Pós-Nacionalidade e Ethos Universal: o Problema Da Identidade e...
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Titulo: Pós-Nacionalidade e Ethos Universal: o Problema Da Identidade e da
Governança Global Autor: Marcos Paulo Santa Rosa Matos
Publicado em: Revista Eletrônica de Direito Internacional, vol. 7, 2010, pp.
240-274 Disponível em: http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/volume7/
ISSN 1981-9439
Com o objetivo de consolidar o debate acerca das questões relativas ao Direito e as Relações Internacionais, o Centro de Direito Internacional – CEDIN - publica semestralmente a Revista Eletrônica de Direito Internacional, que conta com artigos selecionados de pesquisadores de todo o Brasil. O conteúdo dos artigos é de responsabilidade exclusiva do(s) autor (es), que cederam ao CEDIN os respectivos direitos de reprodução e/ou publicação. Não é permitida a utilização desse conteúdo para fins comerciais e/ou profissionais. Para comprar ou obter autorização de uso desse conteúdo, entre em contato, [email protected]
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PÓS-NACIONALIDADE E ETHOS UNIVERSAL: O PROBLEMA
DA IDENTIDADE E DA GOVERNANÇA GLOBAL
Marcos Paulo Santa Rosa Matos
RESUMO
Este artigo busca tecer reflexões de cunho filosófico e filosófico-jurídico acerca da crise estatal e nacional
dos séculos XX e XXI. Busca-se, assim, colocar analiticamente em tensão Estado, Mercado e Sociedade,
no intuito de abstrair os processos gerais de transformação e de acomodação da sociedade global. O
problema da governança global é tratado num segundo momento a partir dessa crise nacional e analisado
segundo a articulação entre os três atores sociais que se notabilizam na contemporaneidade. O Tratado de
Ottawa surge assim como um exemplo privilegiado e singular de ordenamento da Sociedade Mundial em
torno do principal fundamento de sua legitimidade: os direitos humanos. O referido tratado se notabiliza
não somente por disciplinar sobre direitos e garantias humanas, mas por integrar de maneira inédita na
história o tripé social a que já nos referimos. Longe de querer ser um estudo anatômico do problema pós-
nacional, a presente produção almeja apenas ser um discurso propedêutico que se agrega ao sem-número
de reflexões sobre o assunto. Ao invés de soluções, erige princípios de análise e recortes teóricos que
ajudam a alumiar a dupla questão aqui tratada.
PALAVRAS-CHAVE: Pós-nacionalidade; Governança global; Sociedade Civil
Organizada; Tratado de Ottawa.
1 INTRODUÇÃO
A contemporaneidade se caracteriza pela liquidez e pelo nomandismo das
estruturas simbólicas criadas ao longo da história para dar solidez aos estatutos
societários e civilizatórios. Um novo mundo incógnito e instável surge imperioso sobre
a lógica e a razão moderna, fazendo cair por terra a organização disciplinar e dedutiva
da realidade. Ressurge a sensibilidade, a totalidade e a intuição como fundamentos da
natureza do ser humano e de seus espaços, agora chamado de Homo sapiens-demens
(MORIN, 2000: 52; 58).
Essa é a grande crise do século XX, herdada pelo século atual, e certamente o
grande desafio político, jurídico, social, econômico e cultural a ser enfrentado no
alvorecer desse novo milênio. Não somos mais um mundo sedentário, no sentido
Graduando em Licenciatura em Letras e Bacharelado em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e
Sociais AGES. E-mail: [email protected].
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antropológico de ser; talvez nunca o tenhamos sido, mas agora o nomandismo ganhou
força e feições nunca vistas na história, ele atinge o cerne mesmo da pessoa humana:
sua identidade, sua concepção do “ser-eu”. Nossos sistemas de negociação cultural e de
regulação política, que englobam todos os demais mecanismos da práxis social, não
estão dando conta de resolver os impasses pós-modernos: experimentamos a falência
das instituições. Como consequência de tudo isso, o seio das comunidades e mesmo a
psique das pessoas se vê surpreendida por um modus vivendi baseado no abrandamento,
na fragilização e na provisoriedade das vinculações subjetivas, na aleatoriedade e na
indeterminação, no estranhamento e no medo (JUSTO, 2006: 26; 30). Há também um
acirramento na interdependência mundial entre pessoas e instituições (VIEIRA, 2007:
9).
No âmbito das relações internacionais essa imprevisibilidade e complexidade
têm espaço na crise de autoridade e na imbricada teia de relações entre os diversos
sistemas de organização humana, que se veem profundamente relacionados em
interdependência mútua. Isso pode ser ilustrado pelos reiterados insucessos da ONU,
particularmente de seu Conselho de Segurança, quanto à garantia da paz e ao refrear dos
objetivos megalomaníacos das superpotências mundiais, notadamente dos EUA
(VIEIRA, 2006: 74), e pelas grandes crises do mercado global experimentadas em 1995
(efeito Tequila), e entre 2007 e 2009 (crise financeira internacional).
A instabilidade do sistema global exige assim atenção redobrada dos atores
globais, seja devido às consequências sociopolíticas dos processos econômicos, seja
pelos seus efeitos jurídicos e diplomáticos. Para tanto, os diversos países buscam
agrupar-se em blocos político-econômicos de modo a distribuir o impacto das
repercussões dos aparentes esquizofrênicos processos societários hodiernos,
assegurando assim um mínimo de segurança, além de reforçar o compadrio e a
comunhão internacional, pressupostos para a sobrevivência dos Estados e de sua
soberania. Mas renunciam, devido a essas escolhas, a um controle jurisdicional restrito
de seu território e à clareza quanto ao estatuto de nacionalidade e de estrangeria,
fazendo surgir assim sociedades e identidades pós-nacionais.
É esse problema que buscaremos abordar neste artigo: o conflito entre
articulação econômica global e organização política nacional. Dessa tensão surge a
temática da governança global, ao mesmo tempo como problema, proposta e solução
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para o mundo pós-nacional. Fulgura assim, como princípio e paradigma dessa
governança a experiência de Ottawa no processo de negociação para a assinatura do
Tratado de Banimento de Minas Terrestres, que nos dá um série de lições acerca da
convivência entre Estados, Mercado e Sociedade Civil, tornando-se assim um ensaio
que prenuncia e representa um processo diplomático na sociedade pós-moderna, que –
não obstante as mudanças vivenciadas no ínterim milenar – ainda permanece como uma
realidade a ser concretizada.
Nossa abordagem se dará em três dimensões: antropológica, econômica e
política. Com isso busca-se explorar os três grandes elementos da estrutura societária
atual (DOWBOR, 2000: 86): a Sociedade Civil, entendida como a antípoda ou anteato
do Estado (BOBBIO, 2004: 49.), o Mercado e o Estado, tendo em vista a centralidade
da pessoa humana (VIERIA, 2006: 13). Preliminarmente é importante destacarmos que
concebemos a relação entre esses superatores globais a partir do paradigma da
complexidade, ou seja: os “elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo
[...], e há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre [...] as partes e o
todo, o todo e as partes, as partes entre si” (MORIN, 2000: 38). Uma vez que:
A questão nacional deixa de ser uma preocupação de unidade das forças
econômicas, políticas, culturais e sociais exclusiva da estratégia da
hegemonia burguesa, para transformar-se numa desafiante questão – sempre
presente – das relações entre povos, classes, modos de produção e projetos de
organização social do presente e do futuro. (SILVA, 1989: 34)
2 O PROBLEMA DA IDENTIDADE NACIONAL
A Constituição dos Estados se baseiam, sem exceções notáveis, na dicotomia
entre nacionais e estrangeiros, e numa diferenciação detalhada e radical entre os direitos
de cada um, grosso modo: no acesso dos estrangeiros apenas às garantias fundamentais,
os chamados direitos naturais ou divinos, que, por isso mesmo são superiores à vontade
estatal. A Constituição Brasileira, por exemplo, se esforça por definir objetivamente os
vários status de nacionalidade possíveis e seus efeitos jurídicos (art. 12), ou seja
detalhando exaustivamente até mesmo a diferença entre nacionais (natos e
naturalizados).
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Essa preocupação em definir a identidade nacional surge a partir das revoluções
burguesas, ou seja, do enfrentamento e dissolução do Antigo Regime, quando há uma
necessidade de gerar uma força capaz de garantir unidade e solidez ao sistema político
emergente, assim, gesta-se o conceito e a imagem de nação e nacionalidade como uma
“estratégia de identificação cultural e de interpelação discursiva que os Estados operam
para legitimar sua atuação e inscrevê-la como fruto de uma vontade coletiva ao mesmo
tempo em que transformam o „povo‟ em sujeito imanente e partícipe das entidades
políticas” (KAHMANN, 2005: 2).
É nesse momento que a ideia de nação gera o nacionalismo, donde procedem as
representações simbólicas de fronteira e limite. Até então as antigas nações eram
definidas “usando critérios tão díspares como o uso da mesma língua, o pertencimento a
uma mesma etnia, o uso de um território comum, uma história partilhada ou traços
culturais idênticos” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007: 20). Com o advento da
modernidade, o critério é eminentemente político: a existência de uma organização
política, de um Estado próprio. Esse Estado moderno, segundo Dallari (2003: 72) se
constitui de quatro elementos essenciais: soberania, território, povo e finalidade. A
soberania está justamente relacionada à territorialidade, à medida que esta delimita ação
soberana do Estado. Essa territorialidade passa a ser também um dos elementos a partir
dos quais se identifica o próprio povo.
Para Hall, a identidade pós-moderna é intrinsecamente híbrida e consiste numa
“„celebração móvel‟: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas
quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”
(2006: 13). Ele refere-se à nação como uma comunidade inventada, demarcada
simbolicamente e ideologicamente, havendo cinco principais estratégias de construção
cultural dessa comunidade: a narrativa da nação (a elaboração de discursos sobre o ser
nação); a ênfase na origem, na continuidade, na tradição e na intemporalidade; a
invenção da tradição, tida como natural e permanente; a construção do mito
fundacional; e a ideia de povo como uma espécie de etnia pura e original. Mas, o
processo de construção nacional, situado historicamente, exige também um processo de
unificação do território e da cultura sob a égide de um Estado Nacional.
Como consequência dessa identificação espacial (territorialidade física e
simbólica) da nacionalidade, criam-se noções de dentro e fora, que irão equivaler ao
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estatuto de nacional e estrangeiro, a partir do que se compreende o poder da nação e ser
cidadão de uma nação. Nisto consiste os conceitos de fronteira e limite: eles dizem
respeito à demarcação do começo e do fim do Estado, respectivamente, ou, segundo
Kahmann (2005: 5): “A diferença fundamental entre fronteiras e limites consiste em
que, enquanto as primeiras estão orientadas para fora (exercem força centrífuga), os
limites orientam-se para dentro do território (exercem força centrípeta)”. Ao lado dessas
instâncias jurisdicionais de território, criou-se também uma margem entre os seres
humanos através da concepção do estrangeiro como um Outro, em relação ao qual se
estabelece, pela via negationes, o Eu. Dizem-nos os filósofos Ricoeur e Daniel (1999:
13) que “O estrangeiro é uma espécie de lugar vazio. Sabemos a que pertencemos, mas
não sabemos quem são os outros em suas terras. Só por uma espécie de reação é que nos
sentimos nós mesmos estrangeiros, conforme o modelo de estranheza do estrangeiro”.
Essa divisão regional e nacional do espaço geográfico e cultural irá perpassar
toda a história humana, estabelecendo-se de modo intenso e exaustivo na Modernidade,
quando a consciência humana procurou repartir e definir cada recanto que as
experiências e sua capacidade especulativa lhe faziam visualizar. Para tanto foram
criados símbolos de nacionalidade que demarcavam e nomeavam o espaço da nação.
Sobre isso, afirma Albuquerque Júnior:
Por ser um animal territorial, o homem buscou, em cada momento histórico,
levando em conta as especificidades de cada sociedade ou cultura em que
viveu, traçar fronteiras em relação aos mortos e aos deuses ou espíritos que
também possuíam suas moradas e seus territórios. A relação do homem com
a terra é marcada, portanto, pelo apossamento, mesmo que passageiro, pelo
domínio, mesmo que fugaz, e pelo sentido, mesmo que provisório. Quando se
apossa ou domina qualquer parte da terra o homem atribui imediatamente a
ela um sentido, um significado que é cultural, que é tramado através de
símbolos e de alguma forma de linguagem. (2007: 8)
A composição de uma nacionalidade que se dá através da posse de uma terra e
da nomeação dessa terra, isto é, da imposição dos símbolos e do poder nacional sobre
ela, divide o mundo, na visão de cada nacional em duas partes: o interior e o exterior da
nação. O interior é aquilo que está dito, que é perscrutado e publicado, é o universo
conhecido, o lado de “cá” da fronteira nacional, enquanto o estrangeiro será o não-dito,
o não-conhecido, aquilo que está fora de todos os parâmetros de razoabilidade e
aceitabilidade que foram erigidos como fundamentos da nação.
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A distância trará consigo o desconhecimento e este por sua vez, a hostilidade. O
desconhecimento por nossa própria natureza humana gera em nossa psique o medo e a
consequente reação de proteção e alerta. O desconhecimento está diretamente ligado aos
processos culturais de nomeação e designação, isto é, às operações linguísticas de
mapeamento e organização da realidade. Tudo o que não é conhecido não pode ser
devidamente chamado por um nome próprio, definido, estabelecido enquanto realidade
dada. Logo, esse estrangeiro
[...] não precisará ser dito ou conhecido com precisão; bastará para ele uma
breve descrição, uma assertiva ou um conjunto de afirmações que o definirá
previamente e definitivamente, antes que qualquer contato em busca do
conhecimento se faça; e o que é mais problemático, é que nenhum contanto
conseguirá, muitas vezes, desfazer ou questionar, a definição previamente
dada.
As relações internacionais se darão, então, num primeiro estágio de seu
desenvolvimento como relações hostis, sobretudo no que diz respeito à hostilidade
cultural entre os povos. Todos os povos atribuem reciprocamente epítetos que buscam
exaltar a sua identidade e descaracterizar a identidade do outro. O preconceito em
relação ao outro fala muito mais de si mesmo do que do outro que busca desfigurar: o
outro é tudo aquilo que eu não sou! O discurso da estereotipia é assertivo, imperativo,
repetitivo, caricatural, tenta dizer a verdade sobre o outro em poucas linhas e desenhar
de forma redutiva e reducionista seu perfil. O estereótipo é um esboço rápido e
negativo, apaga as diferenças e multiplicidades presentes no outro e fabrica uma
unidade superficial, uma semelhança sem profundidade (ALBUQUERQUE JÚNIOR,
2007: 13).
No âmbito dos Estados essa hostilidade e ufanismo se traduzem no princípio da
impenetrabilidade, que, segundo Dallari (2003: 90) sugere o reconhecimento ao Estado
do “monopólio de ocupação de um mesmo espaço, sendo impossível duas soberanias
ocuparem o mesmo território”. Donde todo o aparato governamental de vigilância e
guarda das fronteiras e portos: passaportes, alfândegas, etc.
2.1 O diálogo internacional
Desde o século XVIII o nacionalismo se une ao etnocentrismo e ao
imperialismo. A visão radicalmente positiva de sua nação, e negativa das demais,
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legitima a criação de processos de intervenção internacional pra remir os povos menos
civilizados da terra e elevá-los espiritualmente. A tônica nacionalista substituirá o
discurso religioso nos enfrentamentos expansionistas das nações ocidentais a partir de
então e camuflará os reais interesses políticos e econômicos que movem os Estados.
A culminância e a falência desse modelo de organização simbólica e política
internacional serão as duas Grandes Guerras do século XX, motivadas pelo
ambicionismo nacionalista e pela ideia de superioridade cultural e racial. As Guerras
Mundiais colocarão sob os olhos de toda a humanidade a pequenez e a mesquinharia das
ambições pátrias e a necessidade de assegurar a todo ser humano o respeito à sua
dignidade e à sua identidade de gente, seja nacional ou estrangeiro, ariano ou não,
religioso ou leigo, etc.
As Guerras do século XX representam a incompetência completa do modelo
moderno de integração e convivência entre as nações. Os povos da terra decidem então,
seja pela pressão dos acontecimentos da época, seja pela maturação da consciência de
cidadania humana, abrir mão de parte de sua soberania para estabelecer e garantir um
mínimo de convivialidade entre todas as nações e de segurança para seus cidadãos. É
nesse momento que surge a Declaração Universal dos Direitos do Homem, como uma
reação jurídica e metafísica necessária para se opor ao sadismo do mando e do poder
eugenista e etnocêntrico, considerando que
[...] o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos
bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um
mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da
liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como
a mais alta aspiração do homem comum. (ONU, 1948)
O princípio da impenetrabilidade se vê ao longo deste século substituído pelo
principio da transitividade: a modernização das sociedades, a migração, o acesso a
meios de transporte e de comunicação pouco onerosos e eficazes diminuem a distância
geográfica e cultural entre os povos e os obriga a repensar o mundo sob a ótica do
diálogo, embora vejamos surgir e se fortalecer correntes xenofóbicas em diversas
regiões do planeta, devido à crise global de subsistência, de trabalho e de segurança.
No entanto é indiscutível que o mundo contemporâneo se caracteriza pela
diversidade, pela proximidade entre os povos e pela convivência com o diferente, seja
ele nacional ou não. Isso requer que se reconstrua a ideia de estrangeiro, pois a
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hostilidade simbólica e mesmo física ao outro já não constitui conduta adequada e
aceitável à nova ordem mundial e aos novos parâmetros da consciência ética humana.
Nesse sentido, podemos encontrar o alcance e a profundidade das reflexões de
Marin Buber acerca relação dialógica entre os sujeitos humanos. Buber prega que “O
homem é tanto mais uma pessoa quanto mais intenso é o Eu da palavra-princípio Eu-Tu,
na dualidade humana de seu Eu” (2001: 94) e que o Tu é aquilo que “se apresenta a
mim. Eu, porém, entro em uma relação imediata com ele. Assim, a relação é ao mesmo
tempo escolher e ser escolhido, passividade e atividade” (2001: 102). Dessa forma a
identidade humana se constrói a partir da tensão, não hostil, mas dialógica entre as
realidades humanas contrastantes.
Esse Tu com quem os diversos Eus nacionais se deparam no seu dia-a-dia não é
um Tu ali posto e disponível para ser passivamente pensado e tratado, ele é também um
Eu, com uma identidade, que se coloca em relação com a identidade local, nativa. Os
próprios conceitos de nativo e estrangeiro se tornaram obsoletos e inexatos, passaram a
designar noções bastante plásticas e românticas que dizem respeito muito mais à origem
do que ao ser de cada pessoa. Assim, o ser estrangeiro tende a se diluir enquanto
categoria de organização dos espaços simbólicos ou a se radicalizar ainda mais no
intuito de resguardar a identidade subjetiva e definir-se, num mundo repleto de
transformações e indefinições (uma espécie de reação aos processos deletérios da pós-
modernidade no que tange aos referenciais afetivos e sociais que milenarmente
conduziam o homem à concepção de seu próprio Eu).
Acerca disso, afirma Ricoeur:
O estrangeiro é um desconhecido. Ao procurarmos num dicionário a palavra
“estrangeiro”, encontramos: aquele que não é de nosso lugar, que é de outra
nação, que é de outro país; é, pois, um lugar vazio. É por isso que eu acho
que devemos começar por descobrir nossa própria estranheza nos
“desinstalando” de algum modo. Eu estava pensando um pouco na
proposição do Levítico: “Fostes estrangeiros no Egito...” Se não tivermos
sido estrangeiros alhures, temos de descobrir nosso Egito. Nossa
“estrangeireza” simbólica. Ser estrangeiro simbolicamente. [...] tudo começa
pela comparação. É aí talvez que a passagem pela curiosidade – e logo pela
desestabilização, pela comparação com os outros – obriga a fazer um
itinerário longo sobre si próprio (se eu não tivesse nascido aqui, se eu etc.),
logo a fantasiar sua própria identidade a ponto de ela se tornar inquietante.
Identidade inquietante. Mas será que podemos superar inteiramente essa
ferida de identidade, num projeto de identidade fusional? Eu seria muito
prudente. A pluralidade humana é um fato insuperável. Além do fato do
Estado-nação, existem línguas, culturas. (RICOEUR; DANIEL, 1999: 16)
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Essas considerações nos oferecem, assim, vários elementos para pensarmos a
interação entre os indivíduos humanos sob três aspectos: pluralidade, estranheza e
acolhimento. É exatamente na diversidade de povos, de personalidades, de sistemas
linguísticos que transita a nossa existência, de modo que por razões natas, históricas,
psicológicas, ideológicas nos sentimos pertencentes a um dado universo, e estrangeiros
em outro. Na pluralidade de expressões humanas, nos identificamos então com uma
expressão específica, de modo que não há um Homem no sentido genérico, mas
somente homens com diversos modos de pensar, sentir e agir, e por se reconhecerem
diferentes, esses homens descobrem-se, eles próprios, Eus frente a um enigmático
mundo que se lhes apresenta, mundo de “gentetude” e de “objetuidades”. Ao distinguir
o outro como um não-Eu, cada pessoa e cada povo reconhece-se também não-Outro, de
modo que o ser-Eu significa ser-não-Outro. A proposta moderna de identidade negativa
de si traz, quase não raro, uma negação do outro como afirmação de sua existência e de
seu poder, de modo que, quebrando-se a hospitalidade entre as pessoas e os povos, ou
seja, findo o diálogo e a tolerância, instaura-se o caos e a não-humanidade.
Enquanto constatamos a diversidade e nos estranhamos frente a ela ao estranhá-
la, apenas estamos nos comunicando com o não-eu aí posto, de modo que constituímos
cognitivamente a dicotomia Eu-Tu, sem, contudo, provocar um renovação ou mesmo
“otimização” da própria identidade. A partir do momento que acolho o Tu na minha
forma de ser Eu, então também Eu me faço presente e participante do Tu, quebram-se as
barreiras que fazem do Tu um Outro e do Eu um Si próprio, para fazer deles um Nós
dialético e cambiante, posto ser baseado na dinamicidade e no entrelaçamento.
O acolhimento é, pois, o ápice desse processo dialógico. Ao reconhecer o Outro
me disponho a comunicar-me com ele, estabelecer relação, criar laços, construir
comunhão; por isso Eu tenho minhas intenções e objetivos, mas também o Outro possui
intenções e metas, certamente distintas e diversas das minhas. Dialogar exige, devido a
isso, receber o Outro em sua integralidade, enquanto Outro-Eu. Essa é a grande
diferença que nos separa dos animais, dos não-homens: nós criamos laços, enquanto
eles constroem apenas contatos. De fato também nós realizamos contatos, mas ao fazê-
lo, os constituímos também por uma linguagem, um modo de ser próprio e irrenunciável
que nos faz um Eu frente a um Tu pré-humano, humano ou supra-humano (BUBER,
2001: 118). “A consciência disso nos põe num caminho de reconhecimento mútuo, na
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via da hospitalidade em suas dimensões morais e políticas, e permite assim tratar
positivamente a pluralidade humana como algo insuperável” (RICOEUR; DANIEL,
1999: 13).
2.2 O direito internacional
A reflexão feita até aqui, no seio da Filosofia, no tocante ao relacionamento
intersubjetivo, já encontra, desde Kant, eco nas reflexões jurídicas acerca dos
relacionamentos entres pessoas naturais e Estados. Segundo Bobbio
[...] o direito das gentes foi transformado em direito das gentes e dos
indivíduos; e, ao lado do direito internacional como direito público externo, o
ius publicum europaeum, está crescendo um novo direito, que poderemos
chamar, com as palavras de Kant, de “cosmopolita”, embora Kant o limitasse
ao direito de todo homem a ser tratado como amigo, e não como inimigo,
qualquer que fosse o lugar onde estivesse, ou seja, ao direito (como ele dizia)
de “hospitalidade”. Contudo, mesmo com essa limitação, Kant via no direito
cosmopolita não “uma representação fantástica de mentes exaltadas”, mas
uma das condições necessárias para a busca da paz perpétua, numa época da
história em que “a violação do direito ocorrida num ponto da terra é sentida
em todos os outros”. (1992: 103)
Esse ius cosmopoliticum não deveria regular o direito entre Estados e súditos, ou
entre os Estados particulares, mas o direito entre os cidadãos dos diversos Estados entre
si, ele completa o sistema kantiano para a construção da paz perpétua baseada na
hospitalidade. Isso porque, além das relações entre o Estado e os seus cidadãos e
daquelas entre o Estado e os outros Estados, Kant considera que devam ser consideradas
também as relações entre cada Estado particular e os cidadãos dos outros Estados, ou
entre o cidadão de um Estado e um Estado que não é o seu com os outros Estados
(BOBBIO, 1992: 128; 138). Assim, “O caminho contínuo, ainda que várias vezes
interrompido, da concepção individualista da sociedade procede lentamente, indo do
reconhecimento dos direitos do cidadão de cada Estado até o reconhecimento dos
direitos do cidadão do mundo” (BOBBIO, 1992: 5).
Essa Cosmópolis imaginária de Kant é hoje nossa realidade mais visível de
organização do sistema jurídico e político global. Bobbio (1992: 139) reforça essa ideia
afirmando que a Declaração dos Direitos Humanos estabeleceu as premissas para
transformar também os indivíduos singulares, e não mais apenas os Estados, em sujeitos
jurídicos do Direito Internacional, iniciando-se assim a passagem para uma nova fase do
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Direito Internacional, a que torna esse direito não apenas o direito de todas as gentes,
mas o direito de todos os indivíduos.
Semelhantemente a Kant que propõem a hospitalidade como parâmetro das
relações cosmopolitas, Bobbio pensa na tolerância, que
[...] não se baseia na renúncia à Própria verdade, ou na indiferença frente a
qualquer forma de verdade. Creio firmemente em minha verdade, mas penso
que devo obedecer a um princípio moral absoluto: o respeito à pessoa alheia.
Aparentemente, trata-se de um caso de conflito entre razão teórica e razão
prática, entre aquilo em que devo crer e aquilo que devo fazer. Na realidade,
trata-se de um conflito entre dois princípios morais: a moral da coerência,
que me induzi a pôr minha verdade acima de tudo, e a moral do respeito ou
da benevolência em face do outro. (BOBBIO, 2004b: 211)
Essa tolerância, porém, não é ilimitada, nenhuma forma de tolerância é tão
ampla que compreenda todas as ideias possíveis. Ela é sempre tolerância em face de
alguma coisa e exclusão de outra coisa, de modo que o único critério razoável é o que
deriva da ideia mesma de tolerância: a tolerância deve ser estendida a todos, salvo
àqueles que negam o princípio de tolerância, os intolerantes (BOBBIO, 2004b: 213-216,
passim). Isso implica a abertura não como uma decisão deliberada de governos e de
povos, mas como uma necessidade à sobrevivência diplomática e mesmo material das
nações: não há espaços para escolher o diálogo no mundo pós-moderno, ele é uma
categoria imperativa da própria organização societária.
Do ponto de vista da organização estratégica entre os Estados podemos
visualizar o princípio da tolerância no sistema de equilíbrio de poder entre as potências
e superpotências mundiais. Segundo Magnoli
O sistema e equilíbrio pluripolar, tal como funcionava na belle époque, era
um meio termo entre o estado natural e o império da lei: estado natural
porque o mais forte é o inimigo, por ser o mais forte; em última análise, cada
ator é juiz exclusivo de sua conduta e goza o direito de escolha entre a paz e a
guerra. Mas esse estado de natureza não é a luta de todos contra todos, sem
regras ou limites. Os Estados reconhecem reciprocamente o direito que têm à
própria existência; querem manter o equilíbrio do sistema e sabem disso,
podendo também apresentar certa solidariedade com relação ao mundo
exterior. (2004: 49)
Entre as regras estratégicas para a manutenção desse equilíbrio pluripotencial,
Magnoli cita as regras de Morton Kaplan, entre as quais podemos destacar: (i) cada ator
deve agir de modo a aumentar suas capacidades, mas deve preferir a negociação à luta;
(vi) deve permitir aos atores nacionais vencidos ou “obrigados” que participem do
sistema como sócios aceitáveis ou que um ator até então não essencial ingresse na
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categoria de ator essencial. As regras de Kaplan ilustram esse desenvolvimento do senso
de integração e comunhão da sociedade internacional. Mas Magnoli adverte:
Uma diplomacia de equilíbrio pura ignora (e deve ignorar) os sentimentos;
não concebe os Estados como amigos ou inimigos. Não considera estes
últimos piores do que os primeiros e não condena a guerra em si. Admite o
egoísmo e, se quiser, a corrupção moral ( a aspiração à potência e à glória),
mas esta corrupção que calcula parece, no final das contas, menos
imprevisível e perigosa que as paixões. – manifestações talvez idealistas,
porém cegas. (2004: 46)
Esse perigo iminente de retrocesso quanto à paz serve justamente para lembrar à
humanidade que nenhuma conquista é permanente, e que é preciso manter uma
vigilância incansável para se garantir a paz e a cooperação ente os povos, nos três níveis
kantianos de articulação civilizatória: o Direito Público Interno, o Direito Público
Internacional e o Direito Cosmopolita. Donde a preocupação de Bobbio (1992; 2004b)
com a promoção, controle e garantia dos Direito fundamentais, assim definidos:
Por promoção, entende-se o conjunto de ações que são orientadas para este
duplo objetivo: a) induzir os Estados que não têm uma disciplina específica
para a tutela dos direitos do homem a introduzi-la; b) induzir os que já a têm
a aperfeiçoá-la, seja com relação ao direito substancial (número e qualidade
dos direitos a tutelar), seja com relação aos procedimentos (número e
qualidade dos controles jurisdicionais). Por atividades de controle, entende-se
o conjunto de medidas que os vários organismos internacionais põem em
movimento para verificar se e em que grau as recomendações foram
acolhidas, se e em que grau as convenções foram respeitadas. [...]
Finalmente, por atividades de garantia (talvez fosse melhor dizer de "garantia
em sentido estrito"), entende-se a organização de uma autêntica tutela
jurisdicional de nível internacional, que substitua a nacional. (BOBBIO,
1992: 39-40)
Essa proteção aos direitos humanos é objeto e finalidade de diversos ramos do
Direito Internacional Público, assim denominados por Vieira (2006: 14): Direito
Internacional dos Direitos Humanos, Direito Internacional dos Refugiados e Direito
Internacional Humanitário. Com isso, “o ser humano não é mais tutelado com
exclusividade pelo „seu‟ estado, mas faz parte da preocupação de toda comunidade
internacional” (VIEIRA, 2006: 13).
Os tratados internacionais de Direitos Humanos transcendem, portanto os
compromissos recíprocos entre Estados pactuantes, uma vez que objetivam a
salvaguarda dos direitos do ser humano, e não são prerrogativas dos Estados, havendo
uma dupla articulação entre Direito Internacional e Direito Interno: a
constitucionalização daquele e a internacionalização deste (VIEIRA, 2006: 12-13). Se
253
pensarmos esse processo a partir da Teoria Tridimensional do Direito de Reale, somos
obrigados a reconhecer que ele indica a construção de um novo ethos mundial, baseado
na internacionalização dos valores e no cosmopolitismo ético (VIEIRA, 2007: 12-13),
ou, na maneira de falar de Morin, Boff e Freire, uma ética universal do ser humano
(MORIN, 2000: 78; 106; BOFF, 2001: 27; FREIRE, 1999: 16), pois o Direito, “é fruto
da experiência e localiza-se no mundo da cultura” (NADER, 2003: 385).
Emerge desse universo cosmopolita não apenas a interação entre atores nacionais,
ou seja, a internacionalidade, mas um sistema transnacional e mesmo pós-nacional de
organização das sociedades, conforme concluo Bhabha:
El paradigma de la mundialización tiende a hacer hincapié en los sistemas
transnacionales de explotación y dominación que socavan la intervención
potencialmente protectora del Estado nación, mientras que el paradigma de
los derechos humanos destaca las posibilidades de habilitación en el âmbito
internacional. Los preceptos universales y las normas mínimas aplicables
consignadas en los convenios internacionales constituyen mecanismos que
permiten refrenar el poder del Estado, trascender los particularismos de
nacionalidad y lugar, ejercer presión sobre las estructuras estatales para la
aplicación de derechos internacionalmente vinculantes. Estas presiones se
evidencian cada vez más en las estrategias de la política exterior de los
Estados y en la actividad de miembros de la sociedad civil. De hecho, el
interfaz entre la mundialización y los derechos humanos es lo que más
fuertemente cuestiona la autonomía del Estado, pues ofrece mecanismos para
una movilización mundial efectiva y el ejercicio de los derechos. (2009: 1-2)
2.3 A constelação pós-nacional
Para Habermas (2001: 78-79), só percebemos as tendências que anunciam uma
“constelação pós-nacional”, uma comunidade de pós-nações, como um desafio político
porque as olhamos segundo a perspectiva do Estado nacional. Ele afirma que as
sociedades nacionais são atropeladas pelo impulso da desnacionalização e abrem-se
diante de uma sociedade mundial inaugurada pelo âmbito econômico e se questiona se
seria desejável um fechamento dessa sociedade global e como isso poderia ser feito.
Nesse sentido, a mundialização é o processo histórico, econômico e político, resultante
das tensões entre Estado e Mercado, que, por excelência, desarticula a organização do
estado nacional.
Hall por sua vez, afirma que:
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos,
lugres e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e
254
pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades
se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e
tradições específicos e parecem “flutuar livremente”. (2006: 75)
Mas ele discorda que o global esteja substituindo o local. Ao contrário, acredita
numa articulação entre essas duas instâncias de modo a formar novas identificações
globais e locais, até porque a topologia da globalização destrói qualquer pretensão de
homogeneidade: ao invés de suprimir, ela multiplica as diferenças. O contato entre as
diversas culturas aprofunda ainda mais a hibridez da identidade humana.
A criação da economia de mercado inverte a finalidade e a natureza da
Economia, desvinculando-a da ação ética de cada cidadão, e passando a determinar as
ações da própria sociedade. A Economia não mais depende de uma consideração ética
das ações, mas a sociedade de massas dela depende para se reproduzir. O mercado é
entendido como um sistema autorregulado onde indivíduos perseguindo apenas seus
interesses pessoais ofertam e demandam mercadorias, e as decisões sobre o que e
quanto produzir, partem somente das expectativas de ganho (lucro), e não mais de uma
necessidade social. Supõe-se uma sincronia preestabelecida entre os desejos humanos e
a manutenção da sociedade de massas, o que a história vem mostrando ser ilusória.
Até o advento e a consolidação do modo de produção capitalista,
A sociedade e a economia tinham a mesma extensão, no âmbito das
fronteiras nacionais. A economia se internacionalizou e transformou-se com a
globalização do capital numa economia transnacional, fazendo com que “na
conjuntura atual os Estados sejam inseridos nos mercados e não o contrário”.
Isso solidifica as idéias de esvaziamento dos referenciais basilares do Estado
nacional, tornando mais porosos limites de suas fronteiras. Assim “o nível de
integração que representa o Estado nacional já perdeu hoje importância em
todas as partes”, pois o Estado nacional se “vê desafiado internamente, pela
força explosiva do multiculturalismo, pela pressão problematizadora da
globalização. Cabe perguntar se há hoje um equivalente para o elemento de
junção entre nação de cidadãos e a nação que se constituiu a partir da idéia de
povo”. (VIEIRA, 2007: 64-65)
A Economia passa a criar necessidades virtuais e a alienar o homem para
garantir o lucro. O liberalismo de Adam Smith1, e o posterior neoliberalismo do século
XX, trouxe uma visão de Economia em que ela tem um funcionamento espontâneo e
regular, com regras próprias derivadas da matemática e independentes da ética, da
filosofia e da política. No difícil equilíbrio entre justiça social e eficiência do mercado, o
neoliberalismo opta deliberada e reiteradamente pela eficácia econômica, deixando à
1 Autor de A riqueza das nações, 1776.
255
míngua aqueles que dela não podem fazer parte; numa palavra: “os mercados são surdos
para informações cuja linguagem não seja a dos preços” (HABERMAS, 2001: 120).
Para elucidar essa questão, Habermas nos traz quatro visões de Estado
(HABERMAS, 2001: 80-83):
1) Estado administrativo: o Estado é uma organização política que se forma
como Estado de direito. Estabelece-se assim uma dicotomia no seio da sociedade: o
Estado, espaço do público, das relações políticas, e a Sociedade Civil, lugar do privado,
das relações particulares. Será no âmbito da Sociedade Civil que se formará o Mercado,
através das relações econômicas e do Direito Privado Subjetivo. Assim, o Estado passa
a dominar o Mercado através do monopólio da força (Gewalt), e a depender dele
enquanto Estado fiscal.
2) Estado territorial: a delimitação (Begrenzung) de um espaço geográfico como
espaço ontológico e cosmológico do Estado, que marca a validade de sua ordem jurídica
e demarca (Abgrenzung) seu espaço social. Dentro deste território se constitui um povo
(Staatsvolk), sujeito potencial de uma autolegislação de cidadãos reunidos
democraticamente, e uma sociedade (Einwirkung), objeto potencial de sua ação. Assim,
a soberania do Estado fundamenta-se externamente, diante dos demais sujeitos do
Direito Internacional, a partir do direito ao reconhecimento recíproco da integridade das
fronteiras estatais, conferindo assim autonomia as atores estatais (Staatsgewalt).
3) Estado nacional: a autodeterminação democrática do Estado se dá a partir da
assunção de povo do Estado a nação de cidadãos do Estado (Staatsburger), que toma
seu destino político nas próprias mãos através da integração cultural e da solidariedade
cívica. Os membros de uma nação sentem-se, apesar de serem estranhos uns aos outros
e assim permanecerem, tão responsáveis uns pelos outros que estão dispostos a
sacrificar-se, como o serviço militar, ou aceitar o fardo de impostos eficazmente
redistributivos.
4) Estado democrático: uma ordem desejada pelo povo e legitimada pela sua
livre formação de opinião e de vontade, que permite aos que são endereçados pela
justiça sentirem-se como os seus autores. A política deve preocupar-se em garantir as
condições para o surgimento da autonomia pública e privada. Esse Estado, legitimado
pelo direito do povo sobre a nobreza, do privado sobre o público, constituído a partir da
associação de pessoas jurídicas individuais (Rechtspersonen) lançará as bases jurídicas
256
para o assentamento do capitalismo para além de sistema econômico: como paradigma
de organização societária.
Essa evolução histórica e metafísica do entendimento do Estado culminará na
dissolução de sua autoridade e autonomia ao longo do século XX. O Mercado, como
prerrogativa da Sociedade Civil desenvolve-se com relativa liberdade em face da
vontade estatal, e passa a sustentar o próprio Estado no que se configurou como
“sociedade burguesa”, fortalecendo assim seu poder político frente às estruturas
governamentais. Uma nova sociedade se ergue sobre os Estados a partir da expansão e
intensificação do comércio de bens industrializados entre os Estados, da ascensão
vertiginosa (numérica e politicamente) das empresas transnacionais com suas cadeias de
produção mundiais, da aceleração sem igual da movimentação de capital nos mercados
financeiros conectados por redes eletrônicas e da tendência de autonomização dos
circuitos financeiros que desdobram uma dinâmica própria desconectada da erconomia
real (HABERMAS, 2001: 85).
O território social passa a não mais ser espacial, mas temporal; e não mais
nacional, porém mundial. A fronteira não mais separa o nacional e o estrangeiro: se
constitui como um interstício, um “entre-lugar”, isto é, “não se situa em nenhum dos
pólos que exercem funções opostas num raciocínio binário, isso porque ela é, ao mesmo
tempo, um, outro, ambos e nenhum” (KAHMANN, 2005: 7). Ou melhor:
[...] a constituição dos “entre-lugares” nas articulações de diferenças culturais
fornecem subsídios para a “elaboração de estratégias de subjetivação –
singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos
inovadores de colaboração e contestação”. Nesse viés, tem-se, pois, a
exigência da criação do novo como ato insurgente de tradução cultural, em
que esse “novo” não seja parte do continuum de passado e presente. Essa
(re)elaboração, enfim, “não apenas retoma o passado como causa social ou
precedente estético; ela renova o passado, reconfigurando-o como um “entre-
lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O
“passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de
viver”. (KAHMANN, 2005: 7)
Esse processo de desnacionalização da Economia e da Cultura afeta também a
organização política dos Estados nos seguintes aspectos: a segurança jurídica e a
efetividade do Estado administrativo; a soberania do estado territorial; a identidade
coletiva; e legitimidade democrática do Estado nacional (HABERMAS, 2001: 87).
Apesar da relação de integração e mesmo “confusão” entre público e privado,
ainda há uma separação funcional entre Estado e Sociedade Civil. O Estado conserva
257
seu papel de ordem e organização, mas já não possui o poder de condução
macroeconômica e de redistribuição das riquezas. A mobilidade de capital dificulta a
intervenção estatal nos lucros e nas fortunas, e o acirramento da concorrência por
posições conduz à redução dos ganhos fiscais. O Estado se vê cada vez menos
determinante sobre seu espaço geográfico: o desequilíbrio ecológico, a capacidade de
alcance da tecnologia de ponta – sobretudo da tecnologia bélica –, a criminalidade
organizada e o tráfico de armas e drogas tornam porosas as tradicionais fronteiras dos
Estados.
Essa desestatização política, econômica e social, no entanto, não corresponde a
um esvaziamento da cultura nacional, como percebe Vieira:
De qualquer forma, a identidade ligada ao povo e à nação não deixa de ser
algo concreto e unificador. Outras formas de solidariedade é que emergem,
transfronteiriças, pelas quais os indivíduos têm muito mais facilidade de
encontrarem com outros que busquem os mesmos fins. (2007: 72)
Um consenso de fundo, anterior e assegurado pela homogeneidade cultural,
torna-se supérfluo como um dado pressuposto da democracia, pois a construção da
vontade e da opinião estruturada na forma de uma discussão (diálogo), torna possível o
entendimento racional e político também entre desconhecidos. Embora as dissonâncias
cognitivas advindas do choque de diferentes formas de vida cultural gerem um
endurecimento da identidade nacional, experimenta-se um amolecimento das formas de
vida comparativamente homogêneas em cada cultura local devido ás diferenciações
híbridas surgidas da assimilação de uma cultura mundial material imperativa (cultura de
massa) – estabelecida através do mercado global, do consumo de massa, da
comunicação de massa e do turismo de massa – e do aprofundamento dos processos
migratórios que tornam as realidades internas de cada estado não somente multicultural,
como também plurinacional no sentido da construção das identidades subjetivas.
Como consequência, há uma construção contínua de novas filiações, subculturas
e estilos de vida a partir dos contatos interculturais e ligações multiétnicas. Nesse
mundo de individualização da sociedade e desenvolvimento de identidades
cosmopolitas, ou seja, da identidade terrena (MORIN, 2000: 78), a ordem democrática
tem aprendido cada vez mais que não precisa de um enraizamento mental na nação
como uma comunidade de destino pré-político. A verdadeira ordem democrática funda-
se na solidariedade entre os cidadãos, que se sentem responsáveis pelo bem-estar
258
coletivo e autores da história comum. Assim, para permanecer uma fonte de
solidariedade, o status de cidadão deve manter um valor de uso e também se fazer pagar
na moeda dos direitos sociais, ecológicos e culturais. Nesse sentido, a política do bem-
estar social assumiu uma importante função de legitimação, enquanto a incapacidade de
controle fiscal do Estado mina o poder ordenador do Estado (HABERMAS, 2001: 87-
102, passim).
[A militância da sociedade civil internacional] cria redes de solidariedade
além das fronteiras do Estado Nacional, como a ICLB2, e fortalece as novas
instâncias de solidariedade entre as pessoas no mundo onde a simples
referência á nacionalidade perde cada vez mais seu caráter definitivo na
identidade ou na diferença entre estranhos, e por vezes até sua razão de ser,
criando novas identidades transnacionais. Esse movimento facilita a criação
de uma cidadania cosmopolita, ainda que, sem dúvida, de maneira esboçante.
(VIEIRA, 2007: 72)
Em suma: o papel do Estado pós-moderno migra cada vez mais para a esfera da
Infraestrutura social, enquanto Sociedade Civil e Mercado apoderam-se de sua
Superestrutura. Esse processo, no entanto é ambíguo. Apesar da profunda crise do
Estado, ele ainda controla instrumentos importantes de poder, política, militar e
economicamente, de modo que a globalização dificilmente criará substitutos para as
estruturas estatais: se os Estados não são capazes de, internacionalmente, controlar os
processos econômicos e culturais, as Organizações Internacionais e a Sociedade Civil
Mundial tampouco podem fazer frente à complexidade das questões que se colocam
(DOMINGUES, 2001: 98-99).
Passamos então à segunda parte de nossa reflexão: como estabelecer um governo
legítimo e eficaz do mundo? que relações políticas podem ser estabelecidas entre
Estado, Mercado e Sociedade para garantir os direitos fundamentais da pessoa humana e
o progresso das nações?
3 A GOVERNANÇA GLOBAL
Como antes, começaremos por uma abordagem filosófica da questão. No
diálogo citado entre Daniel e Ricoeur, os ilustres pensadores argumentam, acerca da
relação entre dominação e proteção entre os povos, que as construções discursivas da
2 Campanha Internacional para Banimento de Minas Terrestres.
259
estereotipia do estrangeiro na pós-modernidade seria uma tentativa de autoproteção por
parte das nações que se veem ameaçadas, uma vez que “O preconceito é uma maneira
de desqualificar o oponente, de tentar vencê-lo através do rebaixamento social, da
estigmatização” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007: 126). Afirma Ricoeur:
Isso nos leva às relações de dominação. É preciso introduzir nas relações
humanas esse elemento hierarquizante, essa relação vertical entre o que está
em cima e o que está em baixo. Ao passo que a relação com o outro que
evocamos é horizontal. O princípio da hospitalidade é homogeneizante. A
dominação é hierarquizante. Ora, não conhecemos modo de funcionamento
da humanidade que tenha eliminado as relações de dominação. Há aqueles
que mandam e aqueles que obedecem. Nós arrastamos os grilhões da
autoridade: uma autoridade sai de uma autoridade anterior, mas não
conseguimos fazê-la sair do mero querer viver em conjunto, que seria
homogeneizador e conduziria, se estivesse só, à utopia da igualdade absoluta
de todas as culturas. Hoje as relações de dominação política, que podiam ser
traduzidas pela guerra, deslocam-se rumo à polemização das relações
econômicas e culturais. As relações de dominação tornam-se mais sorrateiras,
mais dissimuladas, mais pregnantes. (RICOEUR; DANIEL: 19)
Esse paradigma da horizontalidade nas relações internacionais, pressuposto do
Direito Internacional, refere-se apenas a uma igualdade formal entre os Estados, pois há
e sempre haverá uma desigualdade material entre eles. Mas o que os novos tempos vêm
nos mostrado é que não basta apenas reconhecer a igualdade ente os estados, é preciso
elevar um espectro considerável de atores não estatais à classe de governantes políticos
do planeta.
Isso suscita um debate secular da Ciência Jurídica: a relação entre poder de fato
e poder de direito, que é, na verdade, o problema de legitimidade do poder na sociedade.
Em Direito Internacional essa resposta já está, porém, dada, posto ser uma petição de
princípio. A legitimidade da ordem internacional procede do próprio ethos
internacional, entendendo-se ethos como o sentido grego de “modo de ser, caráter,
costume” (HOUAISS, 2001: 1271). Nesse sentido, a Declaração dos Direitos Humanos
estabelece em seu preâmbulo a base da legitimidade e do poder das Nações:
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os
membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, [...] Considerando
que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos
humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na
igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover
o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais
ampla, Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a
desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos
direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e
liberdades (ONU, 1948)
260
Ou seja, o valor da vida e da dignidade da pessoa humana tornam-se centrais na
construção do espaço global, uma vez que as soberanias nacionais não são capazes de
fornecer substrato sólido do ponto de vista filosófico e político-econômico-militar para
assegurar a ordem internacional. A pessoa natural torna-se o alicerce de toda a
Sociedade Mundial, dada sua posição indivisível e indissolúvel enquanto sujeito e
mesmo por um imperativo ético, protegê-la não é mais uma prerrogativa do Estado, mas
um compromisso colegial entre todos os estados, e mesmo desses cidadãos mundiais
através de Organizações Humanitárias. Direitos Humanos, regionalização regional e
globalização tornam-se os grandes estandartes da pós-modernidade (VIEIRA, 2007: 11-
13).
Habermas (2006) diz-nos que as ordem jurídicas modernas constroem-se
essencialmente sobre os direitos subjetivos, que concedem às pessoas âmbitos legais
para uma ação guiada sempre pelas suas próprias referências. A legitimidade dos
regimes jurídicos resulta justamente do ato de delegação da “vontade geral”, no sentido
rousseauriano de ser, de um povo que renuncia parte de sua liberdade para compor o
poder e as atribuições do Estado que, em contrapartida, recebe dele a garantia de
direitos fundamentais inalienáveis. Esses direitos equacionam e nomeiam os limites da
atuação do Estado e definem sua finalidade social, a saber, o bem comum (DALLARI,
2003: 107). Os direitos humanos, ao definir o espaço do indivíduo e o do Estado
permitem que se dê a negociação democrática geradora da práxis social e de toda
autoridade política. As Constituições modernas, por exemplo, nascem e são constituídas
no intuito de declarar os direitos humanos, ao lado da instituição da organização do
poder: o ser pessoa passa a ocupar o lugar central na organização societária (VIEIRA,
2007: 11-13). Assim, soberania popular e direitos humanos são os critérios de
legitimidades dos Estados pós-modernos.
O nexo interno, procurado entre os direitos humanos e a soberania popular,
consiste, portanto, no fato de que os direitos humanos institucionalizam as
condições de comunicação para a formação da vontade política racional. [...]
Esses direitos – que devem garantir a todos chances iguais para conquistarem
os seus objetivos privados na vida e uma proteção jurídica individual
abrangente – possuem evidentemente um valor intrínseco, e não são como
que absorvidos no seu valor instrumental para a formação democrática da
vontade. (HABERMAS, 2001: 148)
261
É importante, perceber, porém, que o humanismo da governança global não
parte dos direitos humanos como realidade apriorística, fundadora da sociedade, que
concede a tudo mais existência e poder. Embora isso possa ser possível do ponto de
vista da metafísica, não o é na perspectiva das relações políticas e cosmopolíticas da
atualidade. Os direitos humanos e a dignidade humana são muito mais uma categoria
moral que uma concretude histórica, uma conquista definitiva da civilização. Pelo
contrário: a emergência dos direitos humanos se dá justamente pela ameaça e mesmo
pela efetividade das afrontas à liberdade, à dignidade e à vida de diversos povos da
terra.
Como dito antes, a ineficiência reiterada do Sistema ONU tem conclamado cada
vez mais as populações do mundo e suas instituições em prol da defesa da natureza e da
pessoa humanas. Em contrapartida, o Mercado Global aprofunda as desigualdades,
mundializa a pobreza e monopoliza os meios de progresso e mesmo de sobrevivência,
de modo displicente e licencioso, ao bel-prazer de poucos e segundo a ética (antiética)
do lucro e do sadismo do mando e do poder. Com relação a isso escreve Chiavenato:
A globalização [...] É a consequência de um processo de expansão capitalista
beneficiado pelo fim do socialismo soviético. Mais do que do fim do
socialismo soviético, o capitalismo triunfante beneficiou-se do desgaste das
ideologias e da substituição das utopias pelo consumismo.
A derrota dos projetos ideológicos ou utópicos não aconteceu pelo debate de
idéias ou por uma opção da maioria. É uma consequência de várias etapas
históricas em que os valores do humanismo foram, aos poucos, mas
inexoravelmente, substituídos pelo pragmatismo político e econômico. (1998:
16-17)
Há, portanto, uma falência do discurso humanista representado pelo fim das
metanarrativas e a estruturação de uma moral mercadológica que busca ocultar e
confundir a verdadeira ética da vida. Quando a Ética passa a servir e a justificar a
Economia, há uma considerável crise social e decadência da consciência coletiva. A
irracionalidade com que muitas vezes se conduzem as relações humanas, as relações
internacionais, faz pensar em quanto todo o domínio do convívio humano não está
contaminado pela semente do economicismo: o valor absoluto do sucesso e do lucro.
Quando os valores humanos passam a se curvar ante a dominância econômica e a
reificação (“coisificação”) das relações humanas todos os fundamentos do agir social
passam a se delinear de acordo com a ordem econômica. E assim que o império do
capital, com seus imensos tentáculos, corrói, pouco a pouco, todo o edifício ético que se
262
procura manter ereto na defesa dos interesses sociais que transcendem ao materialismo
econômico.
Experimentamos uma profunda crise civilizatória, muitas vezes acompanhada de
crises financeiras, como a atual crise financeira mundial, em relação à qual se
posicionam os Bispos do Brasil:
Na origem da crise estão o sistema neoliberal globalizado e a falta de ética na
economia e na regulamentação do mercado, gerando corrupção e
especulação. O mercado financeiro, na medida em que comanda as relações
dos seres humanos entre si e com a natureza, reforça o consumismo
comprometendo a justiça social e o equilíbrio ambiental. A crise financeira e
econômica é apenas uma parte da crise mais profunda que é social, política,
cultural, ambiental, ética e espiritual. (CNBB, 2009)
A pós-modernidade exige, portanto, não apenas meios de garantir materialmente
a proteção da pessoa humana, mas sobretudo a legitimação do discurso humanista como
fundamento de todo agir social. Por isso há, segundo Habermas (2001: 103), duas
posições opostas no seio das nações em relação ao processo de globalização: a retórica
defensiva, protecionista, que defende o fechamento das fronteiras nacionais contra o
poder massificante dos potentados estrangeiros, que ameaçam a segurança nacional, a
sobrevivência material de suas populações, a cultura local e o seu modo de vida; e a
retórica ofensiva, libertária, que defende a abertura da nação para a emancipação dos
cidadãos frente ao poder repressivo dos Estados, a violência normalizadora de sua
administração uniformizante e a pressão para a assimilação de um modelo de
comportamento de uma coletividade nacional, pelo estabelecimento de uma vida
homogênea.
O discurso atual e o curso dos processos sócio-históricos levam à construção da
abertura política e econômica das nações, acompanhada de um sensível enrijecimento
da identidade nacional e regional. O movimento “centrífugo” é acompanhado por uma
reação “centrípeta”, embora seja questionável até mesmo a noção de centro
(KAHMANN, 2005: 7-9). Esses movimentos reforçam a universalidade e a
individualidade, respectivamente (as características básicas dos direitos humanos).
Assim,
Produz-se uma supervalorização das diferenças sutis. Quanto mais nos
aproximamos do microscópico, mais elas se tornam simbolicamente
carregadas. É muito perturbador. Provavelmente porque o que diminui com a
minoria das minorias é a amplitude asseguradora do pertencer. Então, com o
encolhimento do grupo a que pertencemos, aproximamo-nos do ponto limite
263
em que as pessoas são insubstituíveis, e então a diferença sutil torna-se a
diferença quase absoluta: “Sou eu, não sou você.” Beiramos de certo modo o
insubstituível. O impermutável. (DANIEL; RICOUER, 1999: 17)
O filósofo Luc Ferry percebe essa individualização extrema dos valores
humanos (no que diz respeito à sua profundidade), que paradoxalmente se integram à
universalização desses mesmos valores, no que tange à sua amplitude. Por isso:
Hoje, no Ocidente, ninguém mais aceita morrer por um deus, um país ou um
ideal. [...] Em contrapartida não conheço pai que não arriscaria a vida por
seus filhos. Os filhos se tornam o principal canal para o homem tentar
transcender espiritualmente. As crianças substituíram as instituições
despedaçadas que citei acima. (FERRY, 2008: 18)
A forte individualização da pós-modernidade, em que o sujeito passa a ter de
construir sua trajetória pessoal, inventar a si mesmo e ao seu mundo, fazendo com que
as relações afetivas e simbólicas percam sua naturalidade e necessidade é um fenômeno
ambíguo e insondável: à medida que as relações humanas se intensificam, também
perdem sua extensão, isto é, sua durabilidade. Só mantemos amigos que julgamos serem
efetivamente dignos de confiança e dos quais recebemos suporte que compense o
investimento da relação: capitalizamos as relações humanas. Os seres humanos são
tratados como objetos de prazer, e passa a ter um “valor monetário”, calculado segundo
nossos parâmetros de utilidade e prazer (DOMINGUES, 2001: 39; BAUMAN, 2004:
96).
A universalização, por sua vez, é fruto da incapacidade estatal para garantir aos
seus cidadãos a segurança e o bem-estar a que aspiram e exigem. Para isso, constituem-
se, então, organismos supranacionais de regulação e estruturação do mundo pós-
moderno. Habermas (2001; 90-91) cita-nos os “Governos” e Organizações
Internacionais. No primeiro bloco, fulgura a Organização do Tratado do Atlântico Norte
e a União Europeia. As Organizações internacionais, por sua vez, podem ser estatais ou
não estatais, conforme se constituam de Estados-membros ou sejam fruto da Sociedade
Civil Internacional: assim temos o Banco Mundial e a Organização Mundial de Saúde
de um lado, e o Worldwide Fund for Nature e o Greenpeace, de outro.
[...] a organização internacional resultante de acordos de integração regional
pode ser definida, como sendo uma associação voluntária de Estados, dotada
de órgãos permanentes, próprios e independentes, encarregados de
administrar os interesses coletivos e capazes de expressar uma vontade
juridicamente distinta da de seus membros. Desta forma, as decisões adotadas
nas instâncias criadas para administrar o acordo, passam a substituir as
instâncias nacionais correspondentes, nas áreas em que o Tratado
264
Constitutivo reservou para as competências conjuntas. (KEGEL; AMAL,
2009: 55)
Mas as Organizações Não-Governamentais ainda estão mergulhadas num vazio
de legitimidade. A pós-modernidade vê o surgimento de uma organização autônoma da
sociedade civil, mas ainda não dispõe de parâmetros e meios para definir o estatuto
político dessas estruturas, como também ainda não possui controle sobre os processos
de globalização que estreitam a capacidade de manobra do Estado. Ainda não se
reconhece, por exemplo, o direito de as Organizações Internacionais assinar tratados
(Convenção de Viena de 1986). Embora as ONGs Internacionais operem como porta-
vozes das demandas sociais emergentes e estejam assumindo gradualmente um papel de
relevo na política internacional, para além da acessória e da advocacia, “ninguém votou
nos representantes das ONGs, colocando à prova sua legitimidade. Se ninguém votou
nos delegados de ONGs, como podem ser consideradas representantes da sociedade
civil?” (VIEIRA, 2007: 76).
Logo, o renascimento do problema do humano (sua existência, sua definição e
sua plenitude), a partir da relativização da dicotomia nacional/estrangeiro,leva à busca
de soluções universais – ou universalizáveis –, que garantam a segurança e o progresso
da humanidade, colocam em crise o poder e a abrangência do Estado, ante a necessidade
e a construção de novos mecanismos de defesa e de promoção do homem, muitos
válidos e eficazes, mas carentes de uma mais clara fundamentação política, bem como
de uma precisa natureza e forma jurídicas, fazendo com que a questão da governança
global se reparta em duas outras: o papel e o poder do Estado, de um lado, e a atuação
dos atores não-estatais, de outro. Nos ocuparemos apenas da segunda, e estritamente no
que se refere ao papel das Organizações Não-Governamentais.
3.1 As lições do tratado de Ottawa
Na negociação e na efetivação dos tratados internacionais a questão da
governança global ganha contornos de um problema real. Entre estes, destaca-se do
Tratado de Ottawa, que tem por finalidade extinguir a produção, armazenamento, uso e
transferência de minas terrestres antipessoal. As minas terrestres antipessoal se
constituem em um problema humanitário, pois, embora seja uma arma de uso militar,
não distingue suas vítimas, e, dada a sua grande durabilidade, constituem-se um perigo
265
permanente para a população civil, principal vítima de seu poder maléfico. Além disso,
são usadas para aterrorizar as populações, impedir o cultivo de suas terras e
desmoralizar os membros da comunidade através da morte, da mutilação e da destruição
de suas fontes de subsistência (VIEIRA, 2007: 23-24). O processo de preparação,
negociação, elaboração, implementação e universalização do tratado constituem um
ensaio de como podem ser estabelecidos princípios de uma governança global.
Nessas fases encontraram-se em tensão e diálogo Estados, Organizações
Internacionais e Empresas do setor bélico. Países poderosos com Estados Unidos e
China procuraram boicotar as negociações. No entanto, o sucesso do tratado foi
inegável e contabiliza vitórias históricas para o Direito Internacional Humanitário. Em
um curto espaço de tempo o Tratado foi negociado, aprovado e implementado na maior
parte das nações do mundo, reduzindo drasticamente os estoques de minas terrestres e
inibindo quase que totalmente o seu uso. Esse tratado representa um caso único na
história em que a luta humanitária consegue banir e regular o uso de um sistema
tradicional de arma, inovando o âmbito das relações diplomáticas, pois se dá através da
instalação de um caminho à parte na elaboração e negociação de um tratado
internacional, fora dos canais internacionais regulares (VIEIRA, 2007: 31; 43-44).
No alvorecer do século XXI, as minas terrestres eram produzidas por 50 países,
estocadas em 131, usadas em 16, e plantadas em 83 nações, a maioria em situação de
paz, vitimando 26 mil vítimas por ano – a maioria, mulheres e crianças –, uma a cada 22
minutos, trazendo danos à segurança pessoal, à vida e à saúde física e psíquica, à
moradia, ao meio ambiente, à economia e ao trabalho, em suma, à dignidade da pessoa
humana e ao bem-estar social. Já em 2005, o Tratado contava com 152 países
signatários, tendo 144 deles aderido ou ratificado; restaram apenas 14 países produtores,
67 armazenadores (a maioria, não signatários) – tendo sido destruídos 62 milhões dos
260 milhões de toneladas existentes –, e apenas 9 que ainda as utilizam, sendo que
foram implantados programas de desminagem em 65 países (VIEIRA, 2007: 39; 51-52).
O Processo de Ottawa traz consigo “um modelo de governança global, que
flexibiliza as concepções de segurança nacional e encontra, na segurança humana,
mecanismos reafirmadores dos direitos, mais adequados à sociedade contemporânea”
(VIEIRA, 2007: 10) baseado na interação sinérgica, estratégica e coordenada entre os
diversos atores globais – Estados nacionais, Sociedade Civil organizada e Organismos
266
Internacionais, de modo que, a despeito do surgimento de atores globais não estatais, os
Estados continuam com seus papéis centrais (VIEIRA, 2007: 10-11).
“O Processo de Ottawa representa um caso em que a sociedade civil conseguiu
produzir mudanças em uma das áreas mais fechadas da administração estatal, da
segurança e do militarismo, tradicionalmente fora das deliberações democráticas”
(VIEIRA, 2007: 81). A racionalidade militarista foi vencida pela racionalidade
humanitária. Embora excepcional e irrepetível, Ottawa nos dá lições preciosas acerca da
articulação política global, assim ditas: i – a parceria entre ONGs e representantes
oficiais dos Estados pode gerar resultados compensadores; ii – a possibilidade de
iniciativas conduzidas por países pequenos e medianos por mecanismos fora dos
tradicionais canais das Nações Unidas; iv – é possível as ONGs criarem ou trazerem um
tema à agenda das relações internacionais (VIEIRA, 2007: 55).
Dado o uso considerável de minas por atores não estatais, a sociedade civil
mundial conseguir que grupos armados se pronunciassem ou fizessem acordos bilaterais
se comprometendo a não mais usarem minas, em países como Afeganistão, Filipinas,
Somália, Sudão, etc. (VIEIRA, 2007: 54). Aliás, a mola propulsora do Tratado de
Ottowa foi a sensibilização de pessoas em contato direto com a realidade deletéria das
minas, que se organizaram em torno de organismos internacionais como o Comitê da
Cruz Vermelha e a Campanha Internacional pelo Banimento de Minas Terrestres,
pressionando governos e mesmo participando das conferências de negociação e
implantação do Tratado (VIEIRA, 2007: 26).
Ottowa nos ensina o quanto é valioso e eficaz a parceria entre os diversos
sujeitos internacionais, pois o mero exercício da democracia, enquanto governo da
maioria, não garante o respeito aos direitos humanos: Estados e movimentos sociais
podem, juntos, reforçar mutuamente suas capacidades, aprofundar a transparência
política e a responsabilidade social. Países medianos podem se articular para flexionar
os músculos da democracia no mundo e impor reflexões pertinentes e necessárias aos
seus interesses nacionais e aos fins humanitários. A diplomacia tradicional pode ser
subvertida no sentido de agilizar e aprofundar os processos de discussão de interesses
sociais que são ignorados pela vontade política. ONGs podem e devem se inserir no
âmbito das relações diplomáticas, para fazer frente aos seus interesses, pressionar
267
governos e promover mudanças no cenário político-diplomático global (VIEIRA, 2007:
56-59; 75).
Esse é um caso a ser maturado e analiticamente pensado em termos de Direito
Internacional Público, mas ele já antecipa visivelmente as solução para os conflitos de
poder e limitações na pós-modernidade, assim exprimidas por Dowbor:
A própria irrupção da sociedade civil organizada na arena política se deve
sem dúvida ao sentimento cada vez mais generalizado de que nem as
macroestruturas do poder estatal, nem as macroestruturas do poder privado,
estão respondendo às necessidades prosáicas da sociedade em termos de
qualidade de vida, de respeito ao meio ambiente, de geração de um clima de
segurança, de preservação do espaço de liberdade e de criatividade
individuais e sociais. [...] A palavra chave, aqui, é evidentemente a
articulação dos diversos instrumentos de mudança. Somos condenados a
articular de maneira razoavelmente equilibrada os poderes do Estado, das
empresas privadas e das organizações da sociedade civil, e a visão das
soluções políticas centradas na privatização ou no estatismo constituem
simplificações hoje insustentáveis. (2000: 81-82)
Segundo Habermas (2003: 30), à medida que os partidos políticos se estatizam e
passam a gravitar em torno do Mercado, abre-se espaço para movimentos de reação no
seio da sociedade civil. Com informação disponível e a construção de uma
autoconsciência de identidades pluralistas, a sociedade civil global pode tomar para si o
leme da história, através de uma organização em rede e de ações estratégicas
coordenadas no plano da diplomacia internacional. Esse senso de pertencimento a uma
comunidade mundial, inaugurado pelo princípio da universalidade dos direitos
humanos, tem se solidificado através das ações e idealizações das organizações da
sociedade civil organizada (VIEIRA, 2001: 66;71).
Através do Processo de Ottawa pode-se perceber também a formação de
novas identidades, transnacionais, mesmo que a identidade nacional ainda
seja fonte identificadora do indivíduo, Quanto à soberania, demanda-se uma
refundação de seus pressupostos, não como uma forma de garantir que as
autoridades tenham limites na condução de políticas públicas nacionais, mas
primordialmente para fazer com que operem para atender as necessidades da
população, pela promoção dos Direitos Humanos e Fundamentais (VIEIRA,
2007: 82)
O tema recente da governança global nos faz encerrar, assim, esse tópico sem
uma resposta definível e definitiva, apenas como uma expectativa de realidade que se
pode estabelecer e com meios e mecanismos que podem dotar os atores globais de
capacidade suficiente para fazer o mundo dar um salto civilizatório, talvez um dos
268
maiores de nossa história terrena: a passagem da cidadania nacional à universal, a
construção do mundo como a grande Pólis do ser humano, de todo ser humano.
Concluamos esse tópico, então, com Habermas, que nos acompanhou durante
toda a reflexão:
Observando-se normativamente, calcar o processo democrático em uma
cultura política comum não possui o sentido excluidor de efetivação de um
modo de ser próprio nacional, mas antes o sentido inclusivo de uma prática
de autolegislação que engloba igualmente todos os cidadãos. Inclusão quer
dizer que a coletividade política permanece aberta para abarcar os cidadãos
de qualquer origem sem fechar (einschliessen) esse outro na uniformidade de
uma nação (Volksgemeinschaft) homogênea. (2001: 93-94)
A inclusão do “outro”, implica, portanto, a construção de um “nós”, um sujeito
coletivo que se expande cada vez mais e de formas extremamente variadas, para além
das fronteiras do Estado nacional. A construção da identidade nacional foi um projeto
político que cumpriu sua função na história para identificar o “povo” como “nação”,
mas que já não mais se adapta aos novos tempos, por ser uma construção artificial
baseada numa ascendência comum puramente imaginária. A transitividade e a liquidez
dos laços humanos e sociais convida a humanidade a uma abertura à diferença e à
estranheza, num mútuo reconhecimento do Outro, como um outro Eu.
Assim, somos inseridos num novo contexto de relação e de poder, pois há uma
transformação material do mundo, que nos convida a uma transformação formal desse
mesmo mundo: se povo e território já não significam mais espaços ontológicos fechados
e permanentes, mas conceitos funcionais cuja coerência interna – nos aspectos de
facticidade e validade – se vê cada vez mais ameaçada. Transformações nos elementos
materiais do Estado questionam a sua dimensão formal: sua soberania e finalidade
precisam ser radicalmente repensados no intuito de dar respostas claras e efetivas aos
problemas dos novos tempos, respostas que não são alcançáveis pela esquizofrenia da
conservação institucional que tem acompanhado toda a caminhada do Ocidente, mas
pela reformulação cognitiva, axiológica e jurídica da sociedade mundial, reformulação
essa que deve abranger também os atores não-estatais e as novas formas de exercício do
poder democrático.
4 CONCLUSÃO
269
Procuramos fazer uma reflexão acerca da identidade humana nos tempos atuais e
dos desafios que essa identidade tem enfrentado para a sua legítima realização no
mundo. Buscamos também construir um ensaio acerca da possibilidade e das vias de
estabelecimento de uma governança global. A própria complexidade da governança
global impede qualquer tentativa de explicação através de um único olhar – mesmo que
denso e profundo –, ou de um corte analítico – ainda que exaustivo –, pois sua própria
existência é tão somente potencial, já que, para se concretizar exige a concorrência de
uma série de condições políticas, culturais, econômicas e sociais cujo desenvolvimento
é ainda embrionário (HABERMAS, 2003: 105).
Não tivemos por objetivo, portanto, dar uma resposta clara acerca do problema,
mas antes elucidá-lo, clarificá-lo a partir de uma reflexão holística sobre seu estatuto
ontológico e político. Esse artigo não encontra em si mesmo fechamento, portanto, mas
almeja antever a história das relações pós-nacionais, do enfrentamento e da resolução da
crise global. Antes de respostas, buscamos então princípios de entendimento.
A identidade nacional é um construto problemático e emblemático em nossa
história, ela diz respeito ao mais profundo de nosso ser: aquilo que nós somos, embora
em crise, ela permanece como fundamento da própria personalidade e da cosmovisão
que estabelecemos ao longo de nossa história. Enquanto a governança global ainda é
uma realidade a ser construir, de modo que precisa assentar suas bases sobre o diálogo:
diálogo entre estados que se reconhecem co-partícipes do governo do mundo, diálogo
entre Estado, Mercado e Sociedade cujas naturezas e campos de ação são indissociáveis.
Esse diálogo não pode, porém, lançar suas bases senão sobre a pessoa humana, seja ela
na perspectiva da individualidade ou da coletividade. A sociedade civil, por exemplo,
encontrou eco na ideia de povo, enquanto gérmen do Estado, para encontrar espaço nas
relações internacionais, o que demonstra abertura desse cenário internacional ao diálogo
e à democracia (VIEIRA, 2007: 78).
Identidade e Governabilidade precisam ser repensadas sob o ponto de vista da
segurança do mundo. Se a cultura global já não fornece referenciais simbólicos capazes
de suprir a demanda de autoidentificação do sujeito e de reconhecimento do Outro, é
necessário ao menos segurança jurídica para que a descoberta de si e do mundo, na
270
perspectiva do ethos, seja garantida pela Sociedade Mundial. Nesse sentido, citamos os
perigos da pós-modernidade assim sintetizados por Giddens:
1. Globalização do risco no sentido de intensidade: por exemplo, a guerra
nuclear pode ameaçar a sobrevivência da humanidade.
2. Globalização do risco no sentido da expansão da quantidade de eventos
contingentes que afetam todos ou ao menos grande quantidade de pessoas no
planeta: por exemplo, mudanças na divisão global do trabalho.
3. Risco derivado do meio ambiente criado, ou natureza socializada: a
infusão de conhecimento humano no meio ambiente material.
4. O desenvolvimento de riscos ambientais institucionalizados afetando as
possibilidades de vida de milhões: por exemplo, mercados de investimentos.
(GIDDENS, 1991: 111-112)
Do ponto de vista da pessoa humana e sua vinculação a esse mundo ameaçador,
responder positiva e efetivamente a esses riscos significa estabelecer cognitivamente
uma relação intrínseca entre as tendências globalizantes da modernidade e eventos
localizados na vida cotidiana; construir o eu como um projeto reflexivo, uma parte
elementar da reflexividade da modernidade, encontrando sua identidade entre as
estratégias e opções fornecidas pelos sistemas abstratos; educar o impulso para a
autorrealização, fundamentado-se na confiança básica, que em contextos personalizados
só pode ser estabelecida por uma “abertura” do eu para o outro; formar laços pessoais
sensíveis como “relacionamentos”, orientados pela mutualidade de autorrevelação; e
utilizar a preocupação com a autossatisfação, que não é apenas uma defesa narcisista
contra um mundo externo ameaçador, sobre os quais os indivíduos têm pouco controle,
como uma apropriação positiva de circunstâncias nas quais as influências globalizadas
invadem a vida cotidiana (GIDDENS, 1991: 111).
Logo,
[...] a única alternativa possível para a existência do “eu” se dá através do
reconhecimento das diferenças, pois “de universalização das pretensões e
estratégias, de possibilidades cosmopolitas expressas a partir do
reconhecimento das diferenças e, por consequência, do outro como única
alternativa possível para a existência do eu” (VIEIRA, 2007: 70)
No que diz respeito aos instrumentos tradicionais de governabilidade, a
globalização impõe um repensar a si mesmo segundo a ótica da pessoa humana como
cidadão do mundo, ou seja, como um governo de pessoas muito mais do que de
cidadãos patriotas. Para tanto se faz necessário reformular os conceitos tradicionais, que
se tornaram escorregadios, pois os instrumentos de análise da realidade se fragilizaram,
uma vez ter a realidade se pululado de novas dinâmicas (DOWBOR, 2000: 71-72). Os
271
conceitos clássicos de Estado nacional e soberania estão esvaziados, precisam ser
reelaborados e reinventados (VIEIRA, 2007: 81). O estranhamento deve dar lugar à
solidariedade, não à solidariedade entre estranhos, próprios da modernidade, e que seria
o horizonte ético da ação integrativa do Estado, mas a solidariedade entre pessoas e
povos que se reconhecem unidos por uma laço jamais superável pelas fragmentações
políticas: a natureza humana, que gesta nestes tempos, a cidadania humana (VIEIRA,
2007: 65-68).
Do ponto de vista dos mercados, a assunção de uma ética humanitária significa
reconhecer a si mesma como o sangue da uma sociedade, o espaço em que tudo influi,
mas reconhecer também que não há matemática que substitua o bom senso e o valor da
vida, valor fonte de todos os valores e direitos. Isso implica que ela se oriente não
segundo os gráficos, as especulações e as expectativas, mas segundo a necessidade
eminentemente moral, eminentemente econômica, de garantir o progresso e a justiça
social aos homens, porque “Economia e técnica não têm nenhum sentido senão para o
homem a quem devem servir” (PAULO VI, 1967); embora elas se regulem “cada uma
no seu âmbito, por princípios próprios, é erro julgar a ordem económica e a moral tão
encontradas e alheias entre si, que de modo nenhum aquela dependa desta.” (PIO XI,
1931). Pela sua origem histórico-epistemológica e mesmo pela precedência moral e
política, é imperativo compreender que “O juízo ético está na raiz de todo o juízo
econômico e, portanto, informa toda a atividade econômica”. (VALSECCHI, 1982).
O mosaico reconstruído, para mim, não afasta a indignação e o sofrimento.
Mas lhe dá sentido. Porque as emoções são boas, a ética é essencial, e as
técnicas estão apenas a nosso serviço. Porque ao juntarmos as pedrinhas da
vida, o mosaico da vida é um só. (DOWBOR, 2000: 143)
Por fim, gostaríamos de ressaltar o caráter aberto da história e do tema: a
governança global é uma realidade a se construir, uma realidade a caminho, construção
ilustrada pelo caso singular de Ottawa, que representa uma esperança aberta em relação
à diplomacia multilateral, na perspectiva de que esta evolua para um instrumento
flexível e efetivo de implantação de uma legítima e eficaz governança global (VIEIRA,
2007: 79). Nas palavras de Domingues:
Como sempre, a história se apresenta em aberto e, por não ter nenhuma
direção definida, seu rumo depende muito da criatividade e da vontade que os
diversos indivíduos e coletividades que compõem a espécie humana venham
exercer frente às principais questões que hoje, assim como amanhã, se nos
272
antepõem. O desencaixe que atingiu os indivíduos e coletividades humanas
de certa forma se reproduz em escala global, pois que os países, em maior ou
menor grau, se vêm à mercê das forças de mercado que para muitos seriam
absolutas. A reflexividade pode, entretanto, ser crucial também nessas
coordenadas: a identidade que possuímos e a identidade que desejamos – isto
é, o projeto que queremos sustentar – não são algo que possa tomar como
dado. A despeito do enorme poderio das forças dos mercados internacionais e
dos organismos que, como o FMI e o Banco Mundial, zelam por elas, é
possível ao menos propor-se o exercício da autonomia e da liberdade, ainda
que com a cautela e a modéstia que a situação impõe. (2001: 77)
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