— Será melhor que nos apressemos, Alteza — disse Coddin com olhos que procuravam assassinos. — Teremos de verificar novamente as defesas. Planeai o abastecimento dos arqueiros de Kennick e es‑tudai as condições. — Em sua defesa, olhou ‑me fixamente enquanto dizia esta última parte.

Devolvi a túnica a Maud e deixei que me vestisse enquanto a patru‑lha observava. Não respondi a Coddin. Parecia pálido. Sempre simpa‑tizara com ele, desde o momento em que tentou prender ‑me até além do momento em que se atreveu a referir a rendição. Corajoso, sensato, capaz, honesto. Um homem melhor.

— Vamos acabar com isto — disse, dirigindo ‑me à capela.— Este casamento é realmente necessário? — Era outra vez

Coddin, insistindo em desempenhar o papel que lhe atribuíra. Disse‑‑lhe que falasse comigo. Que nunca me visse como sendo imune ao erro. — As coisas poderão mostrar ‑se duras para ela como tua esposa. — Rike riu ‑se ao ouvir aquilo. — Como hóspede, poderia ser enviada de volta para a Costa dos Cavalos após pagamento de um resgate.

Sensato. Honesto. Enquanto eu nem conseguia fingir estas coisas.— É necessário.Chegámos à capela por uma escada em espiral, passando por ca‑

valeiros de armadura completa, com as armas do Conde Renar ainda visíveis sob as minhas nas couraças, como se ali reinasse há quatro meses e não há quatro anos. Os nobres demasiado pobres, estúpidos ou leais para terem fugido perfilar ‑se ‑iam no interior. No pátio exte‑rior, aguardava a populaça. Sentia ‑lhes o cheiro.

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Parei diante das portas, erguendo um dedo para travar o cavaleiro com as mãos na tranca.

— Condições?Vi outra vez a criança por baixo dos estandartes que se cruzavam a

partir dos seus suportes na parede. Crescera comigo. Anos antes, fora um bebé, fitando ‑me com olhos mortos. Parecia ter cerca de quatro anos naquele momento. Tamborilei os dedos contra a testa, marcando um ritmo rápido.

— Condições? — repeti. Só a tinha dito duas vezes, mas a palavra parecia ‑me estranha, perdendo o significado como sucedia a qualquer uma que fosse repetida uma e outra vez. Pensei na caixa de cobre no meu quarto. Fez ‑me suar. — Não haverá quaisquer condições.

— Nesse caso, será melhor instruir o Padre Gomst a proferir rapi‑damente as palavras — disse Coddin. — Para começarmos a ocupar‑‑nos das nossas defesas.

— Não — disse eu. — Não haverá qualquer defesa. Vamos atacar.Empurrei o cavaleiro para o lado e abri as portas de rompante. Cor‑

pos enchiam a capela de parede a parede. Parecia que os meus nobres eram mais pobres do que julgava. E, à esquerda, uma paleta de azuis e violetas, aias e cavaleiros de armadura com as cores da Casa Morrow, as cores da Costa dos Cavalos.

Junto ao altar, com a cabeça baixa sob uma grinalda de lírios, a minha noiva.

— Raios — disse.«Pequena» fora a palavra certa. Parecia ter uns doze anos.

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Em tempos de paz, o Irmão Kent volta ao que foi, um camponês bondoso, buscando Deus em edifícios de pedra

onde os devotos se lamentam. A batalha quebra essas grilhetas.Em tempos de guerra, Kent Vermelho aproximava ‑se

da divindade.

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Dia do casamento

O casamento era a cola que mantinha a aparência de unidade entre os Cem, o bálsamo responsável por momentos dispersos de paz, por pau‑sas no avanço sangrento da Guerra dos Cem. E aquela pausa específica pairava sobre mim há quase quatro anos.

Caminhei pelo corredor central aberto entre os ricos e poderosos de Renar, nenhum deles muito rico ou muito poderoso. Investigara ‑os e metade deles tinha pastores de cabras como pais. Surpreendeu ‑me que tivessem ficado. No seu lugar, teria feito como Kent Vermelho, partindo sobre os Matteracks com o que conseguisse levar às costas.

Miana olhou ‑me, tão fresca e viçosa como os lírios que lhe de‑coravam a cabeça. Se a metade arruinada da minha face a assustou, não deu disso qualquer sinal. A necessidade de tocar as cicatrizes na bochecha atormentava ‑me as pontas dos dedos. Por um instante, o calor desse fogo atravessou ‑me e a memória da dor enrijeceu ‑me o maxilar.

Juntei ‑me à minha futura esposa perto do altar e olhei para trás. Nesse momento de clareza, compreendi. Aquela gente esperava que os salvasse. Ainda pensavam que, com o meu punhado de solda‑dos, conseguiria defender aquele castelo e ganhar o dia. Quase senti vontade de lhes dizer o que sabia quem me conhecesse. Havia em mim algo de quebradiço, que se fraturava antes de vergar. Talvez se o Príncipe da Flecha tivesse trazido um exército mais pequeno, pudesse ter tido a sensatez de fugir. Mas exagerou.

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Quatro músicos com vestes de gala ergueram as gaitas ‑de ‑fole e soaram a fanfarra.

— Usa a versão abreviada, Padre Gomst — disse ‑lhe em voz baixa. — Tenho muito para fazer hoje.

Franziu a testa ao ouvir aquilo. As sobrancelhas grisalhas aproxi‑maram ‑se.

— Princesa Miana, tenho o prazer de apresentar Sua Alteza, Honorous Jorg Ancrath, Rei do Planalto de Renar, herdeiro das terras de Ancrath e respetivos protetorados.

— Encantado — disse eu, baixando a cabeça. Uma criança. Mal me chegava às costelas.

— Compreendo porque foste pintado de perfil na miniatura — disse ela, dobrando os joelhos.

Fez ‑me sorrir. Podia estar destinado a ter um casamento de pouca duração, mas talvez não fosse aborrecido.

— Não tens medo de mim, Miana?Como resposta, ergueu a mão para a minha. Afastei ‑a.— É melhor não. Padre? — disse, incentivando o sacerdote a con‑

tinuar.— Caríssimos irmãos — disse Gomst. — Reunimo ‑nos aqui pe‑

rante Deus…E, assim, com velhas palavras na boca de um velho e sem alguém

presente com motivos ou tomates para se opor, o pequeno Jorgy Ancrath tornou ‑se um homem casado.

Levei a minha noiva para a saída da capela, com os aplausos e ur‑ras da nobreza ecoando no nosso encalço, quase conseguindo abafar aquelas malditas gaitas. A gaita ‑de ‑fole, uma tradição do Planalto, es‑tava para a música como os javalis para a matemática. A relação entre os dois elementos era praticamente inexistente.

As portas principais abriam para uma escadaria com vista para o pátio maior da Presença, o local onde tinha abatido o anterior pro‑prietário. Várias centenas de almas aglomeravam ‑se da muralha ex‑terior até às escadas, e muitas mais além dos portões, por baixo dorastrilho, com uma neve ligeira caindo sobre todos eles.

Ergueu ‑se deles um grito quando saímos. Peguei na mão de Miana nesse momento, apesar da necromancia que me subsistia nos dedos, erguendo ‑a bem alto para agradar à multidão. A lealdade de súbdito a senhor continuava a espantar ‑me. Mantinha ‑me gordo e rico à custa daquela gente, ano após ano, enquanto sobreviviam à justa nas encostas. E ali estavam, prontos para enfrentar comigo

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uma morte muito certa. Mesmo a fé cega na minha capacidade para superar situações desfavoráveis traria obrigatoriamente consigo al‑guma dúvida.

Percebi ‑o pela primeira vez alguns anos antes. Uma lição que não me fora ensinada pela vida na estrada ou pelos meus irmãos. O poder de um lugar.

A minha presença real foi exigida para administrar justiça na‑quilo a que, no Planalto de Renar, chamam «aldeia», mesmo que, em qualquer outro sítio, lhe chamassem: três casas e algumas caba‑nas. Ficava nos cumes. Chamavam ‑lhe Gutting. Ouvi dizer que existe uma Pequena Gutting um pouco mais acima no vale, sendo impro‑vável que seja muito mais do que um barril particularmente espa‑ çoso. De qualquer forma, a disputa fora motivada pela discórdia acer‑ca do ponto onde terminavam as pedras de um camponês sarnento e começavam as pedras de outro. Subi com Makin os novecentos me‑tros de montanha para demonstrar algum empenho no exercício da arte de reinar. De acordo com os relatórios, vários homens da aldeia tinham já morrido como consequência da disputa, percebendo ‑se, após inspeção mais atenta, que as baixas se limitavam a um porco e à orelha esquerda de uma mulher. Pouco tempo antes, teria matado toda a gente e descido a montanha com as suas cabeças espe tadas numa lança, mas talvez me sentisse cansado depois da escalada. Fosse como fosse, permiti que os camponeses sarnentos expusessem os seus argumentos e fizeram ‑no com entusiasmo e sem pressas. Começou a escurecer e as pulgas picavam, motivando ‑me a interrom‑per as coisas.

— Gebbin, não é? — perguntei ao queixoso. Acenou afirmativa‑mente. — Basicamente, Gebbin, o que se passa é que odeias este su‑jeito aqui e não percebo porquê. Mas sinto ‑me entediado, recuperei o fôlego e, a não ser que me expliques o motivo real para odiares…

— Borron — disse Makin.— Sim, Borron. Diz ‑me qual é o motivo real e sê sincero ou con‑

denarei à morte toda a aldeia com exceção desta mulher com a orelha em falta. Ficará encarregue de zelar pelo porco que resta.

Demorou alguns momentos a perceber que não era uma ameaça vã. Seguiram ‑se mais alguns momentos a gaguejar até desembuchar finalmente, admitindo que o odiava porque o sujeito era um «tranhai‑ro». Acabei por perceber que «tranhairo» significava «estrangeiro» e que o velho Borron era estrangeiro por ter nascido e vivido no lado oriental do vale.

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Os homens que focavam em mim e em Miana os seus gritos de júbilo, agitando as espadas no ar, batendo nos escudos e berrando até à rouquidão, poderiam dizer a quem perguntasse como se sentiam orgulhosos por Sua Alteza e pela sua nova rainha.

A verdade, no entanto, era que se limitavam a não querer que os homens da Flecha marchassem sobre as suas pedras, olhando as suas cabras com cobiça e, talvez, insinuando ‑se às suas mulheres.

— O Príncipe da Flecha tem um exército muito maior do que o teu — disse Miana. Nada de «sua alteza» ou «milorde».

— É verdade. — Continuei a acenar à multidão com um grande sorriso.

— Vai ganhar, não vai? — perguntou. Parecia ter doze anos, mas não falava como se tivesse doze anos.

— Que idade tens? — perguntei, olhando ‑a por um instante sem deixar de acenar.

— Doze.Maldição.— Podem ganhar. Se cada um dos meus homens não matar vinte

dos seus, é bem provável que ganhem. Sobretudo se nos cercarem.— A que distância estão? — perguntou.— A sua linha avançada está acampada a cinco quilómetros —

disse ‑lhe.— Então, devias atacar agora — disse ela. — Antes que nos cer‑

quem.— Eu sei. — Começava a afeiçoar ‑me à rapariga. Até um soldado

experiente como Coddin, um bom soldado, queria encolher ‑se atrás das muralhas da Presença, deixando que o castelo provasse a sua for‑taleza, passe o trocadilho. Mas nenhum castelo conseguiria resistir àquela disparidade de forças. Miana sabia o que Kent Vermelho tam‑bém sabia. O mesmo Kent Vermelho que tinha devastado uma patru‑lha de dezassete soldados numa manhã quente de agosto. Matar exige espaço. É preciso andar, avançar, recuar. E, por vezes, é preciso fugir. Sem mais nem menos.

Mais um aceno e virei as costas à multidão, regressando à capela.— Makin! A Vigia está pronta?— Sim. — Acenou com a cabeça. — Meu Rei.Desembainhei a espada.A aparição súbita de metro e meio de aço com farpas na casa de

Deus motivou um gemido de espanto aprazível.— Vamos.

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Do diário de Katherine Ap Scorron6 de outubro, 98.° ano do InterregnoAncrath. O Castelo Alto. Capela. Meia ‑noite.

A capela de Ancrath é pequena e dada a correntes de ar, como se não tives‑sem tido muito tempo para se ocupar com a sua construção. As velas dançam e as sombras nunca se aquietam. Depois de partir, o ajudante do frade irá apagá ‑las.

Jorg Ancrath partiu há quase uma semana. Levou Sir Makin com ele, retirando ‑o das masmorras. Agrada ‑me que o tenha feito. Gostei de Sir Makin e não o posso culpar pelo que aconteceu a Galen. Foi Jorg, mais uma vez. Uma besta! Não conseguiria vencer Galen com uma espada. O rapaz desconhece qualquer conceito de honra.

Frei Glen diz que Jorg quase me arrancou o vestido quando me bateu. Guardo ‑o no fundo de uma arca de enxoval que a minha mãe me preparou antes de partir do Forte Scorron. Guardo ‑o onde as aias não procuram e as mi‑nhas mãos conduzem ‑me até ele. Passo os farrapos entre os dedos. Cetim azul. Toco ‑o e tento recordar. Vejo ‑o ali, com os braços erguidos, desafiando a faca na minha mão e sentindo ‑me cambalear como se me custasse manter ‑me de pé, com a pele lívida e a mancha negra à volta do ferimento no peito. Parecia tão jovem. Quase uma criança. Com aquelas cicatrizes no local onde os espinhos o rasgaram. Sir Reilly diz que o encontraram pendurado, quase sem pinga de sangue, após uma noite no espinheiro, acompanhado pela tempestade e pela mãe morta.

A seguir, bateu ‑me.Toco o local agora mesmo. Ainda o sinto dorido. A crosta inchada. Penso

se conseguirão vê ‑la sob o cabelo. A seguir, tento perceber porque me importa isso.

Estou dorida também aqui em baixo. Com nódoas tão negras como aquela mancha. Quase consigo ver as marcas dos dedos na minha coxa. A impressão de um polegar.

Bateu ‑me e usou ‑me. Violou ‑me. Não terá significado nada para ele, um mercenário da estrada. Foi apenas mais uma coisa de que podia apossar ‑se. Uma insignificância entre os seus crimes. Talvez não tenha sido sequer o seu maior crime cometido contra mim, pois sinto a falta de Hanna e chorei real‑mente quando a enterrámos. E sinto saudades de Galen, pela ousadia do seu sorriso e pelo calor que despertava em mim sempre que se aproximava.

Bateu ‑me e usou ‑me? Aquele rapaz doente, desafiando a faca, quase inca‑paz de se manter de pé?

*

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11 de outubro, 98.° ano do InterregnoAncrath. O Castelo Alto. Os meus aposentos.

Vi Frei Glen no Salão Azul hoje. Deixei de participar na sua Eucaristia, mas vi ‑o no salão. Vi ‑lhe as mãos, os dedos grossos, os polegares grossos. Vi ‑os e pensei nas nódoas negras que vão desaparecendo, estando já amarelas. Aproximei‑‑me da arca e aqui estou, com o cetim rasgado nas mãos.

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Pele, ossos e malícia são os elementos constituintes do Irmão Gog. Monstruoso de nascença e crescimento, mas pouco

o distingue de Adão, além do carmesim sobre negro do seu couro, das covas escuras dos olhos, das garras cor de ébano nas mãos e pés e das projeções espinhosas que lhe crescem pela espinha acima. Vendo ‑o brincar, correr e rir, parece demasiado confortável para ser uma nesga no mundo

por onde os fogos do Inferno se poderão infiltrar.Mas vejam ‑no arder e acreditarão.

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Quatro anos antes

Apossei ‑me do trono do meu tio no meu décimo quarto ano de vida e constatei que me agradava. Tinha um castelo e criadas para explorar, uma corte de nobres para suprimir ou, pelo menos, o que se consideraria serem nobres no Planalto, além de um tesouro para saquear. Durante os primeiros três meses, limitei ‑me a estas atividades.

Acordei banhado em suor. Normalmente, acordo de repente, com a mente desentorpecida, mas senti que me afogava.

— Quente demais…Rebolei e caí da cama, aterrando pesadamente.Fumo.Gritos à distância.Destapei a lanterna na mesa ‑de ‑cabeceira e subi o pavio. O fumo vinha

das portas. Não se infiltrava por baixo ou entre cada porta, erguendo ‑se de cada centímetro de madeira chamuscada e formando uma cortina on‑dulada.

— Merda…Morrer queimado fora sempre uma preocupação. Uma ligeira fraqueza,

digamos. Há quem tenha medo de aranhas. Eu tenho medo da imolação. E também de aranhas.

— Gog! — gritei.Estava na antecâmara quando me recolhi. Avancei para as portas, apro‑

ximando ‑me de lado. Projetavam um calor terrível. Podia sair por ali ou tentar

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passar por entre as grades de qualquer uma das três janelas, e logo pensaria‑numa forma de lidar com a queda de trinta metros.

Tirei um machado do suporte decorativo na parede e mantive as costas contra a pedra, ao lado das portas. Doíam ‑me os pulmões e não conseguia ver bem. Brandir o machado parecia ‑me tão difícil como brandir o corpo de um homem adulto. A lâmina atingiu o alvo e as portas explodiram. Fogo de um branco alaranjado rugiu pelo quarto a dentro, quente como uma forna‑lha e formando uma língua grossa que se bifurcava uma e outra vez. E, de forma quase tão súbita, esmoreceu, desaparecendo como uma tosse se fin‑da, não deixando nenhum sinal da sua presença além do chão chamuscado e de uma cama que ardia.

A antecâmara parecia mais quente do que o meu quarto, negra do chão ao teto, com um enorme carvão em brasa no centro. Cambaleei de volta à cama. O calor fez ‑me lacrimejar e, por um momento, a minha visão clareou. O carvão era Gog, encolhido como um recém ‑nascido e palpitando com chama.

Algo volumoso se destacou da porta que conduzia aos guardas do outro lado. Gorgoth! Ergueu o rapaz numa mão com três dedos e usou a outra para o esbofetear. Gog acordou com um grito súbito e o seu fogo extinguiu ‑se imediatamente, não deixando nada para trás além de uma criança inerte com a pele tingida de vermelho e negro e exalando um fedor a carne queimada.

Sem dizer nada, passei por eles e permiti que os meus guardas me aju‑dassem a afastar ‑me.

Quase precisaram de me arrastar para a sala do trono, até recuperar a minha força.

— Água — consegui dizer. E, depois de ter bebido e de usar a faca para cortar as pontas chamuscadas do meu cabelo, gritei, tossindo: — Tragam os monstros.

Makin entrou no salão, calçando ainda uma manopla.— Outra vez? — perguntou. — Outro fogo?— Mau desta vez. Um inferno — disse ‑lhe. — Pelo menos, já não precisa‑

rei de olhar para a mobília do meu tio.— Não podes deixá ‑lo dormir no castelo — disse Makin.— Sei isso — retorqui. — Agora, pelo menos.— Põe fim a isto, Jorg. Rapidamente. — Makin tirou a manopla. Afinal,

não estávamos sob ataque— Não podes permitir que se vá. — Coddin chegou, com olheiras bem

visíveis. — É demasiado perigoso. Alguém o usará.E ali estava. Gog precisava de morrer.Três batidas nas portas principais e foram abertas. Gorgoth entrou na

sala do trono com Gog, flanqueado por quatro cavaleiros da minha guarda

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pessoal, parecendo crianças a seu lado. Vistos entre homens, os leucrota pa‑reciam tão monstruosos como no dia em que os encontrara sob o Monte Honas. Os olhos de gato de Gorgoth estavam reduzidos a nesgas, apesar da penumbra. O couro apresentava ‑se vermelho como sangue, quase negro, como se tivesse sido infetado durante a noite.

— Que idade tens, Gog? Uns oito anos? E ocupado a tentar incendiar o meu castelo. — Senti os olhos de Gorgoth em mim. As grandes projeções ósseas que lhe partiam da caixa torácica fletiam ‑se para trás e para diante com cada inspiração.

— O grandalhão resistirá — murmurou Coddin junto ao meu ombro. — Será difícil de abater.

— Oito anos — repetiu Gog. Não sabia, mas gostava de concordar comigo. A sua voz fora aguda e doce quando nos conhecemos sob o Monte Honas. Naquele momento, estava rouca e continha o crepitar da chama, como se pudesse começar a expelir fogo como um maldito dragão.

— Levo ‑o para longe — disse Gorgoth, com voz tão grave que era quase inaudível. — Muito longe.

Joga as peças certas, Jorg. O silêncio alongou ‑se.Não me sentaria neste trono se Gorgoth não tivesse defendido o portão.

Não estaria ali sentado se Gog não tivesse queimado os homens do Conde. Sentia ainda a pele da cara dorida, os pulmões ainda me ardiam e o fedor a cabelo queimado ainda me preenchia as narinas.

— Lamento pela tua cama, Irmão Jorg — disse Gog. Gorgoth bateu ‑lhe no ombro com um dedo e o impacto foi suficiente para o fazer cambalear. — Rei Jorg — corrigiu Gog.

Não me sentaria no trono sem o contributo de muita gente, sem um amplo leque de variáveis, algumas improváveis, algumas roubadas. Sem o sacrifício de muitos homens, alguns melhores, outros piores. Um homem não conseguirá suportar novos fardos de dívida a cada passo ou vergará ao peso e não conseguirá mover ‑se.

— Estavas pronto para entregar esta criança aos necromantes, Gorgoth — disse ‑lhe. — A ele e ao seu irmão. — Não lhe perguntei se morreria para proteger Gog. Isso era ‑lhe visível na face.

— As coisas mudam — disse Gorgoth.— Disseste que seria melhor que tivessem uma morte rápida. — Ergui‑

‑me. — As mudanças seriam demasiado rápidas nestes. Com rapidez que não conseguiriam suportar. As mudanças virá ‑los ‑iam do avesso, disseste.

— Que corra esse risco — disse Gorgoth.— Quase morri na minha cama, esta noite. — Desci do estrado. Makin

estava junto ao meu ombro. — Os aposentos reais estão reduzidos a cinzas.

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E morrer na cama nunca fez parte do meu plano. A não ser como imperador, velho e senil, por baixo de uma concubina jovem e demasiado enérgica.

— Não pode ser evitado. — As mãos de Gorgoth fecharam ‑se, formando punhos imensos. — Está no seu dena.

— No seu lema? — Apoiei a mão no punho da minha espada. Recordei como Gog lutara para salvar o seu irmãozinho. Como fora pura essa fúria. Sentia falta dessa pureza em mim. Ainda no dia anterior, todas as escolhas tinham sido fáceis. Branco ou negro. Apunhalar Gemt no pescoço ou não o fazer. E naquele momento? Tonalidades de cinzento. Um homem afogar ‑se ‑á em tonalidades de cinzento.

— No seu dena. A história de cada homem, escrita no seu âmago. O que é. O que será. Tudo isso inscrito num nó no âmago de todos nós — disse Gorgoth.

Nunca tinha ouvido o monstro dizer tantas palavras de seguida.— Abri muitos homens, Gorgoth, e, se tiverem alguma coisa escrita den‑

tro deles, estará escrita a vermelho sobre vermelho e cheirará mal.— A vossa geometria não consegue encontrar o âmago de um homem,

Alteza. — Fixou em mim aqueles olhos de gato. Também nunca antes me tinha chamado «Alteza». Era, provavelmente, o máximo que se aproximaria de implorar.

Fitei Gog, agachado, movendo o olhar entre mim e Gorgoth. Simpatizava com o rapaz. Pura e simplesmente. Tínhamos os dois um irmão morto que não tínhamos conseguido salvar. Ambos tínhamos algo que nos queimava, alguma força elementar destrutiva querendo possuir cada momento de cada dia.

— Senhor — disse Coddin, percebendo o que pensava, para variar. — Estes assuntos não devem preocupar o rei. Ocupa os meus aposentos e voltaremos a falar de manhã.

Parte e faremos por ti o teu trabalho sujo. A mensagem era suficiente‑mente clara. E Coddin não desejava fazê ‑lo. Se conseguia perceber o que pensava, também eu o percebia a ele. Não queria cortar o pescoço ao seu cavalo quando uma pedra solta o deixava coxo. Mas fá ‑lo ‑ia. Fá ‑lo ‑ia naquele momento. O jogo dos reis nunca era um jogo limpo.

Joga as tuas peças.— Não pode ser evitado, Jorg. — Makin pousou ‑me uma mão no ombro,

falando com voz suave. — É demasiado perigoso. Não sabemos no que se transformará.

Joga as tuas peças. Vence o jogo. Enfrenta a fileira mais dura.— Gog — disse. Ergueu ‑se lentamente, mantendo os olhos nos meus.

— Dizem ‑me que és demasiado perigoso. Que não posso manter ‑te comigo.

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Ou deixar ‑te ir. Que és um risco que não valerá a pena correr. Uma arma que não poderá ser empunhada. — Virei ‑me, olhando a sala do trono, os tetos altos, as janelas sombrias, olhando Coddin, Makin, os cavaleiros. — Despertei um sol dos Construtores por baixo de Gelleth e esta criança é demasiado para mim?

— Foram tempos desesperados, Jorg — disse Makin, mantendo os olhos no chão.

— Todos os tempos são desesperados — argumentei. — Julgas que esta‑mos seguros aqui, nas nossas montanhas? Este castelo poderá parecer gran‑de no interior. A quilómetro e meio de distância, é possível cobri ‑lo com um polegar. — Olhei Gorgoth. — Talvez precise de uma nova geometria. Talvez precisemos de encontrar este dena e verificar se a história poderá ser rescrita.

— O poder da criança está descontrolado, Jorg — disse Coddin. Um ho‑mem de coragem, ousando falar num dos meus momentos de completo empenho retórico. O tipo de homem de que precisava. — Tornar ‑se ‑á mais selvagem ainda.

— Levo ‑o para Heimrift — disse eu. Gog é uma arma e forjá ‑lo ‑ei aí.— Heimrift? — Gorgoth descontraiu os dedos, com as articulações esta‑

lando de forma sonora.— Um sítio de demónios e de fogo — murmurou Makin.— Um vulcão — disse eu. — Quatro vulcões, na verdade. E um mago da

chama. Pelo menos, foi o que me disse o meu tutor. Testemos os benefícios de uma educação real. Gog, pelo menos, gostará do sítio. Tudo arde.

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Quatro anos antes

— É má ideia, Jorg.— É uma ideia perigosa, Coddin. Mas isso não significa que seja má.

— Pousei a faca sobre o mapa, impedindo ‑o de voltar a enrolar ‑se.— Quaisquer que sejam as hipóteses de sucesso, deixarás o teu reino sem

rei. — Espetou a ponta de um dedo no mapa, cobrindo a Presença como se pretendesse mostrar ‑me qual o meu lugar. — Só passaram três meses, Jorg. As pessoas ainda não sabem o que esperar de ti. Os nobres começarão a conspirar mal partas, e quantos soldados levarás contigo? Com o trono vazio, o Planalto de Renar poderá parecer uma presa fácil. O teu real pai poderá mesmo decidir visitar ‑nos com o Exército do Portão. Se for necessário de‑fender este sítio, não sei quantas das tropas do teu tipo responderão ao teu chamado.

— O meu pai não enviou o Portão quando a minha mãe e irmão foram assassinados. — Fechei os dedos sobre o punho da faca sem perceber que o fazia. — É pouco provável que avance agora contra a Presença. Sobretudo quando os seus inimigos estão já ocupados a capturar o que resta de Gelleth.

— Quantos soldados levarás? — perguntou Coddin. — A Vigia não será suficiente.

— Não levarei nenhum — respondi. — Podia levar o exército inteiro e o único resultado seria provocar uma guerra em terras que não me perten‑cem. — Coddin parecia prestes a protestar. Antecipei ‑me. — Levarei os meus irmãos. Agradar ‑lhes ‑á o tempo passado na estrada e conseguimos viajar li‑vremente há poucos anos sem que ninguém nos incomodasse demasiado.

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Makin voltou com vários mapas grandes enrolados debaixo do braço.— Disfarçados? — perguntou, sorrindo. — Ótimo. Verdade seja dita, este

sítio provoca ‑me comichão nos pés.— Ficarás, Irmão Makin — disse ‑lhe. — Levarei Kent Vermelho, Row,

Grumlow, o jovem Sim… e Maical, porque não? Pode ser um imbecil, mas é difícil de matar. E o Pequeno Rike, claro…

— Ele não — disse Coddin, mantendo ‑se inexpressivo. — É incapaz de lealdade. Deixar ‑te ‑á morto numa moita.

— Preciso dele — disse ‑lhe.Coddin franziu a testa.— Pode ser útil em combate, mas é incapaz de qualquer subtileza ou de

aceitar disciplina. Não é inteligente e…— Na minha opinião — disse Makin —, Rike não conseguirá fazer uma

omelete sem se submergir até às coxas em sangue de galinha, usando as suas entranhas como colar.

— É um sobrevivente — disse ‑lhe. — E preciso de sobreviventes.— Precisas de mim — disse Makin.— Não podes confiar nele. — Coddin esfregou a testa como sempre fazia

quando se preocupava.— Preciso de ti aqui, Makin — disse eu. — Quero um reino para onde

possa regressar. E sei que Rike não merece confiança, mas quatro anos na estrada ensinaram ‑me que é a ferramenta certa para esta tarefa.

Ergui a faca e o mapa voltou a enrolar ‑se.— Vi que chegue.Makin ergueu o olhar e deixou cair os mapas por abrir sobre a mesa.— Traça ‑me um caminho decente, Coddin, e pede ao aprendiz de escriba

que o copie. — Endireitei as costas. Precisava de procurar alguma coisa para vestir. Uma das criadas tinha queimado os meus velhos trapos e o veludo não servia para a estrada. Era como um íman de pó.

O Padre Gomst encontrou ‑se comigo, com Makin e com Kent no caminho para os estábulos. Apressara ‑se a vir da capela, com a face corada, prendendo de‑baixo do braço a bíblia mais pesada e segurando a cruz do altar na outra mão.

— Jorg… — Parou para recuperar o fôlego. — Rei Jorg.— Juntar ‑te ‑ás a nós, Padre Gomst? — A forma como empalideceu fez ‑me

sorrir.— A bênção — disse este, continuando sem fôlego.— Ah. Abençoa à vontade.Kent ajoelhou ‑se imediatamente. Nunca conhecera assassino mais piedo‑

so. Makin imitou ‑o com pressa pouco digna de um homem que saqueara uma

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catedral. Desde que Gomst partira de Gelleth iluminado pelo sol dos Construtores, não levando mais do que um bronzeado como consequência, os Irmãos pare‑ ciam achar que fora tocado por Deus. O facto de todos termos feito o mesmo com muito menos tempo ao nosso dispor não foi interiorizado por deles.

Da minha parte, apesar de todos os males da Igreja de Roma, deixava de conseguir forçar ‑me a desprezar Gomst como outrora. O seu único crime real era o facto de ser um homem fraco e impotente, incapaz de espalhar a salvação do seu Deus e o amor do seu salvador ou sequer de colocar o jugo de Roma sobre os pescoços do seu rebanho com alguma convicção.

Baixei a cabeça e ouvi a oração. É sempre recomendável cobrir todas as possibilidades.

Na ala ocidental, o meu bando reunia ‑se, examinando o equipamento. Rike tinha o maior cavalo que alguma vez vira.

— Conseguiria correr mais depressa do que este monstro, Rike. — Olhei teatralmente para trás. — Não trouxeste o arado quando o roubaste?

— Servirá — disse. — É grande que chegue para transportar o saque.— Maical não traz a carroça dos mortos? — Olhei em redor. — Onde se

meteu?— Foi buscar o Cinzento — explicou Kent. — O idiota recusa ‑se a montar

qualquer outro cavalo. Diz que não saberia fazê ‑lo.— Aí têm o que é a lealdade. — Fixei um olhar em Rike. — Onde está essa

tua nova mulher, Irmão Rikey? Não vem despedir ‑se de ti?— Ocupada com o arado. — Aplicou uma palmada no cavalo. — É mais

difícil agora.Gorgoth saiu pela porta da cozinha, parando atrás de Rike. Era pertur‑

bador ver uma criatura de duas pernas mais alta e larga que Rike. Gog saiu de trás dele. Pegou ‑me na mão e deixei que me conduzisse. Não haveria muitos dispostos a pegar ‑me na mão desde que a necromancia se enraizou dentro de mim. Há um toque de morte nos meus dedos. Não é apenas o frio. As flores murcham e morrem.

— Onde vamos, Irmão Jorg? — Era ainda a voz de uma criança, mesmo com o crepitar.

— Procurar um mago da chama. Para pôr fim a esta queima de camas — disse ‑lhe.

— Doerá? — Fixou em mim os olhos negros grandes e profundos.Encolhi os ombros.— É possível.— Medo — disse ele, apertando mais a minha mão. Sentia o calor irradia‑

do pelos seus dedos. Talvez anulasse o frio que sentia. — Medo.

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— Bom… — disse — Vamos na direção certa.Franziu a testa.— Terás de enfrentar os teus medos, Gog. Terás de os vencer. São os nos‑

sos únicos amigos verdadeiros.— Não tens medo de nada, Irmão Jorg — disse ele. — Rei J…— Tenho medo de ser queimado — admiti. — Sobretudo na cama. — Olhei

os irmãos, vendo ‑os guardar armas e mantimentos. — Tive um primo que gostava de queimar pessoas. Não era assim, Irmão Row?

— Sim — respondeu, acenando com a cabeça.— O meu primo Marclos — continuei. — Conta a Gog o que lhe aconteceu.Row testou a ponta de uma flecha com o polegar.— Foste ter com ele sozinho e mataste ‑o entre uma centena dos seus

soldados.Olhei Gog.— Também tenho medo de aranhas. É a forma como andam. E a forma

como ficam imóveis. É aquele movimento rápido das pernas. — Olhei Row. — Como sou com as aranhas, Row?

— Estranho. — Row cuspiu no chão e verificou a última flecha. — Vais gostar desta história, Gog. Por seres um monstro sem Deus. — Voltou a cus‑pir. O Irmão Row gostava de cuspir. — Passámos uma semana perdidos num celeiro, certa vez. Escondidos. Não passámos fome. Ratazana com cereal dá um bom guisado. Só Jorg não alinhava naquilo. O sítio estava cheio de aranhas. Grandes e peludas. — Abriu as mãos até as articulações estalarem. — Jorg caçou ‑as durante uma semana inteira. Durante uma semana, só co‑meu aranhas. Sem as cozinhar. E sem sequer as matar.

— O guisado de ratazana passou a saber sempre bem depois dessa sema‑na — disse eu.

Gog franziu a testa e os seus olhos captaram um brilho no meu pulso.— O que é isto? — apontou.Arregacei a manga e ergui o braço para que todos vissem.— Encontrei duas coisas no tesouro do meu tio que valem mais do que

o ouro que as rodeava. Pensei em trazê ‑las para o caso de serem necessá‑rias. — Assegurei que Rike via a prata no meu pulso. — Não te servirá de nada remexer nos meus alforges à noite, Pequeno Rikey. O tesouro está aqui. Se o quiseres, podes ficar com ele. Tenta.

Arreganhou os dentes e fechou outra correia.— O que é? — Gog parecia hipnotizado.— É obra dos Construtores — expliquei. — Tem dez mil anos.Row e Kent Vermelho aproximaram ‑se para ver.— Dizem ‑me que se chama relógio — afirmei.

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REI DOS ESPINHOS

Tinha olhado muito para o objeto. Tinha um mostrador, por baixo de cristal, com doze horas e sessenta minutos marcados e dois braços pretos que se moviam, um lento, outro ainda mais lento, indicando a hora. Fascinado, tinha ‑o aberto com a ponta da faca, olhando as entranhas da coisa. A cober‑tura traseira abriu sobre uma dobradiça minúscula, como se os Construtores tivessem sabido que quereria ver o que tinha dentro. Rodas dentro de rodas. Ínfimas, com dentes, girando sempre. Não conseguia perceber como con‑seguiam fazer coisas tão pequenas e precisas, mas considerava aquilo uma maravilha superior a qualquer sol ou luz incandescente de fabrico humano.

— O que mais tens, Jorg? — perguntou Rike.— Isto. — Tirei ‑o do bolso fundo à cintura e pousei ‑o sobre as lajes do

chão. Um palhaço de metal amolgado com vestígios de tinta no colete, no cabelo e no nariz.

Kent deu um passo atrás.— Parece malévolo.Ajoelhei ‑me e puxei uma lingueta atrás da cabeça do palhaço. Com um

estremeção, começou a bater com os pés e a aproximar as mãos que segu‑ravam címbalos. Moveu ‑se num círculo apertado, fazendo barulho, sem ir a parte alguma.

Rike começou a rir ‑se. Não era o seu «hur, hur, hur» que parecia apenas raiva de outro tipo, mas uma gargalhada real, subindo ‑lhe do ventre.

— É como… como… — Não conseguia falar.Os outros não conseguiram conter ‑se. Sim e Maical foram os primeiros

a ceder. Grumlow riu por entre o bigode de ratazana afogada que cofiava. Depois Kent Vermelho e até Row. Todos rindo como crianças. Gog continuou a olhar, espantado. Até Gorgoth sorriu, mostrando molares semelhantes a pedras tumulares.

O palhaço caiu e continuou a agitar pernas e braços. Rike caiu com ele, golpeando o chão com o punho e esforçando ‑se para encher os pulmões.

O palhaço abrandou, antes de parar. Tinha uma mola de aço azulado no interior que se apertava com uma chave. Quando terminava de mover braços e pernas, a mola ficava novamente frouxa.

— Burlow… Burlow devia ter visto isto. — Rike limpou as lágrimas dos olhos. Foi a primeira vez que o ouvi mencionar algum dos caídos.

— Sim, Irmão Rike — concordei. — Devia. — Imaginei o Irmão Burlow rindo ‑se connosco, com a barriga tremendo.

Foi um dos nossos momentos, um daqueles marcos recordados na vida. A irmandade estava reconstituída para a estrada. Criámos o nosso momento. O último momento bom.

— Está na hora de partir — disse ‑lhes.

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Por vezes, penso se não teremos todos uma mola de aço azulado dentro de nós, como o dena referido por Gorgoth, apertado no nosso âmago. Penso se não andaremos todos a agitar pernas e braços, uma e outra vez, movendo‑‑nos em círculos apertados que não vão a parte alguma. E penso em quem se rirá de nós.

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mark lawrence«Disse a Sageous que os meus pecados exigiam

mais e pretendo dar-lhes companhia. Queimarei e sulcarei, e as terras de Orrin, a herança sangrenta de Egan, ser-me-ão entregues. Serei Rei da Flecha, da Normardia, de Conaught, de Belpan, dos Pântanos de Ken, de Orlanth e do Planalto de Renar. Possuirei estas terras e transformarei as suas gentes numa arma. Com fogo e sangue, vergá-las-ei à minha vontade porque este é um jogo sem regras e sairei vitorioso a qualquer custo.

Escrevo isto enquanto acampamos após um dia de viagem árdua. Coloco uma mão encolhida e hirta sobre páginas tão brancas quanto o ouro conseguirá pagar. Talvez fossem destinadas a pensamentos mais dignos, mas �xo nela os meus. Sageous escre-veu as palavras na pele e isso enfraqueceu-o. O meu pai guarda-as para si e isso torna-o menos do que humano. Escrevo aqui as minhas, como se a tinta e o papel pudessem levar a minha culpa.»

O Príncipe Jorg Ancrath jurou vingar a morte da mãe e do irmão, brutalmente assassinados quando ele tinha apenas 9 anos. Jorg cresce na ânsia de saciar o seu desejo de vingança e de poder, e, ao �m de quatro anos, cumpre a promessa que fez — mata o assassino, o Conde de Renar, e toma-lhe o trono. Aos 18 anos, Jorg luta agora por manter o seu reino, e prepara-se para enfrentar o inimigo poderoso que avança em direção ao seu castelo.

Jorg sempre conquistou os seus objetivos matando, mutilando e destruindo sem hesitar, e agora não pretende vencer a batalha de forma justa, mas sim recorrendo aos mais terríveis segredos.

Será que o anti-herói mais maquiavélico de sempre vai conseguir reunir os recursos e as forças necessárias para

enfrentar uma batalha que parece invencível?

«Mark Lawrence é uma revolução no mundo da literatura fantástica»PETER V. BRETT, autor bestseller do New York Times

«Sombrio e poderoso.»Library Journal

mark

lawrence

Ele sabe que não pode vencer uma luta justa,mas isso nunca fez parte dos seus planos.

Quando a coroa é um peso difícil de suportar.

MARK LAWRENCEÉ um escritor britânico, casado, pai de quatro �lhos e, além de romancista, é também investigador no campo da inteligência arti�cial, tendo já colaborado com os governos norte-americano e britânico.

Estreou-se na escrita com Príncipe dos Espinhos, em 2011, também publicado pela Topseller. Esta obra foi �nalista dos prémios Goodreads Choice Award, na categoria de Melhor Livro Fantástico 2011, entre outras importantes nomeações.

Traduzido em mais de 20 línguas, Mark Lawrence é ainda autor de outras séries bestseller como �e Red Queen’s War.

Conhece melhor o autor em: www.marklawrence.buzz• TRILOGIA DOS ESPINHOS •

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