PRADO JR., Bento. a Filosofia Seminal de Bergson

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22/10/2014 Folha Online - Brasil 500 http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_2_4.htm 1/4 Reprodução O filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), autor de "Matéria e Memória" ASSINE BATE-PAPO BUSCA E-MAIL SAC SHOPPING UOL O pensamento do intelectual francês antecipou e pode revitalizar o atual debate filosófico (29/8/1999) A filosofia seminal de Bergson BENTO PRADO JR. Quando resolvi finalmente publicar, há dez anos, meu livro sobre Bergson (escrito em 1964), ouvi de Gérard Lebrun o seguinte comentário: "Pena! Você o deveria ter publicado de imediato". O que estava implícito na observação era o quanto o livro era "datado", impregnado pela atmosfera dos anos 60, como estava distante do debate filosófico dominante no fim dos anos 80: no fundo, um tiro na água. Essa circunstância não me escapava, como se pode ver nas duas frases que encerram a nota preliminar que abre meu texto: "Se me abalanço, no entanto, a publicá-lo hoje, a despeito de tudo, é porque me parece justificado convidar à leitura dos grandes filósofos. Se meu livro levasse o leitor a reler Bergson particularmente nestes tempos de carência eu me consideraria absolvido de meu pecado de juventude". Não se tratava para mim, na ocasião, de um simples gesto retórico: com a última frase queria exprimir um mal-estar efetivamente vivido, a sensação fortemente desagradável de uma banalização crescente da filosofia, de uma escolarização ou tecnificação asfixiantes do pensamento, de que o desinteresse por Bergson seria um dos sintomas. Um exemplo dessa atmosfera que se dissipara: em 1959, Merleau-Ponty apontava, num discurso de homenagem ao filósofo (em "Éloge de la Philosophie et Autres Essais"), no Congresso Bergson, a fortuna paradoxal da obra no século, bem como o esquecimento progressivo da sua importância e de sua virulência. Distinguia na verdade três etapas: o bergsonismo "en se faisant", militante, que inquietava católicos e radicais, provocando resistência universal, o momento da glória e do reconhecimento e, finalmente, a reconciliação, pela via dos herdeiros espiritualistas, com o establishment. Merleau-Ponty mostra como foi possível, ao pensador que revolucionou a filosofia e as letras, tornar-se canônico, perdendo o olor de enxofre que emanava de seus livros. Nas entrelinhas, Merleau-Ponty apresentava a filosofia da existência como a verdadeira herdeira do espírito vivo do bergsonismo. Leiamos apenas a última frase do discurso de Merleau-Ponty: "Seu esforço Leia mais: Marilena Chaui Bento Prado Jr. Erro e alienação Um convite à falsificação Dois estilos de Hegel A filosofia seminal de Bergson A morte, uma vida Descartes, esse cavaleiro Literatura e mistério da bola O novo estilo do pensamento Poesia ao sol do meio-dia Milton Santos Evaldo Cabral de Mello Jurandir Freire Costa José Murilo de Carvalho Hermano Vianna Luiz Costa Lima

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Matéria de Bento Prado Jr. para a Folha de São Paulo, sobre o pensamento de Bergson.

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Reprodução

O filósofo francês Henri Bergson (1859-1941),autor de "Matéria e Memória"

ASSINE BATE-PAPO BUSCA E-MAIL SAC SHOPPING UOL

O pensamento do intelectual francês antecipou e poderevitalizar o atual debate filosófico

(29/8/1999)

A filosofia seminal de Bergson

BENTO PRADO JR.

Quando resolvi finalmentepublicar, há dez anos, meu livrosobre Bergson (escrito em 1964),ouvi de Gérard Lebrun o seguintecomentário: "Pena! Você o deveriater publicado de imediato". O queestava implícito na observaçãoera o quanto o livro era "datado",impregnado pela atmosfera dosanos 60, como estava distante dodebate filosófico dominante no fimdos anos 80: no fundo, um tiro naágua. Essa circunstância não meescapava, como se pode ver nas duas frases que encerram a nota preliminar que abre meu texto:"Se me abalanço, no entanto, a publicá-lo hoje, a despeito detudo, é porque me parece justificado convidar à leitura dosgrandes filósofos. Se meu livro levasse o leitor a reler Bergsonparticularmente nestes tempos de carência eu me considerariaabsolvido de meu pecado de juventude".

Não se tratava para mim, na ocasião, de um simples gestoretórico: com a última frase queria exprimir um mal-estarefetivamente vivido, a sensação fortemente desagradável de umabanalização crescente da filosofia, de uma escolarização outecnificação asfixiantes do pensamento, de que o desinteressepor Bergson seria um dos sintomas.

Um exemplo dessa atmosfera que se dissipara: em 1959,Merleau-Ponty apontava, num discurso de homenagem ao filósofo(em "Éloge de la Philosophie et Autres Essais"), no CongressoBergson, a fortuna paradoxal da obra no século, bem como oesquecimento progressivo da sua importância e de sua virulência.Distinguia na verdade três etapas: o bergsonismo "en se faisant",militante, que inquietava católicos e radicais, provocandoresistência universal, o momento da glória e do reconhecimentoe, finalmente, a reconciliação, pela via dos herdeirosespiritualistas, com o establishment.

Merleau-Ponty mostra como foi possível, ao pensador querevolucionou a filosofia e as letras, tornar-se canônico, perdendoo olor de enxofre que emanava de seus livros. Nas entrelinhas,Merleau-Ponty apresentava a filosofia da existência como averdadeira herdeira do espírito vivo do bergsonismo. Leiamosapenas a última frase do discurso de Merleau-Ponty: "Seu esforço

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Marilena Chaui

Bento Prado Jr.

Erro e alienaçãoUm convite à falsificaçãoDois estilos de HegelA filosofia seminal deBergsonA morte, uma vidaDescartes, esse cavaleiroLiteratura e mistério da bolaO novo estilo dopensamentoPoesia ao sol do meio-dia

Milton Santos

Evaldo Cabral de Mello

Jurandir FreireCosta

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e sua obra, que recolocaram a filosofia no presente e mostraramo que pode ser, hoje, uma aproximação ao ser, ensinam tambémcomo um homem de outrora permanecia irredutível, que não sedeve dizer nada que não se possa "mostrar"..."

De lá para cá, dos anos 70 até muito recentemente, um eclipserecobriu a obra de Bergson, assim como a filosofia viva do pós-guerra francês. No entanto, uma mudança radical de perspectivaparece estar ocorrendo neste fim de século, que traz novamenteas figuras de Bergson e de Merleau-Ponty para o proscênio,satisfazendo minha esperança na revitalização da filosofia. NaFrança, é claro, onde se multiplicam trabalhos acadêmicos epublicações sobre Bergson (deixemos para o "Jornal deResenhas" desta Folha a consideração do seminal "LeBergsonisme", de Deleuze, que aqui não poderia caber), mas umpouco por toda parte, mesmo nos países de língua inglesa, quenem sempre lhe reservaram a melhor acolhida.

Para dar apenas um exemplo, F.C.T. Moore, discípulo de GilbertRyle e de Michael Dummett, empenhou-se em livro recente pormostrar, como veremos, a importância e a atualidade de Bergsonpara leitores da "tradição analítica", demonstrando aincompreensão e os mal-entendidos que impregnavam o duroataque de Bertrand Russell.

Numa palavra, parece que o pensamento contemporâneo,percorrendo linhas diferentes (fenomenologia, análise lógica,teoria das estruturas cognitivas), veio encontrar em seu limiteúltimo, lá onde cada uma delas se confronta consigo mesma ecom seu "outro", algumas das idéias fundamentais de Bergson.Arriscando uma fórmula: é a efígie de Bergson que aparece noshorizontes emergentes da filosofia da mente "pós-computacional", da "pós-fenomenologia" e da "filosofia pós-analítica".

É o que se pode ver, começando pelas "ciências cognitivas". Em"Bergson, Thinking Backwards", F.C.T. Moore, que se empenha ajusto título em "déniaiser" (digamos, "desasnar") os leitores deformação estritamente "analítica", não explora suficientementeas pistas que dá sobre a atualidade de Bergson nesse campo. É oque me sugeriu meu colega João Teixeira, da pós-graduação defilosofia da Universidade Federal de São Carlos, em comunicaçãopessoal que me servirá de guia neste item.

Com efeito, se Moore mostra bem como Bergson, pensando emoutros problemas, antecipou literalmente as razões reutilizadas,no final da década de 80, em combate à concepçãocomputacional da mente (na qual a cognição é visada comomanipulação simbólica desvinculada da ação), não chega a levarsua observação às suas consequências mais sugestivas.

Mais positivamente poderia, por exemplo, mostrar o paralelismoevidente entre a teoria bergsoniana da inteligência e as teoriascognitivas mais recentes, que reconstituem sua gênese a partirda ação e da percepção (como é o caso da "Nova Robótica", deR. Brooks, e da "Escola Chilena", de Maturana e Varella -cf., deJoão Teixeira, "Mentes e Máquinas"). O mesmo poderia ser dito arespeito da idéia da estrutura do organismo e da naturezaseletiva dos dispositivos sensoriais, valorizada por cientistascognitivos bem atuais (como Andy Clark, "Being There",1996),que criticam a idéia de representação; Clark reporta-seexplicitamente a Merleau-Ponty, mas poderia ou deveriareportar-se a Bergson, como recomendaria o próprio autor da"Fenomenologia da Percepção".

Ou ainda, a respeito da idéia bergsoniana da consciência como"campo estruturado em termos de ações potenciais", pois éexatamente essa idéia que é retomada e desenvolvida porneurocientistas contemporâneos importantes como William Calvin

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("The Cerebral Symphony", 1990, e "How the Brain Thinks",1996). Finalmente, o mesmo João Teixeira, que trabalhou nosEUA com Daniel Dennett, aponta, na crítica que este endereça àsociobiologia de Wilson como reducionismo que deforma osprincípios da psicologia evolucionária e da gênese do juízo moral,a retomada inconsciente das análises da "Evolução Criadora" edas "Duas Fontes da Moral e da Religião". Em "Darwin'sDangerous Idea", Dennett reencontraria, de algum modo, oespírito crítico do bergsonismo.

No campo da fenomenologia a relação com Bergson é maiscomplexa, já que alguma cumplicidade estava dada desde início.

Husserl, ao ler "Os Dados Imediatos da Consciência", teria aíreconhecido sua própria filosofia (segundo o testemunho, se nãome engano, de Roman Ingarden). Mas é sobretudo comHeidegger (para quem, todavia, em "Ser e Tempo", Bergsonemparelha com Aristóteles e Kant, nas etapas da desconstruçãoda significação vulgar e metafísica do tempo) que se esboçadesde cedo uma distância polêmica, mais que crítica. No caso deHeidegger é o "biologismo" de Bergson que se constitui como a"bête noire" a ser abatida, como pude verificar detalhadamenteem 1963, lendo uma tese alemã sobre (ou contra?) Bergson porele orientada.

Algum eco desse antibergsonismo se encontra, sem a mesmahostilidade, até mesmo na obra de existencialistas franceses(Sartre, por exemplo, que todavia confessa ter descoberto afilosofia lendo os "Dados Imediatos"). Sublinha-se o hiato quesepara o "vital" do "existencial". Já o texto do discurso deMerleau-Ponty em homenagem a Bergson, acima referido, éjustamente significativo de algo como uma tentativa de resgate ereaproximação, de indicação de correntes profundas decumplicidade, sob a aparência superficial de oposição radicalentre o "naturalismo" de Bergson e o estilo transcendental dafenomenologia. "Matéria e Memória" não era justamente umaanálise "transcendental" que tentava evitar os escolhos dafilosofia da representação, abrindo caminho para o pensamento,além ou aquém da alternativa idealismo/realismo?

Era bem o que reconhecia o último Merleau-Ponty, com o lugarreservado a Bergson em "O Visível e o Invisível" e com sua idéiade uma nova filosofia da Natureza, que implica repensar a claradistinção anterior entre as três ordens: a física, a vital e ahumana (na qual é visível também a marca daquele outrobergsoniano que era Whitehead).

É bem seguindo a trilha de Merleau-Ponty, na direção de umaversão não "idealista" da fenomenologia husserliana (isto é, queevita o, digamos, "objetivismo de segundo grau" implícito noprivilégio não refletido dos atos objetivantes da vida daconsciência, no privilégio do "Cosmothéoros"), que caminhamalguns filósofos contemporâneos, reencontrando e reativando aempresa bergsoniana. Penso aqui, em particular, na obra deRenaud Barbaras, especialmente em seu último livro, "Le Désir etla Distance - Introduction à une Phénoménologie de la Perception"(Ed. Vrin).

Para refazer, assim, a fenomenologia da percepção, recuandomais que a fenomenologia clássica para aquém da partilha entrea coisa e seu "aparecer" (que reitera a oposiçãoobjetivo/subjetivo), reencontramos a iniciativa bergsoniana ou asua versão da Redução Transcendental: a crítica da idéia deNada. Redução que é a abertura de um campo a um só tempopré-subjetivo e pré-objetivo, operação que consiste em "buscar aexperiência em sua fonte ou, antes, abaixo dessa "viragem"("tournant') decisiva, onde, infletindo no sentido de nossautilidade, ela se torna propriamente a experiência humana"("Matiére et Mémoire", Ed. du Centenaire, pág. 321). Frase de

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Bergson que seria, talvez, a melhor expressão do projeto de umafenomenologia da percepção de Renaud Barbaras.

Não faltam, tampouco, os herdeiros de Wittgenstein que,reivindicando o retorno à esquecida dimensão moral outerapêutica do novo método, reencontram, talvez sem o saber,um dos vetores essenciais do bergsonismo. É o caso de GordonBaker, um dos maiores conhecedores de Wittgenstein, para quemessa dimensão essencial (bem exposta, segundo ele, porWaisman em "How I See Philosophy") "não tem lugar nasofisticada tecnologia da moderna filosofia analítica". Essaconvergência na definição do "télos" e do estilo da filosofiatransparece de modo luminoso na maneira como ambosenfrentam a "questão fundamental da filosofia", ou seja, apergunta: por que há o Ser e não o Nada?

Os textos cruciais são a "Conferência sobre a Ética" (1929) deWittgenstein e "Le Possible et le Réel" (1930) de Bergson(atenção às datas!). Para Bergson essa pergunta "fundamental"remete a um falso problema, que deriva de uma confusão entreos domínios da teoria e da prática. A suposição daproblematicidade do Ser pressupõe a possibilidade de serepresentar o Nada absoluto, isto é, uma impossibilidade lógico-psicológica, que nada mais exprime do que um déficit ao mesmotempo teórico e vital. A busca do fundamento ou da certezaabsolutos não é índice de rigor teórico, mas cegueira diante daimpossibilidade da dúvida absoluta, doença da vontade.Wittgenstein, na sua conferência, desqualifica do mesmo modo aquestão do fundamento do Ser: "Mas é um não-sentido dizer queme espanta a existência do mundo, pois não posso imaginar que ele não existe".

Em todo caso, para ambos os filósofos, a filosofia é umaatividade que consiste essencialmente em análise conceitual;melhor, uma análise que visa ao descarrilhamento dos conceitospor um mau uso do entendimento ou da linguagem ou, ainda, poruma espécie de paralisia da imaginação teórica, que nos tornaprisioneiros de imagens hipnóticas e enganadoras. Análise que,dissolvendo os falsos problemas da metafísica (da filosofiaentendida como posse teórica do mundo), restitui-nos uma visãomais clara das coisas (visão sinóptica ou intuição) e uma vidamais saudável e limpa.

Tudo se passa como se os dois filósofos, talvez os maiores doséculo 20, nos lembrassem da vocação essencialmente ética dafilosofia. De que, implicando necessariamente a tecnicidade daanálise, não pode se converter em mera atividade técnico-profissional sem perder a sua essência. Podemos encerrar nossocomentário endossando, assim, o desejo expresso por GordonBaker na última frase de seu ensaio: "A renovação da visão dafilosofia de Waisman transformaria seguramente a totalidade dacena intelectual pós-wittgensteiniana tanto as auto-imagens dos"soi-disants" filósofos analíticos quanto seu "être pour autrui'!".

Leia mais: A morte, uma vida