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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Letras
Thiago Oliveira Costa
A REFERÊNCIA A RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA EM TEXTOS
VEICULADOS NA MÍDIA JORNALÍSTICA BRASILEIRA ENTRE 2018
E 2019: um estudo de natureza sociodiscursiva
BELO HORIZONTE
2020
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Thiago Oliveira Costa
A REFERÊNCIA A RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA EM TEXTOS
VEICULADOS NA MÍDIA JORNALÍSTICA BRASILEIRA ENTRE 2018
E 2019: um estudo de natureza sociodiscursiva
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Linguísticos da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do titulo de mestre em linguística.
Professora orientadora: Dra. Sandra Maria
Silva Cavalcante
Área de concentração: Linguística e Língua
Portuguesa
Linha de Pesquisa: Linguagem e enunciação:
interações sociais e práticas discursivas
Belo Horizonte
2020
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Costa, Thiago Oliveira
C837r A referência a religiões de matriz africana em textos veiculados na mídia
jornalística brasileira entre 2018 e 2019: um estudo de natureza sociodiscursiva
/ Thiago Oliveira Costa. Belo Horizonte, 2020.
159 f. : il.
Orientadora: Sandra Maria Silva Cavalcante
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras
1. Cultos afro-brasileiros. 2. Referência (Linguística). 3. Liberdade religiosa.
4. Candomblé. 5. Religiões - Relações. 6. Metáfora. 7. Jornalismo - Linguagem -
Brasil. 8. Umbanda. 9. Comunicação - Aspectos religiosos I. Cavalcante, Sandra
Maria Silva. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de
Pós-Graduação em Letras. III. Título.
CDU: 800.855
Ficha catalográfica elaborada por Fernanda Paim Brito - CRB 6/2999
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Thiago Oliveira Costa
A REFERÊNCIA A RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA EM TEXTOS
VEICULADOS NA MÍDIA JORNALÍSTICA BRASILEIRA ENTRE 2018
E 2019: um estudo de natureza sociodiscursiva
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Linguísticos da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do titulo de mestre em linguística. Área de concentração: Linguística e Língua Portuguesa
Profa. Dra. Sandra Maria Silva Cavalcante (Orientadora) - PUC Minas
Profa. Dra. Juliana Alves Assis – PUC Minas
Profa. Dra. Flávia Affonso Mayer - UFPB
Prof. Dr. Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães – PUC Minas (Suplente)
Belo Horizonte, 10 de julho de 2020.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a todo o corpo de professores que compõem o Programa de Pós-
Graduação em Letras e seu colegiado, pela compreensão, disponibilidade,
flexibilidade, auxílio, paciência e conhecimentos compartilhados durante o percurso
do mestrado.
Agradeço à PUC MINAS pela concessão da bolsa de estudo assistencial que me
possibilitou realizar o meu sonho de fazer um mestrado, complementando assim
minha formação acadêmica, adquirindo conhecimento que será levado para toda
vida.
Agradeço à coordenadora do Curso de Letras da instituição onde eu me graduei,
Alba Valeria Niza Silva, pelo apoio e incentivo para que eu continuasse meus
estudos e fizesse o meu mestrado.
Agradeço à professora Sandra Maria Silva Cavalcante pela orientação, dedicação,
empenho, pela ajuda na realização da pesquisa e do meu conhecimento ao longo do
mestrado.
Sou profundamente grato à minha família pelo apoio em, especial à minha mãe, meu
irmão, ao meu pai e a minha cunhada.
Por fim, agradeço também a Deus, aos guias espirituais que sempre estiveram ao
meu lado me ajudando com muita paciência e dedicação.
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―Amor. Tão pequeno, esta palavra. Palavra bela, preciosa.
Sentimento forte e inacessível. Quatro letras apenas,
gerando todos os sentimentos do mundo. As mulheres
falam de amor. Os homens falam de amor. Amor que vai,
amor que vem, que foge, que se esconde, que se procura,
que se encontra, que se preza, que se despreza, que
causa ódios e se acende guerras sem fim. No amor, as
mulheres são um exercito derrotado, é preciso chorar.
Depor as armas e aceitar a solidão. Escrever poemas e
cantar ao vento para espantar as mágoas. O amor é fugaz
como a gota de água na palma da mão.‖
(CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia.
Companhia das Letras, 2004, p. 13)
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RESUMO
O presente trabalho apresenta um estudo sobre a maneira como religiões de matriz
africana são referenciadas em veículos representativos da mídia jornalística,
corporativa brasileira em um recorte temporal de dois anos. A pesquisa pode ser
compreendida, mais precisamente, em termos da busca de compreensão de
processos referenciais que constituem práticas discursivas que tematizam religiões
de matriz africana, especialmente a Umbanda e o Candomblé, em jornais de ampla
circulação na sociedade brasileira. A realização da presente pesquisa toma como
hipóteses que, em práticas discursivas de natureza jornalística que focalizam
religiões de matriz africana, essas são referenciadas com base estratégias
discursivo-enunciativas, tais como a metáfora, que conduzem o leitor a compreendê-
las como práticas religiosas associadas a atos de violência e de discriminação
social; a forma como essas religiões estão referenciadas e predicadas na mídia
jornalística contemporânea é reveladora do processo de opressão das práticas
religiosas dos negros africanos, desde o período colonial brasileiro. A pesquisa
estrutura-se a partir da descrição do percurso sociohistórico trilhado por essas
religiões no Brasil, da problematização de concepções teóricas que norteiam a
constituição do corpus e a análise dos dados, entre as quais, as concepções de
linguagem, língua, enunciação, discurso, texto, sobre a natureza do texto jornalístico
além das concepções adotadas para referenciação e metaforização. A análise das
reportagens veiculadas na mídia impressa brasileira contemporânea, nos anos de
2018 e 2019, que constituiu o corpus desta pesquisa, foi desenvolvida à luz dos
fundamentos teóricos que nos permite caracterizar e descrever a situação discursiva
em estudo em termos do processo de enunciação e, mais precisamente, de cenas
de enunciação. Os procedimentos para constituição e análise de dados foram
orientados por um estudo de natureza qualitativa, que pressupôs a seleção de 17
(dezessete) reportagens, veiculadas por jornais de circulação nos estados de Minas
Gerais, São Paulo e Bahia. Ao descrever processos sociodiscursivos, mais
precisamente enunciativos, instituídos no domínio jornalístico, em que as religiões
de matriz africana são tematizadas, na perspectiva teórica e metodológica que
adotamos, esperamos poder contribuir para novos estudos que evidenciem o modo
como essas religiões são socioculturalmente reconhecidas e valorizadas. Além
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disso, contribuir para estudos que visam explicitar o processo de constituição e de
reconhecimento da identidade cultural de tais religiões e de seus adeptos no meio
social onde estão inseridas.
Palavras-chave: Referenciação. Metaforização. Religiões afro-brasileiras.
Candomblé. Umbanda.
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ABSTRACT
This paper presents a study on the way in which religions of African origin are
referenced in vehicles that are representative of the Brazilian corporate journalistic
media in a two-year period. The research can be understood, more precisely, in
terms of the search for understanding referential processes that constitute discursive
practices that focus on religions of African origin, especially Umbanda and
Candomblé, in newspapers with wide circulation in Brazilian society. The realization
of this research takes as hypotheses that, in discursive practices of journalistic nature
that focus on religions of African origin, these are referenced based on discursive-
enunciative strategies, such as metaphor, that lead the reader to understand them as
associated religious practices acts of violence and social discrimination; the way in
which these religions are referenced and predicated in contemporary journalistic
media reveals the process of oppression of religious practices by black Africans,
since the Brazilian colonial period. The research is structured from the description of
the socio-historical path followed by these religions in Brazil, from the
problematization of theoretical concepts that guide the constitution of the corpus and
the analysis of data, among which, the conceptions of language, language,
enunciation, discourse , text, on the nature of the journalistic text in addition to the
concepts adopted for referencing and metaphorization. The analysis of the reports
published in the contemporary Brazilian print media, in the years 2018 and 2019,
which constituted the corpus of this research, was developed in the light of the
theoretical foundations that allow us to characterize and describe the discursive
situation under study in terms of the enunciation process and , more precisely, of
enunciation scenes. The procedures for constituting and analyzing data were guided
by a qualitative study, which presupposed the selection of 17 (seventeen) reports,
published by newspapers in the states of Minas Gerais, São Paulo and Bahia. When
describing sociodiscursive processes, more precisely enunciative, instituted in the
journalistic domain, in which African-based religions are themed, in the theoretical
and methodological perspective that we adopt, we hope to be able to contribute to
new studies that show how these religions are socioculturally recognized and valued
. In addition, to contribute to studies that aim to explain the process of constitution
9
and recognition of the cultural identity of such religions and their adherents in the
social environment where they are inserted.
Keywords: Referencing. Metaphorization. Candomblé. Umbanda.
10
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................... 10
2 FUNDAMENTOS SOCIOHISTÓRICOS: perspectiva histórica e social
da origem e evolução das religiões afro-brasileiras: Umbanda e
Candomblé ...............................................................................................
16
2.1 Processo de formação das religiões afro-brasileiras ............................... 16
2.2 As bases histórico-sociais da Umbanda .................................................. 23
2.3 As bases histórico-sociais do Candomblé ............................................... 32
2.4 Parâmetros legais para o direito à liberdade de crença e de culto .......... 39
3 FUNDAMENTOS SOCIODISCURSIVOS ................................................ 44
3.1 Concepção de Linguagem, Língua e Enunciação ................................... 44
3.2 Concepção de Discurso e de Texto ......................................................... 47
3.2.1 Como podemos definir texto? .................................................................. 50
3.2.2 A natureza do texto jornalístico ................................................................ 54
3.3 Sobre a Referenciação ............................................................................ 59
3.4 Sobre a Metaforização ............................................................................. 69
4 FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS .................................................... 76
4.1 Procedimentos para a construção, seleção e documentação do corpus . 76
5 ANÁLISE DE DADOS .............................................................................. 81
5.1 A Umbanda e o Candomblé na cena jornalística brasileira ..................... 81
5.1.1 Estratégias discursivas comuns às cenas jornalísticas de 2018 e 2019 . 83
6 CONCLUSÃO .......................................................................................... 101
REFERÊNCIAS ........................................................................................ 105
APÊNDICE ............................................................................................... 109
11
Capitulo 1
INTRODUÇÃO
Tendo contato desde criança com a Umbanda por conta dos meus avôs
maternos e duas tias que frequentavam terreiro de Umbanda na cidade onde eu
nasci, e, posteriormente, com a minha própria iniciação na Umbanda e no
Candomblé, no ano de 2005, e o convívio direto ou indireto com a intolerância
religiosa, inclusive dentro da própria família, todas essas experiências me levaram a
buscar uma compreensão mais crítica sobre o modo como as pessoas convivem
com as religiões de matriz africana, sobre como as mesmas são referenciadas e
predicadas, em espaços públicos, e os motivos que podem levar uma pessoa ou
grupo de pessoas a ter resistência em conviver com sujeitos que cultivavam crenças,
os valores e, consequentemente, os rituais de tais religiões.
Minha experiência pessoal na religião e nos movimentos sociais que
buscam acabar com a intolerância religiosa, associada à permanente formação
nesse campo, me levaram a integrar questões acadêmicas às questões religiosas
que permeiam minha vida pessoal e social há bastante tempo. Por isso, ainda na
graduação do curso de Letras, iniciei, no decorrer do Trabalho de Conclusão de
Curso, uma pesquisa que buscava identificar, no discurso social e religioso, como as
religiões afro-brasileiras eram apresentadas à sociedade, através do discurso
jornalístico e de lideranças religiosas. O meu convívio com parentes Umbandistas e
Candomblecistas, na minha prática religiosa e a não aceitação por parte de alguns
parentes e pessoas da sociedade com quem eu convivia, inclusive colegas de
faculdade, me levaram a estabelecer essa indissociável relação entre a minha
prática religiosa e a minha formação acadêmica.
Tendo em vista as experiências vividas no campo religioso, as noticias
relacionadas à discriminação, intolerância e preconceito com as religiões afro-
brasileiras e seus adeptos, instigou-me refletir, criticamente, e investigar, no âmbito
de um Programa de Pós-Graduação no campo dos Estudos Linguísticos, práticas
discursivas, de natureza jornalística, em que a Umbanda e o Candomblé são
referenciadas.
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Este trabalho justifica-se, portanto, pelo reconhecimento da necessidade
social do investimento em pesquisas que busquem compreender como se
estruturam práticas discursivas jornalísticas que, em território nacional, referenciam
religiões afro-brasileiras, mais precisamente, a Umbanda e o Candomblé.
Entre as religiões de matriz africana, a Umbanda e o Candomblé foram
escolhidas por serem as religiões com maior número de terreiros e adeptos na
região sudeste do Brasil. De acordo com o censo do IBGE (2016), cerca de 167.363
brasileiros se declaram adeptos do Candomblé, enquanto que 407.331
(quatrocentos e sete mil trezentas e trinta e uma) pessoas se declararam adeptos da
Umbanda. No mesmo ano, 588.797 (quinhentas e oitenta e oito mil setecentas e
noventa e sete) pessoas declararam ser adeptas tanto do Candomblé quanto a
Umbanda, enquanto que 14.103 (catorze mil cento e três) indivíduos são adeptos de
outras religiões afro-brasileiras. (IBGE, 2016).
Através do desenvolvimento desta pesquisa, que tem como corpus a ser
analisado textos jornalístico veiculados na mídia corporativa brasileira, em jornais de
grande circulação principalmente nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Rio de
Janeiro, Bahia e Espírito Santo entre os anos de 2018 e 2019. A partir disso,
pretendemos verificar a plausibilidade da(s) seguinte(s) hipótese(s):
I. Em práticas discursivas de natureza jornalística que
focalizam religiões de matriz africana, mais precisamente a
Umbanda e o Candomblé, essas são referenciadas com base
estratégias discursivo-enunciativas, entre as quais a metáfora,
que conduzem o leitor a compreendê-las como práticas
religiosas associadas a atos de violência e da situação de
discriminação (intolerância) social;
II. A forma como essas religiões estão referenciadas e
predicadas na mídia jornalística contemporânea é reveladora
do processo de opressão das práticas religiosas dos negros
africanos, que teve início no período colonial brasileiro;
III. Por fim, que o processo de referenciação e de predicação
das religiões afro-brasileiras implicam o uso metafórico de um
repertório linguístico (lexical) comum ao campo semântico da
guerra, sendo a Umbanda e o Candomblé os principais alvos,
13
envoltos em um contexto social que implica, historicamente, os
movimentos de ataque e defesa.
No âmbito da delimitação do problema em estudo e à luz do
anteriormente exposto, este trabalho assume como objetivo geral, analisar os
modos como as religiões de matriz africana são referenciadas em textos jornalísticos
vinculados na mídia corporativa brasileira, nos anos de 2018 e 2019. Para tal, foram
exploradas 17 reportagens, e a partir dai me foi possível definir também um caminho
para a realização da pesquisa, em termos de ações que buscam culminar no
cumprimento do objetivo geral.
Nesse sentido apresento como objetivos específicos:
a) compreender como se deu o processo de constituição da Umbanda e
do Candomblé enquanto religiões afro-brasileiras em uma perspectiva
histórica e social;
b) identificar o modo como a mídia corporativa brasileira referencia as
religiões afro-brasileiras no período proposto para a presente
pesquisa;
c) averiguar dentro do corpus selecionado, o modo como a Umbanda e o
Candomblé foram metaforizados;
d) definir os critérios para o processo de documentação, organização e
seleção do corpus e para a constituição dos dados de pesquisa e dos
procedimentos de análise dos mesmos;
e) verificar a plausibilidade das hipóteses de pesquisa.
Em termos metodológicos, este trabalho caracteriza-se como uma
pesquisa de natureza qualitativa, sendo desenvolvida primordialmente através de
analise documental. Da seleção de reportagens de jornais já mencionada
anteriormente, foram analisadas 17 (dezessete) reportagens veiculadas em jornais
de circulação na Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.
Em busca de cumprir o objetivo maior da pesquisa, que é o de analisar os
meios pelos quais ou os modos como as religiões afro-brasileiras são referenciadas
no corpus em análise, utilizamos como procedimento de análise a identificação de
quais palavras ou expressões são mais comumente usadas para referir a e predicar
tais religiões.
14
O presente trabalho está estruturado em quatro capítulos contados a
partir deste Capítulo 1, em que se apresenta esta introdução.
O capitulo 2, Fundamentos Sociohistóricos, define-se pela apresentação
de uma perspectiva histórica e social da origem e evolução das religiões afro-
brasileiras: Umbanda e Candomblé. Esse capítulo cumpre o objetivo de
apresentar o contexto sócio-histórico em que a Umbanda e o Candomblé surgiram e
se fixaram como religiões no Brasil, com ênfase na dinâmica de evolução dessas
religiões desde o período colonial até os dias atuais. Nesse capítulo, entre os
autores com os quais dialogamos, destacam-se: Enrique Dussel, Berkenbrock,
Oliveira, Prandi, Cumino, Barbosa Jr, Carneiro, Vaini, Brito.
O Capítulo 3, dedicado à apresentação dos Fundamentos
sociodiscursivos, cumpre o objetivo de definir os conceitos que deverão orientar o
processo de análise dos dados. Para essa definição, dialogamos com o trabalho de
autores que compreendem linguagem e seu funcionamento como prática social.
Entre esses autores, destacam-se Volochinov, Marcuschi, Koch, Travaglia. Além
disso, em uma perspectiva processual da atividade linguística, destacamos os
conceitos de Referenciação e Metaforização, em concordância com trabalhos
desenvolvidos por Koch, Koch e Bentes, Marcuschi, Bahktin, Volochinov, Van Dijk,
Gomis; Lakoff, Vereza e Cavalcante.
No quarto capítulo, dedicado à Metodologia, apresentamos ao leitor as
estratégias metodológicas adotadas para a investigação que se realiza no âmbito da
presente pesquisa. A opção pela análise de reportagens de jornais, apresentados
entre os fundamentos históricos, se justifica pela possibilidade de acesso a um
número maior de informações e dados oficiais recentes, o que nos permite um
alcance mais abrangente de práticas discursivas identificadas em situações reais em
que as religiões de matriz africanas são referenciadas, como forma de constituir os
dados documentais a serem analisados.
No capitulo 5, sob o título de Análise de dados, apresento uma análise
de dados constituídos no âmbito do corpus selecionado para investigação, a fim de
verificar a plausibilidade ou não das hipóteses levantadas para este estudo. Este
capítulo foi dividido em três tópicos, sendo o primeiro intitulado ―A Umbanda e o
Candomblé na cena jornalística brasileira‖, o segundo, a cena jornalística em que a
Umbanda e o Candomblé são referenciadas, no contexto dos veículos jornalísticos
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selecionados para estudo, no ano de 2018. Por fim, no terceiro tópico, uma análise
dos modos como as religiões de matriz africana são referenciadas no ano 2019.
Na conclusão, apresentamos ao leitor as considerações finais acerca da
pesquisa realizada e problematizamos questões que, no decorrer no trabalho, se
mostraram relevantes, abrindo possibilidades e a necessidade de pesquisas futuras.
E, finalmente, em anexo a este trabalho, estão as reportagens que definem o corpus
a partir do qual se constituem os dados que possibilitaram a realização desta
pesquisa.
16
Capítulo 2
2 FUNDAMENTOS SOCIOHISTÓRICOS: perspectiva histórica e social da
origem e evolução das religiões afro-brasileiras: Umbanda e Candomblé
Neste capítulo, apresentaremos um panorama de como se deu o
processo de formação das religiões afro-brasileiras no Brasil, especialmente a
Umbanda e o Candomblé, quais fatores sociais e culturais contribuíram para a
formação destas duas novas religiões aqui no país, e como se estabeleceu o
convívio entre tais religiões e outras práticas religiosas, especialmente, as práticas
católicas já existentes. Buscaremos contextualizar, também, como o encontro de
culturas distintas como a cultura europeia, africana e indígena contribuiu para a
formação de tais religiões. O capítulo traz, ainda, disposições de ordem legal que
dizem respeito ao direto constitucional de liberdade religiosa e de culto que, em
princípio, devem reger a seguridade de direitos dos cidadãos que optam por cultivar
a sua fé em toda e qualquer religião, o que inclui, indiscutivelmente, aqueles que o
fazem no Candomblé e na Umbanda.
2.1 O processo de formação das religiões afro-brasileiras
Para falarmos do surgimento da Umbanda e do Candomblé no Brasil,
precisamos primeiramente retomar a formação histórica e social do país, que
proporcionou as condições necessárias para o surgimento de novas religiões,
reflexo do encontro de culturas distintas que se fundiram e deram origem a novas
concepções sociais e religiosas (JARDIM, 2017).
A colonização do Novo Mundo ―descoberto‖ pela Europa e a diáspora
africana fazem parte do processo de internacionalização que deu inicio à
modernidade. De acordo com Enrique Dussel (2007, p.52), a modernidade é fruto do
descobrimento, conquista, colonização e integração (subsunção) da Ameríndia, que
a partir do fim do século XV (1492), transformou a Europa em centro do mundo
diante de uma periferia crescente. Nesse sentido, os encontros entre as culturas
européias, africanas e indígenas foram permeados pelo domínio técnico dos
europeus que, associado à violência e à ideia de raça como fundamentos da relação
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entre colonizadores e colonizados, foram cruciais para subjugação dos ameríndios e
seus descendentes.
Para Dussel, ainda, a relação que se estabeleceu na África entre
africanos e europeus, a partir do século XV, trouxe como consequências a
institucionalização da escravidão enquanto uma das formas de controle do trabalho
da modernidade; o enriquecimento da Europa e estruturação da África como sua
periferia; a desestruturação das sociedades africanas; a diáspora africana; a
subalternização dos saberes africanos, e a ideia de que, com exceção da cultura
européia, todas as outras culturas são inferiores.
No Brasil, essa realidade se configurou, especialmente a partir do século
XVI, a partir do tráfico de homens e mulheres africanos em um fenômeno migratório
realizado através dos denominados Navios Negreiros. De acordo com Berkenbrock
(2007, p.76),
Estima-se que tenham sido trazidas ao Brasil mais de três milhões e seiscentos mil pessoas como escravos. Salvador na Bahia foi o porto por onde entrou a maioria dos escravos no Brasil, com cerca de um milhão e duzentos mil escravos, e o Rio de Janeiro foi o segundo porto que mais recebeu africanos escravizados.
Os mais de três milhões de africanos trazidos ao Brasil, no período do
tráfico escravocrata de povos africanos, podem ser separados em quatro períodos: o
Ciclo da Guiné que se iniciou na segunda metade do século XVI com africanos
provenientes da Nigéria, Gana Benin, Cabo Verde e Costa do Marfim, que
desembarcaram principalmente no nordeste brasileiro. O Ciclo da Angola e Congo
que ocorreu durante o século XVII, período em que foram trazidos escravos
provenientes de onde atualmente estão o Zaire, Camarões, Gabão e República
Central Africana. O Ciclo da Costa da Mina com escravos trazidos nos primeiros
quartos do século XVIII em regiões que hoje são conhecidas como Nigéria e Benin.
E por fim, o quarto ciclo que ocorreu por volta do final do século XVIII e durante
quase todo o século XIX. Este último foi um ciclo muito marcado pela repressão ao
comércio e tráfico de escravos pela Inglaterra que já havia abolido a escravidão em
suas colônias. Neste ciclo os escravos eram enviados do Golfo do Benin
(BERKENBROCK, 2007).
Segundo Berkenbrock, ainda, no que se refere ao Brasil, pode-se dividir
as culturas africanas que aqui chegaram em quatro grupos: sudaneses, formados
18
pelos yorubas e daomeanos; islâmicos, formados pelos Peuhls, Mandingas e
Haussás; os Bantos de Angola e Congo e Bantos da Contra Costa, vindos de
Moçambique.
Para Oliveira (2008, p.52), calcula-se que os bantos tenham sido o maior
número de africanos trazidos ao Brasil como escravos. Por isso, pode-se observar
uma presença determinante da cultura banto na formação da cultura brasileira. Isso
ocorre, tanto em manifestações estéticas musicais que decorrem ou são
influenciadas por essa cultura como o samba, o mambo e a rumba, quanto no
aspecto religioso através de rituais como a macumba e o vodu.
A cultura banto também influenciou em elementos filosóficos constituídos
das religiões que dela sofrem influência, entre essas, destacam-se o culto aos
mortos, o culto à natureza e o dogma da reencarnação. Em religiões como a
Umbanda, pode-se observar a influência desta cultura em aspectos como a música,
a dança, o transe, o uso de plantas (ornamentais, aromáticas, medicinais), pedras,
símbolos de cores, pemba, pó que se assemelha ao pó de giz e que é utilizado em
rituais tanto na Umbanda quanto no Candomblé para limpezas espirituais, para
cerimônias de iniciação do Candomblé ou para se riscar pontos de guias espirituais,
pontos riscados, que são uma grafia sagrada que se refere à diagramas desenhados
a mão como ângulos, retas, flechas, símbolos representativos, desenhos
geométricos, pontos cardeais etc representando a assinatura do guia espiritual. Os
sudaneses englobaram o segundo maior grupo de africanos escravizados no Brasil,
originários da África Ocidental e viviam em regiões que hoje são conhecidos por
Nigéria Benin (antiga Daomé) e Togo.
Os Bantos compreendiam suas divindades da seguinte maneira:
Nzambi Mpunguera era considerado a autoridade universal,
deus maior que todos os outros deuses e criador do universo, a ele
não se oferecia culto, uma vez que por conta da sua grandeza não
necessitava de culto;
Nzambi eram as divindades com autoridade regional ou
territorial que eram cultuados em altares, santuários ou pequenas
casas. Nos altares rendiam-se oferendas com frutas, legumes e
flores. Acreditava-se que os Nzambi viviam em lugares específicos
como riachos, cachoeiras, montanhas. Além das divindades
19
territoriais, existiam os antepassados, que eram todos dignos de
culto. O cuidado com os antepassados é uma característica
marcante da religiosidade banto (VAGNER GONÇALVES, 2005).
Oliveira (2008) afirma ainda que, na visão dos bantos, a batalha entre o
bem e o mal gerava um sistema ético. O mal se reduzia a atos particulares de cunho
individual, ou seja, era a má intenção de um individuo, ou o interesse particular que
se sobrepunha ao interesse comunitário, considerando que a comunidade para os
africanos era de extrema importância. Não havia para eles uma entidade
especificamente má, pois se acreditava que isso estaria na intenção dos vivos.
As religiões afro-brasileiras herdaram também a crença na existência de
espíritos, que são considerados forças ou seres intermediários entre o ser supremo
e os humanos, e não são considerados nem do bem nem do mal. A intenção das
pessoas que entram em contato com os espíritos é que define a questão do bem ou
do mal. Existem espíritos que foram criados como tais e nunca tiveram uma vida
terrena, enquanto outros espíritos que tiveram uma vida na Terra.
Já no universo sagrado dos povos iorubás, identificam-se os orixás,
deuses subordinados a um Ser Supremo, Olodumare. Segundo a tradição religiosa e
cultural ioruba esse Ser Supremo teria incumbido cada orixá de criar e governar o
mundo e reger, cada qual, um aspecto da natureza, além de determinadas
dimensões da existência humana e da vida social. Na mitologia africana, essas
divindades são seres ambíguos, à semelhança dos seres humanos, dotados de
poder e capazes do bem, mas também falíveis e dominados por paixões, pois estes
sofrem, amam, odeiam, disputam o governo uns com os outros. De acordo com essa
cultura, dos orixás descendem os seres humanos, e cada pessoa porta em si as
características do orixá que lhe deu origem (PRANDI, 2001, p.18-24 apud BORGES,
BETARELLO e DIVINO, 2015).
De acordo com Prandi (2001, p.49), para os antigos Iorubás, os homens habitavam a Terra, o Aiê, e os orixás, o Orum. Muitos laços e obrigações ligam os dois mundos. Os homens alimentam continuamente os orixás, dividindo com eles sua comida e bebida, os vestem, adornam e cuidam de sua diversão, e em troca dessas oferendas, os orixás protegem, ajudam e dão identidade aos seus descendentes humanos.
Segundo Silva (2005, p. 65), durante o período colonial, os cultos bantos
eram majoritários, e as formas de repressão a esses cultos eram fortes. Já no século
20
XIX, período em que a urbanização ganha forma no Brasil, a repressão aos cultos
africanos diminui consideravelmente, e, nesse período, os cultos sudaneses acabam
predominando.
A religiosidade africana praticada pelos africanos escravizados no Brasil
era designada como batuques ou calundus, sendo que o culto africano presente nas
cidades até o fim do século XVI era o calundu, que era uma mistura de danças,
cantos, músicas, possessões, oráculos e magia. Pode-se descrever os calundus
como um momento religioso em que ocorriam ritos como lavagens de cabeças com
ervas que facilitavam o contato com os mortos, performances ritmadas como as
danças dos deuses, usando vestimentas ou instrumentos atribuídos especificamente
a um deus do panteão africano. A partir do final do século XIX, no entanto, pode-se
perceber que elementos kardecistas, como a ideia de karma e de evolução espiritual
ganham espaço no calundu. Como são considerados elementos da natureza, as
divindades cultuadas no calundu deveriam ser, de acordo com a cosmologia
africana, cultuados com elementos que representavam a natureza, como a água, as
pedras, o ferro (VAGNER GONÇALVES, 2005).
Com relação à influencia da cultura iorubá no contexto das religiões afro-
brasileiras pode-se reconhecer uma espécie de diplomacia na organização cultural
religiosa dos terreiros de Umbanda e de Candomblé, uma vez que além de
agruparem em um único templo as divindades cultuadas separadamente até então,
nas regiões africanas, os iorubás incorporaram ao panteão de divindades, orixás
como Nanã, Obaluaê e Oxumarê, considerada a tríade de orixás daomeanos ou
nigerianos, além de reservarem espaço para entidades de ascendência congolesa e
ameríndia como os caboclos, pretos velhos e exus, na maioria das vezes agrupados
sob o nome genérico de ‗eguns‘ (espíritos dos mortos) (OLIVEIRA, 2008, p.61).
Embora a prática de magia e o transe, características comuns aos ritos
africanos, fossem fortemente reprimidas pelas autoridades eclesiásticas durante o
período colonial, mais precisamente entre os séculos XVI e primeira metade do
século XIX, por considerá-las práticas diabólicas, as danças, cânticos e rezas eram
toleradas nos terreiros das fazendas aos domingos e feriados santos. A tolerância à
festas dos escravos se explica pelo fato de tais manifestações serem vistas pelos
senhores como algo folclórico, ou porque os negros, disfarçadamente, justificavam-
21
se dizendo que se tratava de uma homenagem aos santos católicos feitas em sua
língua natal juntamente com as danças de suas terras em África.
Outro motivo para a permissão dos ―batuques‖, nome dado
genericamente à manifestações africanas no Brasil, era a manutenção das tradições
africanas, evitando com isso que as rivalidades entre os escravos provenientes de
grupos étnicos inimigos fossem esquecidas, visando com isso, impedir a criação de
vínculo entre as diferentes etnias, para que não se unissem e assim se voltassem
contra os senhores (SILVA, 1994, p. 34).
Na literatura dedicada às origens e características das religiões de matriz
africana é possível constatar que a história do povoamento no Brasil colonial se
confunde com a própria história de implementação do catolicismo no país por
intermédio do colonizador, e que disso se configura a dificuldade de inserção de
outros credos no Brasil Católico ao longo dos séculos de ocupação. Durante a maior
parte do período colonial brasileiro esteve ativo no país o Tribunal do Santo Oficio da
Inquisição, estabelecido em Portugal em 1536, e em pleno funcionamento na
metrópole até 1821 (ANGELIN, 2011).
Ainda de acordo com Angelin (2011), a Inquisição enviou visitações ao
Brasil a partir de 1591 e delegou poder aos bispos locais. O Brasil teria vivenciado o
uso da força e da violência na propagação da Santa Inquisição ocorrida na Europa,
em atos que representavam o elevado temor da Igreja em perder o seu domínio e
poder hegemônico. Nos dois séculos e meio de ação da Inquisição no Brasil, cerca
de 25 mil pessoas foram processadas por várias acusações e 1.500 foram
condenadas à morte.
A separação social entre brancos, negros e índios durante o período
colonial não significou que as tradições culturais desses três povos se
manifestassem pelo país impermeáveis uma às outras. O que se pode verificar no
universo religioso brasileiro durante o este período é que as religiões presentes no
país acabaram por romper seus limites e se traduziram mutuamente, dando origem
às novas formas de religiosidade, mistas, afro-brasileiras (DUSSEL, 2007).
De acordo com Reis (2004, p.223), do emaranhado de tradições africanas
sincretizadas entre si e com as práticas cristãs e indígenas, desenvolveram-se no
Brasil novas expressões religiosas portadoras de um forte legado das tradições orais
africanas, que enfrentaram e ainda enfrentam os desafios de manter suas raízes em
22
um novo cenário cultural. Dentre essas novas expressões religiosas, podemos
destacar o Candomblé na Bahia, o Xangô em Pernambuco, o Tambor de Mina no
Maranhão, o Batuque no Rio Grande do Sul, a Macumba no Rio de Janeiro, o
Catimbó no norte do país.
Para Sanchis (2008, p. 82 - 83), o sincretismo não pode ser entendido
como o produto final de uma ação social, reduzido a uma dupla pertença ou a uma
mistura de elementos, mesmo se reorganizados. Entendo-o como um processo,
polimorfo e cujos efeitos são os mais variados, que consiste na percepção - ou a
construção – coletiva de homologias de relações entre o universo próprio ao grupo e
aquele do ―outro‖ com quem o grupo está em contato: uma percepção que
desencadeia transformações na auto-imagem do grupo, seja para reforçar seja para
reduzir os paralelismos que foram detectados.
Em segundo lugar, não se trata de pensar o Brasil como um permanente desdobrar de sincretismos. Se parece lógico que esse tipo de covivência tenha chegado, na longa duração, a criar um habitus, uma ―tendência‖, parece claro também que esse habitus não iria fazer a história sozinho. Ele se confrontará e se articulará com outros habitus, inclusive com o seu oposto, aquele da peremptória afirmação identitária, da racionalização. Já naquele primeiro momento, o das ―santidades‖ sincréticas, também estavam ali os jesuítas, a inquisição, os princípios de organização do Estado. No entanto, mesmo se não monopolizadora da história, a estrutura sincrética – no sentido em que ―estrutura‖ foi caracterizada acima - nunca se tornou ausente do processo histórico da religião no Brasil. Continua-se falando dela hoje a propósito das religiões afro-brasileiras, das religiões orientais; paradoxo, até de certas igrejas neo-pentecostais. (SANCHIS, 2008, p. 83).
Com o fim do império e o inicio da república no Brasil, no início do século
XX, podemos destacar a ocorrência de importantes transformações nas religiões
afro-brasileiras. Entre outros fatores, o interesse de pesquisadores e artistas trouxe-
lhes uma notoriedade maior, o que permitiu que as religiões saíssem dos espaços
restritos dos terreiros para uma ascensão no espaço religioso brasileiro. O resultado
disso foi a presença crescente de adeptos de classe média e de origem não africana
nos terreiros, que antes reproduziam um ambiente familiar e, por isso, mais
reduzido. Dessa forma, as religiões de matriz africana vão se transformando em
religiões de caráter universal, ou seja, estas deixam de ser religiões de negros,
excluídos socialmente, analfabetos, de classe baixa, moradores das periferias das
cidades, e passam a ser religiões frequentadas por pessoas de todas as classes
sociais, de pessoas brancas, negras, mestiças, com nível superior completo.
23
Diante do cenário até aqui desenhado, passemos, na próxima seção, a
uma reflexão sobre as bases histórico-sociais e culturais do nascimento da
Umbanda como religião de matriz-africana no Brasil.
2.2 As bases histórico-sociais da Umbanda
A Macumba, no inicio do século XX, era um ritual muito parecido com o
culto dos bantos, no qual se invocavam os espíritos dos antepassados tribais. Os
orixás ainda não haviam sido introduzidos no ritual, sendo introduzidos somente
conforme o Candomblé foi crescendo e ganhando maior prestígio. Porém, a inclusas
desses não alterou a centralidade cultural da invocação dos ancestrais, ou seja, a
característica principal da macumba era o culto em torno dos espíritos familiares –
caboclos, pretos velhos e exus (OLIVEIRA, 2008). O pesquisador ressalta que, o
termo macumba viria de mcumba, que seria o plural de cumba, significando reunião
de jongueiros. O vocabulário é de origem banto.
Para Cumino (2015), o caráter pejorativo do termo macumba veio
claramente por ser um ritual de origem africana, associada à ―magia de negros‖ e,
mais tarde, à magia negra. Conforme a palavra macumba vai se tornando pejorativa,
passa a ser um problema para os umbandistas que querem separar-se de conceitos
negativos em sua religião.
Segundo Cruz (2010, p. 46), a Macumba é um termo genérico
amplamente utilizado, no país, para referenciar todas as religiões afro-brasileiras.
Esse termo é geralmente empregado por religiosos, de maneira irônica e jocosa,
como forma de indicar o reconhecimento de um estigma que recai sobre essas
atividades religiosas. Para a pesquisadora, no uso do termo macumba, há sempre o
reconhecimento de que este representa o pólo da religião visto como impuro e
sujeito a estigma, com oposição a outras práticas religiosas situadas no pólo legítimo
e vistas como puras e genuínas.
Grosso modo, a Macumba pode ser compreendida como um culto que
antecede a Umbanda, um ritual mais primitivo, que, assim como a Umbanda, faz uso
de elementos da cabula, do Candomblé, das tradições indígenas e do catolicismo
popular, com uma diferença, essa não possui o suporte de uma organização e
doutrina que integrasse esses elementos de forma mais unificada, pois na Umbanda
24
os terreiros apesar de, seguirem uma mesma doutrina religiosa cada terreiro têm seu
próprio modo de funcionamento pois diferentemente do catolicismo em que há uma
liderança religiosa que unifica e sistematiza o funcionamento de todas as igrejas, na
Umbanda não há esse sistema de funcionamento, cada zelador ou zeladora conduz
o seu terreiro do modo que achar mais conveniente.
A Umbanda nasce a partir do encontro da Macumba com o espiritismo
kardecista, ou seja, nessa medida, na perspectiva sociocultural, do encontro das
camadas mais pobres com a classe média da população do Rio de Janeiro. O
Kardecismo foi a última religião a se inserir na Macumba, lhe trazendo a estrutura e
a doutrina necessária para lhe conferir a legitimação enquanto religião no ambiente
urbano (CUMINO, 2015).
De acordo com pesquisas sobre a origem das religiões de matriz africana
no Brasil, a Umbanda foi uma religião oficialmente fundada em 16 de novembro de
1908 na Rua Floriano Peixoto, número 30, bairro Neves, em São Gonçalo no Rio de
Janeiro, quando o médium Zélio Fernandino de Moraes, na época com apenas 17
anos, e baseado nos evangelhos cristãos, na prática da caridade e atendimento
gratuito a quem precisasse, abriu sua casa para atender a população sem distinção
de cor, classe social, credo religioso (CARNEIRO, 2014, p. 66-68).
De acordo com Cumino (2015, p. 33), a expansão dos terreiros de
Umbanda se iniciou na década de 1930, não só no Rio de Janeiro, mas também em
São Paulo. Era comum, também nessa época, observar nas portarias dos órgãos
públicos responsáveis pela moralidade e segurança pública a citação à Macumba e
ao Candomblé como alvo de proibições. Nesse período de repressão policial, muitos
pais e mães de santo foram enquadrados como réus e seus objetos utilizados nos
cultos foram apreendidos. Para conseguir autorização que permitisse o
funcionamento de um terreiro, era preciso obter uma licença especial fornecida pela
policia, além de ser necessário ficar submetido a várias arbitrariedades policiais.
A Umbanda é uma religião monoteísta. Aqueles que a cultuam acreditam
em um Deus único, onipotente e não representável, que corresponderia a Zambi do
povo Banto e Olorum dos Iorubás. Assim como para os cultos afros, em que a
divindade não entra em contato com a realidade humana, Deus, na Umbanda
também fica fora do universo, e são os orixás e seus exércitos (das sete linhas e
falanges) que atuam junto aos humanos.
25
O termo Umbanda também era conhecido até o século XIX pela palavra
―mbanda‖ que é oriundo da língua quimbundo de Angola, significando ―magia‖, ―arte
de curar‖, ―o culto pelo qual o sacerdote curava‖ ou ainda ―o Além, onde moram os
espíritos‖. Há a suposição também de que a palavra Umbanda venha de uma língua
adâmica cujo significado séria ―conjunto das leis divinas‖ ou ―Deus ao nosso lado‖
(BARBOSA JR., 2016).
Ao contrário do Candomblé, na Umbanda, os orixás não incorporam nos
humanos, estes foram substituídos pelos espíritos que vêm de Aruanda (lugar
habitado por espíritos trabalhadores do bem e da caridade) para se manifestarem.
Na Umbanda, cada ―linha‖, sendo que a ―linha‖ é compreendida como uma legião de
espíritos que têm a mesma denominação, como os pretos velhos, e que estão sob o
comando ou regência de um mesmo orixá, é composta de sete legiões, dirigidas por
sete orixás principais que não incorporam no corpo dos adeptos. As linhas da
Umbanda são a Linha de Oxalá; Iemanjá; Xangô; Ogum; Oxossi; Linha das
Crianças, e linha dos Pretos Velhos (CARNEIRO, 2014).
De acordo com Cumino (2015), a Umbanda não possui um livro sagrado
ou uma hierarquia local ou internacional como as religiões cristãs, sendo que cada
terreiro de Umbanda realiza os cultos à sua maneira. Porém, há uma estrutura
interna nos terreiros que costumam seguir o mesmo padrão em todo território
brasileiro. A hierarquia é dividida em zelador (pai ou mãe de santo), mãe/pai
pequeno, médiuns de incorporação, médiuns em desenvolvimento, cambones e
ogãs. O terreiro, geralmente, é dividido em dois espaços físicos: o da corrente e o da
assistência. Todas as pessoas que trabalham na casa se vestem de branco durante
o culto e são chamados de médiuns ou membros da corrente, podendo, em alguns
terreiros, serem chamados de Iaô. Todos os outros, que devem ficar sentados
aguardando sua consulta, são chamados de assistência.
O sacerdote, também chamado de pai de santo ou mãe de santo, ou
ainda de zelador, é responsável por cuidar de todo o funcionamento do culto e da
casa, especialmente no cuidado espiritual dos demais membros do terreiro. É ele
quem delimita as regras da casa, o horário e dia da semana que ocorrerá o culto e
todas as questões pertinentes ao funcionamento do terreiro. A mãe pequena ou pai
pequeno é aquela pessoa que responde pelo terreiro na falta do zelador, e é a
segunda pessoa mais importante no terreiro de Umbanda. Os médiuns de
26
incorporação são aqueles que trabalham dando passe e consultas para as pessoas
na assistência, e os médiuns em desenvolvimento são aquelas pessoas que
começaram há pouco tempo no terreiro e estão ainda se desenvolvendo para
posteriormente poderem dar passes e consultas. Os cambones são os médiuns que
não incorporam entidades, mas trabalham ajudando na organização do terreiro,
guiando os consulentes até os médiuns de incorporação, anotam as recomendações
dos guias e servem aos guias os materiais solicitados para a realização dos
trabalhos. E por fim, os ogãs são os responsáveis por tocar os atabaques e cantar
os pontos ou cantigas durante os trabalhos no terreiro (BARBOSA JR, 2016, p. 145-
146).
Os ogãs tanto na Umbanda quanto no Candomblé são as pessoas
responsáveis por tocar os atabaques, também conhecidos como tambores, que é
um dos instrumentos utilizados para se invocar os orixás e os guias espirituais que
vão trabalhar no terreiro realizando os atendimentos. Os ogãs são pessoas que não
incorporam nem orixás e nem entidades, pois precisam permanecer fora de transe
para que os atabaques não parem de ser tocados. No Candomblé, o ato de tocar o
atabaque é destinado exclusivamente aos homens, enquanto que na Umbanda não
há distinção, tanto homens quanto mulheres podem ser ogãs, com a exceção de que
as mulheres durante o período menstrual não tocam os atabaques, realizando nesse
período outras atividades dentro do terreiro. Já os cambones, que é palavra de
origem bantu derivada da palavra Kambondo, em kimbundo, é a pessoa responsável
por assessorar o guia espiritual durante as consultas e também ao médium,
ajudando-o a arrumar seu ponto de trabalho e providenciando os apetrechos e
ferramentas que o guia espiritual geralmente necessita. O termo cambone costuma
ser mais utilizado nos terreiros de Umbanda, e é uma função que também pode ser
desempenhada tanto por homens quanto por mulheres, que assim como os ogãs
devem ser pessoas que não entram em transe para incorporar guias espirituais
durante os trabalhos no terreiro.
Na Umbanda cultuam-se, na maioria dos terreiros, apenas nove orixás.
Na cultura brasileira, estabelecendo uma estreita relação com a tradição religiosa
católica, estabeleceu-se, para cada um dos orixás, uma relação sincrética com
Jesus Cristo, sua mãe e alguns santos. Nesse sentido, Oxalá seria o primeiro orixá
criado por Deus e responsável pela criação da Terra, especialmente os seres
27
humanos, e é considerado o pai de todos os orixás e seres humanos, sendo
sincretizado com Jesus. Iemanjá é a orixá das águas salgadas, ou seja, dos mares e
oceanos, e é considerada a mãe de todos os orixás, sendo esta a orixá da
maternidade, sendo sincretizada com Nossa Senhora dos Navegantes. Oxum é a
orixá das águas doces, ou seja, dos rios e cachoeiras, do ouro, do amor e da
fertilidade, sendo sincretizada com Nossa Senhora da Conceição ou Nossa Senhora
Aparecida. Iansã é a orixá dos ventos, das tempestades e dos mortos, e é
considerada uma orixá guerreira, sendo sincretizada com Santa Barbara. Xangô é o
orixá das pedreiras, dos trovões do fogo, da justiça e da sabedoria, sendo
sincretizado com São João Batista, São Pedro ou São Jerônimo. Ogum, por sua vez,
é o orixá das guerras, das lutas, das batalhas, das estradas, da abertura de
caminhos, do ferro, do aço, da descoberta, da tecnologia, e foi sincretizado com são
Jorge. Oxossi é o orixá das matas, da caça e da colheita, da fartura, da abundância
e da sabedoria, sincretizado com São Sebastião. Nanã é a orixá das águas paradas
e escuras, lagos e lagoas, pântanos, lodos, poços, lama e do barro, sendo a orixá
mulher mais velha sincretizada com Santa Ana. E, por fim, Obaluaê/Omulu sendo
considerado o orixá da vida e da morte, da saúde e da doença, dos hospitais,
guardião do cemitério e o orixá da cura, sincretizado com São Lazaro ou São roque
(BARBOSA JR, 2016, 50 - 58).
A Umbanda pode ser caracterizada como um agregado de terreiros que
não formam um conjunto unitário. Não há, como na Igreja Católica, um centro bem
estabelecido que hierarquize e vincula todos os agentes religiosos. Cada pai de
santo é senhor no seu terreiro, não havendo nenhuma autoridade superior, por ele
reconhecida, a exceção do seu próprio orixá. Há, portanto, uma multiplicidade de
terreiros autônomos, embora estejam unidos pela mesma crença, havendo também
um esforço permanente por parte dos lideres umbandistas no sentido de promover
uma unidade tanto doutrinária quanto organizacional (CRUZ, 2010, p. 47).
Vaini (2008, p.101) afirma que a Umbanda impõe ao iniciado na religião o
aprendizado de uma séria de conhecimentos e grandes responsabilidades, mas a
forma como esses conhecimentos são passados dos mais velhos, pais e mães de
santo ou os filhos de santo com mais tempo de religião, aos recém iniciados pode
variar de um terreiro para outro. Esses conhecimentos podem ser adquiridos tanto
através da transmissão oral dos saberes, além de adquiri-los por meio da
28
observação e da convivência com os mais velhos de religião, como também pode
ocorrer de em alguns terreiros a transmissão do conhecimento através da escrita,
usando-se para isso apostilas elaboradas pelo próprio zelador ou zeladora.
De acordo com Vaini (2008, p. 101-102), ainda, o uso da escrita na
Umbanda não consiste em um constituinte identitário da religião, mas sim como uma
espécie de projeto de um setor intelectualizado e com familiaridade com a escrita
para criar uma identidade letrada para a religião. Nesse sentido, o pesquisador se
refere a uma religião desenvolvida por uma classe de médiuns intelectualizados,
buscando inserir a religião em uma espécie de prática mística moderna, que tem
como base o texto escrito. Segundo Vanini, também, o esforço para inserir a palavra
escrita na Umbanda, visa alcançar o objetivo de construir uma estratégia autorizada
de disseminação doutrinária. Ou seja, revela-se como busca de desenvolver e
divulgar uma teologia e uma exegese umbandista através da palavra escrita.
De acordo com o trabalho desenvolvido por Pinheiro (2009, p. 5), é
possível afirmar que o que levou os intelectuais umbandistas a produzir livros e criar
uma cultura tradicionalmente escrita, publicando codificações doutrinárias, manuais
de condução dos trabalhos, catecismos, foi a busca por aceitação e legitimação
social, visando superar os estigmas sociais que vêm marcando a Umbanda desde a
sua origem, tais como a marginalização da religião e acusações de transgressão,
ignorância e atraso social e cultural.
Sobre essa questão, de acordo com Brito (2013), apesar das oposições, a
produção escrita continua presente na Umbanda, dividindo espaço com a oralidade,
criando inclusive uma imprensa umbandista, com boletins e periódicos destinados a
registrar informações, eventos, notícias e discussões referentes à religião. Não
podemos nos esquecer também da divulgação através das mídias digitais, como
páginas em redes sociais exclusivas de umbandistas que divulgam os mais diversos
ensinamentos referentes à religião. Esses não deixam de ser um registro escrito
atual e praticamente instantâneo acessível a todos os adeptos ou não da religião.
Contudo, é importante destacar que a chegada da escrita, na religião, não
substituiu a oralidade, pois mesmo em culturas escritas, a oralidade ainda ocupa
uma parcela considerável da comunicação cotidiana. Considerando isso, podemos
afirmar que as novas formas de comunicação somam-se às anteriores e não as
substituem (BRITO, 2013, p. 494).
29
Como uma das formas de se explicar ou justificar acontecimentos do
mundo ao seu redor, as sociedades de tradição oral utilizam-se do uso dos mitos,
fábulas e histórias. Com as religiões afro-brasileiras não seria diferente. Em
consonância com Queiroz (2013, p. 499), podemos afirmar que os mitos são formas
de explicar a realidade, sendo os mesmos uma forma de narrativa que se perde no
tempo e representam um importante meio de reprodução, preservação e legitimação
dos saberes e costumes de um povo, e que é na e pela prática da oralidade que
essas narrativas se originam e se propagam.
O pesquisador afirma, ainda, que, nos diversos cultos africanos e afro-
brasileiros, os mitos justificam os papéis e atributos dados às divindades e que,
através deles, são explicados fatos do dia-a-dia e legitimados rituais. Isso ocorre e é
marcado de diferentes maneiras, em diferentes aspectos da religiosidade
umbandista: no modo de se iniciar um integrante da religião, passando pelos
oráculos e sacrifícios, pelas coreografias das danças sagradas, pelas cores e
objetos usados nos rituais. Nos terreiros brasileiros, tudo decorre dos mitos
herdados dos cultos originários da África.
A história dos orixás, por exemplo, é contada através de uma diversidade
de mitos que trazem narrativas de tempos primordiais, que se referem ao surgimento
do mundo, do homem e dos próprios orixás. Estes mitos devem ser aprendidos
pelos pais e mães de santo, pois é com base neles que se desenvolve todo o corpo
doutrinário das religiões de matriz africana (QUEIROZ, 2013, p. 507).
Conforme Oliveira (2008), como uma religião nova, podemos considerar
que os valores fundamentais da Umbanda são ancestrais, com base em cultos afros,
nativos, kardecistas, católicos, ainda, um pouco de cultos orientais, como o budismo
e hinduísmo. A religião resgata esses valores ancestrais, e renovam suas
interpretações, ressignificando seus símbolos, que, sincreticamente, em uma
concreta experiência de hibridismo cultural se acomodam e assumem uma
identidade nova e única.
Nesse sentido, como buscamos explicar nesta seção, a Umbanda se
consolidou como religião agregando em si fundamentos de matriz africana ao
realizar o culto aos orixás e sua complexidade cultural, e culto aos pretos velhos e
caboclos que vieram substituir o culto os antepassados; além de agregar em si
fundamentos indígenas com a sabedoria ancestral indígena em seus aspectos
30
culturais, espirituais, medicinais e ecológicos, além do culto aos caboclos. Do
Kardecismo, a Umbanda agregou os trabalhos de cura, os passes e as doutrinas
que se assemelham aos realizados no Kardecismo, além do culto aos médicos
espirituais; das religiões orientais a Umbanda sincretizou os estudos, compreensão
e aplicação de conceitos como chakras e outros, além do culto da Linha do Oriente e
Linha Cigana (OLIVEIRA, 2008, p. 60).
Os chakras segundo a cultura hindu são centros de absorção,
exteriorização e administração das energias do corpo e do espírito, o que os hindus
descrevem como duplo etéreo. É considerado que os chakras têm entre as suas
funções a absorção de energias do ambiente onde se encontra o individuo. Outra
função dos chakras seria a administração e processamento das energias
absorvidas, pois o corpo está em constante troca de energia com o ambiente ao seu
redor. A cultura hindu considera que o ser humano possui sete chakras espalhados
pelo corpo. A Linha Cigana é uma das mais recentes na Umbanda, sendo
incorporada a religião possivelmente na década de 1980, podendo ser considerado
como um grupo de espíritos ligados ao povo cigano que povoou principalmente o
Brasil e que por sintonia com a religião foram trabalhar como guias espirituais nos
terreiros de Umbanda. Há também o uso do baralho cigano principalmente na
Umbanda, onde se usa o mesmo tipo de baralho usado pelos ciganos para
consultas espirituais de diversas finalidades. Já na Linha do Oriente, por sua vez, há
sete falanges que são compostas em sua maioria por entidades de origem oriental.
Essas falanges são compostas por espíritos de pessoas que viveram em países
orientais como Índia, Japão, países árabes, Mongólia, dentre outros (OLIVEIRA,
2008).
Um fator importante que devemos salientar neste trabalho é o estigma
construído em relação às religiões de matriz africana, que permeiam as mesmas
desde o período colonial até os dias atuais. De acordo com Goffman (2004, p. 5), o
termo estigma surgiu ainda na Grécia antiga, quando ―os gregos, que tinham
bastante conhecimento de recurso visuais, criaram o termo estigma para se
referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de
extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava.‖ Os sinais
eram feitos com cortes ou fogo para avisar que a pessoa marcada era um escravo,
um criminoso, traidor ou ainda uma pessoa ritualmente marcada que deveria ser
31
evitada. Já na Era Cristã, o termo estigma passou a ter dois níveis: o primeiro nível
referia-se a sinas corporais da graça divina que tomavam a forma de flores em
erupção sobre a pele; o segundo referia-se a sinais corporais de distúrbio físico.
Ainda de acordo com o pesquisador, atualmente, o termo estigma será
usado em referencia a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso
para isso é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que
estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem. Podemos mencionar
três tipos de estigmas nitidamente diferentes entre si. O primeiro diz respeito às
abominações do corpo, ou seja, as várias deformidades físicas. Em segundo as
culpa de caráter individual, percebidos como vontade fraca paixões tirânicas ou não
naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, distúrbio mental, prisão, vício,
alcoolismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical. E
finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser
transmitidos através de linguagem e contaminar por igual todos os membros de uma
família.
Para Goffman (2004, p. 8), por definição, acreditamos que alguém com
um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos
de discriminações, através das quais efetivamente reduzimos suas chances de vida.
Construímos uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo
que ela representa. Utilizamos termos específicos de estigma como aleijado,
bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e
representação. O que se sabe é que os membros de uma categoria de um estigma
particular tendem a reunir-se em pequenos grupos sociais cujos membros derivam
todos da mesma categoria. A ideia de estigma foi tratada aqui para elucidar acerca
do estigma social que foi construído em torno das religiões de matriz africana e seus
adeptos, considerando que os mesmo são categorizados e recategorizados dentro
de estigmas sociais desde o período colonial, o que trouxe conflitos religiosos, uma
não aceitação social, e uma tentativa constante de associar tais religiões e seus
adeptos a termos muitas vezes pejorativos. O estigma social que permeia as
religiões de matriz africana e seus adeptos se arrasta desde o período colonial e
início da república.
32
Tendo apresentado esse breve percurso histórico sobre o nascimento da
Umbanda como religião de matriz africana no Brasil, na próxima seção, passemos a
uma reflexão sobre as bases históricas, sociais e culturais do Candomblé.
2.3 As bases histórico-sociais do Candomblé
A palavra Candomblé consta como uma modificação fonética de
―Candonbé‖, que é um tipo de atabaque usado pelos africanos angolanos; ou ainda
como uma derivação de ―Candonbidé‖, que significa ―ato de louvar, pedir por alguém
ou por alguma coisa‖ (BARBOSA JR, 2016).
O Candomblé herdou das crenças africanas a ideia de que a religião diz
mais respeito à sociedade do que ao indivíduo. Todas as esferas da vida, mesmo a
pública, são abarcadas pela religião, não havendo separação entre o sagrado e o
profano. Há também a crença em uma existência após a morte e culto aos mortos,
mas a crença na vida após a morte não significa necessariamente o alcance da
felicidade (BRITO, 2013).
De acordo com os estudos realizados por Brito (2013, p. 488), o
Candomblé herdou das crenças africanas, também, a fé em um ser supremo, que
pode ser caracterizado de muitas formas, conforme a sociedade e a região. Em
muitas sociedades, cultos lhe são dirigidos, em outras não. Em algumas sociedades,
o ser supremo está próximo ao ser humano, já em outras está distante; da mesma
forma que em alguns locais este ser é responsável direto pela criação do mundo,
enquanto em outros locais o ser supremo teria atribuído a criação aos orixás.
Brito (2013, p. 488-489), esclarece, ainda que, no Candomblé, o ser
supremo é chamado pelos iorubás de Olodumarê, pelos Jejes de Mayu e Lissa, já
pelos bantos, de Zambi. O Candomblé se fundamenta no culto aos deuses (orixás,
inquices, voduns) que são oriundos das quatro forças da natureza: água, ar, fogo e
terra. Sendo estes provenientes dessas forças, os deuses são forças energéticas e
não possuem corpo material. A manifestação dessas forças se dá através do corpo
dos adeptos do Candomblé. Cada ser humano possui também a essência de uma
dessas forças da natureza, portanto, a manifestação do orixá/Inquice no adepto
nada mais é do que a manifestação daquilo que já reside no ser humano.
33
De acordo com os conhecimentos estabelecidos e ensinados no
Candomblé, o universo possui dois níveis existenciais, o Orum (mundo espiritual) e o
Ayê (mundo material), sendo que o Orum é a morada dos deuses e dos espíritos, já
o Ayê é a morada dos humanos e todos os seres vivos, e é onde a manifestação dos
deuses se dá através da incorporação.
O Candomblé se expressa nos terreiros ou roças onde se cultuam os
orixás/inquices. O chefe maior do terreiro de Candomblé é o Babalorixá ou Ialorixá
nos terreiros de nação Ketu, ou Tateto/Mameto nos terreiros de Nação Angola. Para
os adeptos do Candomblé, os lideres religiosos são detentores de uma força
sobrenatural chamada Axé. Essa é a força ou princípio propulsor do universo, ou
seja, é ela quem movimenta o universo. É no terreiro que o orixá/inquice pode ser
chamado e assim estabelecer um relacionamento com as pessoas que buscam
ajuda (SILVA, 2005).
No Candomblé, a forma de se cultuar os orixás (seus nomes, cores,
preferências alimentares, louvações, cantos, danças e música) foi distinguida pelos
africanos segundo modelos de ritos chamados nação, numa alusão significativa de
que os terreiros possuíam também uma identidade grupal (étnica) como nos reinos
africanos, além de tentarem reproduzir os padrões africanos de culto (SILVA, 2005).
Os principais ritos do Candomblé são o rito Jeje-Nagô que abrange quatro
nações tendo como ponto de apoio cultural os sudaneses. As nações Jeje são Jeje-
fon e Jeje-marrin, e as nações nagôs são o Keto e o Ijexá. Nesses ritos, são
cultuados os orixás (nação keto), voduns (Jeje-fon, Jeje-marrin e Ijexá), os erês
(espíritos infantis) e caboclos (espíritos indigenas). Na nação keto onde os orixás
são cultuados o culto aos caboclos e o sincretismo com os santos católicos estão
sendo eliminados, assim como os atabaques são percutidos com pequenas varas
chamadas de aguidavis, enquanto nas demais nações os atabaques são percutidos
com as mãos. Já na nação Angola, os orixás cultuados são denominados como
Inquices, sendo que, cada orixá cultuado na nação Keto tem um correspondente
Inquice na nação Angola (SILVA, 2005).
Segundo Silva (2005, p. 31), na nação Angola que se apóia no rito banto
se cultua os inquices, os vunges (espíritos infantis) e os caboclos. Os atabaques são
percutidos com as mãos. Pode-se dizer que o Candomblé de nação angola é o mais
popular no Brasil, em virtude dos bantos terem sido a maioria dos escravos africanos
34
desembarcados em solo brasileiro. No final do século XIX, o Candomblé Angola,
sempre aberto às influências do catolicismo e das religiões indígenas, recebeu nome
de Cabula no Espírito Santo, Macumba no Rio de Janeiro e Candomblé de Caboclo
na Bahia.
De acordo com Brito (2013, p. 495), assim como as demais religiões afro-
brasileiras, o Candomblé não possui um texto sagrado, como registro escrito e
canonizado como base fundamental e universal do saber religioso. Ao longo da
história das religiões de matriz africana, observou-se um esforço por preservar a
oralidade como forma de transmissão dos saberes, conservando assim as raízes
africanas. O autor ressalta, porém, que houve nos terreiros, desde longa data, a
manutenção de arquivos e fotografias, notas pessoais e manuscritos para uso
particular e interno do terreiro.
Brito (2013) afirma, ainda, que, para o Candomblé, o registro escrito
ocasiona um aprendizado descontextualizado, que separa o conhecimento da
experiência, e na religião é preconizado à aquisição do saber através das
experiências vividas no terreiro. Por isso, são considerados inadequados os
registros escritos para se passar os ensinamentos da religião para os adeptos. Outro
fator para a rejeição do uso da escrita é o fato de que estes possibilitam uma livre
circulação das informações que acabam por violar os limites que são caros a
religião, o qual os candomblecistas chamam de segredo ou fundamentos religiosos
que são acessíveis apenas aos iniciados, sendo também que quanto mais tempo de
iniciado na religião maior a quantidade de fundamentos adquiridos.
Sobre a questão, segundo Castillo (2010, p. 41), há terreiros que fazem
uso da escrita de modo restrito a determinadas situações, como a escrita de cartas
com pedidos às divindades, em inscrições na porta do terreiro com o nome dado ao
terreiro e avisos. Há também situações em que, nas festas de confirmação das
pessoas iniciadas para algum cargo no terreiro, usam-se faixas com a indicação do
seu posto naquele terreiro e o nome do orixá ao qual é consagrado.
De acordo com Brito (2013, p. 488), por sua vez, a tradição oral é um
complexo sistema semiótico em que não somente a fala serve à comunicação, mas
também os sons da natureza e dos instrumentos musicais, o ritmo da dança, as
expressões corporais, até mesmo o silêncio, os símbolos, as cores, os saberes,
todos esses elementos devem ser compreendidos no âmbito da comunicação. Para
35
o pesquisador, a tradição oral é um processo dinâmico, no qual a experiência vivida
é organizada e reorganizada por meio da palavra e do jogo simbólico, que por sua
vez, orientam o comportamento, reflete os costumes, o modo de pensar.
Em culturas em que há tradição oral e escrita, a oralidade também
cumpre papel importante. Isso pode ser observado em diferentes tradições
religiosas. Podemos observar nesse sentido que, pela palavra, o deus hebraico criou
o mundo. Alem disso, pela palavra, o deus egípcio Ptá produz e dirige todos os
deuses, homens e demais criaturas vivas.
É possível perceber, portanto, que é pela palavra oral que diferentes
tradições africanas reconhecem e atribuem uma origem divina à sua realidade física.
Nessas tradições, a palavra produz vibração e movimento, vida e ação; a palavra
pode criar ou destruir por meio de sua força energética, sobrenatural. Desse modo, a
palavra oral é portadora do axé que, para os africanos e afro-brasileiros, é a força
vital, é também a força que cura, que restaura o equilíbrio e, por conta disso, é o
agente ativo da magia africana e afro-brasileira (QUEIROZ, 2013, p. 506).
A formação do Candomblé no Brasil se deu principalmente a partir da
segunda metade do século XIX, e foi na Bahia do século XIX que ficou estabelecido
o modelo básico adotado pelo candomblé que conhecemos hoje. Segundo a
tradição, o Ilê Iya Nassô – a Casa de Mãe Nassô, popularmente conhecido como
Candomblé do Engenho Velho ou Casa Branca – teria sido o primeiro a celebrar
diferentes deuses simultaneamente sob o mesmo teto. Essa prática refletiria
alianças entre grupos étnicos diferentes, contribuindo para a consolidação de novas
identidades africanas em terras brasileiras. Na segunda metade do século XIX,
abundam evidências sobre africanos, crioulos, mulatos e uns poucos brancos
ritualmente misturados no candomblé. Com o correr dos anos, observa-se um
processo de nacionalização das bases religiosas, mesmo se a liderança ainda
continuava predominantemente africana. (PRANDI, 2001)
Diferente da África onde eram cultuados mais de 400 orixás, aqui no
Brasil esse número caiu basicamente para 16 orixás cultuados nos terreiros de
Candomblé. Em África, acreditava-se que forças sobrenaturais impessoais, espíritos,
ou entidades estavam presentes ou corporificados em objetos e forças da natureza.
Tementes dos perigos da natureza que punham em risco constante a vida humana,
perigos que eles não podiam controlar, esses antigos africanos ofereciam sacrifícios
36
para aplacar a fúria dessas forças, doando sua própria comida como tributo que
selava um pacto de submissão e proteção e que sedimentam as relações de
lealdade e filiação entre os homens e os espíritos da natureza. Muitos desses
espíritos da natureza passaram a ser cultuados como divindades, mais tarde
designados orixás, detentores do poder de governar aspectos do mundo natural,
como o trovão, o raio e a fertilidade da terra, enquanto outros foram cultuados como
guardiões de montanhas, cursos d'água, árvores e florestas. Cada rio, assim, tinha
seu espírito próprio, com o qual se confundia, construindo-se em suas margens os
locais de adoração, nada mais que o sítio onde eram deixadas as oferendas.
(PRANDI, 2001).
Na ritualística do Candomblé são utilizados alguns instrumentos, que
auxiliam nas funções do dia a dia do terreiro. O Balafon tem forma de trapézio e um
som melódico, ativo e excitante, o Balafon é confeccionado em barras de madeira
que produzem notas quando tocadas. As barras são dispostas paralelamente e sob
ele coloca-se cabaças de vários tamanhos para criar um sistema de amplificação do
som. As barras são feitas de uma madeira dura chamada gouene-yori. Os fios que
seguram as barras são feitos de pele de cabra ou cervo, que é mais resistente. O
Balafon é tocado em cerimônias festivas em homenagem aos orixás, acompanhado
de outros instrumentos. O Cawbell é de origem africana e de nome original ―gã‖,
recebeu o nome de cowbell dado pelos americanos. O Cowbell também é usado no
Candomblé como instrumento de marcação. O cowbell bate-se com uma baqueta na
extremidade fechada e na extremidade aberta. (PRANDI, 2001).
O pesquisador nos informa que, o Xequerê tem sua origem na África há
séculos, como um chocalho ou tambor. Eles são feitos com uma cabaça coberta por
um trançado de pedras feitas de argila ou miçanga, permitindo que o instrumento
tenha um som único. Alguns Xequerês têm um orifício na parte superior para que
possa produzir o som baixo do tambor. O agogô é um instrumento musical que foi
desenvolvido na África, e possivelmente feito pelas tribos Bantu após a sua
migração para a África Ocidental. Ele é usado na música nigeriana yorubá, mas
suas origens também mostram que o agogô com sinos duplo ou único feito de
bronze, também teve uma finalidade prática. O Agogô, tocado para marcar o
Candomblé, também de tradição Alaketo, chama-se Gan. E por fim, mas não menos
37
importante, há o atabaque, instrumento utilizado em todas as ocasiões do
Candomblé.
O atabaque é feito em madeira e aros de ferro que sustentam o couro.
Nos terreiros de Candomblé, os três atabaques utilizados são chamados de "rum",
"rumpi" e "le". O rum, o maior de todos, possui o registro grave; o do meio, rumpi,
tem o registro médio; o lé, o menor, possui o registro agudo. O trio de atabaques
executa, ao longo do xirê, uma série de toques que devem estar de acordo com os
orixás que vão sendo evocados em cada momento da festa. Para auxiliar os
tambores, utiliza-se um agogô; em algumas casas tocam-se também cabaças e
afoxés. Em relação ao toque do atabaque, há certa diferença entre a Umbanda e o
Candomblé. Na Umbanda, tanto homens quanto mulheres podem receber o cargo
de ogãs e, portanto, tocarem os atabaques durante as cerimônias religiosas,
considerando que as mulheres durante o período menstrual devem se abster dessa
função. Enquanto que no Candomblé, a função de ogã é dada somente aos homens.
As festas de candomblé, quando são realizadas as celebrações públicas de canto e dança, as chamadas cerimônias de barracão, durante as quais os orixás se manifestam por meio do transe ritual, são precedidas de uma série de ritos propiciatórios, que envolvem sacrifício de animais, preparo das carnes para o posterior banquete comunitário, fazimento das comidas rituais oferecidas aos orixás que estão sendo celebrados, cuidado com os membros da comunidade que estão recolhidos na clausura para o cumprimento de obrigações iniciáticas, preparação da festa pública e finalmente a realização da festa propriamente dita, ou seja, o chamado toque. Preparar o toque inclui cuidar das roupas, algumas costuradas especialmente para aquele dia, que devem ser lavadas, engomadas e passadas a ferro (é sempre uma enormidade de roupas para engomar e passar!); pôr em ordem os adereços, que devem ser limpos e polidos; preparar as comidas que serão servidas a todos os presentes e providenciar as bebidas; decorar o barracão, colhendo-se para isso as folhas e flores apropriadas. (PRANDI, 2001).
Num terreiro de Candomblé é costume dos adeptos participarem dos
preparativos dos rituais religiosos. Todos comem no terreiro, ali se banham e se
vestem. Às vezes, dorme-se no terreiro noites seguidas, e durante a matança, os
orixás são consultados por meio do jogo oracular para se saber se estão satisfeitos
com as oferendas, e podem pedir mais. De repente, então, é preciso parar tudo e
sair para providenciar mais um cabrito, mais galinhas, mais frutas, ou seja, lá o que
for. Em qualquer dos momentos, orixás podem ser manifestar e será preciso cantar
para eles, se não dançar com eles. Os orixás em transe podem, inclusive, impor
alterações no ritual. (PRANDI, 2001).
38
O corpo, na ótica do candomblé, extrapola a simples condição física ou estética, pois é o principal elemento de ligação entre o homem e o sagrado, visto como a morada de orixá e a porta de comunicação entre os homens e as divindades. O corpo precisa estar saudável, equilibrado, protegido, ―fechado‖. para que possibilite condições favoráveis para realizações de rituais litúrgicos, além do próprio equilíbrio da comunidade, já que o corpo, na cosmovisão dos praticantes de candomblé, é também um local propício para a transmissão de axé, energia vital. O aspecto central que merece ser destacado é que colaborar com alguém do grupo traz também o significado subjacente de retribuição pela atenção recebida anteriormente ou pelos préstimos em algum ritual já realizado. Nas relações desenvolvidas em um Terreiro não cabe a cobrança monetária por um auxílio, porém o ―pagamento‖ deve ser revertido em ajuda no caso de necessidade premente de algum membro ou em alguma atividade relacionada com aqueles que já prestaram apoio em outras ocasiões, seja dentro ou fora do Terreiro. (MANDARINO e GOMBERG, 2013).
É importante ressaltar que para os adeptos tanto da Umbanda quanto do
Candomblé, o terreiro é muito mais do que um local de culto e/ou prática religiosa, o
espaço destinado ao culto aos orixás é uma extensão da própria casa e da família
do adepto, e é um espaço onde todos se ajudam mutuamente, não só no que diz
respeito às práticas religiosas, mas na vida cotidiana de todos os frequentadores do
terreiro. Os adeptos buscam se ajudar no âmbito espiritual/religioso, financeiro,
amoroso, social, pois para o umbandista ou candomblecista, assim como era para
os africanos antes da vinda deles para o Brasil, o social e tão ou até mais importante
que o individual, e se o coletivo não está em ordem, não está indo bem, o individual
também não poderá se desenvolver.
Diante do exposto nas seções 2.2 e 2.3, podemos perceber, em síntese,
que há aspectos que aproximam e distanciam as origens e a evolução da Umbanda
e do Candomblé, como religiões de matriz africana no Brasil. Entre os aspectos
comuns, destacamos: o culto aos mortos, o culto à natureza, a crença na
reencarnação. O uso da pemba é algo característico tanto na Umbanda quanto no
Candomblé, tanto para fins de limpeza espiritual como para riscar pontos dos guias
espirituais. As duas religiões herdaram dos povos africanos o culto aos orixás,
mesmo que haja distinção no culto aos mesmos, como por exemplo, ao contrário do
Candomblé, na Umbanda, os orixás não incorporam nos humanos, estes foram
substituídos pelos espíritos que vêm de Aruanda. As duas religiões são monoteístas
e não possuem um livro sagrado, sendo religiões de tradição majoritariamente oral,
além de não possuírem uma hierarquia local ou internacional como as religiões
cristãs, sendo que cada terreiro realiza os cultos à sua maneira. A Umbanda e o
39
Candomblé herdaram das crenças africanas a ideia de que a religião diz mais
respeito à sociedade do que ao indivíduo. Todas as esferas da vida, mesmo a
pública, são abarcadas pela religião, não havendo separação entre o sagrado e o
profano.
Como forma de pavimentar o percurso a ser trilhado em busca de cumprir
o objetivo geral desta pesquisa, passemos, agora, a uma apresentação de
elementos que fundamentam os parâmetros legais de direito à liberdade de crença
de culto religioso no Brasil.
2.4 Parâmetros legais para o direito à liberdade de crença e de culto
No que diz respeito às questões legais envolvendo as práticas religiosas
no Brasil, devemos observar os documentos apresentados a seguir, em uma ordem
relativamente cronológica.
De acordo com o Relatório sobre Intolerância Religiosa do Ministério dos
Direitos Humanos (2018), em Pernambuco, na década de 1930, durante o governo
de Agamenon Magalhães, os templos das religiões de matriz africana, que na época
eram chamados de Catimbós, Xangôs, Macumba, Baixa Magia, foram fortemente
perseguidos pela policia civil, por meio do DOPS, Delegacia de Ordem Política e
Social.
O Código Civil Brasileiro vigente, naquele momento, era o estabelecido
pelo decreto de 11 de outubro de 1890, que criou mecanismos reguladores de
combate a feitiços, por meio dos artigos 156, 157 e 158 que se referem
respectivamente à prática ilegal da medicina; ao estabelecimento da prática do
Espiritismo como crime, bem como à prática da magia, da cartomancia, do uso de
talismãs e a subjugação a credulidade pública; e a proibição da prática do
curandeirismo. É importante destacar que, à época, havia uma distinção entre o
―alto‖ espiritismo e o ―baixo‖ espiritismo.
Naquele contexto, os templos espíritas kardecistas, também chamados de
Espiritismo Científico, tinham permissão para realizar suas atividades, obtendo
tratamento diferenciado dos terreiros de Umbanda e Candomblé, o que levou a
perseguição das religiões de matriz africana, seus templos e objetos de cultos,
40
chegando ao ponto de os adeptos dessas religiões serem presos e achincalhados
pela imprensa local.
O Código Penal Brasileiro (1940), em seu artigo 208, estabelece a pena
de detenção de um mês a um ano, ou multa, àquele que ―escarnecer de alguém
publicamente, por motivo de crença ou função religiosa‖ ou ―vilipendiar publicamente
ato ou objeto de culto religioso‖. O mesmo Código Penal, em seu artigo 140,
estabelece que aquele que pratica o crime de injúria mediante a utilização de
elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa
idosa ou portadora de deficiência será punido com a pena de reclusão de um a três
anos e multa
No âmbito da Organização das Nações Unidas, o artigo 2 da Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções de 1981 assegura que ―1. Ninguém será objeto de discriminação por motivos de religião ou convicções por parte de nenhum estado, instituição, grupo de pessoas ou particulares. 2. Aos efeitos da presente declaração, entende-se por intolerância e discriminação baseadas na religião ou nas convicções toda distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na religião ou convicções e cujo fim ou efeito seja a abolição ou o fim do reconhecimento, o gozo e o exercício em igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais. (MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS, 2018).
No Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), em seu
artigo 20, pode-se encontrar a seguinte declaração sobre Direitos Humanos: ―1. Será
proibida por lei qualquer propaganda em favor da guerra. 2. Será proibida por lei
qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à
discriminação, à hostilidade ou à violência.‖
Fica claro, diante do artigo em destaque que, nesse antigo e importante
pacto internacional, do qual o Brasil é signatário, o direito à fé e ao culto religioso se
inscreve com base no reconhecimento da possibilidade de ações, na vida social, que
signifiquem apologia ao ódio religioso e que dessa, por sua vez, pode culminar em
atos de discriminação, hostilidade e violência. Podemos inferir, a partir da leitura
desse estatuto legal internacional, que a liberdade religiosa pode ser atacada por
formas de violência psicológica, não necessariamente física.
Ainda no cenário internacional, em termos de parâmetros que
fundamentam o combate universal à intolerância e discriminação religiosa,
encontramos, no âmbito da Organização das Nações Unidas, a Declaração sobre a
41
Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na
Religião ou nas Convicções (1981), em seu artigo 2, assegura que:
―1. Ninguém será objeto de discriminação por motivos de religião ou convicção por parte de nenhum estado, instituição, grupo de pessoas ou particulares; 2. Aos efeitos da presente declaração, entende-se por intolerância e discriminação baseadas na religião ou nas convicções toda distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na religião ou convicções e cujo fim ou efeito seja a abolição ou fim do reconhecimento, o gozo e o exercício em igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais. (BRASIL, 2018).
Voltando ao cenário brasileiro, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei
12.288/2010) dispõe, em seu artigo 24, inciso VIII, que o direito à liberdade de
consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana
compreende ―a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal em
face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação e em
quaisquer outros locais‖.
Importante no cenário da presente pesquisa esclarecer a diferença entre
intolerância religiosa e racismo religioso. De acordo com Nascimento (2016, p. 1),
―Normalmente nos referimos aos ataques contra o candomblé e a umbanda como uma das manifestações da intolerância religiosa. Entretanto, entendemos que o nome não consegue descrever com precisão o fenômeno. Os ataques são expressões tenazes de uma das manifestações do racismo, que persegue as heranças religiosas que têm influências do povo negro, trazido à força para o nosso país. Por essa razão, algumas pessoas têm se referido às perseguições como racismo religioso. Essa modalidade específica do racismo engloba práticas violentas que vão da demonização das crenças religiosas de umbandistas e candomblecistas, passando por ofensas morais a esses religiosos, chegando a violências físicas e, em alguns casos, à morte de pessoas que, nos terreiros, praticam sua crença‖.
A Revista Calundus, que é publicada pelo Grupo de Estudos sobre
Religiões Afro-brasileiras, da Universidade de Brasília (UnB) lançou um número
temático acerca do racismo religioso, mas apontando a convivência desse com os
termos intolerância e discriminação religiosa, na apresentação do dossiê temático
(CALUNDU, 2018). A Revista nos trás que o racismo religioso contra religiões afro-
brasileiras é um processo facilmente percebido por duas vias. A primeira, quando
são observados ataques diretos a praticantes de religiões como Umbanda,
Candomblé e Tambor de Mina, dentre outras, que vêem seus terreiros serem
42
incendiados, suas/seus integrantes apedrejadas/os em vias públicas, etc. Esses atos
estão diretamente ligados ao ódio contra essas religiões, que se diferenciam em
práticas e crenças da matriz religiosa mais popular do Brasil. A segunda via em que
o racismo religioso comumente se apresenta contra religiões afro-brasileiras está
relacionada, justamente, com o fato de que essas religiões estão associadas com
uma matriz geográfica africana, com uma racialidade negra. Não são todas as
religiões não hegemônicas aquelas que vêem adeptas e adeptos serem
violentadas/os. [...] Não são todas que são satanizadas e atacadas como práticas de
magia para o mal – não coincidentemente chamada de magia negra. Pelo contrário,
isso ocorre exclusivamente contra a afrorreligiosidade e suas manifestações em solo
brasileiro. ―O ódio não é, portanto, contra religiosidades discrepantes, mas contra
religiões afro-orientadas‖. (CALUNDU, 2018, p. 2).
Em síntese, frente ao exposto no decorrer do presente capítulo,
esperamos ter tornado claro como o contexto social e cultural do Brasil colonial e
republicano possibilitaram o surgimento de religiões afro-brasileiras, Umbanda e
Candomblé, e como o entrelaçamento das culturas européias, africanas e indígenas
possibilitaram esse novo movimento religioso e cultural no país. Além disso, como a
Umbanda e o Candomblé se fixaram como religiões em um país culturalmente plural,
porém, resistente com relação a expressão das crenças religiosas provindas da
África, vindas para cá com os povos africanos escravizados. Com base nesse
percurso argumentativo, pretendemos apresentarão leitor deste relatório de
pesquisa alguns marcos, de natureza sócio-histórica e cultural, que sinalizam onde e
quando se iniciou o processo de repressão e de intolerância ao movimento afro-
brasileiro e indígena de instituição de suas práticas religiosas, que contrariavam
normas e valores impostos ao Brasil colônia, por uma Europa cultural conservadora
e socialmente branca, cristã, patriarcal, escravista.
Nesse sentido, buscamos apresentar o surgimento da Umbanda e do
Candomblé como religiões que nascem e se moldam ao contexto social e cultural do
Brasil, em uma sociedade marcadamente heterogênea que foi se formando no
decorrer do período colonial e republicano. Buscamos explicitar argumentos
baseados em pesquisas que nos permitem compreender o processo de aceitação ou
de repressão a esses dois movimentos religiosos e de que forma as mesmas
resistiram de forma a conseguir manter sua história, suas tradições, seus valores e
43
crenças no Brasil do século XXI. E, nesse sentido, os estatutos legais que garantem
a essas religiões e seus praticantes o direito à liberdade de crença e de culto.
No próximo capitulo, apresentaremos os fundamentos de natureza
sóciodiscursiva que orientam este trabalho de pesquisa. Nesse capítulo,
apresentaremos as noções de linguagem, de língua, de enunciação, de discurso e
de texto, que fundamentam o a pesquisa. Além disso, as concepções de textos
jornalísticos, de processo de Referenciação e de Metaforização com as quais
trabalhamos no processo de constituição e de análise de dados.
44
Capitulo 3
FUNDAMENTOS SOCIODISCURSIVOS
3.1 Concepção de Linguagem, Língua e Enunciação
No capítulo anterior, foram contextualizados os processos sociais e
históricos nos quais as religiões afro-brasileiras Umbanda e Candomblé se
desenvolveram no Brasil e como o encontro de diferentes culturas, européia,
africana e indígena, proporcionou o contexto para que essas religiões surgissem e
se fixassem no país.
Em função do objeto de estudo desta pesquisa, neste momento,
passamos a apresentar as concepções teóricas que orientam o nosso trabalho.
Entre essas, a concepção de linguagem, língua e enunciação; de discurso e de
texto, mais precisamente, de um gênero do discurso jornalístico, a notícia. Além
disso, apresentamos as concepções teóricas com que trabalhamos para analisar o
processo de referenciação e de metaforização no contexto da pesquisa.
Ao propor a realização de uma pesquisa que se estrutura na busca de
compreender como se dá o processo de Referenciação das religiões de matriz
africana, Candomblé e Umbanda, na mídia jornalística brasileira, consideramos
importante explicitar que reconhecemos, de acordo com Bakhtin, que a vida humana
e, portanto, a linguagem são marcadas pelo princípio do dialogismo.
Como afirma CAVALCANTE (2009, p. 33), para Bakhtin, a linguagem e o
pensamento, a consciência, do homem estruturam-se de forma, necessariamente,
dialógica, ou seja, intersubjetivamente.
Nesse sentido, Bakhtin(1979) defende que:
Natureza dialógica da consciência, natureza dialógica da própria vida humana. A única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso. A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo, o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal.As imagens reificadas (coisificadas, objetificadas) para a vida e para a palavra são profundamente inadequadas. O modelo reificado de mundo é substituído pelo modelo dialógico. Cada pensamento e cada vida se fundem no diálogo inconclusível. É igualmente
45
inadmissível a reificação da palavra: sua natureza é também dialógica. (BAKHTIN, 1979, p. 348).
Nessa perspectiva, a linguagem humana, estruturada de maneira
dialógica, intersubjetiva, se realiza, concretamente, pelo ato de enunciação. Esse ato
implica a interação de interlocutores que se instituem em contextos ou situações
socioculturais concretas de uso da língua.
Como afirma Cavalcante (2009, p. 29), essas diferentes situações de uso
da língua, no processo de enunciação, ativam — de maneira mais ou menos
explícita — diferentes papéis e valores sociais que os interlocutores instituem e
representam no ato de encenação discursiva. Nos termos da pesquisadora, esses
valores estão indiciados na palavra em cena, que sempre se dirige a um interlocutor
e que sempre variará no e de acordo com o jogo enunciativo estabelecido pelos
interlocutores.
Segundo Cavalcante, ainda, a luz de Bakhtin, qualquer que seja o jogo
enunciativo — seja aquele flagrado em um discurso familiar íntimo e ordinário, seja
aquele forjado em um complexo texto jornalístico ou fantasioso texto ficcional, a
dimensão social identificada e estabelecida pelos interlocutores ali instituídos indicia
um horizonte ético e estético do momento histórico em que se instituem esses
interlocutores.
Essa concepção de linguagem e de uso da língua é coerente com os
objetivos desta pesquisa. A eleger o discurso jornalístico como o lugar em que as
religiões de matriz africana são referenciadas é importante considerar que, nesse
domínio de discursivo, a linguagem se realiza como prática social.
O trabalho desenvolvido pelo círculo bakhtiniano, no início do século XX,
parte do principio de que a língua é sistema de signos cuja existência está
estreitamente ligada às necessidades humanas de comunicação e de interação
social. Nessa medida, é um sistema que revela diferentes aspectos e dimensões da
vida social, entre essas, a dimensão ideológica.
Para Bakhtin (1992), ―a palavra é o signo ideológico por excelência, pois,
produto da interação social, ela se caracteriza pela plurivalência ou polissemia de
sentidos. Por isso, a língua é o lugar privilegiado para a manifestação da ―ideologia‖.
Consequentemente, não pode ser encarada como um sistema de natureza abstrata,
46
mas como o lugar em que a ideologia se manifesta concretamente, no qual o valor
ideológico se torna objetivamente materializado. Nas palavras de Bakhtin
Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sobra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer. Nesse sentido, a realidade do signo é totalmente objetiva e, portanto, passível de um estudo metodologicamente unitário e objetivo. Um signo é fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e todos os seus efeitos (todas as ações, reações e novos signos que ele gera no meio social circundante) aparecem na experiência exterior. Este é um ponto de suma importância. No entanto, por mais elementar e evidente que ele possa parecer, o estudo das ideologias ainda não tirou todas as consequências que dele decorrem. (Bakhtin, 1992, p. 19).
Para o pensador russo, ainda, a palavra, signo ideológico por excelência,
se realiza, concretamente, no âmbito da enunciação. Segundo CAVALCANTE
(2009, p. 30), em Bakhtin, a enunciação implica a interação de interlocutores que se
instituem em contextos ou situações socioculturais concretas de uso da linguagem.
A pesquisadora afirma, ainda, que essas diferentes situações linguageiras ativam —
de maneira mais ou menos explícita — diferentes papéis e valores sociais que os
interlocutores instituem e representam no ato de encenação discursiva.
Nessa perspectiva, concordando com Cavalcante, podemos afirmar que
qualquer que seja o jogo enunciativo — seja aquele flagrado em um discurso familiar
íntimo e ordinário, seja aquele forjado em textos de natureza jornalística, em
reportagens/notícias, como as que constituem o corpus desta pesquisa, a dimensão
social identificada e estabelecida pelos interlocutores que ali se manifestam deixa
marcas de vozes e posicionamentos sociais, éticos, morais desses interlocutores e
de fatos que determinam o momento histórico em que esses textos são produzidos.
Ao reconhecer a enunciação como lugar em que a palavra, ―signo
ideológico por excelência‖, se realiza, Bahktin/Volochinov afirma que
Com efeito, a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor. E la é função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido etc.). Não pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no sentido figurado. Se algumas vezes temos a pretensão de pensar e de
47
exprimir-nos urbi et orbi, é claro que vemos ―a cidade e o mundo‖ através do prisma do meio social concreto que nos engloba. Na maior parte dos casos, é preciso supor, além disso, um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos, um horizonte contemporâneo da nossa literatura, da nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito. (BAKHTIN, 2002 [1929], p. 112).
Na perspectiva bakhtiniana, a interação verbal, instaurada pelos seres
humanos, através do ato de enunciação, só ocorre entre um ―eu‖ e um ―outro‖ (inter-
locutores) socialmente organizados, socialmente constituídos. E essa relação pode
ser concretamente identificada na materialidade textual. E isso pode ser percebido
com base em respostas que podemos dar para uma pergunta simples: “quem fala
para quem, sobre o quê e como no texto em análise?”
Na contemporaneidade, encontramos, no trabalho do pesquisador francês
Dominique Maingueneau, elementos que também nos permitem reconhecer uma
estreita e indissociável relação entre linguagem, língua e enunciação.
3.2 Concepção de Discurso e de Gêneros do Discurso
Para Maingueneau (2013, p. 57 - 58), o discurso pode igualmente
designar qualquer uso restrito da língua, como por exemplo, o discurso político, o
discurso dos jovens, discurso administrativo. Nesse emprego, a discurso pode ser
ambíguo, pois pode se referir tanto o sistema que permite produzir um conjunto de
textos, bem como o conjunto de textos produzidos. O pesquisador ainda afirma que,
a noção de discurso é muito utilizada por ser ―o sistema de uma modificação em
nossa maneira de conceber a linguagem.‖
O discurso é uma organização situada para além da frase, pois o mesmo
está submetido a regras de organização vigentes em um grupo social determinado,
como as regras que governam uma narrativa, um diálogo, uma argumentação. O
discurso também é orientado, mas não somente porque é concebido em uma função
de uma perspectiva assumida pelo locutor, mas também pode se desenvolve no
tempo de maneira linear. O discurso se constrói em função de uma finalidade bem
determinada, devendo dirigir-se para algum lugar. Porém, este pode mudar de
curso, tomar sua direção inicial, mudar de direção. A linearidade do discurso pode
ser manifesta em um jogo de antecipações, quando usa-se termos como ―veremos
que‖, ―voltaremos ao assunto ...‖, ou de retomadas do que já foi dito. O discurso
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pode ser compreendido também como uma forma de ação sobre o outro, pois toda
enunciação constitui um ato que visa modificar uma situação. O discurso é sempre
contextualizado, pois o mesmo enunciado dito em dois locais diferentes corresponde
a dois discursos distintos. Além disso, o discurso contribui para definir o contexto,
podendo modificá-lo no curso da enunciação. (MAINGUENEAU, 2013, p. 59 - 60).
Para o pesquisador, a atividade verbal é uma inter-atividade entre dois parceiros, cuja marca nos enunciados encontra-se no binômio EU – VOCÊ da troca verbal. Toda enunciação, mesmo produzida sem a presença de um destinatário, é, de fato, marcada por uma interatividade constituída, é uma troca, explícita ou implícita, com outros enunciadores, virtuais ou reais, e supõe sempre a presença de uma outra instância de enunciação à qual se dirige o enunciador e com relação à qual constrói seu próprio discurso. Nessa perspectiva, a conversa não é considerada como o discurso por excelência, mas somente como uma das formas de manifestação da interação essencial do discurso. (MAINGUENEAU, 2013, P. 60 - 61).
Para Maingueneau (2013, p. 58), ―falar é uma forma de ação sobre o
outro e não apenas uma representação do mundo. Toda enunciação constitui um ato
que visa modificar uma situação.‖ Segundo o pesquisador, a comunicação não é um
processo linear, há inicialmente uma necessidade de se exprimir por parte do
enunciador que, a seguir, constrói ou escolhe a concepção de um sentido, depois
vem a escolha de um suporte e de um gênero para se comunicar, posteriormente,
constrói o texto ou a redação e a seguir, busca um modo de difundir o seu discurso,
finalmente, o hipotético encontro com um destinatário.
Na perspectiva adotada por Maingueneau, o enunciado é a marca verbal
do acontecimento que é a enunciação. Pode-se empregar o termo enunciado para
designar uma sequência verbal que forma uma unidade de comunicação completa
no âmbito de um determinado gênero de discurso, como exemplo a isso nós temos
os boletins meteorológicos, um romance, um artigo de jornal. Há enunciados curtos,
como os provérbios e os grafites, e os enunciados longos, como é o caso das
tragédias e as conferências. Já o texto emprega-se com um valor mais preciso,
quando se trata de apreender o enunciado como um todo, como constituindo uma
totalidade coerente. (MAINGUENEAU, 2013, p. 63 – 64).
O discurso só é um discurso porque remete a um sujeito, um EU, que se
coloca como fonte de referencias pessoais, temporais, espaciais, e ainda, em
particular, que é responsável pelo que está dizendo. O discurso só adquire sentido
no interior de um universo de outros discursos, lugar onde deve traçar seu caminho.
49
Para que o ouvinte possa interpretar qualquer discurso é necessário relacioná-lo a
outros discursos, outros enunciados que são comentados, citados. O simples fato de
classificar um discurso dentro de um gênero implica relacioná-lo ao conjunto
ilimitado dos demais discursos do mesmo gênero. (MAINGUENEAU, 2013, p. 62).
Para o pesquisador, todo texto pertence a um gênero do discurso. Os
locutores têm uma infinidade de termos para categorizar a imensa variedade dos
textos produzidos em uma sociedade, como conversa, jornal, romance, soneto,
narrativa, seminário, panfleto, relatório, mito. Essas categorias correspondem às
necessidades da vida cotidiana e o analista não pode ignorá-las. (MAINGUENEAU,
2013, p. 65).
Alguns rótulos como revista, entrevista de seleção profissional, talk show,
determinam o que habitualmente entendemos por gêneros do discurso, ou seja, são
dispositivos comunicacionais que só aparecem quando certas condições sócio-
hisóricas estão presentes. As tipologias dos gêneros do discurso se contrapõem às
tipologias conunicacionais por seu caráter historicamente variável. Os gêneros do
discurso pertencem a diversos tipos de discurso associados a vastos setores de
atividade social. (MAINGUENEAU, 2013, p. 67).
A noção tradicional de gênero foi inicialmente elaborada no âmbito de uma poética, de uma reflexão sobre a literatura. Só recentemente ela se estendeu a todos os tipos de produções verbais. Todo gênero de discurso visa a um certo tipo de modificação da situação da qual participa. Essa finalidade se define ao responder à questão implícita: ―Estamos aqui para dizer ou fazer o quê?‖ Começar uma conversa tem por objetivo manter laços sociais. A determinação correta dessa finalidade é indispensável para que o destinatário possa ter um comportamento adequado ao gênero de discurso utilizado. (MAINGUENEAU, 2013, p. 71 - 72).
Nos diferentes gêneros do discurso, já se determina de quem parte e a
quem se dirige a fala. Da mesma forma, todo gênero de discurso implica um certo
lugar e um certo momento, não se tratando de coerções externas, mas de algo
constitutivo. As noções de momento ou de lugar de enunciação exigidas por um
gênero de discurso não são evidentes. Já à temporalidade de um gênero do
discurso implica vários eixos: o primeiro eixo é a periodicidade, um curso, uma
missa, um telejornal são periódicos; uma duração de encadeamento, pois certos
gêneros implicam mesmo a possibilidade de várias durações, como no caso de um
jornal cotidiano que distingue pelo menos duas durações de leitura de um artigo, o
levantamento dos elementos destacados em negrito e em maiúsculo, seguido de
50
uma verdadeira leitura do texto. O terceiro eixo é a continuidade nesse
encadeamento, e o quarto eixo é a duração de validade presumida, como exemplo
desse eixo, podemos destacar uma revista que é valida por uma semana, o jornal
por um dia, já um texto religioso como a Bíblia ou o Alcorão propõe-se a ser lido por
tempo indeterminado. (MAINGUENEAU, 2013, p. 73 - 74).
A noção de gênero é com frequência utilizada de modo pouco rigoroso par designar uma classe de textos qualquer. Para evitar problemas de compreensão, é melhor reservar o termo ―gênero de discurso‖ para as atividades verbais assentadas em dispositivos de comunicação cujas características foram por nós apontadas: papéis dos interlocutores, mídium, momento etc. Evitaremos, desse modo, falar de ―gênero de discurso‖ quando se tratar de categorias fabricadas pelos analistas para designar
famílias de gêneros de discurso. (MAINGUENEAU, 2013, p. 77 - 78).
De acordo com Maingueneau (2013, p. 78 - 79), para caracterizar os
gêneros de discurso, costuma-se recorrer a metáforas tomadas de empréstimo
essencialmente do domínio jurídico (contrato), lúdico (jogo) e teatral (papel). Quando
referirmos ao gênero de discurso como contrato, significa afirmar que ele é
fundamentalmente cooperativo e regido por normas, pois todo gênero de discurso
exige daqueles que dele participam aceitem um certo numero de regras e as
sanções previstas para quem as transgredir. Já no que se refere ao papel, refere-se
dizer que cada gênero de discurso implica os parceiros sob a ótica de uma condição
determinada e não de todas as suas determinações possíveis. Já falar de jogo é, de
alguma forma, cruzar as metáforas do contrato com as do teatro, enfatizando
simultaneamente as regras implicadas na participação em um gênero de discurso e
sua dimensão teatral. Como no jogo, um gênero implica um certo número de regras
preestabelecidas mutuamente conhecidas e cuja transgressão põe um participante
―fora do jogo‖.
3.2.1 Como podemos definir texto?
De acordo com Marcuschi (2008, p. 72), por sua vez, ―o texto é um evento
comunicativo em que convergem ações linguísticas, sociais e cognitivas‖, ou seja,
podemos entender por texto a construção que é dada a partir da interação entre um
sujeito e seus interlocutores em uma dada situação comunicativa. Como o
pesquisador, compreendemos o texto não como algo pronto, mas sim como um
51
evento que depende dos interlocutores que o processam, pois o sentido dado ao
texto muda de acordo com aqueles aos quais esse se propõe, seus destinatários, e
o contexto no qual os mesmos se encontram.
O texto é visto como um sistema de conexões entre vários elementos, tais como: sons, palavras, enunciados, significações, participações, contextos, discursos, ações. O texto é construído numa orientação de multissistemas, ou seja, envolve tanto aspectos linguísticos quanto não linguísticos no seu processamento e o texto se torna em geral multimodal; o texto é um evento interativo e vai além de um simples artefato, sendo também um processo numa coprodução; o texto compõe-se de elementos que são multifuncionais sob vários aspectos, tais como: um som, uma palavra, uma significação, uma instrução e deve ser processado com esta multifuncionalidade. (MARCUSCHI, 2008, p. 80).
Quando nos dedicamos à compreensão e análise de textos produzidos na
modalidade escrita e, mais precisamente, para o domínio jornalístico, objetivo desta
pesquisa, nos vemos diante da necessidade de refletir sobre os fatores que
constituem esse tipo de texto.
Os fatores constitutivos do texto não podem servir como regra para se
adequar à produção da escrita nem tampouco como princípios de boa formação
textual. De acordo Marcuschi, há sete fatores da textualidade ou constituintes do
processo de produção de sentido textual. Para os fins desta pesquisa, esses
merecem atenção: a coesão, a coerência, a intencionalidade, a aceitabilidade, a
situacionalidade, a informatividade e a intertextualidade (MARCUSCHI, 2008).
Marcuschi (2008, p.104) afirma que, particularmente, ―o conceito de
coesão textual está relacionado a todos os processos que asseguram uma
sequencialização linguística entre os elementos que ocorrem na superfície textual‖.
Para o pesquisador, a coesão se organiza através de dois mecanismos, sendo a
coesão referencial a que diz respeito aos elementos linguísticos, os quais
estabelecem uma relação entre a superfície do texto e o universo textual; e a coesão
sequencial, a que marca uma sequência para o texto ou estabelece uma relação
coerente com as partes integrantes do texto.
Os demais fatores que constituem a textualidade são, assim, definidos por
Marcuschi (2008), ―a coerência estabelece uma relação de sentido entre os
enunciados, em geral de maneira global e não localizada‖. A intencionalidade trata-
se do princípio que marca a intenção com que o produtor do texto realiza o mesmo.
A intencionalidade relaciona-se diretamente com a aceitabilidade, que diz respeito
52
com as reações dos destinatários do texto mediante determinados textos, situações,
intenções e posicionamentos. Já a situacionalidade é o fator que diz respeito à
relação entre o texto e o seu contexto, à ancoragem do texto em um determinado
ambiente, fator social e cultural.
O pesquisador complementa o seu quadro de definições afirmando que, a
intertextualidade diz respeitos ao texto e à retomada de um texto já conhecido pelo
locutor, sendo que o uso deste texto já conhecido pode se dar através da citação ou
da alusão. Para Marcuschi (2008, p.132) ―a intertextualidade é um princípio
constitutivo que trata o texto como uma comunhão de discursos e não como algo
isolado‖. Ainda de acordo com o pesquisador, ―a aceitabilidade, enquanto critério de
textualidade, parece ligar- se às noções pragmáticas e ter uma estreita interação
com a intencionalidade [...]‖. e a ―informatividade diz respeito ao grau de expectativa
ou falta de expectativa, de conhecimento ou desconhecimento e mesmo incerteza
do texto oferecido‖.
De maneira convergente, Koch (2014, p. 30), apresenta argumentos que
permitem complementar a concepção de texto proposta por Marcuschi. Segundo a
estudiosa
[...] para que uma manifestação linguística constitua um texto, é necessário que haja a intenção do produtor de apresentá-la – e a dos parceiros de aceitá-la como tal -, em uma situação de comunicação determinada. Pode, inclusive, acontecer que, em certas circunstâncias, se afrouxe ou elimine deliberadamente a coesão e/ ou coerência semântica do texto com o objetivo de produzir efeitos específicos. Aliás, nunca é demais lembrar que a coerência não constitui uma propriedade ou qualidade do texto em si: um texto é coerente para alguém, em dada situação de comunicação específica. [...]. Este alguém, para construir a coerência, deverá levar em conta não só os elementos linguísticos que compõem o texto, mas também seu conhecimento enciclopédico, conhecimentos e imagens mútuas, crenças, convicções, atitudes, pressuposições, intenções explícitas ou veladas, situação comunicativa imediata, contexto sociocultural e assim por diante.
Ainda para a pesquisadora, o sentido do texto não se encontra nele, o
sentido de um texto é construído a partir do texto. Pode-se afirmar que o texto é uma
(re)construção do mundo e não uma simples refração ou reflexo dele.
Koch e Travaglia (2015, p. 47 - 48), acrescentam, de maneira mais
precisa, um ponto importante a ser analisado quando tratamos da definição (e,
portanto, compreensão) de um texto, que é a coesão referencial. Essa se caracteriza
53
por quando dois ou mais pontos da superfície textual remetem a um mesmo
referente.
A coesão referencial é utilizada nos textos para fazer menção a termos
anteriormente mencionados, não perdendo, assim, a linearidade do texto. Essa é
caracterizada em termos da retomada de sentidos dentro do próprio texto por meio a
apresentação de referentes. Nessa perspectiva, Koch (2004, p.31) particulariza:
―chamo, pois, de coesão referencial aquela em que um componente da superfície do
texto faz remissão a outro(s) elemento(s) nela presentes ou inferíveis a partir do
universo textual‖. De acordo com essa definição, a coesão referencial pode ser
anafórica ou catafórica.
A coerência referencial anafórica faz referência a um signo já expresso e
a coerência referencial catafórica a um signo que ainda não foi exposto no texto.
Existem três tipos de referencias catafóricas, que são as de ordem pessoal quando
se utiliza no texto pronomes pessoais e possessivos; as catafóricas demonstrativas
quando são utilizados pronomes demonstrativos e advérbios de lugar; e as
catafóricas comparativas, que ocorrem por via indireta, através de similares (KOCH
e TRAVAGLIA, 2015).
Assim como Marcuschi, Koch (2004) também focaliza alguns fatores de
textualização, tais como: a coerência; a coesão; a substituição, que consiste na
colocação de um item no lugar de outro; a conjunção que está ligada à
sequencialização textual e pode estabelecer relações como a de causalidade, de
temporalidade, de consequência, manifestadas, linguisticamente, na forma de
orações subordinadas e/ou coordenadas. Há, também, o uso da elisão, que consiste
em omitir um item lexical, um sintagma, uma oração ou todo um enunciado,
facilmente recuperável pelo contexto; além da intertextualidade; intencionalidade;
situacionalidade que consistem na adequação da manifestação linguística a uma
situação comunicativa do texto e são fatores relacionados ao contexto, ou seja, uma
forma de relacionar o evento textual à situação comunicativa.
É preciso, ao construir um texto, verificar o que é adequado àquela situação específica: grau de formalidade, variedade dialetal, tratamento a ser dado ao tema, etc. O lugar e o momento da comunicação, bem como as imagens recíprocas que os interlocutores fazem uns dos outros, os papéis que desempenham, seus pontos de vista, o objetivo da comunicação, enfim, todos os dados situacionais vão influir tanto na produção do texto, como na sua compreensão. (KOCH, 2015, p. 85).
54
Koch (2015, p. 88) afirma, ainda, que a informatividade ―determinará a
seleção e o arranjo das alternativas de distribuição da informação no texto de modo
que o receptor possa calcular-lhe o sentido com maior ou menor facilidade‖. A
pesquisadora acrescenta que a aceitabilidade é inerente ao leitor do texto que, com
maior ou menos nível de consciência, avalia o nível de coerência e de coesão que o
texto apresenta, o que poderá levar o leitor a aceitar os argumentos apresentados e
articulados no texto produzido ou não.
3.2.2 A natureza do texto jornalístico
Os textos produzidos no domínio jornalístico estruturam-se com base em
objetivos comunicativos bastante específicos. Entre esses, o objetivo de informar
fatos considerados relevantes a comunidade sóciodiscursiva. No ato de produzir
textos jornalísticos, mais especialmente reportagens, notícias, o jornalista enquadra
a atenção do leitor, situando-o, inicialmente, acerca dos fatos, em tese, ocorridos.
Isso se dá através de recursos semiótico-discursivos como as manchetes ou títulos
da reportagem, que se apresentam ao leitor, geralmente, com tipos e tamanho de
letras que se destacam e através de uma breve síntese do assunto tratado.
Segundo Maingueneau, a mídia, em suas três modalidades básicas (oral,
impressa e eletrônica), implica uma forma específica de textualidade que
corresponde ―à maneira como as modalidades de percepção são estimuladas‖,
embora isso não seja suficientemente preciso. Em consonância com o analista do
discurso,
podemos compreender a oralidade conversacional como sendo a primeira forma de textualidade. A textualidade controlada (oral ou escrita) seria a segunda forma de textualidade. Já a textualidade escrita se manifesta de maneira ―linear‖: a maioria dos textos impressos, mas eles também são ―tabulares‖, outra maneira, por ser uma espécie de imagem submetida esta às normas tipográficas. Nesta última, o discurso é subordinado à imagem, sendo o texto uma imagem dentro de um espaço preestabelecido: a página de uma revista, pôster, etc. Há ainda um terceiro tipo de textualidade para esse estudioso, que é a textualidade de ―navegação na internet‖, implicando uma nova maneira de ler, com ―a possibilidade de passar instantaneamente de uma ―página‖ para outra em espaço aberto.‖ (MAINGUENEAU, 2010, p. 137).
Para Gomis (1991, p. 174), por sua vez, o texto jornalístico é a forma
operativa de construção do jornalismo. Ele contém, na sua essência, aspectos que a
55
singularizam em relação a outros conteúdos que circulam socialmente: a) traz
cotidianamente a público determinadas ocorrências selecionadas no mundo social
com base em critérios classificatórios (valores/notícias) e operacionais (internos à
organização jornalística ou relacionados ao processo interacional que o jornalista
mantém com as fontes de informação); b) investe sentidos específicos a essas
ocorrências selecionadas, utilizando-se, para isso, de linguagens e conteúdos de
uso comum em uma coletividade; c) auxilia na construção de uma definição
(imagem) pública destas ocorrências.
Referindo-se ao campo do jornalismo e ao fazer desse campo, o texto
jornalístico, o pesquisador considera, ainda, que ambos funcionam como
construtores de um sentido de proximidade entre atores e processos sociais, que é
uma forma de manifestar um sentido de pertencimento a uma coletividade
(proximidade física ou de identidade cultural) e um sentido de orientação
(instrumental), oferecendo recursos para o indivíduo se locomover em ambientes e
situações para os quais se exige uma competência avaliativa e procedimental,
principalmente a respeito de questões públicas.
Uma das qualidades mais primordiais deste conteúdo noticioso é o de possuir ―atualidade‖. A noção de atualidade no jornalismo se estabelece como um dos primeiros demarcadores das especificidades do conteúdo jornalístico, funcionando como modo de reconhecimento dos eventos como jornalísticos, seja pelo jornalista como pelo ‗leitor‘. Falar de ―atualidade jornalística‖ parece dar a conhecer algo que possui um sentido de imediaticidade para uma coletividade, uma percepção temporal marcada por uma presentificação das coisas, isoladas em acontecimentos noticiosos. Park já havia percebido que um repórter só se interessa pelo passado e pelo futuro na medida em que estes projetam luz sobre o real e o presente. (GOMIS, 1991).
Para o pesquisador, um primeiro complicador presente no texto
jornalístico é que este não se restringe somente à dimensão temporal. Ao se
pretender afirmar que um determinado fato possui ‗atualidade jornalística‘, não está
se referindo apenas à temporalidade em que ele ocorreu. Um conteúdo é atual no
jornalismo também porque apresenta um sentido de relevância pública, ou seja,
compõe aquele leque selecionado de conteúdos que são reconhecidos pelos
indivíduos como indispensáveis para participarem da vida social – as notícias falam
de fatos que irão interferir no curso cotidiano da vida e de cujo conhecimento o
indivíduo não pode (em tese) prescindir. Nesse sentido, não podemos nos esquecer
56
de que o texto jornalístico é uma prática de mediação social. Ao realizar essa
mediação, o jornalista atua como mediador tanto na apresentação dos fatos
narrados para uma coletividade quanto em sua interpretação, uma vez que
estabelece relações específicas entre atores, temas, situações e contextos diversos
na construção do texto noticioso.
O jornalismo é um campo de atividade social que pode e deve ser
investigado. As ações realizadas nesse campo se apresentam, na vida social, como
uma instituição que seria capaz de (re)produzir realidades de um modo particular ou
pelo menos de contribuir para que a construção de conteúdos discursivos públicos
(ou, mais especificamente, de narrativas, de relatos sobre situações, temas ou
questões públicos) se faça(m) em determinados moldes e não em outros (GOMIS,
1991, p. 134). Para o pesquisador, o texto jornalístico produz sentidos sobre o
mundo social, em interação com significados, em alguma medida, previamente
existentes nele.
É com base nesta perspectiva que Gomis (1991, p. 30) utiliza a expressão
―realidade pública‖ para afirmar a existência de um vínculo entre as notícias e o
conhecimento que as pessoas têm do mundo. Para isso, o autor caracteriza a
atividade jornalística como ―um papel socialmente legitimado para produzir
construções da realidade publicamente relevantes‖. A execução deste papel é
inevitavelmente limitada, reduzida pelos próprios critérios classificatórios
(valores/notícias) e operacionais (relativos às imposições organizacionais ou às
relações com fontes de informação) inerentes à instituição jornalística. Para o
pesquisador, o jornalista não promoveria, através do seu trabalho, uma construção
da realidade, mas a de um mundo possível, um mundo ao qual o jornalista tem
acesso e é passível de ser reconstruído pelo discurso jornalístico. Nesse contexto, a
notícia seria uma ―representação social da realidade cotidiana, produzida
institucionalmente, que se manifesta na construção de um mundo possível‖.
Lustosa (1996, p. 113), por sua vez, defende a tese de que ―a notícia é
um produto simbólico destinado ao consumo em massa e, por isso, é feita para todo
mundo a partir de uma técnica de produção capaz de ser absorvida por todos.‖ E
para alcançar esse objetivo, o pesquisador esclarece que a noticia busca, no que
tange à forma, uma padronização, como também uma diversidade de conteúdo.
57
Assim compreendida, a notícia jornalística, atualizada de maneira
convencional, padrão, pode ser escrita e, portanto, reconhecida com base em uma
superestrutura, relativamente estável. Essa superestrutura pode ser, didaticamente,
encontrada no trabalho desenvolvido por Van Dijk (2004).
Superestrutura do texto jornalístico
Fonte: VAN DIJK (2004, p. 85)
De acordo com Van Dijk (2004), a noticia jornalística está estruturada em
dois movimentos discursivos: o sumário e o relato da notícia. No sumário estão a
manchete e o lead da noticia, que juntamente com o antetítulo, o subtítulo, as fotos e
a legenda, resumem o tópico principal a ser tratado na notícia. Já o relato da notícia
irá desdobrar-se em episódio e comentários, ou seja, os fatos reportados e suas
interpretações. Na perspectiva proposta por Van Dijk, o evento principal é o fato
noticiado, enquanto o background diz respeito às partes do texto que fornecerão os
contextos sociais, políticos ou as historias gerais ou ainda as consequências desse
evento noticiado. A categoria circunstância é formada pelos eventos prévios, que
podem ser as causas ou as condições diretas que levaram ao evento principal. Já os
comentários contêm conclusões, expectativas, especulações e outras informações,
em geral comentários tecidos pelo próprio jornalista responsável pela matéria. Como
dissemos, este é um modelo que deve ser reconhecido como padrão. O próprio
pesquisador reconhece que é difícil encontrar, na prática, a realização de todas
essas categorias em uma mesma matéria jornalística. Ainda de acordo com Van
58
Dijk, somente a manchete e os eventos principais são, frequentemente, encontrados
nos jornais. Sendo essa uma forma de caracterizar o texto, de imediato, como
representativo de uma notícia jornalística.
Para Maingueneau (2013, p. 165 - 166) o texto é uma instância de
discurso que se caracteriza por uma mudança constante de plano de enunciação.
Essa instabilidade é uma característica constitutiva do texto jornalístico. O redator de
uma notícia jornalística, ao invés de assumir uma posição, diretamente, diante dos
fatos que noticia, prefere (ou é obrigado a) enunciar um conjunto de vozes da quais
ele se distancia ou com as quais ele é solidário, de forma mais ou menos discreta.
Segundo Maingueneau, ainda, uma vez que o texto excede o universo da língua, em
sua produção, somos obrigados a levar em conta o estatuto atribuído pela cultura na
qual ele circula.
A partir da segunda metade do século XX, os teóricos passaram a se dedicar à sistematização dos gêneros jornalísticos. A maioria deles se ocupou com classificações por categorias. E, embora haja divergência nos critérios de classificação, a maioria dos autores enquadra a notícia, a reportagem e a entrevista como jornalismo informativo. Dentre os textos jornalísticos, a notícia é a mais corriqueira, a mais conhecida e veiculada pelos meios de comunicação. Sob a perspectiva de apenas informar, de transmitir a verdade ao leitor, a notícia aparenta ser um texto neutro, livre de opiniões e, por não fazer análise profunda dos fatos, parece apenas mostrá-los como aconteceram. Entretanto, é importante lembrar que a notícia não é o fato, mas o relato do mesmo, portanto, numa leitura mais aprofundada, iremos perceber a ideologia que reflete e refrata a realidade por ela veiculada e que procura se ocultar sob um texto coberto de consensos e de supostas verdades. Enquanto gênero jornalístico, a notícia é um tipo relativamente estável, com uma estrutura definida, podendo variar conforme a mídia, mas que, em geral, segue os padrões internacionais, com manchete, lide, sublide e corpo textual. (VAN DIJK, 2004, p. 123).
Van Dijk faz uma análise da estrutura da notícia para além do nível
sentencial. Para ele, o notícia possui uma estrutura de relevância que indica ao leitor
qual informação é mais importante no texto. Ele também observa que "as formas
estruturais e os sentidos globais não são arbitrários, mas o resultado de hábitos
sociais e profissionais do jornalista". O pesquisador critica a análise estrutural pura
que não relaciona a estrutura aos "contextos cognitivos e socioculturais da produção
e recepção de notícias e propõe que a análise da estrutura da notícia especifique as
condições sociais (institucionais, profissionais) ou funções sociocognitivas, na
comunicação mediada de massas. (VAN DIJK, 2004, p. 125).
59
O pesquisador complementa dizendo que, a reportagem é um texto mais
extenso, resultante de uma investigação mais detalhada dos fatos, apresentando as
informações em maior profundidade. "Reportagem é o relato do acontecimento
importante, feito pelo jornalista que tenha estado no local em que o fato ocorreu ou
tenha apurado as informações relativas a ele. É o produto essencial da atividade
jornalística." No mesmo manual, notícia é definida como "puro registro dos fatos
importantes que merecem estar no jornal. Sem comentários, juízos de valor ou
interpretação". Além das definições em nada esclarecerem as diferenças entre os
gêneros, o conceito de notícia está repleto de carga ideológica, pois, o mesmo texto
que nega os juízos de valor já está carregado deles quando afirma que há fatos
importantes que "merecem" estar no jornal. Logo, há outros, sob o seu ponto de
vista que são irrelevantes e não possuem a "graça" de figurar como notícia. (VAN
DIJK, 2004, p. 128).
Com o intuito de diferenciar a reportagem da notícia, Lage busca caracterizar a reportagem, sob vários aspectos: i) de acordo com a linguagem, a reportagem possui estilo menos rígido que a notícia, possibilitando ao repórter o uso da primeira pessoa, bem como fazer, além do levantamento de dados, interpretação dos fatos; ii) sob o ponto de vista da produção, a reportagem leva em consideração a "oportunidade jornalística" (o fato gerador de interesse) ; iii) a necessidade de pautas que incluam o fato gerador de interesse, a natureza da matéria e o contexto. Para Lage, é o fato gerador que torna a reportagem um gênero independente.
Consideradas as concepções de linguagem, língua, enunciação, discurso,
texto e mais precisamente de texto jornalístico, que orientam a realização desta
pesquisa, apresentaremos a seguir uma seção dedicada ao conceito de
Referenciação, processo que pretendemos investigar, de maneira mais precisa, nos
dados constituídos para esta pesquisa.
3.3 Sobre a Referenciação
Para os objetivos previstos para esta pesquisa faz-se necessário
caracterizar o que compreendemos o processo de referenciação. Para isso,
consideramos importante retomar o conceito de enunciação. Como vimos
anteriormente, através do processo de enunciação, o sujeito faz referência a um
dado estado de coisas, a alguém ou a algo (um referente) sobre o que deseja
60
compartilhar atenção com um interlocutor. Do ato de enunciação decorre a
construção de enunciados.
De acordo com Volochinov (2017, p. 200), o enunciado se forma entre
dois indivíduos que são socialmente organizados e, na ausência do interlocutor, o
mesmo é substituído pela imagem do representante médio do grupo social ao qual o
falante faz parte. Nessa perspectiva, a palavra dita é direcionada para o interlocutor,
ou para quem é esse interlocutor, considerando se este é integrante ou não do
mesmo grupo social do interlocutor, ou se ele se encontra em uma posição inferior
ou superior em relação a este interlocutor. Nesse cenário deve-se considerar, ainda,
se o interlocutor tem, ou não, laços sociais mais estreitos com o locutor.
Para Volochinov (2017, p 203), no mundo interior de todo sujeito falante
existe um auditório social estável e é nesse ambiente que se formam os seus
argumentos ou movimentos interiores, bem como suas avaliações. ―Quanto mais
culto for o individuo, mais o seu auditório se aproximará do auditório médio da
criação ideológica‖.
Nessa perspectiva, a palavra é considerada um ato bilateral, pois é
determinada tanto por aquele de quem ela precede quanto para quem essa palavra
é dita. A palavra como signo é tomada de empréstimo pelo falante de sua rede
social de signos que estão disponíveis. O contexto social mais próximo do falante é
que determinará quem serão os possíveis ouvintes do enunciado (VOLOCHINOV,
2017, p. 207).
Complementando o sentido dado à palavra por Volochinov, optamos por
retomar argumentos apresentados por Ducrot (1984, p. 418 - 437). Segundo o
pesquisador francês, a palavra constantemente pressupõe algo em relação ao
mundo exterior que é dotado de uma realidade própria, independente da realidade
discursiva, e com o qual a palavra necessita colocar-se constantemente em
confronto para significar. Nessa perspectiva, a palavra, por si só, não contém força
geradora de significado, O que garante essa força são o discurso e o contexto em
que a mesma se encontra. Segundo Ducrot, a palavra não é o mundo referido ou os
objetos nele contidos, mas sim uma forma encontrada pelo homem para representar
o mundo. Da mesma forma, o referente não é a realidade propriamente dita, mas
sim a realidade a qual a ato de referenciar tenciona descrever ou transformar, ou
seja, o referente é uma realidade do discurso.
61
Assim compreendidos, o ato de enunciação, o enunciado, a palavra,
podemos reconhecer com Marcuschi que, na vida social, o sujeito não é apenas um
sujeito enunciativo, pois nas interações sociais, ao enunciar, o sujeito instaura ou
constrói o mundo que o cerca. Podemos afirmar, nesse sentido, que o ato de
enunciação, ao incluir a ação humana de referir, é um ato criativo, que se realiza no
contexto de ações linguísticas sócio-historicamente situadas e que as produções
discursivas funcionam, também, como um contexto relevante para novas produções
discursivas (MARCUSCHI, 2004, p. 274)
Além disso, é importante observar que o sujeito do discurso produz
sentido ou significação para (ou a partir de) um enunciado não apenas no momento
de interação. A produção de sentido(s) é construída através de um processo de
interação intersubjetiva que se realiza, simultaneamente, na dimensão social, ou
seja, esse é um processo criativo a partir do qual os indivíduos adquirem maior ou
menos nível de consciência sobre o que estão falando e sobre de que maneira estão
construindo seus referentes (MARCUSCHI, 2004, p. 278).
Sobre diferentes concepções do processo de Referenciação, no campo
dos Estudos da Linguagem, de acordo com Koch, Morato e Bentes (2019, p. 11),
para uns, a referenciação é concebida no interior de um modelo de correspondência entre as palavras do discurso e os objetos do mundo, de modo que a validade das palavras é avaliada em um quadro vericondicional; já para outro, a referência é resultado de um processo dinâmico e, sobretudo, intersubjetivo, que é estabelecido no quadro das interações que ocorrem entre locutores, e é suscetível de se transformar no curso dos desenvolvimentos discursivos, de acordos e desacordos.
Nesta pesquisa, assumimos a segunda concepção, ou seja, no processo
de Referenciação, a referência é resultado de uma dinâmica intersubjetiva de
interações entre interlocutores e essa pode sofrer transformações, em termos de
acordos e desacordos argumentativos, no desenvolvimento do discurso.
Para as pesquisadoras, ainda, as escolhas formais na atividade
referencial depende das escolhas formais que podem ser concebidas como reflexos
das propriedades do referente, ou como manifestação de estados mentais. Para
fundamentar o seu argumento, as pesquisadoras destacam um trabalho de
Marcuschi, que afirma:
62
De certo modo, as esquematizações nos processos discursivos são co-construções, o que nos faz crer que as compreensões nunca são atividades unilaterais e sim colaborativas. Filliettaz (1996, p.41 apud MARCUSCHI, 2004, p. 276) sugere que a melhor forma de tratar a referenciação no discurso é a forma interacionista em que o processo cognitivo tem uma dimensão social considerável. E a mente não fica circunscrita a uma espécie de deposito de representações mentais retratadas em um léxico em que as palavras operam como simples rótulos. (MARCUSCHI, 2004, p. 278).
Koch (2019, p. 33-34) afirma que a construção discursiva no mundo, feita
por meio da linguagem, não consiste em um simples processo de elaboração de
informações, mas em um processo de construção ou reconstrução do próprio real.
Nessa perspectiva, os objetos do discurso não se confundem com a realidade
extralinguística, mas reconstroem-na no próprio processo de interação, ou seja, a
realidade é construída, mantida e alterada não apenas como o mundo é nomeado,
mas pela forma como, sociocognitivamente, interagimos com ele. Interpretamos e
construímos nossos mundos na interação com o entorno físico, social e cultura. A
pesquisadora elucida que a referenciação não privilegia a relação entre as palavras
e as coisas, mas a relação intersubjetiva e social no seio da qual versões do mundo
são publicamente elaboradas, avaliadas em termos de adequação às finalidades
práticas e às ações em curso dos enunciadores.
No interior dessas operações de referenciação, os interlocutores elaboram objetos de discurso, entidades que não são concebidas como expressões referenciais em relação espetacular com objetos do mundo ou com sua representação cognitiva, mas entidades que são interativamente e discursivamente produzidas pelos participantes no fio de sua enunciação. O objeto de discurso não remete a uma verbalização de um objeto autônomo e externo às práticas linguageiras; ele não é um referente que teria sido codificado linguisticamente. (KOCH, 2019, p. 34).
Nesta pesquisa, a referenciação é considerada, portanto, uma atividade
discursiva. E é assim caracterizada pelo fato de operar sobre o material linguístico
que os interlocutores têm à sua disposição no ato da interação verbal. Isso é
realizado a partir de escolhas significativas para representar estados de coisas, com
vistas à concretização de uma proposta de sentido. Por isso, a interpretação de uma
expressão referencial anafórica, nominal ou pronominal, consiste não simplesmente
em localizar um segmento linguístico no texto ou um objeto especifico no mundo,
mas, sim, algum tipo de informação anteriormente alocada na memória discursiva
dos sujeitos da interação (KOCH, 2019, p. 35)
63
Koch (2019) ressalta, também, que o emprego de uma descrição nominal,
com a função de categorizar ou recategorizar um referente, sempre implicará na
escolha entre uma multiplicidade de formas de categorização do referente, sendo
que esta escolha sempre será feita, em cada contexto, segundo a proposta de
sentido do produtor do texto. Para a pesquisadora, não é difícil constatar que o
emprego de expressões nominais anafóricas opera a recategorização dos objetos de
discurso, ou seja, de forma que tais objetos, ao longo do texto, serão reconstruídos
de determinada forma, o que atenderá aos propósitos comunicativos do falante.
Nesse processo de recategorização, muitas vezes feita por termos metafóricos, a
seleção do núcleo da forma nominal, bem como seus modificadores, desempenha
papel crucial.
Na construção do referente, há o emprego de anáforas. Dentre essas
anáforas, há as anáforas associativas. Através dessas anáforas, é possível (aos
interlocutores) selecionar convenientemente termos pertencentes a um mesmo
campo lexical, de modo a permitir, por meronímia, a (co)construção dos referentes.
Ao discutir aspectos cognitivos do processo de referenciação, Koch
(2019) caracteriza três estratégias de constituição de referência que se ancoram na
memória discursiva. A primeira estratégia é a de construção ou ativação pela qual
um objeto textual, até então não mencionado, é introduzido, passando a preencher
um nódulo na rede conceitual do modelo de mundo textual. Esse nódulo é o que a
autora chama de ―endereço‖ cognitivo ou locação. A segunda estratégia é a da
reconstrução ou reativação. Através dessa estratégia, um nódulo já presente na
memória discursiva é reintroduzido na memória operacional, por meio de uma forma
referencial, de modo que o objeto de discurso permaneça saliente. E, por último, a
estratégia de desfocalização ou desativação, que ocorre quando um novo objeto de
discurso é introduzido, passando a ocupar a posição focal. Contudo, o objeto
retirado do foco enunciativo continua em estado de ativação parcial, podendo voltar
à posição focal a qualquer momento (KOCH, 2019, p. 128).
A pesquisadora ainda argumenta que é muito complexa qualquer
descrição que se tente dos aspectos cognitivos que envolvem a referenciação,
quando se toma por base o uso da linguagem como ação e não como produto. Toda
entidade referida é empregada sob pressuposição de que, de algum modo, se
tornará acessível na interação. Os tipos de suposição que o falante julga estarem
64
representadas na mente do interlocutor interferem diretamente nas escolhas dos
processos referenciais que são considerados mais adequados a cada momento da
enunciação e nos diferentes modos de expressá-los.
Segundo a pesquisadora, considerando que há infinitas condições a
serem satisfeitas no processo de referenciação para que esse seja realizado com
sucesso, isso demandaria grande quantidade de tempo. A referenciação, no entanto,
é realizada em um tempo finito e curto, por isso, os interlocutores examinam apenas
algumas delas, na dependência do seu desejo de precisão (KOCH, 2019, p. 176).
Para a pesquisadora, o falante tem tempo limitado para planejar e revisar o que diz,
situação a qual não está subordinado o produtor de um texto escrito. Além disso, o
ouvinte deve processar cognitivamente os enunciados ao mesmo tempo em que
eles são proferidos, o que requer um tipo de sincronização que não é encontrado na
leitura. E, por fim, o ouvinte participa ativamente do jogo enunciativo, pois o falante
ajusta o que enuncia com base no que o ouvinte diz e faz. Por isso, o produtor do
texto escrito deve monitorar antecipadamente as possíveis reações do leitor,
fornecendo-lhe as pistas necessárias para o entendimento. Isso,no entanto, trata-se
apenas de uma aposta, já que não se pode ter certeza de que as escolhas feitas não
provocarão qualquer incidente interpretativo.
Par Koch (2019, p. 266), os objetos de discurso não preexistem à
atividade cognitiva e interativa dos sujeitos falantes, mas são produtos desta
atividade. Assim sendo, a atividade de referenciação é o resultado de um processo
dinâmico e intersubjetivo que se estabelece no quadro das interações no curso dos
desenvolvimentos discursivos, dos acordos e dos desacordos. A pesquisadora
afirma, ainda que a referenciação é uma atividade discursiva que revela a
instabilidade entre as palavras e as coisas, evidenciando que os modelos de mundo
não são estáticos. Assim sendo, a variedade de estratégias de referenciação no
discurso depende mais da pragmática da enunciação do que da semântica dos
objetos. A realidade se transforma em referente discursivo por meio da percepção
ou da interpretação humana. Sendo assim, a atividade de construção da
referenciação é uma reelaboração dos dados sensoriais para fins de apreensão e
compreensão.
Para Marcuschi (2001 apud Koch, 2019, p. 266), por sua vez, ―a atividade
de referenciação nas interações face-a-face supõe o partilhamento de
65
conhecimentos entre os seus participantes, como cultura, crenças, língua, contextos
situacionais.‖ Nessa perspectiva, as práticas referenciais manifestadas nas
interações constituem o principal objeto de análise. Tais práticas não se restringem
às práticas da linguagem, pois abrangem também as práticas gestuais, movimentos
no espaço, orientação do olhar. Assim sendo, os referentes não são preexistentes a
prática linguística, eles são instaurados na realidade e no desenrolar da atividade
referencial, pela maneira como esta é reconhecidamente organizada.
Os enunciados são produzidos ou completados colaborativamente, assim
como os objetos de discurso referenciados podem ser enriquecidos ou construídos
de forma coletiva por diferentes locutores. Ainda para a Koch, os conhecimentos
socialmente compartilhados e sua construção ou reconstrução discursiva são
importantes para a coconstrução da referência entre interlocutores e para os
encadeamentos discursivos. Desse modo, os interlocutores podem formular uma
representação cognitiva socialmente compartilhada da realidade (KOCH, 2019).
Como pretendemos ter deixado claro ao leitor, nesta pesquisa,
assumimos a concepção de processo de Referenciação proposto por Koch, em
diálogo com argumentos apresentados por Marcuschi. De acordo com a
pesquisadora, ―a referenciação é um importante lugar de observação e de
identificação de um dispositivo geral que explore as restrições e as potencialidades
linguísticas para desenhar uma representação cognitiva socialmente compartilhada
da realidade‖ (KOCH, 2019, p. 294).
Os processos referenciais são tratados, dessa forma como constitutivos
de práticas simbólicas dos sujeitos em sociedade. Ainda para ambos os
pesquisadores, embora a questão da referenciação tenha sido historicamente
concebida como um problema de representação do mundo em termos de verdade e
correspondência, essa deve ser deslocada para um tratamento que privilegie a
relação intersubjetiva e social, na qual versões do mundo são publicamente
elaboradas e avaliadas pelos sujeitos enunciadores.
Por essa razão, os pesquisadores passam a utilizar o termo referenciação
para tratar da referência como um processo realizado no discurso, resultante não de
uma ontologia dada, mas de práticas simbólicas complexas, que são responsáveis
por produzir a ilusão de um mundo objetivo.
66
De acordo com os argumentos apresentados até aqui, a maneira como
podemos entender a referenciação por uma concepção não representacional
reintroduz uma pluralidade de atores situados que discretizam e dão sentido à língua
e ao mundo.
Desse modo, tratar a referenciação em uma perspectiva interacionista e
discursiva pressupõe uma concepção de língua que não se esgota no código, nem
implica uma correspondência direta com o mundo, como se a língua refletisse a
realidade (KOCH, 2019, p. 320 - 321). A referência, nessa perspectiva, é um
processo realizado no discurso. Essa postura teórica possibilita um olhar atento para
a progressão dos referentes no texto. É nessa progressão referencial, que diz
respeito à introdução, à preservação, à continuidade e à retomada dos referentes,
que esses se encadeiam para o desenvolvimento do tópico e a construção da
coerência e da coesão.
Segundo Koch, ainda, o encadeamento dos referentes para o
processamento textual é feito por diferentes estratégias de referenciação, nominais e
pronominais, que variam de acordo com a relação estabelecida entre o que é
referido e o referente. Esta relação pode se dar tanto de forma prospectiva, pela
catáfora, quanto retrospectiva, pela anáfora. Entre essas estratégias, pode-se
destacar as expressões nominais, que são formas linguísticas minimamente
constituídas de um determinante, seguido de um nome, que operam uma seleção
entre as diversas propriedades do referente.
Ao analisar um discurso, Koch (2005, p. 26) elucida que podemos
trabalhar com a hipótese do sentido ser produzido a partir de condições
historicamente determinadas, é preciso determinar com clareza como a
determinação de fatos se dá na globalidade dos discursos sociais que são
concebidos.
Para se chegar a esse ponto, primeiramente, é necessário assumir que
nenhum discurso é necessariamente individual, haverá marcas que são
provenientes de representações disseminadas pelo coletivo. O discurso, no entanto,
não é somente um produto social, pois sempre haverá, no mesmo, marcas ou traços
que o caracterizam como um produtor de condições específicas e individuais de
produção.
67
O emprego de uma descrição nominal, com função de categorizar ou de recategorizar referentes, implica sempre uma escolha entre uma multiplicidade de formas de categorizar o referente, escolha esta que será feita, em cada contexto, segundo a proposta de sentido do produtor do texto. (KOCH, 2005, p. 35)
A forma como o sujeito se refere a algo ou alguém, bem como os
processos de remissão textual realizada através da referenciação, constitui escolhas
do sujeito em função do que este quer dizer. O modo como o sujeito emprega a
descrição nominal para categorizar ou recategorizar o referente implica sempre em
uma multiplicidade de formas na qual o sujeito pode categorizar esse referente. Essa
escolha será feita em cada contexto, considerando o sentido que o sujeito quer dar
ao enunciado referindo-se a alguém ou a alguma situação de determinada forma.
―toda entidade referida é empregada sob a perspectiva de que de algum modo se tornará acessível na interação. Os tipos de suposição que o falante julga estarem representadas na mente do interlocutor interferem diretamente nas escolhas dos processos referenciais que são consideradas mais adequadas a cada momento da enunciação e nos diferentes modos de
expressa-los.‖ (KOCK, 2005, p. 35).
―A atividade de referenciação é o resultado de um processo dinâmico e
intersubjetivo que se estabelece no quadro das interações entre locutores e é
suscetível a transformações no curso dos desenvolvimentos discursivos‖
(MONDANA e DUBOIS, 2003 apud BENTES e RIO, 2019, p. 266). Ainda para as
autoras ―os conhecimentos socialmente partilhados e sua (re) construção discursiva
são importantes para a construção da referencia entre interlocutores e para os
encadeamentos discursivos‖ (KOCH, 2019, p. 267).
Koch (2005, p. 26) afirma que, se ao analisar um discurso, pretende-se
trabalhar com a hipótese de que o sentido seja produzido a partir de condições
historicamente determinadas, é preciso determinar com clareza como a
determinação de fatos se dá na globalidade dos discursos sociais que são
concebidos.
Para se chegar a esse ponto, primeiramente é necessário assumir que
nenhum discurso é necessariamente individual, haverá marcas que são
provenientes de representações disseminadas pelo coletivo.
A pesquisadora ainda complementa dizendo que, ao categorizar ou
recategorizar um referente, sempre há uma escolha entre uma multiplicidade de
68
categorizações, ou escolhas lexicais, que será feita de acordo com o contexto e com
a proposta de sentido que se quer atingir.
Nas reportagens coletadas para compor o corpus do presente trabalho,
podemos encontrar um exemplo de categorização das religiões de matriz africana na
reportagem publicada no dia vinte e oito de maio de 2019 pelo jornal Estadão,
quando membros de um terreiro situado em Alagoinhas – BA afirmam que um grupo
de evangélicos se referiu ao terreiro como ―casa de satanás‖. Dentre a multiplicidade
de categorias a serem utilizadas, o grupo que se referiu ao terreiro de tal forma
escolheu uma categoria determinada, possivelmente levados por questões
construídas historicamente, mas não esquecendo também da ideologia religiosa que
levou a escolha de tal referente.
Para ilustrarmos esses argumentos, no âmbito desta pesquisa, podemos
afirmar que, quando nos deparamos com uma situação discursiva, cotidiana,
referenciada em notícias de jornal, em que um sujeito do discurso refere-se a uma
divindade afro-brasileira ou a um adepto da Umbanda ou do Candomblé como um
―demônio‖ ou ―filho do demônio‖, essa categorização não foi uma escolha individual.
Esse processo, o de escolha lexical implicada no ato de referenciar e categorizar
linguisticamente, é uma escolha coletiva assumida em um determinado contexto
sócio historicamente construído. O uso social dessa forma de predicar esses objetos
do discurso (Umbanda, Candomblé) é o que leva um individuo a, com maior ou
menor nível de consciência, em um amplo universo lexical possível, escolher uma
dada categoria para se referir a um determinado individuo, religião ou divindade.
Como excerto para verificarmos o que foi dito no parágrafo acima,
podemos tomar como exemplo o fato relatado na reportagem do dia 16 de agosto de
2018, vinculada ao jornal Correio, onde o babalaô Ivanir dos Santos deu entrada
com uma representação criminal junto ao Ministério Público do Estado do Rio de
Janeiro, pedindo a instauração de ação penal para apurar responsabilidades criminal
de integrantes da Igreja Ministério Redenção, no bairro do Barreto, em Niterói. O
grupo é acusado pelos umbandistas de formação de quadrilha, perturbação de culto
e intolerância religiosa. De acordo com o relato de Ivanir, os integrantes de um
terreiro de Umbanda realizavam um culto religioso em um cemitério na cidade de
Niterói, quando foram abordados por um grupo de evangélicos, que interrompeu o
culto aos gritos com as seguintes referenciações: ―macumbeiros, capeta,
69
macumbeiros têm que morrer‖;‖ tá amarrado em nome de Jesus‖; ―tem que expulsar
porque é demônio; e ―queima eles Satanás‖.
Sobre o fato de que o processo de categorização, especialmente aquele
implicado na criação de atributos que geram como consequência a criação de
estereótipos e estigmas sociais, Goffman (1891, p. 11) afirma que
―a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias. Então, quando um estranho lhe é apresentado o coloca dentro de uma dessas categorias socialmente construídas, uma ‗identidade social‘, perpetuando o conceito de ‗estereótipos‘, e estigmatizando um grupo no qual sua categoria for depreciativa, estabelecendo apenas uma linguagem de relação, e não de atributos individuais.‖
Sobre isso, podemos concordar com Marcuschi (2007, p. 139 - 140) que a
referenciação é um processo complexo que precisa ser analisado na atividade sócio-
interacionista. A depender do ponto de vista que, como interlocutores, adotamos,
vamos construir os seres e os objetos do mundo discursivo de uma ou de outra
forma. O mundo de nossos discursos é sócio-cognitivamente estruturado.
Assim sendo, a referenciação é um processo mais etnográfico (ligado ao
processo sócio-interativo) do que semântico e epistemológico. Como afirma o
linguista, ao investigar esse processo, não podemos confiar apenas nas
características estruturais da interação nem nas propriedades comunicativas da
língua, nem nos contextos físicos (imediatos) da produção da interação, mas
devemos estar atentos para o que os faltantes fazem com tudo isso (MARCUSCHI,
2007, p. 117 - 119).
3.4 Sobre a Metaforização
Para que alcancemos os objetivos propostos para o presente trabalho, de
forma a verificar a plausibilidade das hipóteses desta pesquisa, apresentaremos,
neste momento, fundamentos que orientam a concepção de metáfora com a qual
trabalhamos.
Uma vez que adotamos uma perspectiva processual e sócio-
interacionalmente contextualizada para investigar o processo de Referenciação, em
que Candomblé e Umbanda são tomados como objetos de discurso em textos de
natureza jornalística, buscaremos construir uma perspectiva também processual
70
para investigar a metáfora, o processo de metaforização, que esses textos colocam
em cena. Para isso, serão considerados argumentos apresentados por Antonio
Cândido (1996), Lakoff e Johnson (2002) e Solange Vereza (2010).
Segundo o crítico literário brasileiro Antonio Candido (1996, p. 23), a
produção estética, em especial a literária, é um lugar natural de manifestação da
metáfora. E essa se aproxima, no texto poético, com a construção de imagens
mentais. Para o pesquisador, tanto na imagem como na metáfora ocorre o mesmo
fenômeno fundamental, a criação de sentido pela comparação, explícita ou implícita,
de conhecimentos que são evocados a partir do uso de dois termos. A metáfora,
nessa perspectiva, se baseia na analogia, ou seja, na possibilidade de
estabelecermos uma semelhança mental sentidos que já atribuímos, que
conhecemos, para termos que referenciam estados de coisas no mundo (objetos,
lugares, ações, ideias, estados, emoções). Assim sendo, a metáfora permite ao ser
humano construir uma relação subjetiva entre estados de coisas diferentes e, dessa
forma, abstrair os elementos particulares de cada um para, assim, salientar o
elemento geral, que assegura a correlação possível. No caso dos textos poéticos, a
que se dedica especialmente o crítico na obra em questão, isso é facilitado pela
natureza semântica das palavras, que permite a construção de novos significados de
acordo com o contexto em que essas são empregadas.
Para Candido (1996, p. 25), a linguagem humana se estrutura com base
em metáforas e o uso das línguas é atravessado por metáforas, usadas e criadas,
inconscientemente, e, à medida que socialmente reiteradas, passam a ser
incorporadas ao patrimônio lexical e cultural de um povo. O crítico afirma, ainda, que
a intenção o sujeito que produz uma metáfora no cotidiano é o traço diferencial entre
a metáfora literária (com finalidade estética) e a metáfora comum. A metáfora direta,
comum, nasce da necessidade que os sujeitos de linguagem possuem de enriquecer
a linguagem cotidiana, de suprir-lhe possíveis deficiências, baseando-se na
associação de ideias por suas semelhanças.
A metáfora é um fenômeno que é objeto de estudo desde a Antiguidade
Clássica. O processo de conceituação, definição e compreensão desse fenômeno,
que ainda está longe de ser um consenso, permeia as áreas mais distintas da
atividade linguística. Aristóteles foi um dos primeiros autores a tratar da metáfora,
após o mesmo, o assunto já foi tratado por filósofos como Hobbes, Locke, Kant,
71
Rousseau e Neitzsche. Ao longo dos séculos, desde Aristóteles, podemos identificar
diversas teorias que buscam compreender a metáfora e, a partir do século XX, os
estudos realizados com esse objetivo passam a ser fortemente estruturados em uma
perspectiva interdisciplinar e com recortes e objetivos bem diversificados
(CAVALCANTE, FERREIRA e GUALDA, 2016, p. 7).
Compreender que os estudos contemporâneos da metáfora decorrem de
uma longa tradição significa reconhecer o percurso trilhado para que esse objeto de
estudo adquirisse um status cognitivo. Nesse paradigma de estudo, que investiga a
relação entre linguagem e cognição, a metáfora deixa de ser compreendida como
uma figura de linguagem e passa a ser estudada como um fenômeno de natureza
conceptual. E isso significa, também, reconhecer que os seres humanos
compartilham entre si um sistema conceptual, a partir do qual emergem as
manifestações simbólicas e culturais, de natureza diversa, entre essas as
manifestações linguísticas (CAVALCANTE, 2002).
O nosso sistema conceptual é metafórico por natureza, ou seja, os
processos do pensamento são, em grande parte, metafóricos, ―a metáfora está
infiltrada na vida cotidiana, não somente na linguagem verbal, mas também no
pensamento e na ação humana‖ (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 45).
Segundo Vereza, uma das mais importantes estudiosas brasileiras da
Teoria da Metáfora Conceptual (Lakoff e Johnson, 1980), isso pode ser confirmado
no cotidiano das interações sociais. É muito comum na linguagem cotidiana as
pessoas dizerem que estão ―falando metaforicamente‖ ou dizerem que estão
―falando literalmente‖, de acordo com o que foi dito e a real intenção do falante. Por
trás desse uso constante e cotidiano do conceito de metáfora e de linguagem
―literal‖, há uma visão do processo metafórico como o uso de um termo ou
expressão que é usado no lugar de outro termo mais objetivo, que seria a
―expressão real‖ ou verdadeira. A função dessa expressão usada no lugar de outra
expressão, mesmo dentro do senso comum, pode ser a de esclarecer, ilustrar ou de
certo modo ―fugir do assunto‖ ou ainda ―esconder a ignorância sobre algo‖
(VEREZA, 2010, p.12).
Há um consenso entre os pesquisadores e estudiosos de língua, revelado
em manuais didáticos para a Educação Básica no Brasil e fundamentado em uma
dada perspectiva teórica, de que a metáfora representa uma transferência de
72
sentido entre um termo A para um termo B. Sobre esse consenso, Vereza (2010,p.
13) explica que:
Etimologicamente, o termo metáfora deriva da palavra grega metaphorá através da junção de dois elementos que a compõem, meta que significa ―sobre‖ e pherein que quer dizer ―transporte‖. Nesse sentido, metáfora surge enquanto sinônimo de ―transporte‖, ―mudança‖, ―transferência‖, e em sentido mais específico, ―transporte de sentido próprio em sentido figurado‖. A metáfora implica necessariamente um desvio do sentido literal da palavra para seu sentido livre; uma transposição do sentido de uma determinada palavra para outra, cujo sentido originalmente não lhe pertencia. (VEREZA, 2010, p. 13).
Como é possível notar, nessa perspectiva, baseada em uma visão
tradicional, a metáfora é compreendida como uma figura de linguagem. De acordo
com essa visão, o locus da metáfora é a linguagem. O que quer dizer que esta não
teria um papel central no processo de produção de sentidos. De acordo com essa
perspectiva, na visão da pesquisadora, o sentido real da palavra seria distorcido ao
se usar um termo ou palavra no lugar de outra, construindo, nesse processo,
conotações próprias do conceito que foi ―emprestado‖, e que interfere diretamente
no sentido daquilo que se quer referir. A consequência mais direta dessa
compreensão é que a metáfora é vista apenas como um recurso supérfluo,
dispensável, da linguagem (VEREZA, 2010, p. 14).
A pesquisadora afirma, ainda, que a visão reducionista que se tem acerca
da metáfora, reconhecendo-a, ainda hoje, apenas como uma ―figura de linguagem‖,
uma estratégia discursiva, linguística, meramente ornamental, sem qualquer efeito
cognitivo, é resultado de uma interpretação reducionista à qual a retórica foi
submetida.
Para Vereza (2010, p. 15), mais do que isso, a metáfora é um fenômeno
do pensamento. E é importante ressaltar que o pensamento, para os teóricos da
metáfora e de outros fenômenos linguísticos, que estudam a relação entre
linguagem e cognição, não se restringe à ―linguagem não falada‖, ou àquilo que
poderia ser descrito como o correspondente mental da linguagem, manifestada
linguisticamente, que é verbalizada. A metáfora do e no pensamento é aquela que
surge na cognição humana e que é também parte importante constitutiva, em termos
processuais, da própria cognição, do aparato sensório-perceptual e conceptual
humano.
73
A metáfora do pensamento pode ser considerada ―um processo por meio
do qual experiências são elaboradas cognitivamente, a partir de outras já existentes
no nível conceptual (VEREZA, 2010, p. 16).‖ Haveria, assim, uma superposição de
experiências já incorporadas linguisticamente pelo indivíduo que é determinada a
uma outra experiência a ser mapeada pelo pensamento e pela língua.
Para a pesquisadora, a metáfora faz parte de um inconsciente cognitivo
coletivo, que mantém uma relação estreita com a cultura e com a língua. A relação
da metáfora com a cultura pode ser compreendida a partir da forma como o sujeito
vê parte da experiência vivida, geralmente a mais abstrata, pela lente de outra
experiência ou situação mais concreta.
A pesquisadora explica que as metáforas são fundamentalmente
conceptuais por não estarem somente na base da expressão linguística, mas
também na base da experiência. O indivíduo atribui sentido ao mundo pela interação
que ele experencia entre a sua corporeidade, a sua mente corporificada, os nichos
culturais nos quais vive e interage socialmente.
De acordo com a Teoria das Metáforas Conceptuais de Lakoff e Johnson
(1980), ―nós compreendemos o mundo por meio das metáforas.‖ Isso se deve ao
fato de que experiências como, por exemplo, tempo, estado, quantidade, além de
conceitos emocionais como amor e raiva, são compreendidos metaforicamente. Por
isso, a metáfora, em sua materialidade linguística e em outras formas de
manifestação (desenho, pintura, fotografia, cinema) é de grande importância para
compreendermos o mundo, a cultura e até nós mesmos.
Lakoff e Johnson (1980) apontam três condições das metáforas conceptuais: primeiro, a sistematicidade das correspondências linguísticas; segundo, o uso da metáfora que governa o raciocínio e o comportamento nela baseado; e por último, o entendimento de uma experiência em termos de outra, advindo das correspondências convencionais. (VEREZA, 2010, p. 30).
Vereza afirma, ainda, que, de acordo com Lakoff e Johnson (1980), as
metáforas podem variar em sua complexidade ou em seu grau de elaboração de um
individuo para outro, podendo ou não ser imediatamente ativadas na compreensão
da linguagem metafórica. Além disso, podem ser reconstruídas de maneiras
distintas, nas mais variadas situações quando estas se constituem como uma
74
propriedade emergente das interações do individuo com o mundo (VEREZA, 2010,
p. 30 - 31)
De acordo com a Teoria da Metáfora Conceptual, doravante TMC,
existem três tipos de metáforas conceptuais, as metáforas estruturais, as metáforas
orientacionais e as metáforas ontológicas.
As metáforas estruturais são caracterizadas pelo fato que nós podemos
usar um conceito estrutural e claramente delimitado para, através deste, estruturar
outro conceito e, somando-se a isso, há ainda a possibilidade de orientar conceitos,
referimo-nos a eles ou qualificá-los.
As metáforas orientacionais ―são aquelas que organizam todo um sistema
de conceitos em relação a outro sistema de conceitos e têm a ver com a orientação
espacial.‖ Este tipo de metáfora mobiliza esquemas imagéticos e são organizadas a
partir de oposições espaciais como para cima e para baixo, dentro e fora, frente e
trás (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 134).
Segundo Lakoff e Johnson (2002, p. 60), as orientações metafóricas não
são arbitrarias, pois estas são construídas tomando como base nossa experiência
física e cultural. Uma das metáforas conceptuais orientacionais identificadas pelos
pesquisadores como muito produtiva culturalmente é STATUS SUPERIOR É PARA
CIMA, STATUS INFERIORÉ PARA BAIXO. Alguns exemplos desse tipo de metáfora
são: ―Ela tem uma posição superior‖; ―Ele está no topo de sua carreira‖; ―Ele tem
poucas chances de ascensão social‖ ou ―Ele baixou de status‖ (LAKOFF e
JONHSON, 2002, p. 63)
Já as metáforas ontológicas decorrem das nossas experiências com as
substâncias e objetos físicos, de modo que possamos nos referir, categorizar,
agrupar, quantificar e raciocinar sobre essas experiências. Essas metáforas são
utilizadas de modo que possamos apreender o mundo, para que possamos impor
limites artificiais aos fenômenos físicos, tornando-os entidades demarcadas por uma
superfície (LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 76). Os pesquisadores complementam
dizendo que, muitas expressões que nós utilizamos, sem que percebamos, no nosso
dia a dia são metáforas ontológicas ou orientacionais, pois constantemente
quantificamos ou nos referimos a objetos.
Os pesquisadores afirmam que, no processo de construção e de
compreensão de metáforas, o falante e o ouvinte entendem um tipo de coisa ou
75
vivenciam uma experiência em detrimento de outra de diferente tipo. Isso significa
que, para compreender as metáforas, são necessárias as próprias experiências que
são, ao mesmo tempo, de natureza pessoal e social. Os estudiosos apontam um
exemplo que permite esclarecer melhor essa tese. Na metáfora conceptual,
argumento é guerra. Nessa metáfora, a forma como se fala o argumento, bem como
a forma pela qual se persuade alguém e os próprios argumentos utilizados podem
ser compreendidos em termos de conhecimentos que, culturalmente, construímos
para o domínio da guerra (estratégia de combate, vitória, derrota, violência, morte).
O presente capítulo teve por finalidade apresentar os fundamentos
teóricos que orientam a realização desta pesquisa. Assim sendo, foi dedicado à
apresentação de conceitos teóricos que serão retomados no processo de análise
dos dados que constituem a pesquisa.
No próximo capítulo, serão apresentados os fundamentos metodológicos
adotados na presente pesquisa. Entre esses, serão descritos os processos de
composição, seleção, de documentação do corpus e os critérios adotados para a
constituição dos dados para análise.
76
Capitulo 4
4 FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS
Na sociedade ―pós-moderna‖, caracterizada como era da informatização e
da tecnologia, pode-se identificar uma quantidade considerável de publicações em
jornais impressos ou digitais, programas de TV e rádio, sites e blogs na internet,
acerca de casos de violência física, moral, institucional e/ou psicológica contra
adeptos das religiões de matriz africana, seus locais de culto e bem como tudo o que
está diretamente ou indiretamente relacionada às mesmas.
Assim compreendida, podemos afirmar, por princípio, que o contexto
social, cultural e institucional bem como as relações de poder e ideologia permeiam
práticas discursivas no âmbito midiático. Isso pode ser observado no ato de reportar
e de informar fatos e situações sociais os mais diversos e em determinadas
realidades sociais, como naquela em que se inscreve esta pesquisa.
Este trabalho de pesquisa se estrutura em termos de uma investigação e
análise de natureza discursivo interpretativa. Através dessa abordagem
pretendemos aprofundar, em termos de análise, a problematização da presente
pesquisa e a retomada de elementos que compõem os pressupostos teóricos
apresentados nos Capítulos 2 e 3, dedicados à apresentação dos fundamentos
sociohistóricos e sociodiscursivos, respectivamente.
Neste capítulo, apresentaremos os fundamentos metodológicos que nos
orienta na realização da pesquisa.
4.1 Procedimentos adotados para a constituição do corpus
Na presente pesquisa, ao tratarmos da análise de textos jornalísticos,
reconhecendo-os como construções sócio-históricas, consideramos que esses não
se restringem a textos caracterizados por uma estrutura composto de palavras ou
por marcas e traços de estilo de um jornalista que assume a autoria do texto.
Para a constituição do corpus a ser analisado nesta pesquisa, partimos do
princípio de que o texto jornalístico é um lugar privilegiado para a identificação de
vozes sociais construídas e perpetuadas sociohistoricamente. Assim sendo,
77
privilegiamos o trabalho de identificação e de seleção de reportagens de jornais de
circulação nacional ou estadual em que estivessem implicadas situações sociais que
envolvesse na prática religiosa da Umbanda e do Candomblé. Nesse sentido,
realizamos um levantamento de reportagens em que, preferencialmente, estivessem
vinculadas a práticas enunciativas que, de algum modo, predicassem ou se
referissem às religiões e aos seus praticantes.
Como visto no capítulo dedicado aos fundamentos sociohistóricos, dentre
as religiões de matriz africana presentes no Brasil, a Umbanda e o Candomblé,
foram escolhidas por se constituírem as religiões com maior quantidade de adeptos
e terreiros do Brasil, especialmente na região sudeste.
No processo de constituição dos dados apresentados para análise, foram
coletadas reportagens de jornais de grande circulação para constituição do corpus
da pesquisa.
A seleção dos textos jornalísticos a serem analisados se deu a partir do
processo de identificação, online, de um vasto volume de material, produzido e
veiculado na mídia corporativa, mais especificamente em jornais de grande
circulação, inicialmente entre os anos de 2014 e 2019.
Do volume de publicações encontradas no período especificado,
coletamos notícias publicadas, mais especificamente, nos jornais O Globo,
Estadão, O Tempo, Jornal Extra, Folha de São Paulo, A tarde, e El País Brasil,
Jornal Correio da Bahia e Folha de Minas Gerais e no portal de notícias G1.
Para efeito de composição geral do corpus, que constituiu a fase
preliminar da pesquisa, foram reunidas notícias publicadas, mais precisamente, de
setembro de 2014 a agosto de 2019, totalizando 53 (cinquenta e três) reportagens.
Esse conjunto revelou-se caracterizado com a seguinte configuração, em termos do
número de reportagens e estado por veículo de comunicação:
15 (quinze) reportagens identificadas no jornal O Globo (RJ);
3 (três) no jornal Extra (RJ);
5 (cinco) no portal de notícias G1 (RJ);
10 (dez) do jornal Estadão (SP);
1 (uma) no jornal Folha de São Paulo (SP);
1 (uma) no jornal A Tarde (SP);
13 (treze) no jornal O Tempo (MG);
78
3 (três) reportagens do jornal Estado de Minas Gerais (MG);
1 (uma) no jornal El País Brasil (Brasília);
1 (uma) reportagem do Jornal Correio da Bahia (BA).
Os textos foram coletadas, exclusivamente, através da versão online dos
respectivos jornais. Para essa coleta, foram utilizadas as palavras-chave ―Umbanda‖,
―Candomblé‖, ―terreiro‖, ―religião‖, ―religiões afro-brasileiras‖, ―religiões de matriz
africana‖, ―religiosidade‖, ―intolerância religiosa‖, ―preconceito religioso‖, ―orixás‖.
Todas as reportagens encontradas, no site oficial de cada jornal, foram lidas e, como
critério, selecionadas somente as que tratavam de algum fato relacionado
diretamente à Umbanda e ao Candomblé e seus adeptos.
No conjunto, as notícias selecionadas, preliminarmente, relatam
ocorrências de agressões de diversos tipos contra adeptos do Candomblé e da
Umbanda, invasão, depredação e destruição parcial ou total de terreiros, imagens e
objetos sagrados para os adeptos dessas religiões. Esclarecemos que, apesar de
assim caracterizadas, não estabelecemos como critério coletar notícias que
reportassem somente práticas sociais intolerantes em relação às religiões já citadas.
Os casos de intolerância relatados ocorreram em todo o Brasil, envolvendo cidadãos
de diferentes idades e diferentes gêneros (homem e mulher). Além disso, como
buscaremos explicitar, capítulo de análise, os sujeitos acusados de serem os
agressores são referenciados e predicados como integrantes de diferentes
denominações religiosas, diferentes cidades do país, idades distintas. Esse
elemento, constitutivo do corpus, nos permite identificar e reconhecer uma
pluralidade de ideias e de perspectivas, em termos predicativos, de categorização,
do objetivo de discurso referenciado, em estudo: Umbanda e o Candomblé.
Das 53 reportagens selecionadas, em um primeiro momento, 9 (nove)
foram excluídas, após uma leitura atenta. Isso se deu por se tratarem de textos em
―réplica‖, ou seja, que focalizavam um mesmo caso já relatado em outra reportagem,
de outro jornal, e sem acréscimo de informações.
Tendo realizado uma leitura minuciosa do conjunto de textos jornalístico
selecionados, em busca de promover uma reestruturação do corpus, dos 53 textos
que o constituíram, previamente, em um segundo momento, foram selecionados 17
(dezessete) para o processo de análise, priorizando dois jornais de grande
circulação nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Bahia, a saber:
79
O Globo, Jornal Extra, Estadão, Folha de São Paulo, A Tarde, O Tempo, Jornal
Estado de Minas Gerais, El País Brasil e Jornal Correio da Bahia.
Os jornais dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais
foram selecionados pelo fato de as duas religiões (Umbanda e Candomblé)
possuírem maior número de adeptos e de terreiros na região sudeste do Brasil. O
jornal da Bahia, por se tratar do estado em que as religiões referenciadas possuem
forte e reconhecida influência na matriz e dinâmica sociocultural desse estado.
Os textos jornalísticos definidos para análise foram selecionados por
serem representativos de jornais de circulação diária ou semanal, com alcance de
um público amplo, seja em sua versão impressa ou digital. Para definição das
reportagens a serem selecionadas, tanto preliminarmente (53 textos) quanto no
segundo momento (17 textos), os critérios foram simples e objetivos.
No processo de constituição do corpus, não houve predileção na escolha
de um jornalista, em particular, que tenha escrito/assinado a reportagem, nem de
identificação à priori da pessoa ou instituição que cometeu algum ato infracional ou
intolerante em relação às respectivas religiões afro-brasileiras. Além disso, os textos
em questão não aparecem, necessariamente, como matéria de destaque no dia da
publicação.
O critério utilizado como fator de inclusão da reportagem no corpus, além
da busca temática, foi o do recorte temporal. Na fase preliminar, a data de
publicação da reportagem observou o critério dos últimos cinco anos.
A metodologia de análise dos dados constituintes da pesquisa se deu
pela análise dos dados coletados nas reportagens de forma a identificar a dinâmica
do processo de Referenciação em que a Umbanda e o Candomblé são objetos de
discurso referenciados e categorizados (predicados), ou seja, de forma a descrever
os diferentes modos de se referir, de nomear Umbanda, Candomblé, seus adeptos,
divindades e objetos ligados a tais religiões.
Por meio da sistematização dos dados constituídos para a pesquisa,
acreditamos ser possível sugerir compreensão acerca do modo como a sociedade,
ainda nos dias atuais, se referem às religiões afro-brasileiras, com ecos da forma
como historicamente essas religiões foram criadas e sobreviveram no país. Através
da análise do processe de Referenciação dessas religiões na mídia jornalística
corporativa, pretendemos contribuir para a compreensão de como o processo
80
histórico de construção de tais religiões no território brasileiro leva a esse ―modo‖ de
se referir às mesmas e, como proposto na hipótese desta pesquisa, como isso se dá
na forma de metáforas que estruturam o modo como as religiões (seus adeptos, seu
espaço sagrado, os terreiros suas divindades) são compreendidas socialmente. E,
dessa forma, tentar contribuir para uma discussão sobre como esse modo de
referenciar e de predicar pode interferir na relação inter-religiosa ou das religiões
com a sociedade civil, obtendo como resultado o processo de estigmatização não só
das religiões de matriz africana como de seus adeptos.
As matérias selecionadas para análise, em geral, tratam de casos de
agressão física contra adeptos de religiões de matriz africana; de agressões verbais
e patrimoniais, que ocorrem quando há invasão e destruição parcial ou total do
terreiro e/ou objetos sagrados por questões religiosas. Entre os textos jornalísticos
selecionados, porém, não há unicamente matérias relacionadas à agressão às duas
religiões, há também relatos de comissões realizadas entre líderes de diferentes
segmentos religiosos que se reúnem na tentativa de diminuir ou acabar com as
divergências religiosas existente, há movimentos em prol da igualdade religiosa,
dentre outros assuntos relacionados à extinção de práticas de coibição de qualquer
culto religioso.
Há, nas matérias publicadas, também, a referência a fato ocorrido contra
adeptos ou templos de religião africana; os fins pelos quais ocorreram as agressões;
se houve envolvimento ou não do poder público através da polícia, Ministério
Público, ou envolvimento de alguma ONG relacionada com a defesa do direito a
liberdade religiosa. Como pretendemos descrever, é possível encontrar, no conjunto
dos textos selecionados, destaque de frases direcionadas aos umbandistas ou
candomblecistas, indicando o modo social de se referir a tais pessoas ou à crença
religiosa à qual os mesmos pertencem, de maneira ofensiva, pejorativa.
No próximo capítulo, passaremos à análise dos dados constituídos a
partir do corpus da pesquisa. A apresentação e análise dos dados serão realizadas
em uma seção, que foi intitulada Estratégias discursivas comuns às cenas
jornalísticas de 2018 e 2019.
81
Capitulo 5
ANÁLISE DE DADOS
5.1 A Umbanda e o Candomblé na cena jornalística brasileira
No decorrer do trabalho foram apresentadas as perspectivas históricas e
sociais do ―surgimento‖ da Umbanda e do Candomblé como religiões brasileiras.
Além disso, os fundamentos teóricos que optamos assumir para o processo de
análise dos dados da pesquisa. Isso inclui as concepções de linguagem, língua,
enunciação, discurso, texto, uma discussão acerca do caracteriza, no domínio do
discurso jornalístico, uma notícia, e as teorias do processo de referenciação e de
metaforização que adotamos.
Esse quadro teórico servirá como base para compreensão que
apresentaremos a seguir a partir do que identificamos nas reportagens selecionadas
como corpus para análise do presente trabalho. No capítulo anterior,foram
apresentados os fundamentos metodológicos, a fim de contextualizar como se deu a
seleção, coleta e escolha dos dados a serem analisados na presente pesquisa.
O cerne deste trabalho recai sobre práticas referenciais e metafóricas no
processo discursivo acerca da Umbanda e do Candomblé na atualidade, na
sociedade brasileira, mais precisamente como estas religiões são referidas no
domínio discursivo jornalístico, produzido na mídia corporativa, empresarial,
nacional. Nesse contexto discursivo, pretendemos investigar como os jornais
preconizam ou apresentam, em seu discurso, a Umbanda e o Candomblé, e, nessa
medida, como essas religiões estão referenciadas na cena jornalística brasileira nos
anos de 2018 e 2019.
Antes de apresentarmos argumentos que objetivam delinear a forma
como a Umbanda e o Candomblé formam a cena jornalística brasileira nos dois anos
que antecederam este relatório de pesquisa, iremos analisar duas notícias que
compões o corpus da mesma, uma de 2018 e outra de 2019. Esta análise tem por
objetivo descrever o processo de Referenciação e de Metaforização que constitui os
textos jornalísticos em questão.
82
Em uma reportagem publicada no dia 16 de novembro de 2018 há o
relato de intolerância religiosa por parte de um zelador umbandista, o mesmo relata
que os integrantes de seu terreiro estavam realizando uma cerimônia religiosa em
um cemitério da cidade de Niterói, quando o grupo foi interrompido por evangélicos
que gritavam: ―macumbeiros, capeta, macumbeiros têm que morrer‖; ―tá amarrado
em nome de Jesus‖; ―tem que expulsar porque é demônio‖; e ―Queima eles
Satanás‖. Nessa reportagem, podemos perceber a referenciação a religião de matriz
africana com uso de predicações como capeta, demônio, macumbeiro. A associação
feita entre as religiões afro-brasileiras e entidades ou seres associados ao mal é
notável, ou mesmo o uso do termo ―macumbeiro‖ para se referir aos adeptos da
Umbanda ou do Candomblé tornou-se algo corriqueiro, tendo o termo ganhado novo
significado no meio social que desconhece o verdadeiro sentido da palavra
―macumba‖. Pode-se verificar a luta ou guerra entre o bem, representado pelos
evangélicos e suas crenças e o mal, que está representado pelos umbandistas e a
necessidade de se exterminar o mal do mundo, e pode-se fazer isso exterminando
as religiões de matriz africana, que seriam um dos meios de ação do mal na terra.
Em uma reportagem publicada no dia 28, de maio de 2019, membros de
um terreiro de Candomblé localizado em Alagoinha – BA relatam terem sido vitimas
de intolerância religiosa por parte de um grupo de evangélicos, que gritavam
"Satanás vai morrer" e "Vamos invocar Jesus para fechar a casa de Satanás", além
de bater com uma bíblia na porta do terreiro. De acordo com o caso relatado, o
processo referencial nos possibilita verificar uma associação da religião afro-
brasileira com Satanás e o terreiro como sendo a casa de Satanás, ou seja, a casa
do mal, de coisas ruins. Podemos verificar uma referencia pejorativa em relação ao
Candomblé como religião e ao terreiro propriamente dito enquanto local onde o mal
habita, portanto que deve ser destruído. Nesse caso podemos ver uma metáfora
implícita, que seria representada pela luta do bem, no caso representado pelos
evangélicos e suas crenças, contra o mal, representado pelo Candomblé, seus
adeptos e seu local de culto, que precisam ser reconhecido, subjugado e destruído
para que o bem possa prevalecer, o bem estando representado pela verdade
estabelecida nas igrejas evangélicas. Pode-se perceber que os integrantes da igreja
evangélica tomam a sua verdade e a sua palavra como verdade universal e
pretende instaurar no mundo essa verdade.
83
5.1.1 Estratégias discursivas comuns às cenas jornalísticas de 2018 e 2019
O cerne desse trabalho recai sobre as práticas discursivas, referenciais e
metafóricas acerca das religiões afro-brasileiras, mais especificamente a Umbanda e
o Candomblé no contexto jornalístico brasileiro. Neste momento, buscaremos
formular em linhas gerais estratégias discursivas comuns às cenas jornalísticas que
referenciam a Umbanda e o Candomblé nos anos de 2018 e de
Para isso, selecionamos, do ano de 2018, 8 (oito) reportagens que
noticiam situações envolvendo a Umbanda, o Candomblé, seus adeptos e/ou outros
elementos ligados diretamente a essas religiões. Dessas reportagens, serão
apresentados excertos, com a finalidade de ilustrar os argumentos que sustentam a
análise 2019.
Uma análise do conjunto das notícias publicadas em 2018 e 2019 nos
permite observar alguns pontos em comuns na forma como as religiões são
referenciadas. O primeiro ponto em comum é o fato de ser verificável a presença da
expressão ―intolerância religiosa‖ em todos os jornalísticos. O que pode-se verificar
nas reportagens coletadas foi a constante repetição de termos como vítimas,
intolerância, combate. Tal expressão pode ser identificada em diferentes momentos
(partes) do texto. Em alguns deles, na manchete, no título ou subtítulo, da notícia,
como pode ser comprovado, ilustrativamente, nas figuras 1 e 2, em destaque a
seguir:
84
Figura 1
(Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/umbandistas-pedem-ao-mp-abertura-de-acao-
penal-contra-evangelicos-por-intolerancia-23239517.htmlÚltimo acesso em 1 de junho de 2020.)
Como é possível observar, de maneira ilustrativa, a seguir, a mesma
estratégia se repete em manchetes de notícias do ano de 2019.
Figura 2
(Disponível em:https://oglobo.globo.com/sociedade/mpf-reune-babalao-pastores-evangelicos-para-
discutir-combate-intolerancia-religiosa-23795458Último acesso em 1 de junho de 2020.)
85
O objetivo comunicativo dessa estratégia discursiva, certamente, é o de
chamar a atenção do leitor para algum fato a ser narrado no texto que se segue.
Quando isso ocorre, já no título, há uma repetição constante da palavra intolerância
no decorrer do percurso argumentativo. Essa repetição ocorre sempre que o
jornalista quer evidenciar um ato praticado por um sujeito social (um cidadão
agressivo) a outro sujeito social (vítima da agressão), reconhecido socialmente como
membro da Umbanda ou Candomblé, ou a algum terreiro.
Na reportagem publicada pelo jornal Extra no dia 16 de novembro de
2018, a palavra ―intolerância‖ já aparece logo na manchete da reportagem para que
possa chamar a atenção do leitor para o fato ocorrido ―Umbandistas pedem ao MP
abertura de ação penal contra evangélicos por intolerância‖. Podemos perceber isso em
algumas passagens da reportagem: ―O babalaô Ivanir dos Santos, interlocutor da
Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, deu entrada com uma
representação criminal junto ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
(MPRJ) pedindo a instauração de ação penal para apurar responsabilidades criminal
de integrantes da Igreja Ministério Redenção, no bairro do Barreto, em Niterói. O
grupo é acusado pelos umbandistas de formação de quadrilha, perturbação de culto
e intolerância religiosa. [...]Na página da igreja no Facebook há várias mensagens
de repúdio contra a ação dos evengélicos. ―Intolerância é o que vocês pregam, não
tem um pingo de amor ao próximo, e respeito com as demais religiões‖, postou uma
internauta. ―Péssimo! Intolerância religiosa é CRIME, espero que saibam disso!
Difundem o verdadeiro significado do evangélico e afastam pessoas da sua própria
religião por serem ignorantes‖, escreveu outra.‖
Outro elemento a ser observado, apesar da diferença de tempo de
publicação entre os textos, é o fato de a fotografia, publicada em primeiro plano em
ambos, representar em o diálogo entre sujeitos sociais que, em tese, buscam
enfrentar as dificuldades relativas à atitude social de intolerância religiosas. Em
ambas, aparecem, em primeiro plano, lideranças das religiões de matriz africana e
representantes do Ministério Público. Entre a manchete e a imagem parece se
estabelecer uma contraposição argumentativa: de um lado, sendo a manchete
constituída de orações curtas, chamativas e apelativas para o que o jornalista
pretende transmitir ao leitor do jornal. Verifica-se que já nas manchetes há o uso
86
insistente do termo intolerância religiosa, ou algum termo que dê ideia de vítimas,
combate, agressão.
No processo de estruturação discursiva do conjunto de notícias, em
análise, é possível observar também a constante utilização de termos ou expressões
como ―perturbação de culto‖, ―crime‖, ―discriminação religiosa‖, ―ataque‖, ―invasão‖,
―preconceito‖, ―violação à liberdade religiosa‖, entre outros. Na constituição da
reportagem, podemos notar que quando há o emprego de uma foto para ilustrar o
fato narrado, sempre há foto de um adepto da Umbanda ou Candomblé, ou um
terreiro destruído, um sacerdote de uma dessas duas religiões como centro da
imagem, para que seja claro a quem a reportagem se refere.
Na reportagem publicada no dia 18 de agosto de 2019 pelo jornal
Estadão, podemos verificar ainda no titulo da mesma os seguintes dizeres: ―Polícia
prende ‗Bonde de Jesus‘ que ataca terreiros de Umbanda e Candomblé‖. Excertos
como esse que foi destacado no titulo da reportagem são muito comuns nas
reportagens encontradas que relatam algum fato relacionado às religiões afro-
brasileiras. Ainda no primeiro parágrafo da mesma reportagem podemos identificar a
expressão intolerância religiosa e novamente ataque: ―Os registros de intolerância
religiosa são comuns Brasil afora, mas no Rio têm uma característica particular:
passaram a envolver traficantes e evangélicos. Após ataques a terreiros de
umbanda e candomblé na Baixada Fluminense. [...] ‗Qualquer ataque com
contornos de destruição do sagrado tem caráter de racismo religioso‘, diz a
defensora Livia Cásseres, do núcleo contra a desigualdade racial da Defensoria
Pública. "À violência que já existe contra essas religiões - que têm uma série de
direitos negados -, se soma agora a do varejo de drogas. Mas a violência contra
elas é permanente desde a época colonial." Por isso, para Livia, a solução passa por
diferentes esferas.‖
Uma estratégia comum aos textos de natureza jornalística, o discurso
reportado, é utilizada de forma regular e particular no conjunto de textos analisados.
Os jornalistas responsáveis pelas matérias optam por, no decorrer dos relatos,
criarem uma alternância entre o fato narrado e argumentações de ordem legal. Isso
ocorre na forma de menção à alguma lei, estatuto ou artigo da constituição federal
que garante liberdade religiosa, liberdade de culto, ou que reforça o fato ocorrido
como sendo um ato de discriminação, racismo ou intolerância religiosa.
87
Na reportagem citada anteriormente que foi publicada pelo jornal Extra no
dia 16 de novembro de 2018, são citadas duas leis que amparam a parte queixosa
de intolerância. Na referida reportagem, no penúltimo parágrafo podemos encontrar
a seguinte colocação: ―Na denúncia, os umbandistas argumentam que a lei
orgânica do município de Niterói prevê que nos cemitérios públicos da cidade são
permitidas todas as confissões religiosas, bem como as práticas dos seus ritos. Além
disso, a Lei 3.089 de 26 de junho de 2014 declara a umbanda como patrimônio
imaterial daquele município.‖ Outro exemplo que pode ser citado ainda sobre as
representações legais de igualdade e liberdade religiosa está na reportagem
publicada pelo jornal Estadão no dia 08 de dezembro de 2018, que foi intitulada
―Liberdade religiosa, direito ameaçado‖, onde no decorrer da reportagem o jornalista
cita a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que garante o direito a liberdade
religiosa. Na referida reportagem podemos verificar as seguintes colocações: ―O
artigo 18 da Declaração da ONU estabelece que “toda pessoa tem direito à
liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de
mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença,
pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente,
em público ou em particular”. No Brasil, a Constituição de 1988 consolidou a
liberdade de crença e de culto nos artigos 5.º e 19, e na Lei n.º 7.716, de 1989,
que configura como crime a discriminação por raça, cor, etnia, religião ou
nacionalidade.‖
Ao analisar o conjunto de reportagens, podemos observar o que Koch
ressalta ao dizer que o emprego de uma descrição nominal, com a função de
categorizar ou recategorizar um referente, sempre implicará na escolha entre uma
multiplicidade de formas de categorização do referente, sendo que esta escolha
sempre será feita, em cada contexto, segundo a proposta de sentido do produtor do
texto. Na análise do corpus, observamos que, em uma gama de possibilidades de
categorização,para se referir às religiões afro-brasileiras, a escolha da categoria
usada para realizar a referenciação se dará de acordo com o que o enunciador em
questão (o jornalista, um entrevistado, a autoridade legal) pretende construir como
sentido. Dessa forma, é possível afirmar que, na construção do sentido, precisamos
considerar o contexto de produção e o público que se deseja atingir, ao usar
determinada categoria em ver de outra.
88
Segundo Koch, não é difícil constatar que o emprego de expressões
nominais anafóricas opera a recategorização dos objetos de discurso, ou seja, de
forma que tais objetos, ao longo do texto, serão reconstruídos de determinada
forma, o que atenderá aos propósitos comunicativos do falante.
Para ilustrar esse argumento, podemos identificar, na reportagem
publicada no dia 16 de novembro de 2018, uma associação legal dos atos
praticados pela igreja Ministério Redenção como formação de quadrilha. Para
construir essa predicação, a matéria cita a Lei Orgânica Municipal do Rio de Janeiro
para evidenciar que o ato dos membros da igreja é crime. Na referida reportagem,
há menção a falas dos membros da igreja mencionada, em que os mesmos se
referem aos membros de um terreiro de Umbanda como ―Macumbeiros, capeta,
macumbeiros têm que morrer, tá amarrado em nome de Jesus‖. Esses excertos
podem ilustrar a colocação de Koch com relação ao emprego de expressões
nominais anafóricas que são usadas para categorizar ou recategorizar os objetos do
discurso.
O objeto do discurso na referida situação é a Umbanda e o Candomblé,
onde uma igreja evangélica se refere às mesmas como ―macumbeiros, capeta
(fazendo alusão ao mal que as religiões provavelmente representam ao mundo).
Esses são expressões nominais usadas constantemente quando alguns grupos
religiosos se referem às religiões de matriz africana, seus adeptos e seus locais de
culto.
No conjunto dos textos analisados, a repetição de expressões que
categorizam (referenciam e predicam) os atos narrados pelos jornalistas, além do
uso da expressão intolerância religiosa, que ocorre nas oito reportagens publicadas
em 2018, também se dá pela menção a órgãos de proteção e combate à prática de
intolerância religiosa e o uso de estatísticas para dar maior credibilidade ao que já foi
evidenciado anteriormente. Isso pode se comprovado na reportagem publicada em
19 de novembro, em que o jornal evidencia que houve o aumento de 17,5% no ano
de 2018 na notificação de denúncias de agressão contra adeptos das religiões de
matriz africana.
O uso de expressões anafóricas para se referir as religiões afro-brasileiras
ou a repetição constante da expressão intolerância religiosa podem ser verificadas
nos próprios títulos das reportagens. Em relação aos dados referentes ao aumento
89
de denuncias de agressão contra adeptos da Umbanda e do Candomblé ou de
invasão de terreiros pode ser verificados na reportagem publicada no dia 05 de
junho de 2019, em que no decorrer da reportagem são mostrados dados referentes
a denuncias. Pode-se verificar na mesma os seguintes dados: ―Entre 2011 e 2017,
as denúncias de discriminação por motivo religioso no Brasil cresceram de 15 para
537. Os dados mais recentes do Disque 100 totalizam apenas o primeiro semestre
de 2018, quando foram registradas 210 denúncias. Quase 60% dos casos de
intolerância religiosa contra adeptos de religiões de matriz africana foram registrados
no Rio de Janeiro (117), São Paulo (95), Bahia (56) e Minas Gerais (51). No entanto,
de acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, onde está
localizado o terreiro de Claudia, 6.324 boletins de ocorrência com casos de
intolerância religiosa foram registrados no estado nos dois últimos anos. [...]Segundo
dados do Disque 100 acessados pela Gênero e Número e pelo DataLabe, 59% do
total de casos registrados de 2011 a junho de 2018 eram referentes a religiões como
a umbanda e o candomblé; 20% a religiões evangélicas; 11% a espíritas; 8% a
católicos; e 2% a ateus.‖ Abaixo podemos ver um gráfico apresentado pela referida
reportagem:
Outro ponto a ser observado é o fato de os adeptos da Umbanda e do
Candomblé serem sempre referidos como vítimas nos casos narrados. Tal fato
parece ocorrer por dois motivos. Primeiramente, porque os adeptos dessas religiões,
na vida social, historicamente, continuam sendo alvo de atos de vandalismo contra
os terreiros, o seu território sagrado, suas casas, seu patrimônio físico (suas vestes)
e imaterial (seus rituais). Em segundo lugar, por serem vítimas da falta de
compromisso e atitude do estado em relação aos seus direitos institucionais. Isso
pode ser observado uma vez que, no conjunto dos textos analisados, identificamos o
relato de que a policia foi chamada a algum local de agressão ou invasão e a
mesma não compareceu, ou quando não há uma tomada de atitude real e eficaz
para se prevenir ou acabar com os atos de ―intolerância religiosa‖.
Alguns exemplos do que foi dito anteriormente podem ser verificados
primeiro nos títulos das reportagens: ―Umbandistas pedem ao MP abertura de ação
penal contra evangélicos por intolerância”, “Aumenta número de denúncias de
discriminação contra adeptos de religiões de matriz africana em 2018 no país”,
“Feliciano diz que ataque a menina do candomblé é 'barbaridade'‖. Os adeptos da
90
Umbanda e do Candomblé, bem como os terreiros esculturas, estatuas presentes
em locais públicos são sempre relatados como vítimas de ataques, perseguição,
violência, injuria religiosa.
Um fato comum, associado ao contexto social descrito pelas reportagens,
é a falta de preparo da polícia militar e civil para lidar com casos de violência contra
templos religiosos ou adeptos de qualquer religião, além da falta de um registro
específico nos boletins de ocorrência para crimes cometidos contra instituições
religiosas. Esse fato, identificado no conjunto dos textos analisados, nos permite
concluir que, ao se reportar formas de violência de que são vítimas adeptos e
lideranças da Umbanda e do Candomblé, esses são referenciados como sujeitos
sociais que não encontram, nas autoridades policiais, a garantia dos seus direitos.
Na reportagem intitulada ―O problema da heterogeneidade dos dados‖,
que foi publicada no dia 10 de fevereiro de 2018, logo no início da reportagem há a
seguinte colocação: ―Os estados brasileiros não possuem uma base estatística
consolidada e uniforme sobre boletins de ocorrências (BOs) envolvendo casos de
intolerância religiosa no país‖. Um pouco mais a frente temos: ―A sistematização das
informações sobre intolerância religiosa é heterogênea nos estados, sendo que
nenhuma base de dados disponibilizada revela a religião da vítima e, apenas em
alguns casos, como no Distrito Federal e na Bahia, trazem dados de gênero e raça
dos denunciantes.‖ A mesma reportagem revela que ―Durante o atendimento às
vítimas, casos mais delicados demandam agentes de segurança pública com algum
tipo de treinamento para lidar melhor com a situação. O deputado Átila Nunes cita o
caso de um babalorixá que teve sua casa invadida e depredada, e que, depois de
muito esperar para concluir o registro, viu o agente se recusando a entrar no terreiro
para fazer a perícia da cena do crime.”
Neste sentido, vale lembrar Ducrot (1984, p. 418 - 437). Para o
pesquisador, no processamento discursivo, o referente não é a realidade
propriamente dita, mas sim a realidade a qual a ato de referenciar tenciona
descrever ou transformar, ou seja, o referente é uma realidade do discurso. O
referente utilizado no discurso oral ou escrito para dizer algo da Umbanda ou do
Candomblé não nos dirá da realidade em si, mas sim do que o produtor do discurso
pretende transformar ou tencionar. Assim sendo, devemos destacara que, na análise
que realizamos do corpus constituído para a pesquisa, a realidade apresentada nos
91
fatos relatados é fruto de um ponto de vista, ou seja, está vinculada ao que o
jornalista nos apresenta. Dito de outra maneira, no discurso jornalístico, há um
recorte da realidade em os fatos apresentados estão associados ao que o jornalista
quis apresentar ao escrever a reportagem, não havendo, muitas vezes, possibilidade
de todas as partes envolvidas nos fatos relatados apresentarem a sua versão para o
ocorrido. O jornalista expõe aquilo que lhe é mais conveniente e o faz para
convencer o leitor do que ele ou o jornal quer instituir como verídico.
Vários artigos da constituição federal, assim como a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, Leis Estaduais estão citados, no conjunto das notícias
analisadas, para esclarecer ou evidenciar como questões legais e jurídicas podem
punir atos contra religiões, seus templos ou praticantes. Pode-se observar, de
acordo com os relatos realizados nas reportagens, por diferentes enunciadores, a
associação dos cultos afro-brasileiros com ―demônios‖. Entre os textos analisados,
em reportagem publicada no dia 17 de junho de 2018, é possível identificar a fala de
um enunciador, referenciado como agressor, que interpela adeptos da Umbanda e
do Candomblé de maneira agressiva, desrespeitosa, violenta.
Em uma reportagem publicada pelo jornal Estadão no dia 17 de junho de
2018, intitulada ―Feliciano diz que ataque a menina do candomblé é
'barbaridade'”, relata o fato de uma menina que foi apedrejada na cabeça após sair
de um terreiro de Candomblé vestida com trajes típicos da religião: ―A menina, de 11
anos, caminhava pela Avenida Meriti, acompanhada por sete pessoas que haviam
saído de um evento religioso, quando dois homens que estavam em um ponto de
ônibus do outro lado da rua, com Bíblias sob os braços, começaram a insultá-los.
Segundo a avó, os agressores gritaram "Sai, demônio, vão queimar no inferno,
macumbeiros" e lançaram a pedra, que bateu em um poste antes de atingir a
menina. Ela desmaiou. Os criminosos fugiram em um ônibus. [...]Embora logo após
o ataque houvesse decidido não sair mais às ruas com roupas brancas e o torso
(turbante) característico dos candomblecistas, a estudante mudou de ideia, ao ser
incentivada a continuar se vestindo dessa forma.Nesta terça, ela foi ao IML trajada
com vestes religiosas, acompanhada pela avó, a mãe de santo Katia Marinho, de 53
anos, e pela mãe, que é evangélica”
Outro exemplo é o que foi publicado na reportagem intitulada ―Fé
desrespeitada: A dificuldade no combate à intolerância religiosa‖, publicada no dia
92
16 de novembro de 2018, onde há o seguinte relato: ―Durante anos, os sábados de
Marco Antônio Pinho Xavier, presidente do Movimento Umbanda do Amanhã (Muda)
e liderança à frente da Tenda Espírita Caboclo Flexeiro, em Santíssimo, no Rio,
foram repletos de agressões. Nos dias de celebração, ele encontrava as janelas e
altares do terreiro quebrados e as portas sujas de óleo e sal. Também era xingado
pelos ocupantes do segundo andar do imóvel apenas por professar sua fé. [...] No
feriado de finados, no último dia 2, muitas pessoas prestavam suas homenagens
aos mortos em todo país. Em Niterói, adeptos de religiões de matriz africana foram
impedidos de fazer um culto aos seus ancestrais por um grupo de evangélicos, sob
gritos de “Capetas! Macumbeiros têm que morrer. Na confusão, que aconteceu no
Cemitério Maruí Grande, o umbandista Allan Souza, que incorporava uma divindade,
teria sido agredido a tapas na cabeça.‖
Outro aspecto comum aos textos jornalísticos analisados é que, no ato de
reportar os fatos, na forma de notícia, raramente, a voz é dada àqueles que
supostamente agrediram algum adepto da Umbanda ou do Candomblé, ou alguém
que invadiu algum terreiro. Na grande maior parte dos textos, a voz identificada ou é
a do jornalista responsável pela matéria publicada ou a de algum umbandista,
candomblecista ou em alguns poucos casos algum representante de órgãos públicos
como a policia militar e civil, advogados ou representantes do Ministério Público.
Há sempre nas reportagens a voz do jornalista que relata os fatos
ocorridos, em algumas circunstancias pode-se perceber também a voz de algum
representante legal como um policial, político, representante do Ministério Público ou
de alguma prefeitura, comissão relacionada aos direitos humanos ou de combate a
intolerância religiosa, e quando há entrevista com alguma das partes envolvidas no
caso relatado na reportagem, sempre quem aparece é o agredido e não o agressor,
mesmo que para dar alguma explicação ou confirmação se realmente algo.
Uma exceção a essa regra está em uma reportagem, publicada em 09 de
julho de 2018, em que é possível identificar a menção de uma reunião de líderes
religiosos, promovida pelo Ministério Público Federal com a finalidade de discutir a
intolerância religiosa e a violência contra terreiros. Na referida matéria, o jornalista
destaca que uma pastora de uma igreja evangélica diz que, ainda, há muito ódio
contra as religiões de matriz africana e que ela já está pregando em sua igreja
mensagens de respeitos e tolerância. Na mesma matéria, é possível identificar a voz
93
reportada de um pastor de outra igreja evangélica que teve a oportunidade de falar
da importância de traçar estratégias de enfrentamento à violência contra a Umbanda
e o Candomblé. A reportagem citada se encontra com o titulo ―MPF reúne babalaô
e pastores evangélicos para discutir combate à intolerância religiosa.‖, e inicia-
se com o seguinte relato: ―O Ministério Público Federal (MPF) sediou nesta terça-
feira um encontro inédito entre pastores evangélicos, promovido pela Comissão de
Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) e organizado pelo babalaô Ivair dos
Santos. A reunião ocorreu na sede do órgão, no Centro do Rio. A perspectiva é que
a reunião seja um ponto de partida para traçar estratégias que inibam episódios de
violência. O crescimento expressivo de ataques contra terreiros por parte do tráfico
de drogas, especialmente na Baixada Fluminense, tem chamado a atenção do
MPF.‖
No mais, não é possível se ter acesso a outras versões dos fatos
relatados, muito menos foi dado o direito de resposta a qualquer pessoa ou
instituição que não fosse o próprio jornalista redator da matéria publicada, a possível
vítima ou algum órgão publico envolvidos nas investigações de agressão ou
violência a terreiros ou adeptos das religiões de matriz africana.
A partir deste momento, exploraremos as reportagens publicadas no ano
de 2019, veiculadas nos jornais citados anteriormente. Foram selecionadas 10 (dez)
reportagens, publicadas no referido ano. A partir da análise desse conjunto de
textos, serão descritos pontos comuns ao processo de estruturação discursiva das
mesmas.
Não muito diferente do que foi possível perceber na cena jornalística do
ano de 2018, nas reportagens publicadas em 2019, também houve uma intensa
repetição de termos como intolerância, discriminação, preconceito, racismo religioso,
ataque, dentre outros termos utilizados insistentemente. Salvo a exceção duas
reportagens. A primeira, publicada em 11 de fevereiro, trata do tombamento de
terreiros presentes na cidade de São Paulo e de que foram tombadas como
patrimônio cultural pelo Conselho de Defesa Histórico, Arqueológico, Artístico e
Turístico. Além disso, do fato de que, na cidade de São Bernardo do Campo, houve
a criação do Santuário Nacional da Umbanda, que foi apelidado de Meca
Umbandista. A segunda reportagem, publicada em 28 de março, trata de um projeto
de lei que foi votado no Supremo Tribunal Federal tratando da descriminalização do
94
sacrifício de animais pelas religiões de matriz africana. A exceção destas duas
reportagens, que não trazem casos de agressão ou intolerância, todas as demais
tematizam a violência contras as religiões de matriz africana.
Nas demais matérias veiculadas nos jornais, podemos observar, muito
frequentemente, expressões linguísticas (nos termos de Koch, objetos de discurso)
tais como ―intolerância religiosa‖, ―discriminação‖, ―racismo religioso‖, ―direitos
negados‖, ―ataques contra terreiros‖, para referenciar as religiões de matriz africana
e atos relacionados às mesmas.
Um aspecto diferente, a ser observado nos conjunto dos textos diz
respeito às metáforas utilizadas para descrever situações enfrentadas por adeptos
das religiões. Entre essas, em notícia publicada em 18 de agosto, a respeito do
―Bonde de Jesus‖, grupo formado por traficantes convertidos, ainda dentro de
presídios e que, ao saírem dos mesmos, ao fim do cumprimento de suas penas,
voltam as suas casas para, além do tráfico de drogas, assumirem a disputa territorial
com os sacerdotes responsáveis por terreiros, dos quais, geralmente, são expulsos
e ameaçados. Na notícia, identificamos uma comparação entre a ação dos
traficantes e atos terroristas do estado islâmico no Oriente Médio, e o
fundamentalismo religioso que impera em tais ações.
Figura 4
Disponível em:
https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2019/08/18/interna_nacional,1078089/po
licia-prende-bonde-de-jesus-que-atacava-terreiros-de-umbanda-e-can.shtml
95
Nessa reportagem podemos identificar o seguinte relato: ―Segundo a
polícia, o mandante é Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, do Terceiro
Comando Puro (TCP), um dos criadores do Bonde de Jesus, vertente inédita da
intolerância religiosa no Estado. Estima-se que existam hoje 200 terreiros sob
ameaça. Os casos são investigados pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de
Intolerância (Decradi), criada em 2018. Investigações apontam que a peculiar
relação entre religiosos e criminosos aconteceu depois que a cúpula do TCP foi
convertida por uma igreja neopentecostal. Há informações, ainda não confirmadas,
de que Peixão teria sido ordenado pastor. Trata-se de uma característica específica
dessa facção, não sendo reproduzida nem pelos demais grupos de traficantes nem
por milicianos.‖ Na reportagem podemos verificar que o comandante de uma facção
criminosa no Rio de Janeiro que se converteu a uma igreja neopentecostal começou
a invadir terreiros, ameaçar os adeptos que frequentam esses terreiros que ficam na
área comandada pela facção criminosa.
E outras notícias, há o uso de expressões como ―Terreiros na mira‖, para
referenciar a violência contra os espaços sagrados das religiões de matriz africana.
Através dessa metáfora, é possível (re)criar a imagem de que essas religiões, como
historicamente ocorre, estão envolvidas em uma guerra. Nessa guerra, os terreiros e
seus frequentadores são os alvos daqueles que disputam território ou que praticam
o que os jornais, insistentemente, definem como intolerância religiosa. No decorrer
das reportagens usa-se muitos termos como invasão, violência, discriminação.
Como forma de verificarmos isso, podemos ler o subtítulo da reportagem que trás o
seguinte: ―Casos de intolerância contra religiões de matriz africana, maioria nos
registros do Disque 100, expõem disputas territoriais, escalada de violência
comandada pelo tráfico e racismo; falta de uniformidade nos dados evidencia
negligência de um Estado nada laico.” Logo no inicio da reportagem, há o seguinte
relato: ―o mais grave, segundo a ialorixá, foi o ingresso nos roncós (quartos
específicos para recolhimento dos filhos de santo), onde os agressores quebraram
louças, pertences e mexeram em objetos sagrados. ―Quando você percebe que foi
roubada, a sensação de violência é muito forte. Mas quando percebe o desrespeito
a uma casa de axé, é desolador‖, ela define. Claudia chamou a polícia diversas
vezes, mas nenhum agente compareceu ao local. Ela nunca conseguiu fazer o
boletim de ocorrência.‖
96
Em uma análise das notícias, no conjunto, podemos inferir que os
jornalistas, mesmo que indiretamente, responsabilizam parcialmente o estado por tal
situação. Essa inferência pode ser construída quando identificamos, nos textos,
afirmações que destacam que o estado não é de fato laico, uma vez que não
defende o direito constitucional da liberdade religiosa, e que, muitas vezes, é
negligente com os agressores.
Para comprovar a colocação feita anteriormente, podemos retomar a
reportagem intitulada ―Fé desrespeitada: a dificuldade no combate à intolerância
religiosa.‖ No decorrer da reportagem podemos verificar o seguinte excerto: ―Além
da subnotificação, o combate à intolerância religiosa tem um problema estrutural:
muitas das denúncias que são feitas ao Ministério dos Direitos Humanos acabam
não sendo apuradas porque não se registra de onde a vítima está falando. Em 2015,
63% das queixas recebidas não identificavam o local de origem. Esse percentual
vem caindo ano a ano, mas ainda estava em 30% no primeiro semestre de 2018.‖
Outro exemplo pode ser verificado na reportagem ―Terreiros na mira‖, quando a
Ialorixá Claudia Rosa relata que seu terreiro na Zona Leste de São Paulo foi
invadido, ―Ela nunca conseguiu fazer o boletim de ocorrência. Seu caso, portanto,
sequer entra na alarmante estatística que mostra que a maioria dos casos de
intolerância religiosa registrados pelo governo federal diz respeito a religiões de
matriz africana‖.
Nas notícias que compõem a cena jornalística de 2019, reportando
situações em que estão implicadas religiões de matriz africana, encontramos, com
muita frequência, dados estatísticos. Essa estratégia é utilizada para garantir
credibilidade ao que foi enunciado. Entre esses dados, destacam-se o aumento nos
registros de casos de intolerância religiosa através do número Disque 100. De
acordo com a matéria publicada em 05 de junho, por exemplo. Quase 60% dos
casos de intolerância religiosa ocorrem nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro,
Minas Gerais e Bahia. Há, de acordo com a mesma reportagem, uma perseguição
sistemática, e atitudes de racismo e intolerância contra a Umbanda e o Candomblé.
Os seguintes gráficos foram retirados de uma das reportagens que
compõem o corpus do presente relatório, reportagens que traz ao leitor dados
estatísticos levantados a partir de denuncias no Disque 100 sobre intolerância
97
religiosa no Brasil. A reportagem foi publicada no dia 05 de junho de 2019, sob o
titulo de ―Terreiros na mira‖ já citada anteriormente.
Figura 5
Figura 6
Outro fator que pode ser verificado nas reportagens da presente pesquisa
é que o que predomina, nas notícias analisadas, são as vozes dos jornalistas ou de
98
umbandistas e candomblecistas. Pode-se verificar isso na reportagem publicada
pelo jornal Extra no dia 16 de junho de 2018 sob o titulo ―Umbandistas pedem ao MP
abertura de ação penal contra evangélicos por intolerância‖, onde já no primeiro parágrafo
verifica-se a seguinte colocação: “O babalaô Ivanir dos Santos, interlocutor da
Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, deu entrada com uma
representação criminal junto ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
(MPRJ) pedindo a instauração de ação penal para apurar responsabilidades criminal
de integrantes da Igreja Ministério Redenção, no bairro do Barreto, em Niterói.”;
ainda na mesma reportagem há uma fala do babalaô: “—Não podemos permitir que
nossa crenças ultrapassem o direito religioso do outro. A fé, o modo de culto, ou de
expressar a religiosidade. A intolerância, a falta de alteridade e humanidade com
outro, que crê e é diferente, são os grandes entraves para a construção de uma
sociedade plural onde o respeito e a tolerância possam prevalecer.” Isso se repete
nas demais reportagens, onde o que se verifica são as vozes do jornalista
responsável pela reportagem e/ou a voz do umbandista ou candomblecista. Salve
exceção a reportagem do dia 17 de junho de 2018, onde Feliciano faz uma
declaração sobre uma garota apedrejada ao sair de um terreiro de Candomblé
vestida trajes típicos da religião, porém, nesse caso especificamente, Marcos
Feliciano faz sua declaração como deputado e não como líder religioso.
Quando identificamos a voz de alguém que não seja membro de uma
religião de matriz africana, quase sempre,essa voz tem a função de qualificar a
religião, de maneira negativa,pejorativa. Isso ocorre, por exemplo, na matéria
publicada no dia 10 de abril de 2019, quando é relatado o caso de um homem que
comparece ao local onde foi inaugurado uma estatua em homenagem a Ialorixá,
mãe Stella de Oxossi, e, referindo-se à homenagem a Ialorixá, cria um cenário
metafórico em que Deus puniria os praticantes das religiões de matriz africana e
seus adeptos. Nesta reportagem há um trecho da fala do referido homem que insulta
a estatua feita em homenagem a Ialorixá. Em sua declaração o rapaz diz o seguinte:
"Deus está irado, queridos. Eu estava buscando a presença de Deus e eu consegui
sentir a ira de Deus. Deus estava dizendo: 'Eu vou balançar a cidade de Salvador.
Eu vou balançar, aleluia, as lideranças de Salvador. Eu vou sacudir as lideranças de
Salvador"; "Queridos, a ira de Deus está sobre a terra. Deus está esperando
mudança e transformação do seu povo. Deus está procurando o povo unido. É
99
tempo da igreja se unir. Enquanto a briga, a contenta, a divisão entra no meio da
igreja, o diabo, o reino das trevas, acha espaço para isso aí", afirma, apontando para
as esculturas.‖ Porém, deve se ressaltar que a reportagem ao expor a fala do rapaz
não está de fato dando voz ao mesmo, e sim usando o que foi dito para exemplificar
o modo como as religiões de matriz africana são referenciadas no país, pois o jornal
não procurou o rapaz responsável pela colocação para dar seu depoimento ou
esclarecer a declaração dada sobre a suposta ira de Deus com relação a
inauguração da estatua.
Nos textos, de 2019, analisados, os ataques aos terreiros são novamente
comparados aos atos terroristas realizados pelos fundamentalistas presentes no
oriente médio. Encontramos, nas notícias, o uso de referentes como ―terrorismo
religioso‖ para designar os atos realizados contra os terreiros, além da
responsabilidade que é atribuída ao estado quando há referencia ao fato de que a
subnotificação é regra, ou a inércia da policia que, muitas vezes, é chamada aos
locais de ataque e por vezes não comparecem, ou se comparecem registram os
fatos ocorridos como briga de vizinhos, ou preconceito, o que pode entrar nas
estatísticas de preconceito racial, ou preconceito de gênero.
A reportagem intitulada ―Ataque de terreiro é terrorismo‖, podemos
verificar a comparação o que acontece a Umbanda e o Candomblé no Brasil aos
ataques terroristas que acontecem no Oriente Médio ou em alguns locais do mundo
relacionados a grupos como a All Qaeda. Logo no inicio da reportagem, o jornalista
trás o seguinte excerto: ―Foi o historiador Luiz Antonio Simas que, após a destruição
do terreiro de candomblé no Parque Paulista, em Duque de Caxias, no início do
mês, cobrou numa rede social outra denominação para os ataques aos cultos de
matriz africana. No lugar de intolerância, terrorismo religioso. A frequência e a
intensidade dos episódios, que misturam intimidação, ameaça, dano ao patrimônio,
destruição de elementos sagrados, agressão física e até tentativa de homicídio,
justificariam a ênfase.... O que se vê na Baixada é terror.‖ A reportagem refere-se
principalmente aos atos de ―intolerância religiosa‖ ocorridos contra as religiões de
matriz africana na Baixada Fluminense, local de grande concentração de casos de
invasão, depredação de terreiros e adeptos de tais religiões.
Finalmente, de maneira a reconhecer que todas as estratégias discursivas
descritas nesta seção são previsíveis e próprias do domínio jornalístico, podemos
100
nos remeter a Gomis (1991, p. 174). Segundo o pesquisador, o texto jornalístico
auxilia na construção de uma definição (imagem) pública dos sujeitos, das
instituições e das situações sociais descritas. O jornalismo, nesse sentido, é uma
instituição capaz de construir a realidade de um modo particular e, nessa medida,
decontribuir para a construção de conteúdos e de cenários públicos. Ou seja, na
construção de uma matéria para um jornal, o jornalista busca informações a respeito
de determinado caso, determinada situação, e traz ao leitor recortes dessa realidade
para a construção de uma realidade própria, que pode ou não se vincular ao
ocorrido. A construção da realidade, no meio jornalístico é subjetivo e intencional
para dar visibilidade ou credibilidade ao que o jornalista pretende instituir como
verdade.
Quando o textos jornalístico diz respeito a contextos e situações, como as
descritas nesta seção, que parecem repetir uma história de profunda violência contra
a Umbanda e o Candomblé, é preciso pensar sobre os modos como essas religiões,
suas práticas, seus templos, seus adeptos, são apresentados, são referenciados e
metaforizados em notícias de jornais.
101
6 CONCLUSÃO
Neste trabalho, foi defendido a dissertação de que, em uma perspectiva
enunciativa e sócio discursiva, o processo referencial e metafórico exerce um papel
importante na construção da identidade enunciativa em uma sociedade. Os
processos de referenciação e de metaforização funcionam como uma espécie de
foco interpretativo para que pesquisadores e profissionais de diferentes áreas
possam assumir o papel de compreender, pensar e sistematizar aspectos
relacionados diretamente às religiões de matriz africana, pensando tais religiões e o
processo enunciativo que envolve as mesmas, tanto em uma perspectiva histórica e
socialmente construídas.
No capitulo 2, discutimos quais foram as perspectivas históricas e sociais
que possibilitaram a construção das religiões afro-brasileiras, especialmente a
Umbanda e o Candomblé, por estas serem o interesse maior dentro do presente
trabalho entre as religiões de matriz africana presentes no Brasil, discutimos também
como ocorreu o inicio da Umbanda enquanto religião e o que possibilitou sua
concretização enquanto religião tipicamente brasileira; quais foram os processos
históricos que culminaram no surgimento do Candomblé; e por fim os documentos
legais que legitimam o direito de todo cidadão escolher e praticar sua religião e
religiosidade sem restrições, sem ser alvo de ofensas, ou qualquer tipo de oposição
que ponha sua integridade em risco.
No capitulo 3, apresentamos os conceitos de língua, texto, texto
jornalístico, referencia e metáfora. No desenrolar deste capitulo, podemos
compreender que o processo de referenciação, além de ser um processo
cognitivamente construído, é um aspecto complexo da linguagem que toma esta
como ação e não como produto do ser. E como nos lembra Marcuschi, a atividade
de referenciação pressupõe o compartilhamento de conhecimentos históricos,
lingüísticos, culturais, os contextos situacionais e as crenças envolvidas na mesma,
bem como o fato da referenciação ser uma prática simbólica. Pudemos compreender
também que a linguagem é cheia de metáforas, usadas e criadas inconscientemente
e que são incorporadas ao patrimônio lexical e cultural de um povo. A metáfora
direta nasce da necessidade de suprir deficiência da linguagem cotidiana, baseando-
se na associação de ideias por suas semelhanças. De acordo com Lakoff e Johnson
102
(1980), ―nós compreendemos o mundo por meio das metáforas‖. O capitulo nos trás
também o fato que os textos jornalísticos são capazes de produzir realidade de um
modo particular ou pelo menos de contribuir para que esta construção de conteúdos
públicos se faça em determinados moldes e não em outros, o que nos leva a
considerar que noticias publicadas em jornais podem contribuir para que a realidade
seja direcionada para onde o jornalista queira construí-la, trazendo o leitor para
compreender a realidade da forma como o texto jornalístico pretende direcionar esta
realidade, o que o leitor deve acreditar, ou como o leitor deve evidenciar os fatos.
No capitulo 4, sendo de interesse deste trabalho investigar os processos
de referenciação e metaforização nos textos jornalísticos acerca das religiões de
matriz africana, a partir dos textos que foram publicados na mídia jornalística
brasileira nos anos de 2018 e 2019, foram apresentadas a natureza, as estratégias e
os procedimentos de coleta de material para constituição do corpus deste pesquisa.
O trabalho foi constituído a partir de reportagens publicadas nos referidos anos, e
vinculadas a grandes veículos de comunicação impressa nos estados da Bahia,
Minas Gerais e São Paulo.
No capitulo 5, dedicado à análise dos dados, que foram definidos a partir
das 18 reportagens selecionadas para compor o corpus deste trabalho, sendo
dividido na cena de 2018 e na cena de 2019, consideramos ser possível
compreender como ocorreu o processo referencial e metafórico na constituição dos
enunciados vinculados aos jornais no que diz respeito a Umbanda e o Candomblé. A
partir do que foi analisado nas reportagens selecionadas e analisadas, podemos
compreender que o processo referencial e metafórico se constitui de forma
semelhante nos anos de 2018 e 2019, sem grandes alterações lingüísticas ou
enunciativas.
De modo a proporcionar ao leitor a possibilidade de ter acesso ao material
que serviu de base para a constituição do corpus deste trabalho, as reportagens
coletadas e analisadas estão apresentadas no Apêndice, ao final do trabalho.
Através desse acesso, esperamos tornar mais claro e objetivo o modo operante dos
jornalistas e consequentemente dos jornais que foram salientados na pesquisa.
O processo de análise, nos possibilitou verificar que a cena enunciativa
que foi construída nas reportagens vinculadas aos jornais foi construída de forma a
dar voz prioritariamente ao jornalista, deixando muitas vezes os próprios adeptos
103
das religiões de matriz africana e os seus próprios processos enunciativos em
segundo plano, realizando um recorte muito delimitado da realidade para
constituição do que seria predicado nas reportagens, e consequentemente no que
seria dirigido ao leitor.
Considerando os objetivos pretendidos por este trabalho, focalizamos os
processos referenciais e metafóricos acerca das religiões de matriz africana
vinculadas nos jornais de grande circulação, prioritariamente como tais religiões
estão predicadas em tais meios de comunicação. Como nos lembra Gomis (1991,
p.134), ―o jornalismo é investigado como uma instituição que seria capaz de produzir
realidade de um modo particular ou pelo menos de contribuir para que esta
construção de conteúdos públicos seja feita de um modo e não de outro.‖ E ainda
para o pesquisador, o texto jornalístico produz sentidos sobre o mundo, em
interação com os significados previamente existentes nele. E ainda complementa
dizendo que, o modo como se constitui a matéria de um jornal auxilia na construção
de uma definição imagem pública destas ocorrências Os apontamentos feitos pelo
pesquisados acerca dos textos jornalísticos podem nos levar a compreender que o
modo como o jornalista expõe os fatos narrados é propositalmente constituído para
conduzir o leitor a formar uma determinada imagem, um determinado conceito, ou
determinada conclusão acerca dos fatos constituídos.
A partir disso, podemos verificar que a forma como um texto jornalístico
apresenta os fatos narrados são direcionados para a construção de uma imagem
social acerca de determinado fato social, construindo coletivamente uma ideia ou um
padrão de interpretar determinados fatos cotidianos. Nos textos analisados no
corpus deste trabalho, podemos verificar que muitos referentes são apresentados
acerca da Umbanda e do Candomblé, assim como muitos referentes são utilizados
para nomear, classificar, delimitar ou especificar os adeptos de tais religiões, alguns
destes referentes são: Vítimas, Macumbeiros, Capeta, Diabo, dentre outros.
Demasiadamente a palavra ―INTOLERÂNCIA‖ foi repetida em todas as reportagens
analisadas, além de alusões a discriminação, preconceito, racismo religioso,
invasão, ataques. Podemos verificar que todos os referentes estão vinculados ao
crime e a guerra de uma determinada classe social (em sua grande maioria,
evangélicos ou traficantes evangelizados nas penitenciarias) ―contra‖ os adeptos das
religiões de matriz africana.
104
A analise efetuada neste trabalho pareceu legitimar a ideia que os textos
jornalísticos construíram uma identidade de combate, ou uma espécie de guerra
santa instituída entre grupos religiosos que querem constituir seu espaço na
sociedade, os adeptos da Umbanda e do Candomblé, em detrimento ao grupo
religioso que quer impedir essa instituição de tais religiões. Pode ser verificado que a
legitimação dos fatos ocorridos envolvendo as religiões de matriz africana enquanto
intolerância religiosa foi insistentemente fixada pela mídia jornalística, que ao
construir os fatos narrados para o público leitor se negou a dar voz ou direito de
resposta aos supostos agressores.
A partir das analises realizadas neste trabalho e das hipóteses
inicialmente levantadas, podemos concluir que uma das hipóteses preconizadas se
fez mais evidente na constituição dos fatos analisados, o fato de que ―o processo de
referenciação e predicação das religiões afro-brasileiras implicam um repertório
linguístico-lexical do campo semântico da guerra, sendo a Umbanda e o Candomblé
os principais alvos, envoltos em um contexto de ataque versus defesa.‖ Pois, a partir
do que foi concebido nas matérias vinculadas ao trabalho, o que mais se faz
presente é um repertório lexical/semântico de guerra, onde as religiões afro-
brasileiras sendo os principais alvos de ataques, estão constantemente envoltos de
um contexto social de ataque e defesa.
Em síntese, o que nos fica no decorrer do trabalho é: no que tange o
processo referencial e metafórico acerca da Umbanda e do Candomblé, estes são
processos historicamente construídos ou pertencem a um presente socialmente
constituído a partir de uma apresentação midiática que faz um recorte da realidade
para apresentar ao leitor com o intuito de direcioná-lo a construção de uma
determinada intenção.
Podemos pressupor a partir das analises constituídas nesta pesquisa que,
os processos referenciais e metafóricos, nos permite constituir uma realidade de
ataque ao campo religioso, ou uma guerra, isso quando nos restringimos a visão
enunciativa apresentada pela mídia brasileira. A expectativa construída durante a
pesquisa, e nos resultados apresentados, pesando as limitações apresentadas, é
que este trabalho possa contribuir para futuras discussões e análises em diversos
campos científicos além da lingüística, e que isso possa possibilitar maiores avanços
no campo lingüístico, religioso, midiático, filosófico e científico.
105
REFERÊNCIAS
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109
APÊNDICE
Reportagens de 2018
Reportagem 1: Jornal Extra
Umbandistas pedem ao MP abertura de ação penal contra
evangélicos por intolerância
16/11/18
O babalaô Ivanir dos Santos, interlocutor da Comissão de Combate à
Intolerância Religiosa, deu entrada com uma representação criminal junto ao
Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) pedindo a instauração de
ação penal para apurar responsabilidades criminal de integrantes da Igreja Ministério
Redenção, no bairro do Barreto, em Niterói. O grupo é acusado pelos umbandistas
de formação de quadrilha, perturbação de culto e intolerância religiosa.
No dia 2 de novembro, integrantes da Tenda de Umbanda Ogum Megê
faziam um culto religioso no Cemitério de Maruí Grande, no bairro de Barreto, em
Niterói, quando foram abordados por 30 evangélicos. O grupo que estava
uniformizado interrompeu o culto aos gritos de ―macumbeiros, capeta, macumbeiros
têm que morrer‖; tá amarrado em nome de Jesus‖; ―tem que expulsar porque é
110
demónio; e ―Queima eles Satanás‖. Um deles desferiu um tapa na cabeça do
dirigente umbandista Allan Hansen Rosa de Souza.
Segundo a denúncia feita ao MPRJ, durante encontro na última quarta-
feira com o procurador-geral de Justiça interino, Ricardo Ribeiro Martins, a ação teria
durado cerca de 30 minutos e foi assistida por 20 pessoas, além as vítimas. A
sessão de humilhações e constrangimentos só foi interrompida após os umbandistas
terem acionados guardas municipais.
—Não podemos permitir que nossa crenças ultrapassem o direito
religioso do outro. A fé, o modo de culto, ou de expressar a religiosidade. A
intolerância, a falta de alteridade e humanidade com outro, que crê e é diferente, são
os grandes entraves para a construção de uma sociedade plural onde o respeito e a
tolerância possam prevalecer — afirmou Ivanir dos Santos.
Segundo o babalaô, o procurador-geral de Justiça, Ricardo Ribeiro
Martins, se comprometeu em agilizar e dar atenção para a investigação, e informou
que iria encaminhar o caso para 6ª Procuradoria de Investigação Penal de Niterói da
2ª Central de Inquéritos.
Na denúncia, os umbandistas argumentam que a lei orgânica do
município de Niterói prevê que nos cemitérios públicos da cidade são permitidas
todas as confissões religiosas, bem como as práticas dos seus ritos. Além disso, a
Lei 3.089 de 26 de junho de 2014 declara a umbanda como patrimônio imaterial
daquele município.
Na página da igreja no Facebook há várias mensagens de repúdio contra
a ação dos evengélicos. ―Intolerância é o que vocês pregam, não tem um pingo de
amor ao próximo, e respeito com as demais religiões‖, postou uma internauta.
―Péssimo! Intolerância religiosa é CRIME, espero que saibam disso! Difundem o
verdadeiro significado do evangélico e afastam pessoas da sua própria religião por
serem ignorantes‖, escreveu outra.
Disponível em: (https://www.geledes.org.br/umbandistas-pedem-ao-mp-abertura-de-
acao-penal-contra-evangelicos-por-intolerancia/)
111
Reportagem 2: Folha de São Paulo
Aumenta número de denúncias de discriminação contra
adeptos de religiões de matriz africana em 2018 no país
Ministério registrou 71 denúncias de janeiro a junho; pai de santo e a secretária de
Promoção de Igualdade Racial dizem que intolerância acontece por religiões serem
associadas a negros.
19/11/2018
O número de denúncias de discriminação religiosa contra adeptos de
religiões de matriz africana no Brasil feitas pelo Disque 100, serviço de atendimento
24 horas do Ministério de Direitos Humanos, aumentou 7,5% em 2018. Foram 71
denúncias do tipo feitas de janeiro a junho deste ano, contra 66 no mesmo período
de 2017. Já as denúncias feitas por discriminação contra todas as religiões caíram
de 255 para 210, queda de 17% no mesmo período.
Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Nesta terça-feira (20) é celebrado o Dia da Consciência Negra. Em todo o ano 2017,
foram 145 denúncias de discriminação religiosa em todo o país. São Paulo teve 29
112
denúncias por meio do canal. O estado só fica atrás do Rio de Janeiro, com 34
denúncias. Nem todos os casos são denunciados pelo telefone do ministério.
O jornal ouviu adeptos de religiões afro que sofreram violência, e nenhum deles
conhecia o canal.
Ao mesmo tempo em que crescem as denúncias de violência, as religiões
afro-brasileiras registraram crescimento de 43,8% no número de adeptos em São
Paulo, de acordo com o estudo ―Diversidade Étnico-racial e Pluralismo Religioso no
Município de São Paulo‖, publicado em dezembro de 2016.
Ao todo, 50.794 pessoas declararam ser de umbanda, 18.058 do
candomblé e 854 de outras religiosidades afro-brasileiras. A soma representa 0,6%
das 48 religiões ou convicções filosóficas declaradas. ―Muitos de seus fiéis preferem
não se identificar publicamente por receio de discriminação religiosa‖, diz o estudo.
Invasão e destruição
A casa de candomblé Ilê Asé Ojú Oyá, localizada em Guaianases, bairro
da Zona Leste da capital, foi atacada em março deste ano. Paula Torrecilha Ty Ayrá,
31 anos, conta que o local foi invadido, teve objetos furtados e quebrados.
"Quando chegamos, encontramos tudo revirado, todos nossos objetos
sagrados no chão, espalhados, coisas vandalizadas, quebradas. Na cozinha
jogaram todos nossos alimentos no chão. Muita coisa foi roubada", disse.
"Em um primeiro momento, ficamos bem fragilizados, com medo de que
acontecesse novamente e nos tornasse vítimas de violência física, além da violência
psicológica que um caso desses submete não só os integrantes da casa, mas toda a
comunidade. Mexer com um acaba abalando o todo", conta Paula.
113
Segundo ela, a casa é formada majoritariamente por mulheres lésbicas,
bissexuais, trans negras e periféricas. "Somos todas de luta. Esse ataque, que
queria nos fragilizar, nos destruir, só serviu para nos unir e fortalecer. Descobrimos
juntas um meio de restabelecer nosso Asé que foi profanado, reerguer tudo que foi
levado e destruído."
Para Alexandre Cumino, sacerdote de Umbanda e diretor da Associação
Umbandista e Espiritualista do Estado de São Paulo (Aueesp), a intolerância
religiosa é advinda do preconceito em relação ao negro, à cultura do negro e à
religião do negro.
"Boa parte dos casos [de violência] está relacionada a segmentos
religiosos que têm uma discriminação e um preconceito na sua pregação doutrinária
e identificam o Deus do outro como o diabo", explica ele. Cumino é autor do livro
"Exu não é o diabo", que desmistifica a ideia de que o orixá Exu é o representante
do mal e por isso deve ser combatido.
"Há pessoas de outras religiões que acreditam que nosso orixá o Exu é o diabo. Quando se
identifica o nosso orixá como o diabo e o diabo como o responsável por todos os males,
então na cabeça torpe e infame do ignorante, se acabar com a minha religião, vai acabar
com o diabo"
114
Segundo Cumino, que é bacharel em ciências da religião, não existe
diabo na umbanda e no candomblé. Essas religiões não 'culpam' o diabo pelo mal ou
por seus erros.
"Diabo é principalmente uma criação judaico-cristã e mais
especificamente católica. O Lúcifer é bem católico mesmo, ele não existe no
judaísmo. Você tem lá o Satã ou o Shaitan, que é uma figura muito específica no
Velho Testamento. No livro de Jó, Satã senta ao lado de Deus e eles estão
conversando o que vão fazer com Jó. Então esse Satã judeu que é um opositor, ele
não é nem de perto esse grande diabão que construíram e muito menos os Exus, os
orixás, ou as entidades de umbanda ou de candomblé, religiões que não
reconhecem nenhum diabo. Quando a gente [adeptos da religião] faz uma coisa
errada é a gente mesmo [que fez]".
A yalorixá (mãe de santo) Gabriela Beck, 39 anos, do Centro Cultural Eyin
Osun, na Vila Industrial, extremo Leste de São Paulo, conta que a confusão entre o
orixá Exu com Satanás já lhe rendeu ameaças com faca.
115
"Temos um vizinho que cresceu comigo no bairro e agora é evangélico.
Ele acredita que o Satanás está instalado na minha casa. É desesperador. O
problema dele é a casa de candomblé, onde também moro com meu pai. Ele nos
ameaça com faca, nos ofende. Eu acho que em grande parte porque meu pai é
idoso eu sou mulher. Eu tenho medo dele fazer alguma coisa, colocar fogo na minha
casa, matar meu pai", diz ela.
116
Reportagem 3: Folha de São Paulo
O problema da heterogeneidade dos dados
10/02/2018
Os estados brasileiros não possuem uma base estatística consolidada e
uniforme sobre boletins de ocorrências (BOs) envolvendo casos de intolerância
religiosa no país. A Gênero e Número e o DataLabe solicitaram via Lei de Acesso à
Informação (LAI) os dados de boletins com motivação por intolerância religiosa de
2017 e 2018 a todos os 26 estados do país e ao Distrito Federal.
A sistematização das informações sobre intolerância religiosa é
heterogênea nos estados, sendo que nenhuma base de dados disponibilizada revela
a religião da vítima e, apenas em alguns casos, como no Distrito Federal e na Bahia,
trazem dados de gênero e raça dos denunciantes. De todos os estados, apenas 11
enviaram os dados solicitados pela Gênero e Número e o DataLabe.
O Maranhão enviou números de período diferente ao solicitado e
Amazonas e Paraíba disponibilizaram apenas os dados referentes às capitais.
Outros estados como Minas Gerais, Tocantins e Rio Grande do Norte responderam
à solicitação informando que não tinham esses dados discriminados. Já Rio Grande
do Sul, Paraná, Santa Catarina, Acre, Sergipe, Pernambuco, Amapá e Roraima não
responderam a solicitação.
Em São Paulo, estado onde a primeira Delegacia de Crimes Raciais e
Delitos de Intolerância do país foi fundada, em 2006, foram 6.324 BOs nos dois
últimos anos: 3.070 em 2017 e 3.254 no ano passado, um aumento de 6%. Já o Rio
de Janeiro — estado com maior número de casos desde 2011, segundo o Disque
100 do governo federal — reportou apenas 56 ocorrências classificadas como
―impedimento ao culto‖ entre 2017 e 2018. A Bahia (terceira no ranking do Disque
100) trouxe ainda menos casos: foram somente 11 boletins de ocorrência por
motivação de intolerância religiosa, sendo 10 associados a vítimas pardas ou pretas
e um associado a vítima branca. O Distrito Federal reportou 42 BOs entre 2017 e
2018, sendo que no último ano, 64% foram registrados em maio ou novembro.
Delegacias especializadas
117
O Rio de Janeiro, por exemplo, não tem registros estatísticos específicos
para os casos de intolerância religiosa. Em abril deste ano, foi sancionada uma
leique cria o subtítulo ―intolerância religiosa‖ nos registros de ocorrência da Polícia
Civil do estado e dispõe sobre a produção e divulgação de dados estatísticos pelo
Instituto de Segurança Pública (ISP).
Sem essa diferenciação, na maioria dos casos, os registros acabam
entrando no sistema apenas como ―preconceito‖, que podem se misturar a outras
esferas, como o preconceito racial. Segundo Átila Nunes, deputado federal pelo
MDB envolvido na criação da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância
(Decradi) no Rio, inaugurada em dezembro de 2018, é preciso dar atenção especial
aos dados, principalmente para basear a criação de políticas públicas. ―A falta de
uma sistematização desses dados é hoje uma lacuna muito séria. Há muitos meios
para chegar a eles, mas ninguém ainda consegue dar um número exato de quantos
casos de intolerância religiosa temos no nosso estado.‖
No entanto, a falta de sistematização não significa falta de dados. Gilbert
Stivanello, delegado da Decradi do Rio, explica que em todo boletim de ocorrência
há um espaço onde é possível denunciar a motivação dos ataques. O desafio está
em sistematizar o fluxo de informações. Dados do Instituto de Segurança
Pública que compilam casos de ―Injúria por preconceito‖ e ―Preconceito de cor e
raça‖ entre 2015 e 2019 incluem religião como um dos motivos, que incluem ainda
raça, cor, etnia e origem. Apenas os casos de ―ultraje a culto e impedimento ou
perturbação a ele relativo‖ se referem especificamente a religião e, segundo o
relatório, desde janeiro de 2015 até março de 2019, o estado do Rio teve uma média
de dois ataques por dia.
O Instituto de Segurança Pública informou que vai começar a produzir e
sistematizar os dados de intolerância religiosa quando a Polícia Civil fizer o repasse
dos números. No momento, segundo o Instituto, a polícia está adaptando o sistema.
Durante o atendimento às vítimas, casos mais delicados demandam
agentes de segurança pública com algum tipo de treinamento para lidar melhor com
a situação. O deputado Átila Nunes cita o caso de um babalorixá que teve sua casa
invadida e depredada, e que, depois de muito esperar para concluir o registro, viu o
agente se recusando a entrar no terreiro para fazer a perícia da cena do crime.
118
Um dos fundadores da Decradi, Átila reitera a necessidade das
delegacias especializadas. Além de lidar com intolerância religiosa, a Decradi
combate casos de xenofobia, LGBTfobia e crimes que envolvam discurso de ódio.
Apesar de ter sido criada no final do ano passado, o projeto de lei é de 2008 e só foi
sancionado em 2011. ―Foram mais de sete anos para tirar do papel. Diversos
secretários de segurança entendiam que havia outras prioridades‖, relembra o
parlamentar.
Para o delegado Stivanello, a delegacia é importante por dar conta de
casos mais graves, como o de Paula Sperling, vencedora da edição deste ano do
Big Brother Brasil, da TV Globo, indiciada por dar declarações preconceituosas
sobre religiões de matriz africana durante o programa. ―Ao longo do BBB,
recebemos inúmeras denúncias. O caso dela foi classificado como injúria, porque
envolvia a ofensa e a honra de uma pessoa, e foi levado à Justiça‖. Vencedora do
programa e ré no processo, Paula recebeu 1,5 milhão de reais.
Ainda segundo ele, em outros casos, a Decradi serve também como fonte
de informação. Apesar da equipe enxuta, todos os policiais foram treinados para
lidar melhor com casos de intolerância e preconceito, inclusive na internet. ―Além de
treinamentos e cursos preparatórios de investigação, também fizemos programas de
sensibilização. Temos uma parceria muito estreita com a Secretaria de Direitos
Humanos do estado‖, explica.
119
Reportagem 4: O Globo
Imagens de orixás são quebradas em terreiro de
candomblé de Niterói
Polícia investiga o caso registrado como intolerância religiosa
29/07/2018
RIO - Foram depredadas imagens de orixás pertencentes a um centro de
candomblé localizado no bairro Fonseca, em Niterói. O caso, registrado na 78ª DP
como crime de intolerância religiosa, ocorreu no terreiro Ile Axé Oya Onira — que em
iorubá significa Casa de Iansã — de Tânia Rodrigues, conhecida como Mãe Tânia
de Oya. A religiosa foi informada do ato de vandalismo na manhã de sábado por um
amigo que passava em frente ao local e percebeu os cacos espalhados no chão.
Cinco imagens foram destruídas e apenas uma foi poupada, a que
simboliza a figura de Iemanjá. Não houve invasão do local, pois todas as estatuetas
estavam expostas no muro do lado de fora do terreiro e, de acordo com Tânia, a
perícia não constatou sinais de tentativa de arrombamento na propriedade.
120
Há cerca de 20 anos no comando da casa religiosa, foi a primeira vez que
a proprietária do terreiro se deparou com tal situação:
— Nunca recebi ameaça alguma. Essa casa foi herança de meus pais e a
vizinhança a frequenta. Nós não fazemos encontros muito tarde para não incomodar
ninguém. Em frente já funcionou uma igreja evangélica e sempre tivemos uma boa
convivência, inclusive — explica Tânia que não tem suspeitos do crime. — Eu não
sei se foi uma ou mais pessoas, não faço ideia de quem seja a responsabilidade,
porque nunca ninguém demonstrou estar incomodado com a presença do terreiro.
Só quero ficar em paz exercendo minha fé.
O subsecretário da Coordenadoria de Defesa dos Direitos Difusos e
Enfrentamento à Intolerância Religiosa de Niterói (Codir), Gilmar Hughes, afirma que
o órgão acompanhou a abertura do boletim de ocorrência do caso e entrou em
contato com o Centro de Promoção da Liberdade Religiosa do estado (Ceplir) para
prestar apoio à vítima. Hughes lembrou que, desde 2011, Candomblé e Umbanda
são patrimônios cultuais e imateriais de Niterói.
A Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e
Idosos (SEDHMI) emitiu nota afirmando que está oferecendo assistência jurídica e
psicossocial a Tânia e que sua equipe marcará um atendimento presencial com ela
durante a semana.
No estado do Rio foi registrado um aumento de mais de 56% no número
de casos de intolerância religiosa na comparação do primeiro trimestre de 2017 e o
mesmo período deste ano. Denúncias de intolerância religiosa, racismo, xenofobia e
outros tipos de preconceito podem ser feitas pelo Disque Combate ao Preconceito
no telefone: (21) 2334-9551. O crime de intolerância religiosa tem pena de um até
cinco anos de detenção e multa.
Disponível em: (https://oglobo.globo.com/rio/imagens-de-orixas-sao-quebradas-em-
terreiro-de-candomble-de-niteroi-22930591)
121
Reportagem 5: Jornal Estadão
Liberdade religiosa, direito ameaçado
Cerca de 300 milhões de cristãos são perseguidos e o mundo continua a ignorá-los
08/12/2018
No próximo dia 10 de dezembro comemora-se o 70. aniversário da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas.
Essa ―carta magna‖ dos direitos humanos foi elaborada, aprovada e proclamada
depois que a humanidade passou, em menos de 50 anos, por duas terríveis guerras
mundiais, que promoveram a barbárie, fizeram um número enorme de vítimas e
espalharam dor, ferida e destruição em meio mundo.
A Declaração de 1948 representou uma conquista da humanidade e a
expressão da vontade comum de vida civilizada e respeitosa, sem imposição de
soluções violentas a ninguém, quer nas relações sociais, quer nas internacionais.
Decorridos 70 anos, vale a pena perguntar se esses direitos humanos fundamentais
foram integralmente respeitados por todos os países e produziram os efeitos
desejados pela assembleia das Nações Unidas que os promulgou.
Lamentavelmente, a resposta é negativa; nem mesmo foi a Declaração assinada de
forma unânime pelos países representados na ONU.
É preciso reconhecer, porém, que a Declaração de 1948 marcou um
progresso enorme no reconhecimento universal da dignidade da pessoa humana e
na afirmação e defesa dos seus direitos fundamentais. Mesmo não sendo
integralmente respeitados, os artigos da Declaração são a referência comum para a
legislação particular dos povos. Não é possível agir em contraste com os artigos da
Declaração sem que isso tenha consequências. Os países-membros da ONU e as
organizações internacionais reconhecidas como legítimas têm o dever de zelar para
que os direitos humanos afirmados pela Declaração sejam devidamente respeitados.
A leitura atenta dos 30 artigos da Declaração da ONU leva a concluir que
os direitos humanos fundamentais ainda estão ameaçados, com frequência. Mais
ainda: a violação dos citados direitos universais nem sempre suscita a reação
esperada da parte dos governantes dos povos. Tem-se a impressão de que o
discurso sobre os direitos humanos, em certas circunstâncias, é silenciado ou
122
amenizado em vista de manobras políticas e da busca de vantagens utilitaristas. Os
direitos humanos acabam, não raramente, sacrificados na mesa das negociações
políticas e econômicas, ou em nome do politicamente correto.
Um desses direitos humanos fundamentais ameaçados é o direito à
liberdade religiosa. O artigo 18 da Declaração da ONU estabelece que ―toda pessoa
tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a
liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião
ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou
coletivamente, em público ou em particular‖. No Brasil, a Constituição de 1988
consolidou a liberdade de crença e de culto nos artigos 5.º e 19, e na Lei n.º 7.716,
de 1989, que configura como crime a discriminação por raça, cor, etnia, religião ou
nacionalidade.
No dia 22 de novembro passado, a Fundação Pontifícia Aid to the Church
in Need – Ajuda à Igreja que Sofre (ACN) –, que monitora a situação da liberdade
religiosa no mundo, publicou seu relatório anual e constatou que a discriminação e
mesmo a perseguição religiosa aberta ainda são tristes e frequentes realidades no
mundo, que até se agravaram nos anos mais recentes. Preocupa a informação de
que nada menos que 61% da população mundial vive em países onde a liberdade
religiosa não é respeitada. Isso corresponde a quase 4 bilhões de pessoas! Um em
cada cinco países registra graves violações à liberdade religiosa e em 21 países há
perseguição religiosa declarada! Os continentes onde se registram os maiores
problemas nesse sentido são a Ásia e a África.
De todos os grupos religiosos, os cristãos são os que mais sofrem
discriminação, restrição à liberdade de religião e até perseguição aberta. No mundo
há cerca de 300 milhões de cristãos perseguidos ou sem plena liberdade religiosa e
isso significa que, de cada sete cristãos, um vive sem liberdade religiosa. A
imprensa e as mídias sociais do Ocidente divulgaram, por vezes, episódios de
violência e discriminação religiosa contra cristãos durante as guerras no Iraque e na
Síria, os ataques contra templos e grupos de cristãos no Egito, no Paquistão, na
Nigéria, na Índia, no Congo e no Afeganistão. Geralmente, porém, as graves
violações contra a liberdade religiosa não recebem a atenção devida na opinião
pública. O mundo continua a ignorar os cristãos perseguidos.
123
Fatos de discriminação e intolerância religiosa, bem como ações de
vilipêndio contra templos e símbolos religiosos cristãos e não cristãos, se verificam
também em países democráticos do Ocidente, tal como no Brasil, não recebendo
sempre a devida desaprovação pública. Mesmo certo discurso equivocado sobre a
―laicidade do Estado‖, como se este devesse ser oficialmente antirreligioso, em vez
de ser arreligioso e de assegurar a todos a liberdade religiosa, pode ser expressão
de discriminação religiosa. O direito à liberdade religiosa não deve ser considerado
secundário, ou uma espécie de ―primo pobre‖ entre os direitos humanos. O direito a
ter religião, ou de não a ter, de a expressar e professar livremente, está
estreitamente relacionado com as demais liberdades que decorrem da dignidade
humana, como a liberdade de consciência e de pensamento, de opinião e
manifestação.
Não é sem motivo que muitas guerras entre povos e conflitos sociais, ao
longo da História, tenham estado mesclados com questões religiosas: ou pela
pretensão de impor uma religião à força, usando mecanismos da estrutura do
Estado para isso; ou porque se reivindicava a liberdade religiosa onde ela não
existia, sendo discriminados nos seus direitos os cidadãos não alinhados com certa
religião ―oficial‖.
Onde não há respeito pela liberdade religiosa não há paz.
Disponível em: (https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,liberdade-religiosa-
direito-ameacado,70002637785)
124
Reportagem 6: O Globo
Terreiro é alvo de vandalismo em Nova Iguaçu
Nos últimos dois anos, pelo menos oito casas de candomblé foram depredadas na
Baixada Fluminense
08/05/2018
RIO - Um terreiro de candomblé foi invadido e vandalizado na madrugada
desta terça-feira no bairro de Cabuçu, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. O
Centro Espírita Caboclo Pena Branca, que pertence ao sacerdote Sergio Malafaia
D'Ogum, foi depredado e teve alguns compartimentos incendiados. O Corpo de
Bombeiros foi acionado às 2h35 e conseguiu conter o avanço das chamas. O caso
foi registrado na 56ª DP (Comendador Soares).
De acordo com Malafaia, os vândalos quebraram peças e assentamentos
sagrados antes de incendiarem os cômodos. Nas paredes do centro, foram feitas
pichações com insultos. "Fora macumbeiros, aqui não é lugar de macumba", diz um
trecho da mensagem escrita.
125
— O centro tinha sofrido um pequeno furto, uma vez, há cinco anos, mas
fora isso nunca houve qualquer problema. O que aconteceu hoje foi intolerância
mesmo. Tacaram fogo em tudo e ainda deixaram um recado escrito na parede. Não
sou o primeiro e não serei o último, mas me causou um desconforto muito grande,
porque mexeu no nosso sagrado. Acabou com o terreiro — lamenta Malafaia.
Nos últimos dois anos, pelo menos oito terreiros foram depredados em
Nova Iguaçu. Os bairros com o maior número de atos de vandalismo foram Cabuçu
e Parque Flora.
Disponível em: (https://oglobo.globo.com/rio/terreiro-alvo-de-vandalismo-em-nova-
iguacu-22663967)
126
Reportagem 7: Estadão
Feliciano diz que ataque a menina do candomblé é
'barbaridade'
Deputado pediu prisão dos agressores; 'se forem (evangélicos), cadeia para eles.
Religião não é escudo contra o crime', afirmou
17/06/2018
O deputado federal Marco Feliciano (PSC) disse nesta quarta-feira, 17,
que os dois suspeitos de ferir com pedra uma menina que saía de um culto de
candomblé, no Rio, quando encontrados, serão enquadrados no mesmo artigo do
Código Penal usado pelo parlamentar para processar os organizadores da Parada
Gay. Na semana passada, o pastor evangélico criticou a crucificação de uma
transexual durante o evento, publicou mensagens de repúdio e prometeu processar
os envolvidos.
Feliciano condenou o ataque à menina que, segundo testemunhas, pode
ser de autoria de evangélicos. "Nunca antes ouvi falar de tal acontecimento partindo
de evangélicos. Existem loucos em todos os lugares. Se forem (evangélicos), cadeia
para eles. Religião não é escudo contra o crime", afirmou o deputado.
O pastor disse que a ação foi uma "barbaridade" e prometeu
pronunciamento sobre o assunto no plenário da Câmara dos Deputados. Segundo o
deputado, sua equipe jurídica busca mecanismos para apurar o caso junto à polícia.
"Fiquei chocado. Qualquer tipo de intolerância deve ser extirpado da nossa nação.
Lamentável", disse.
Quando atendeu o telefonema do Estado, por volta das 15h30 desta
quarta-feira, o deputado disse que não teve conhecimento sobre o ataque e afirmou
que ficou sabendo da notícia naquela ligação. "Quando aconteceu isso?", quis
saber. Ao ser informado, respondeu: "Meu Deus, que barbaridade. É uma
discriminação. Não pode ter nenhum tipo de discriminação, principalmente religiosa.
Loucura isso. Pegaram os culpados?".
Meia hora antes de conversar com o Estado, entretanto, havia sido
postado em uma de suas redes sociais a notícia de um portal gospel com o título
127
'Menina leva pedrada na saída de culto de candomblé'. Feliciano argumentou que
um correspondente, e não ele, tinha publicado o link no seu perfil.
IML. A menina apedrejada na cabeça enquanto caminhava vestida com
trajes típicos do candomblé, no último domingo, no Rio de Janeiro, realizou nesta
quarta-feira, 17, exame de corpo de delito no Instituto Médico Legal (IML).
Embora logo após o ataque houvesse decidido não sair mais às ruas com
roupas brancas e o torso (turbante) característico dos candomblecistas, a estudante
mudou de ideia, ao ser incentivada a continuar se vestindo dessa forma.Nesta terça,
ela foi ao IML trajada com vestes religiosas, acompanhada pela avó, a mãe de santo
Katia Marinho, de 53 anos, e pela mãe, que é evangélica.
Após o exame, a menina foi à Assembleia Legislativa, a convite da
Comissão de Direitos Humanos, e acompanhou a sessão. Em discursos, vários
deputados - incluindo os da bancada evangélica - condenaram a agressão à adepta
do candomblé. O deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) lançou moção de
repúdio aos agressores, que ficará à disposição dos deputados dispostos a assiná-
la. Em 18 de agosto, a Assembleia promoverá audiência pública, agendada antes da
agressão, para discutir a intolerância religiosa no Rio de Janeiro.
O caso. A menina, de 11 anos, caminhava pela Avenida Meriti,
acompanhada por sete pessoas que haviam saído de um evento religioso, quando
dois homens que estavam em um ponto de ônibus do outro lado da rua, com Bíblias
sob os braços, começaram a insultá-los.
Segundo a avó, os agressores gritaram "Sai, demônio, vão queimar no
inferno, macumbeiros" e lançaram a pedra, que bateu em um poste antes de atingir
a menina. Ela desmaiou. Os criminosos fugiram em um ônibus. A 38ª Delegacia de
Polícia (Irajá), que investiga o caso, tenta localizar o ônibus para examinar as
imagens da câmera interna, na tentativa de identificar os agressores.
128
Reportagem 8: O Globo
MPF reúne babalaô e pastores evangélicos para discutir
combate à intolerância religiosa
Ivanir dos Santos, da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, organizou
conversa inédita em meio ao aumento da violência contra templos de matriz africana
09/07/2018
RIO — O Ministério Público Federal (MPF) sediou nesta terça-feira um
encontro inédito entre pastores evangélicos, promovido pela Comissão de Combate
à Intolerância Religiosa (CCIR) e organizado pelo babalaô Ivair dos Santos. A
reunião ocorreu na sede do órgão, no Centro do Rio.
A perspectiva é que a reunião seja um ponto de partida para traçar
estratégias que inibam episódios de violência. O crescimento expressivo de ataques
contra terreiros por parte do tráfico de drogas, especialmente na Baixada
Fluminense, tem chamado a atenção do MPF.
129
Segundo a CCIR, 20 denúncias foram registradas São Gonçalo desde o
início do ano. Em Duque de Caxias, foram 15 templos fechados à força. Em São
João de Meriti e Belford Roxo, foram dez em cada.
Os dados podem estar subnotificados, já que muitas lideranças temem
que queixas levem a retaliações. Muitos atos violentos são fruto de ações de
criminosos evangélicos ligados ao tráfico. Para Ivanir dos Santos, o diálogo
representa um grande passo.
— Uma parcela está nessa conversa está desde 2008, quando fizemos a
primeira caminhada contra a intolerância religiosa. A novidade é chamarmos para
discutir uma estratégia de combate à intolerância a partir da perspectiva deles. Fico
muito feliz que aceitaram — afirma o babalaó. — A gravidade dos ataques que estão
acontecendo macula a imagem dos evangélicos. A grande maioria não é assim,
essa reunião quer mostrar isso.
No próximo domingo, a CCIR organizará a primeira caminhada contra a
intolerância na Baixada Fluminense, de olho nas estatísticas. A marcha ocorrerá em
Nova Iguaçu. O babalaô defende que o evento seja mais um chamado para a
conversa:
— É importante que ocorra na Baixada. Queremos apenas respeito e
chamar as pessoas que querem dialogar. Isso é fundamental para a sociedade
brasileira em um momento que há muito ódio.
Anfitrião do encontro, que contou com representantes pentecostais e
tradicionais, como igrejas batistas, luteranas e anglicanas, o MPF tem tido
protagonismo na denúncia dos casos de intolerância na figura do procurador Julio
José Araújo Jr.
Em maio, o governador Wilson Witzel foi intimado pelo órgão a interferir
nos episódios de violência. Ele, filiado ao Partido Social Cristão (PSC), se reuniu em
junho com a CCIR e Araújo, que aguardam um segundo encontro para discutir
políticas que solucionem o problema. Araújo acredita que a instituição pode
colaborar ativamente no processo.
— A intenção é abrir as portas da instituição para garantir que esse
diálogo inter-religioso contribua para esse combate à intolerância religiosa. Da
mesma forma que há papel importante das instituições em combater práticas ilícitas
e cobrar políticas públicas, é importante interagir com os diversos segmentos da
130
sociedade para que eles se manifestem e se unam e se articulam em torno de um
pacto contra a intolerância religiosa — avalia o procurador, que atua na Baixada
Fluminense. Pastores convidados para o encontro saudaram a iniciativa.
— Nós, ministros religiosos, às vezes não temos noção do poder que a
gente tem sobre a multidão, que nos ouve de forma muito confiante. Se nós tivermos
na nossa liderança a mentalidade de que precisamos respeitar o outro independente
da sua cor, do seu credo, se dermos nossos exemplos e sentarmos à mesa como
em um encontro desse, já estamos pregando uma mensagem de respeito e
tolerância — aponta Neil Barreto, pastor da Igreja Batista Betânia, de Sulacap, Zona
Oeste do Rio. Luismarina Campos Garcia, pastora e representante do Conselho de
Igrejas Cristãs do Estado do Rio, espera para que estratégias sejam definidas.
— Eu acho que é muito importante falar com pastores e pastoras para
que a gente trace estratégias de enfrentamento nesse quadro de violência religiosa.
Precisamos encontrar pessoas que trabalham a partir de uma perspectiva de
respeito e carinho da outra religião — diz Lusmarina. — Acho que é importante esse
encontro e que o MPF seja um sujeito desse evento, porque daí traz essa dimensão
pública, da participação estatal, no processo, e compromete o estado com o
combate à intolerância religiosa.
Disponível em: (https://oglobo.globo.com/sociedade/mpf-reune-babalao-pastores-
evangelicos-para-discutir-combate-intolerancia-religiosa-23795458)
131
Reportagem 9: O Globo
Fé desrespeitada: A dificuldade no combate à intolerância
religiosa
De janeiro a junho deste ano, o Disque 100 recebeu 210 queixas do tipo. O número
é 18% menor do que o do mesmo período do ano passado. A queda, no entanto,
parece apontar para um sinal de subnotificação dos casos
16/11/2018
RIO - Durante anos, os sábados de Marco Antônio Pinho Xavier,
presidente do Movimento Umbanda do Amanhã (Muda) e liderança à frente da
Tenda Espírita Caboclo Flexeiro, em Santíssimo, no Rio, foram repletos de
agressões. Nos dias de celebração, ele encontrava as janelas e altares do terreiro
quebrados e as portas sujas de óleo e sal. Também era xingado pelos ocupantes do
segundo andar do imóvel apenas por professar sua fé. Os anos de intolerância
foram revertidos em inúmeros boletins de ocorrência que, segundo ele, nunca
viraram processos.
Mesmo com a criação de datas especiais — hoje, 16 de novembro, é
celebrado o Dia Internacional da Tolerância, instituído pela Organização das Nações
132
Unidas em 1996 — o respeito ainda parece realidade distante para os adeptos de
religiões de matriz africana.
A história de Xavier é contada no documentário ―Toda pessoa tem o
direito‖, feito pela equipe de videojornalismo do GLOBO. O filme, que faz parte de
uma série de reportagens sobre os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, traz relatos de pessoas que tiveram seus direitos violados de alguma
forma:
— Gostaria que as autoridades respeitassem a laicidade do estado. Que
dessem importância a isso e garantissem aos cidadãos os direitos assegurados pela
Constituição. Se começarem a nos respeitar dessa forma, a gente consegue chegar
a algum lugar.
Os relatos de violência feitos pelo líder religioso não são exceção. De
janeiro a junho deste ano, o Disque 100 — canal do Ministério dos Direitos Humanos
que centraliza as denúncias de discriminação religiosa — recebeu 210 queixas do
tipo, mais de uma por dia. O número é 18% menor do que o do mesmo período do
ano passado, quando houve 255 denúncias motivadas por discriminação religiosa. A
queda, no entanto, parece apontar mais motivos para preocupação do que para
celebração: ela seria um sinal de subnotificação dos casos.
— Desde que começamos a sistematizar esses dados, em 2011, vimos
um aumento do número de casos, com pico em 2016 — afirma Thiago Garcia,
coordenador da Assessoria de Diversidade Religiosa do Ministério dos Direitos
Humanos. — Em 2017 e até agora em 2018, houve queda. Mas os especialistas do
nosso Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa dizem que não houve
redução da intolerância no Brasil, então acreditamos que haja subnotificação. Tudo
leva a crer que ela está aumentando.
Entre os motivos para a menor quantidade de relatos nos últimos 18
meses, Garcia lista o pouco conhecimento que a população tem do Disque 100 e o
enfraquecimento das redes estaduais de coleta de denúncias, também acessadas
pelo ministério.
O babalaô Ivanir dos Santos, representante da Comissão de Combate à
Intolerância Religiosa do Rio, tampouco tem dúvida de que o problema está em
ascensão.
133
— É inegável que a intolerância religiosa tem aumentado. Temos um
problema da sensação de impunidade. Esses grupos são encorajados por acharem
que nada vai acontecer— afirma Santos, que é doutor em História pela UFRJ.
Além da subnotificação, o combate à intolerância religiosa tem um
problema estrutural: muitas das denúncias que são feitas ao Ministério dos Direitos
Humanos acabam não sendo apuradas porque não se registra de onde a vítima está
falando. Em 2015, 63% das queixas recebidas não identificavam o local de origem.
Esse percentual vem caindo ano a ano, mas ainda estava em 30% no primeiro
semestre de 2018.
— É uma falha no atendimento. Esse dado é essencial para nós, para
conseguirmos encaminhar de forma satisfatória a denúncia — afirma Garcia. — Uma
vez recebida, a queixa é enviada aos estados, alguns dos quais (como Rio e SP) já
têm delegacias específicas para tratar de intolerância religiosa.
‘O que a Justiça fez?’
No feriado de finados, no último dia 2, muitas pessoas prestavam suas
homenagens aos mortos em todo país. Em Niterói, adeptos de religiões de matriz
africana foram impedidos de fazer um culto aos seus ancestrais por um grupo de
evangélicos, sob gritos de ―Capetas! Macumbeiros têm que morrer‖.
Na confusão, que aconteceu no Cemitério Maruí Grande, o umbandista
Allan Souza, que incorporava uma divindade, teria sido agredido a tapas na cabeça.
O episódio motivou Ivanir dos Santos a pedir a instauração de uma ação penal para
apurar os fatos. Anteontem o babalaô participou de uma audiência com o
procurador-geral de Justiça do Rio, Ricardo Ribeiro Martins.
— A sociedade civil tem que se articular para dar uma resposta e
provocar os órgãos de Estado, o Ministério Público e os tribunais — diz Santos.
Quem já sofreu ataques por conta de sua religião, como Xavier, diz que a
burocracia e o descaso das autoridades reforçam o desânimo das vítimas para
registrar oficialmente seus casos:
— Talvez as pessoas estejam desistindo de fazer registros, porque eu fiz
muitos e o que a Justiça fez? Para que registrar se é preciso ficar cinco ou seis
horas na delegacia para nada? Não há respaldo nenhum. Eu me sinto um cidadão
134
brasileiro desvalorizado, vivendo em um país que não preza pelos meus direitos. Eu
me sinto envergonhado.
Disponível em: (https://oglobo.globo.com/sociedade/fe-desrespeitada-dificuldade-no-
combate-intolerancia-religiosa-23238010)
135
Reportagens 2019
Reportagem 10: Jornal: Estadão
SP: Condephaat tomba cinco terreiros de religiões de matriz
africana
11/2/2019
O tombamento de cinco casas de religiões de matriz africana da capital e
da região metropolitana de São Paulo foi aprovado em reunião no dia 28 de janeiro.
A decisão foi tomada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat). Também foi determinado o registro
do Santuário Nacional da Umbanda, de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista,
como patrimônio cultural imaterial do Estado.
O estudo de tombamento foi aberto no ano passado após a criação do
grupo do trabalho "Territórios Tradicionais de Matriz Africana Tombados de SP", que
136
reuniu lideranças religiosas e representantes do Estado e do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Os pedidos de tombamento foram originalmente abertos entre 2013 e
2017, mas, no ano passado, reunidos em um processo único. A decisão recai
especialmente em relação ao perímetro formado pelo lote, incluindo a localização do
barracão e das árvores consagradas, por exemplo.
Os espaços tombados são: Terreiro de Candomblé Santa Bárbara, de
Brasilândia, na zona norte da capital paulista; Casa de Culto Dambala Kuere-Rho
Bessein, de Santo André, no ABC Paulista; Centro Cultural Ilê Afro-brasileiro Odé
Loreci, de Embu das Artes, na região metropolitana; Templo de Culto Sagrado Tatá
Pércio do Battistini Ilê Alákétu Asé Ayrá e Centro Cultural Ilê Olá Omi Asé Opo
Araka, ambos de São Bernardo do Campo, no ABC.
O Terreiro de Candomblé Santa Bárbara é considerado o primeiro da
cidade de São Paulo, sendo datado dos anos 60, quando foi fundado por Julita Lima
da Silva, a Mãe Manaundê.
Já a Casa de Culto Dambala Kuere-Rho Bessein está instalada em Santo
André há mais de 30 anos. O espaço tem origem no grupo étnico Ewe/Fon,
originário do Benin, na África, sendo um dos pouco com tal característica no País.
De 1996, o Centro Cultural Ilê Olá Omi Asé Opo Araka é um dos terreiros
de candomblé mais conhecidos do Estado, atraindo até mesmo autoridades
políticas. O Centro Cultura Odé Lorecy, por sua vez, é referência por reunir um
acervo com roupas, insígnias, esculturas, máscaras e outros itens ligados a
divindades do panteão africano.
Já o Santuário Nacional da Umbanda faz parte da Reserva Ecológica da
Serra do Mar, em que terreno de 645 mil metros quadrados em meio à mata nativa.
Em seu site, a instituição se autodenomina de "Meca da umbanda". Antes dos locais
citados, apenas o Terreiro Aché Ilé Obá havia sido tombado pelo Condephaat, em
1990. Ele fica localizado no Jabaquara, na região sul da capital paulista.
Lindoia
Na mesma reunião, o Condephaat também aprovou a abertura do estudo
de tombamento da ponte Sebastião Edward Pinto da Cunha, de Lindoia, no interior
paulista. Com a decisão, alterações na estrutura somente podem ser feitas com
anuência do conselho.
137
Disponível em: (https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,condephaat-tomba-
cinco-terreiros-de-religioes-de-matriz
africana,70002716522#:~:text=S%C3%83O%20PAULO%20%2D%20O%20tombam
ento%20de,Art%C3%ADstico%20e%20Tur%C3%ADstico%20(Condephaat).)
138
Reportagem 11: O Globo
STF decide que sacrifício de animais em cultos religiosos é
constitucional
A autorização foi acrescentada no Código Estadual de Proteção aos animais, que
veda agressão e crueldade
28/03/2019
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira, 28, que é
constitucional a lei que permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religião de
matriz africana. Os ministros analisaram o tema através de uma lei estadual do Rio
Grande do Sul que deixou expresso que é possível o sacrifício animal nessas
situações. A autorização foi acrescentada no Código Estadual de Proteção aos
animais, que veda agressão e crueldade.
O julgamento tinha sido iniciado em agosto do ano passado, com os votos
do relator, ministro Marco Aurélio Mello, e do ministro Edson Fachin, cuja posição
formou a maioria no julgamento desta quinta-feira. As divergências foram pontuais.
Por exemplo, para Marco Aurélio, o sacrifício de animais seria aceitável caso a carne
fosse direcionada ao consumo humano - observação que ficou vencida no plenário.
Por outro lado, por unanimidade, os ministros entenderam que a lei do Rio
Grande do Sul que permite o sacrifício em ritual religioso é constitucional. A tese
fixada ao fim do julgamento foi de que é "constitucional a lei de proteção animal que,
a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em
cultos de religião de matriz africana".
"Queria deixar claro no pronunciamento do resultado que todos os votos
foram no sentido de admitir nos ritos religiosos o sacrifício de animais. A corte
entendeu que a lei do Rio Grande do Sul que permite o sacrifício em rituais
religiosos é constitucional", observou o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, ao
pronunciar o resultado, que foi comemorado pelos praticantes das religiões de matriz
africana que assistiam o julgamento do plenário.
A maioria dos ministros destacou que a lei gaúcha não errou ao ter feito
uma designação especial as religiões de matriz africana, uma vez que a menção se
139
dá em um contexto de especial proteção às religiões de culturas que historicamente
foram estigmatizadas. "Penso que a razão é que as religiões de matriz africana são
as que têm sido historicamente vítimas de intolerância, discriminação e preconceito.
Não penso que seja tratamento privilegiado", observou o ministro Luís Roberto
Barroso.
Primeiro a votar nesta quinta-feira - uma vez que foi responsável pelo
pedido de vista que interrompeu o julgamento em agosto -, o ministro Alexandre de
Moraes ressaltou que a oferenda dos alimentos, inclusive com a sacralização dos
animais, "faz parte indispensável da ritualística das religiões de matriz africana".
"Impedir a sacralização seria manifestar claramente a interferência na
liberdade religiosa", considerou.
"Não se trata de sacrifício ou de sacralização para fins de entretenimento,
mas sim para fins exercício de um direito fundamental que é a liberdade religiosa.
Não existe tratamento cruel desses animais. Pelo contrário. A sacralização deve ser
conduzida sem o sofrimento inútil do animal", disse Barroso. "Me parece evidente
que quando se trata do sacrifício de animais nesses cultos afros isso faz parte da
liturgia, e portanto, está constitucionalmente protegido", afirmou o ministro Ricardo
Lewandowski.
Caso
O caso chegou ao Supremo através de um recurso do Ministério Público gaúcho,
contra a previsão adicionada no código estadual. A decisão do plenário da Corte
afeta apenas a lei do Rio Grande do Sul, mas expõe o entendimento dos ministros
do STF, última palavra do Judiciário brasileiro, sobre o tema. Na ação apresentada
em 2006, o MP estadual destacava que a previsão adicionada pela lei é
desnecessária, já que a liberdade de religião é constitucionalmente garantida.
Quando o julgamento foi iniciado no ano passado, em nome do governo
estadual, o procurador do Rio Grande do Sul Thiago Holanda Gonzalez afirmou que
a lei não traz nenhum prejuízo ao caráter laico do Estado. "A liberdade de culto
dessas religiões decorre da Constituição. Mas a lei não é inócua. Ela retira o
constrangimento às religiões de origem africana. O Rio Grande do Sul nunca
permitiu a crueldade (com animais)", afirmou.
Representante da União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil,
o advogado Hédio Silva Júnior criticou a ação do Ministério Público estadual à
140
época. "Parece que a vida de galinha de macumba vale mais do que a vida de
milhares de jovens negros. É assim que coisa de preto é tratada no Brasil. A vida de
preto não tem relevância nenhuma. A vida de preto não causa comoção social, não
move instituições jurídicas. Mas a galinha da religião de preto, ah, essa vida tem que
ser radicalmente protegida", questionou na tribuna do Supremo.
141
Reportagem 12: Estado de Minas
Polícia prende ‘Bonde de Jesus’ que atacava terreiros de
umbanda e candomblé
A nova face da intolerância religiosa é traficante e evangélico
18/8/2019
Os registros de intolerância religiosa são comuns Brasil afora, mas no
Rio têm uma característica particular: passaram a envolver traficantes e
evangélicos. Após ataques a terreiros de umbanda e candomblé na Baixada
Fluminense, a polícia identificou o mandante e, na semana passada, prendeu oito
traficantes acusados de integrar seu grupo, o chamado Bonde de Jesus.
Segundo a polícia, o mandante é Álvaro Malaquias Santa Rosa, o
Peixão, do Terceiro Comando Puro (TCP), um dos criadores do Bonde de Jesus,
vertente inédita da intolerância religiosa no Estado. Estima-se que existam hoje 200
terreiros sob ameaça. Os casos são investigados pela Delegacia de Crimes Raciais
e Delitos de Intolerância (Decradi), criada em 2018.
142
Investigações apontam que a peculiar relação entre religiosos e
criminosos aconteceu depois que a cúpula do TCP foi convertida por uma igreja
neopentecostal. Há informações, ainda não confirmadas, de que Peixão teria sido
ordenado pastor. Trata-se de uma característica específica dessa facção, não sendo
reproduzida nem pelos demais grupos de traficantes nem por milicianos.
"A situação de intolerância sempre existiu, mas tivemos uma piora quando
indivíduos ligados à cúpula de uma facção resolveram se converter", afirma o
delegado da Decradi, Gilbert Stivanello. "Eles distorcem a doutrina religiosa e
agridem outras religiões, sobretudo as de matriz africana." As principais lideranças
evangélicas do Rio condenam os ataques. Conversão. Um dos primeiros a se
converter foi Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho Guarabu, há cerca de
quatro anos. Ele era o chefe do tráfico no Morro do Dendê, Ilha do Governador, até
ser morto pela polícia em junho. Outros, como Peixão, se converteram depois.
"Alguns deles se converteram dentro do presídio", diz Stivanello. "Eles
viveram uma experiência distorcida da conversão, se tornando ‘bandido de Jesus‘,
como se isso fosse um ato de fé. Se pararmos para pensar, não é muito diferente do
terrorismo islâmico. É difícil mesmo entender a lógica", afirma.
Coordenadora do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro
Brasileira, Célia Gonçalves Souza diz que o problema da intolerância é nacional,
mas que, de fato, vem ganhando contornos específicos no Rio, sobretudo pela
penetração de evangélicos no sistema carcerário. "No Rio, esse problema é muito
escancarado e o narcopentecostalismo só tende a crescer. E passa pela questão
das penitenciárias, onde há uma entrada muito grande dos neopentecostais."
Na Baixada Fluminense, traficantes passaram a ditar regras dos terreiros,
como horários das cerimônias e uso de fogos de artifício e fogueiras. Eles também
proíbem as pessoas de andarem com roupas brancas ou de santo nas ruas. As
invasões a terreiros são cada vez mais frequentes, com destruição de oferendas e
imagens sagradas.
Há uma semana, o terreiro Ilê Axé de Bate Folha, em Duque de Caxias,
foi invadido por traficantes - no 10, caso da região. Eles quebraram todas as
imagens e oferendas e ameaçaram de morte a mãe de santo, que está fora do
Estado, na casa de parentes.
143
"O ataque aconteceu num sábado de casa cheia. Eles entraram com
violência, mandando todo mundo sair e quebrando tudo", contou uma testemunha.
"O terreiro está fechado. Tiramos tudo de lá e não aconselhamos ninguém a voltar."
Segundo a mesma testemunha, outros religiosos fecharam os terreiros e se
mudaram.
"Qualquer ataque com contornos de destruição do sagrado tem caráter de
racismo religioso", diz a defensora Livia Cásseres, do núcleo contra a desigualdade
racial da Defensoria Pública. "À violência que já existe contra essas religiões - que
têm uma série de direitos negados -, se soma agora a do varejo de drogas. Mas a
violência contra elas é permanente desde a época colonial." Por isso, para Livia, a
solução passa por diferentes esferas.
Alerta. A gravidade da situação fez com que, em julho, fosse realizada
uma reunião com membros da umbanda e do candomblé, lideranças evangélicas, e
representantes da Polícia Civil, do Ministério Público e da Defensoria Pública.
O pastor Marcos Amaral, da Comissão Contra a Intolerância Religiosa,
destaca que a denominação "evangélicos" abrange um segmento grande de
religiosos, com posicionamentos diferenciados. Já o pastor Neil Barreto, da Igreja
Batista Betânia, afirma que "a intolerância é o ápice da ignorância". "E a única
solução para a ignorância que produz intolerância é a educação. Precisamos de
uma campanha de educação e conscientização em todas as comunidades de fé."
1. perguntas para Ivanir dos Santos, Babalaô
O babalaô Ivanir dos Santos recebeu no mês passado, em Washington, o
Prêmio Internacional de Liberdade Religiosa entregue pelo Departamento de Estado
dos Estados Unidos. Santos é coordenador da Comissão de Combate à Intolerância
Religiosa e organizador da Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, que é
realizada há 12 anos, em Copacabana, no Rio.
2. Como foi receber esse prêmio internacional em um momento em que
aumentam os ataques a terreiros, em especial no Rio?
Esse prêmio, na verdade, vem reconhecer e legitimar a luta pela causa da
liberdade religiosa, contra o racismo, de respeito aos direitos humanos. Estamos
passando por um momento muito difícil. E não tem como pensar em intolerância
sem pensar em racismo e preconceito contra grupos minoritários.
144
3. As religiões de matriz africana sempre foram alvo de preconceito. O que
mudou agora?
Sim, secularmente, elas sempre foram perseguidas: na Colônia e no
Império, pela Igreja Católica; na República, pelo Estado; e nos últimos 30 anos, por
grupos neopentecostais e, mais recentemente, por traficantes evangelizados. São
traficantes que se dizem evangélicos.
4. Existe uma vertente racista nesse preconceito?
Sim. No Brasil temos um preconceito disseminado na sociedade, virou um
comportamento social baseado, fundamentalmente, no racismo. As tradições de
origem africana sofrem preconceito. O mesmo pensamento se reflete também no
samba, na capoeira, na congada. Manifestações culturais de identidade africana são
frequentemente relacionadas ao demônio.
Disponível em:
https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2019/08/18/interna_nacional,1078089/policia-
prende-bonde-de-jesus-que-atacava-terreiros-de-umbanda-e-can.shtml
145
Reportagem 13: Folha de São Paulo
"Traficantes de Jesus": polícia e MPF miram intolerância
religiosa do Rio”
15/6/2019
A Polícia Civil e o MPF (Ministério Público Federal) se articulam para
interromper ataques reiterados de quadrilhas de traficantes contra terreiros de
religiões de matriz africana localizados em comunidades na Baixada Fluminense e
em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Na última quinta-feira
(13), homens de quatro delegacias deflagraram uma operação para reprimir
criminosos que expulsaram um pai de santo em uma favela de Nova Iguaçu, na
baixada. O MPF pediu informações a 120 grupos religiosos que atuam nas prisões
com autorização da Seap (Secretaria de Administração Penitenciária).
A ação policial ocorreu na comunidade do Buraco do Boi e contou com a
participação da Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância),
DCOD (Delegacia de Combate às Drogas), Desarme (Delegacia Especializada em
Armas, Munições e Explosivos) e da 58ª DP (Posse, em Nova Iguaçu). Os agentes
foram a 22 endereços para levantar informações sobre as ações de intolerância
146
religiosa por parte da quadrilha. Também havia a expectativa de cumprir mandados
de prisão contra traficantes, mas ninguém foi preso.
De acordo com fontes ouvidas, a Polícia Civil investiga a denúncia de que
os autores dos ataques são traficantes do TCP (Terceiro Comando Puro)
convertidos por algumas igrejas evangélicas nas prisões do Rio. Quando esses
criminosos deixam o cárcere e voltam para o crime, passam a perseguir sacerdotes
e praticantes do candomblé, umbanda e outras religiões de matriz africana. Diante
do aumento no número de denúncias, o comando da Polícia Civil teria ordenado
uma ação para responder aos ataques.
Mais de 120 terreiros ameaçados, diz deputado.
Segundo o deputado estadual Carlos Minc (PSB-RJ), presidente da
Comissão de Combate às Discriminações da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio),
embora já existam relatos desse tipo há vários anos, as ações se intensificaram
muito nos últimos meses. "Agora está completamente fora de controle. São mais de
120 terreiros afetados na Baixada e em São Gonçalo. Criminosos estavam dando 48
horas para dezenas de pais e mães de santo saírem das comunidades deixando
tudo para trás", denuncia.
Minc cobra a responsabilização de lideranças religiosas que
eventualmente estejam estimulando os ataques de traficantes. "Não é crime a igreja
estar dentro da prisão, nem alguém se converter. Mas precisamos saber quem são
os traficantes que estão ordenando esses ataques e quem os converteu. Eles saem
da prisão com um duplo boné: de assassino traficante e de fundamentalista
religioso. Quem converte essas pessoas obviamente sabe o que estão fazendo e é
corresponsável por isso", afirma.
O MPF tem um inquérito civil em curso sobre a intolerância religiosa na
Baixada Fluminense. Embora trate de temas diversos --que vão desde isenção fiscal
para templos de matriz africana até questões relativas a educação--, o procurador da
República Julio José Araujo Junior, responsável pela investigação, diz que a questão
de segurança pública acabou se mostrando urgente. Diante disso, ele tem atuado
para articular uma reação das polícias Civil e Militar aos ataques. "Temos que
entender se há algum estímulo a esse ódio religioso", diz o procurador.
"Temos feito essa articulação. A Decradi é uma delegacia pequena e com
pouco efetivo para lidar com a questão. E isso não está no horizonte das demais
147
delegacias. Nós apontamos essa questão e a necessidade de que isso seja mais
bem compreendido. Há essa história de traficantes de Jesus, mas até que ponto isso
procede?", contextualiza. "Por isso estamos fazendo todo o esforço para que se
entenda que isso não será tolerado", afirma o procurador.
"Estou abrindo diálogo com os batalhões. Eu me reuni com o Batalhão de
Duque de Caxias nesta quinta-feira e me surpreendi que eles nem sabiam dessa
história [de ataques a terreiros na cidade]." O procurador pediu informações para
120 grupos religiosos que atuam dentro das prisões do Rio com a evangelização de
detentos. Embora haja representantes da Igreja Católica na lista, ela engloba
principalmente igrejas evangélicas.
"Percebemos claramente que há um predomínio muito grande de igrejas
evangélicas. Isso não é um mal em si, mas esperamos que isso não seja um
privilégio, ou que haja algum constrangimento às religiões de matriz africana", diz.
148
Reportagem 14: Folha de São Paulo
TERREIROS NA MIRA
Casos de intolerância contra religiões de matriz africana, maioria nos registros do
Disque 100, expõem disputas territoriais, escalada de violência comandada pelo
tráfico e racismo; falta de uniformidade nos dados evidencia negligência de um
Estado nada laico
05/06/2019
Há um ano, o terreiro Asé Ojú Oyá, da ialorixá (mãe de santo) Claudia
Rosa, na Zona Leste de São Paulo, foi invadido. Durante a madrugada, pessoas
entraram no local e roubaram utensílios domésticos e eletroeletrônicos. Mas o mais
grave, segundo a ialorixá, foi o ingresso nos roncós (quartos específicos para
recolhimento dos filhos de santo), onde os agressores quebraram louças, pertences
e mexeram em objetos sagrados. ―Quando você percebe que foi roubada, a
sensação de violência é muito forte. Mas quando percebe o desrespeito a uma casa
149
de axé, é desolador‖, ela define. Claudia chamou a polícia diversas vezes, mas
nenhum agente compareceu ao local.
Ela nunca conseguiu fazer o boletim de ocorrência. Seu caso, portanto,
sequer entra na alarmante estatística que mostra que a maioria dos casos de
intolerância religiosa registrados pelo governo federal diz respeito a religiões de
matriz africana. Segundo dados do Disque 100 acessados pela Gênero e Número e
pelo DataLabe, 59% do total de casos registrados de 2011 a junho de 2018 eram
referentes a religiões como a umbanda e o candomblé; 20% a religiões evangélicas;
11% a espíritas; 8% a católicos; e 2% a ateus. O Disque 100 é um canal para
denúncias de violação de direitos humanos, criado em 2011 pela então Secretaria
de Direitos Humanos da Presidência da República.
Entre 2011 e 2017, as denúncias de discriminação por motivo religioso no
Brasil cresceram de 15 para 537. Os dados mais recentes do Disque 100 totalizam
apenas o primeiro semestre de 2018, quando foram registradas 210 denúncias.
Quase 60% dos casos de intolerância religiosa contra adeptos de religiões de matriz
africana foram registrados no Rio de Janeiro (117), São Paulo (95), Bahia (56) e
Minas Gerais (51). No entanto, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública de
São Paulo, onde está localizado o terreiro de Claudia, 6.324 boletins de ocorrência
150
com casos de intolerância religiosa foram registrados no estado nos dois últimos
anos.
A imensa discrepância entre informações federais e estaduais mostra a
total falta de uniformidade entre os dados no país, que não ajuda na elaboração de
políticas públicas a respeito. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos, atual responsável pelo Disque 100, não respondeu às perguntas da
reportagem sobre suas ações para combater os ataques contra religiões de matriz
africana, e tampouco comentou os números levantados pela Gênero e Número e
pelo DataLabe.
As estatísticas que baseiam esta reportagem são vivenciadas com medo
e apreensão por muitos praticantes dessas religiões e se refletem com frequência no
noticiário de várias regiões do país. Na cidade de Nova Iguaçu (RJ), o terreiro de
candomblé de Ogunzinho foi invadido no Dia das Mães deste ano. Segundo
testemunhas, homens armados de fuzis arrombaram a porta lateral do imóvel e
fizeram um churrasco no local para comemorar a data. Esta é a terceira vez que o
terreiro, existente há 15 anos, é atacado. Em Camaçari (BA), o terreiro Ilê Axé Ojisé
Olodumare foi invadido em janeiro deste ano, e o pai de santo da casa agredido com
uma coronhada no rosto. Em Ceilândia (DF), o terreiro Axé Ode Iboalama foi
invadido por homens armados com foice e facão no dia 10 de maio. Segundo os
relatos, no momento da invasão os homens disseram que o espaço não era lugar de
―macumbeiros‖.
151
―As religiões de matriz africana enfrentam uma perseguição sistemática. A
intolerância religiosa não vem de hoje. O que muda é o cenário e os personagens,
mas a discriminação e a perseguição à cultura africana sempre aconteceram, muitas
vezes de maneira institucional‖, destaca Rodney de Oxóssi, antropólogo, doutorando
em Ciências Sociais pela PUC de São Paulo e babalorixá (pai de santo) do terreiro
Obá Ketu Axé Omi.
Para Ivanir dos Santos, babalaô (sacerdote relacionado ao jogo de búzios) e
pós-doutorando em História Comparada, o Brasil é racista e as instituições foram
construídas de forma racista e intolerante com relação às religiões de matriz
africana. ―As ações de intolerância religiosa, racismo e preconceito estão
relacionadas ao interesse dos homens, a partir do seu lugar de poder e dominação.
A intolerância religiosa é uma questão mais política do que espiritual‖, pontua.
152
Reportagem 15: O Globo
Homem critica esculturas de Mãe Stella e Oxóssi em vídeo
e MP apura denúncia de intolerância religiosa: 'Deus está
irado’
Vídeo foi postado em rede social na terça-feira, mesmo dia da inauguração, em
Salvador, da obra que homenageia memória da mãe de santo, mulher, sacerdotisa e
conhecedora dos cultos e tradições do candomblé.
10/04/2019
O Ministério Público da Bahia (MP-BA) informou, nesta quarta-feira (10)
que instaurou um procedimento para apurar denúncias de intolerância religiosa
contra um homem que aparece em um vídeo criticando a instalação, em Salvador,
de esculturas do orixá Oxóssi e de Mãe Stella, uma das principais ialorixás do país,
que morreu em dezembro de 2018. As esculturas, instaladas no início da Avenida
Mãe Stella de Oxóssi, via que liga a Av. Paralela à orla do bairro de Stella Maris,
foram inauguradas na terça-feira (9). A obra, do escultor Tatti Moreno, é uma
homenagem à memória da mãe de santo, mulher, escritora, sacerdotisa e
conhecedora dos cultos e tradições do candomblé.
153
O vídeo foi postado no Facebook, na terça-feira, por um homem que se
apresenta como "Diogo Nöbre" — em outras postagens na mesma rede social, ele
aparece pregando em igrejas evangélicas e dentro de coletivos. Na gravação, feita
no local onde foram instaladas as esculturas, o homem, que informa ser morador de
Salvador, lê trechos da bíblia e diz que Deus ficou "irado" com a inauguração obra.
Até o meio da tarde desta quarta, o vídeo já contabilizada 36 mil visualizações.
"Deus está irado, queridos. Eu estava buscando a presença de Deus e
eu consegui sentir a ira de Deus. Deus estava dizendo: 'Eu vou balançar a cidade de
Salvador. Eu vou balançar, aleluia, as lideranças de Salvador. Eu vou sacudir as
lideranças de Salvador'", afirma o rapaz, no vídeo. "Queridos, a ira de Deus está
sobre a terra. Deus está esperando mudança e transformação do seu povo. Deus
está procurando o povo unido. É tempo da igreja se unir. Enquanto a briga, a
contenta, a divisão entra no meio da igreja, o diabo, o reino das trevas, acha espaço
para isso aí", afirma, apontando para as esculturas.
Várias pessoas comentaram no post e acusaram o homem de
intolerância religiosa. "É crime", escreveu um internauta. "Sou evangélica, e ainda
bem que não me enquadro ao perfil de 'crentes' como esse. Aprendi desde criança a
respeitar todas as religiões. Tenho amigos católicos, do candomblé e quem não crer
em nada. E ainda assim amo cada um deles", comentou outro.
154
Reportagem 16: Folha de São Paulo
Ataque a terreiros é terrorismo
Não é de hoje que casas de umbanda e candomblé sofrem perseguição
19/07/2019
Foi o historiador Luiz Antonio Simas que, após a destruição do terreiro de
candomblé no Parque Paulista, em Duque de Caxias, no início do mês, cobrou numa
rede social outra denominação para os ataques aos cultos de matriz africana. No
lugar de intolerância, terrorismo religioso. A frequência e a intensidade dos
episódios, que misturam intimidação, ameaça, dano ao patrimônio, destruição de
elementos sagrados, agressão física e até tentativa de homicídio, justificariam a
ênfase. Neste ano, que mal passou da metade, a Comissão Contra a Intolerância
Religiosa já recebeu 200 denúncias de algum tipo de violência, mais que o dobro do
total (92) de 2018. A Baixada Fluminense, Nova Iguaçu e Caxias à frente, concentra
35% dos casos.
Não é de hoje que casas de umbanda e candomblé sofrem perseguição
no país. No Brasil Colônia, a Igreja Católica impunha a africanos e indígenas
escravizados a conversão. Violência. A República criminalizou rituais e espaços, a
ponto de ainda hoje objetos sagrados permanecerem sequestrados em repartições
policiais. Mais violência.
A legislação evoluiu para garantir a liberdade de credo e punir o racismo
religioso. Mas nas últimas décadas, testemunhou-se o recrudescimento da
brutalidade, pregada primeiro por líderes de denominações cristãs neopentecostais;
hoje, por grupos criminosos que, para dominar territórios, violam templos, proíbem
trajes e rituais, expulsam sacerdotes e filhos de santo. A revista ―Gênero e Número‖,
em levantamento recente, observou, de 2011 para 2017, salto de 15 para 537
denúncias de intolerância religiosa ao serviço Disque 100 do governo federal. Seis
em cada dez relatos tinham como alvo a fé afro-brasileira.
No ano passado, o Ministério Público Federal divulgou o estudo ―Estado
Laico e Combate à Violência Religiosa‖, em que confirma e analisa a espiral de
ataques, em particular no Rio de Janeiro. Foi contundente em afirmar que o Brasil
―não coíbe, impede e não pune de maneira proporcional, adequada e eficaz
155
indivíduos e grupos que, de forma sistemática, ao longo do tempo, vêm restringindo,
anulando e suprimindo o livre exercício dos direitos de consciência, crença, culto e
liturgia de minorias afro-brasileiras‖.
O procurador Jaime Mitropoulos, que assina o estudo, já usou o conceito
de terrorismo para classificar a escalada de violência contra terreiros por grupos
armados da Baixada Fluminense, em particular. ―Criminosos usam a religião como
pretexto para intimidar, amedrontar e ameaçar a integralidade física e a vida de
pessoas. Há viabilidade de enquadrar como terrorismo, se o tipo penal for
enquadrado adequadamente‖, sublinha.
Aí mora o problema. A subnotificação é regra; nem todos os casos
chegam às delegacias. Quando há registro de ocorrência, falta conhecimento tanto
das vítimas quanto das equipes policiais para listar os tipos de crime. Assim,
intolerância transforma-se no guarda-chuva a abrigar de racismo religioso a tentativa
de homicídio. ―Há indícios de que assassinatos ou tentativas por crime de ódio
religioso tenham sido tipificados como motivação diversa, assim como discriminação
pode aparecer como briga de vizinhos‖, completa o procurador.
O Brasil tem desde 2016 uma Lei Antiterrorismo (13.260) em vigor. O
artigo 2º engloba a violência cometida por um ou mais indivíduos contra pessoa,
patrimônio ou paz pública por xenofobia, discriminação ou preconceito por cor, raça,
etnia e religião. A tipificação transferiria à Polícia Federal a investigação dos casos.
Renato Galeno, professor de Relações Internacionais do Ibmec, diz que a definição
de terrorismo é tema que mobiliza e divide a comunidade global desde os ataques
aos EUA no 11 de setembro de 2001. ―Há um temor acertado de não se permitir
abusos de governos contra minorias‖, explica.
Mas em diferentes países com legislação antiterror — entre eles, EUA,
Canadá, UE, Colômbia, Austrália — algumas premissas se encaixam na
perseguição às religiões afro-brasileiras no Estado do Rio. Em mais da metade dos
textos há referências a ação violenta, objetivo político de dominação e/ou intenção
de provocar medo na população em geral ou em nichos específicos. O que se vê na
Baixada é terror.
156
Reportagem 17: O Globo
Membros de terreiro de candomblé na BA denunciam
intolerância religiosa após ato de grupo: 'Casa de Satanás‘
Situação ocorreu no município de Alagoinhas, a cerca de 180 km de Salvador. Caso
é investigado pela Polícia Civil e está sendo acompanhado pelo MP e por Centro de
Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa.
28/05/2019
Membros do terreiro de candomblé Ilê Asé Oyá L‘adê Inan, localizado no
município de Alagoinhas, a cerca de 180 km de Salvador, denunciaram à polícia
terem sido alvos de intolerância religiosa após um grupo realizar um ato em frente
ao local gritando frases como "Satanás vai morrer" e "Vamos invocar Jesus para
fechar a casa de Satanás", além de bater com uma bíblia na porta do terreiro.
Segundo a denúncia, o caso ocorreu na noite de segunda-feira (28), por
volta das 23h30, e o ato teria sido praticado por evangélicos. Um dos membros do
terreiro, o terapeuta holístico e orientador candomblecista Ed Silva, fez um relato
sobre o ocorrido no Instagram e ainda postou um vídeo do momento em que o grupo
estava realizando o ato em frente ao terreiro.
"Acabamos de sofrer um ataque de Intolerância Religiosa em nosso Ilê
Axé. Evangélicos na comunidade do Ferro Aço, Santa Terezinha, aqui em
Alagoinhas - Bahia, por volta das 23:30h, hoje conhecido com Praça do Céu,
atacaram nossa casa com palavras como "Satanás irá cair" e várias palavras de
ordem direcionadas diretamente ao Candomblé", destacou Ed.
Conforme o relato, a yalorixá do terreiro, Mãe Rosa de Oyá, de quem ele
é afilhado, estava no local no momento do ocorrido. Ele disse que o vídeo que
mostra o momento do ataque foi feito por vizinhos do terreiro.
"Nossa Yalorixá, Mãe Rosa de Oyá, é uma pessoa honrada e sempre foi
respeitada em toda a comunidade até o dia de hoje, porém é hipertensa e com mais
de 60 anos de idade e presenciou em sua porta agressões que já limaram e estão
limando pessoas e templos. Todas as medidas cabíveis estão sendo tomadas e não
descansaremos até que os responsáveis recebam as devidas punições", afirmou Ed.
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Em outro vídeo postado por ele na rede social, Ed aparece ao lado de
Mãe Rosa de Oyá, que fala sobre o caso. "Foi horrível, muito ruim. Fiquei nervosa,
estou nervosa. Não tenho condições. Minhas pernas tremem até agora. Não tenho
condições de falar nada, mas foi horrível", destacou a Yalorixá.
Os membros do terreiro informaram que já registraram a ocorrência na
Polícia Civil e também já procuraram o Centro de Referência de Combate ao
Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, da Secretaria de Promoção de
Igualdade Racial do Estado (Sepromi) e o Ministério Público do Estado (MP-BA).
A delegacia de Alagoinhas informou que recebeu a denúncia na tarde
desta terça-feira (28) e que está ouvindo a yalorixá, Mãe Rosa de Oyá e os demais
membros do terreiro para que possam falar sobre o ocorrido. A Secretaria Estadual
de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) informou, por meio de nota, que foi
acionada sobre o ato de intolerância religiosa praticado contra o Ilê Axé Oyá Ladê
Inan e que, através do Centro de Referência Nelson Mandela, equipamento mantido
pela secretaria, está acompanhando o caso desde as primeiras horas desta terça-
feira (28).
O órgão destacou que foram dadas orientações acerca da necessidade
de registro na delegacia mais próxima para a produção de boletim de ocorrência. A
Sepromi disse, ainda, que estão sendo acionados, em paralelo, os órgãos que
compõem a Rede Estadual de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa,
instância que inclui Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunal de Justiça, para
tratativas específicas sobre o caso, na tentativa de elaboração de estratégias para a
mediação do conflito.
Ainda conforme o órgão, o Centro Nelson Mandela colocou à disposição o
serviço de orientação jurídica e acompanhamento do caso, desde que foi notificado
pela comunidade religiosa. O Ministério Público da Bahia informou que o caso já
está sendo acompanhando pela promotoria de Alagoinhas e que vai ser instaurado
procedimento pra apurar o ocorrido.
Em 2019, o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à
Intolerância Religiosa Nelson Mandela já registrou 19 casos de intolerância religiosa
na Bahia. Em 2018, foram contabilizados 47 casos.
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Programa de Pós-graduação em Letras
ATA DA 473ª. DEFESA DE DISSERTAÇÃO
CANDIDATO(A): THIAGO OLIVEIRA COSTA
Realizou-se no dia 10 de julho de dois mil e vinte, às 9h, por videoconferência, a
473ª. defesa de dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em Letras,
da Área de Linguística e Língua Portuguesa, intitulada ―A referência a religiões de
matriz africana em textos veiculados na mídia jornalística brasileira entre 2018 e
2019: um estudo de natureza sociodiscursiva‖ e apresentada por THIAGO
OLIVEIRA COSTA.
A Banca Examinadora foi composta pelas seguintes professoras:
Profª Drª Flávia Affonso Mayer (UFPB)
Prof. Dr. Edward Neves M. de Barros Guimarães (Depto. Ciências da Religião –
PUC Minas) Profª Drª Juliana Alves Assis (PUC Minas)
Profª Drª Sandra Maria Silva Cavalcante (Orientadora/PUC Minas). Após realizada a
arguição, a Banca decidiu considerar o(a) candidato(a):
( X ) APROVADO(A) ( ) REPROVADO(A)
Sugestões da Banca Examinadora para a versão final do texto, caso existam:
o(a) candidato(a) terá 60 dias corridos para entregar o texto final da dissertação com
as sugestões apontadas). A banca destaca a relevância do objeto e recomenda que,
na versão final, sejam contempladas as sugestões apresentadas na arguição.
―Esta ata não vale como certificado. A emissão do diploma está condicionada à
entrega da dissertação/tese devidamente corrigida nos termos do Regulamento
Específico do Programa.‖
Belo Horizonte, 10 de julho de 2020.
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p/Profª Drª Flávia Affonso Mayer (UFPB)
p/Prof. Dr. Edward Neves M. de Barros Guimarães (Depto. Ciências da Religião –
PUC Minas)
p/Profª Drª Juliana Alves Assis (PUC Minas)
Profª Drª Sandra Maria Silva Cavalcante (Orientadora/PUC Minas).