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Política industrial e desenvolvimento econômico: teoria e propostas para o
Brasil na era da economia digital
André Nassif
Capítulo 7 do livro “Macroeconomia Moderna: As Lições de Keynes para as Economias em Desenvolvimento”, organizado por Carmem Feijó e Eliane Araújo, Rio de Janeiro: Editora
Elsevier, 2019: 81-100.
1. Introdução
Não é exagerado afirmar que o objetivo mais importante da Economia é
entender e, se for o caso, pavimentar o caminho para que um país pobre transite do
estágio de uma economia subdesenvolvida para uma economia desenvolvida. Numa
palavra, tal objetivo consiste em entender e criar as condições para que um país pobre
alcance níveis de produtividade e de renda per capita próximos à média dos países
considerados desenvolvidos. A grande discussão travada entre economistas
neoclássicos e estruturalistas gira em torno do papel dos mercados e do Estado para
propiciar tais condições. Grosso modo, enquanto os neoclássicos enfatizam o papel
quase exclusivo do livre jogo das forças de mercado tanto no plano doméstico (laissez-
faire) como no internacional (adesão incondicional a práticas de livre-comércio), os
estruturalistas argumentam que, sem a intervenção do Estado e na ausência de uma
política industrial bem desenhada e eficientemente implementada, dificilmente será
concretizado o emparelhamento (catching up) dos países em desenvolvimento para
os níveis de renda per capita elevados dos países desenvolvidos.
Embora haja diferentes definições de política industrial, usaremos neste artigo
uma conceituação adaptada livremente de Chang (1994:60), que a define como um
tipo particular de política econômica “focado em atividades, setores, segmentos ou
indústrias específicas que sejam avaliadas, pelo governo, como capazes de alcançar
resultados benéficos para a economia no longo prazo”. Como discutiremos neste
trabalho, tal definição está perfeitamente alinhada não apenas com um fato estilizado
Professor-associado do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense. O autor agradece a Felipe Moraes Cornelio e a Luhan Reigoto pelos comentários e sugestões.
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do processo de desenvolvimento segundo o qual dificilmente um país pode lograr
alcançar o catching up sem passar pelo processo de industrialização, como também
é coerente com a conclusão de Atolia et al. (2018:8), segundo a qual uma política
industrial é considerada eficiente quando o “crescimento da produtividade ao longo do
tempo proporciona uma transformação industrial sustentável em que a economia
transita de um estágio de economia agrária tradicional para uma economia industrial
moderna, para alcançar, finalmente (ou concomitantemente), o estágio de uma
economia pós-industrial moderna baseada em serviços de elevado conteúdo
tecnológico”.
Este capítulo, organizado em cinco seções, incluindo esta Introdução, objetiva
discutir o papel da política industrial no processo de desenvolvimento econômico, bem
como propor medidas nesta esfera para o Brasil, considerando a revolução digital em
curso. Na Seção 2, analisaremos os principais fatos estilizados inerentes ao processo
de desenvolvimento econômico e ao catching up. Na Seção 3, discutiremos os
principais argumentos teóricos, bem como os instrumentos pertinentes, relacionados
ao desenho e à implementação de uma política industrial eficiente. Na Seção 4,
indicaremos os mecanismos mais apropriados de política industrial para o Brasil na
próxima década, tendo em conta a configuração de sua estrutura produtiva atual e os
rápidos avanços das novas tecnologias digitais. A Seção 5 apresenta as principais
conclusões do artigo.
2. Subdesenvolvimento e desenvolvimento econômico: principais fatos
estilizados
Em que pese o pleonasmo da afirmação, superar o subdesenvolvimento é uma
condição necessária, mas não suficiente para alcançar o catching up. Isso significa
que o processo de desenvolvimento econômico, que implica atingir níveis elevados
de produtividade e de renda per capita similares à média dos países considerados
ricos, só é considerado exitoso se as taxas médias de crescimento da produtividade
ao longo do tempo exibirem percentuais robustos e sustentáveis o suficiente para
proporcionar tal nivelamento e não forem revertidas por fenômenos estruturais
deletérios como doença holandesa (Dutch disease),1 desindustrialização prematura
1 Ocorre doença holandesa (em alusão ao fenômeno real ocorrido na Holanda na década de 1970) quando uma mudança de preços relativos desencadeia uma intensa realocação de recursos para setores produtores de bens comercializáveis, intensivos em recursos naturais (como, por exemplo,
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ou crises recorrentes do balanço de pagamentos. Em outras palavras, um país pode
superar o subdesenvolvimento, mas ficar travado durante décadas na situação
peculiar de país em desenvolvimento. Não se trata de qualquer “armadilha da renda
média”, uma expressão vazia de conotação teórica e empírica a qual sugere,
implicitamente, que alguns países teriam uma vocação natural para emperrarem a
continuidade do processo, uma vez alcançado determinado nível de renda per capita
no entorno da média mundial. Ao contrário, uma situação de lock-in negativo do
processo de desenvolvimento tende a resultar, salvo exceções, não de uma
“armadilha”, mas de políticas econômicas equivocadas adotadas ao longo de décadas
seguidas.
Que o desenvolvimento econômico nada mais é do que assegurar taxas
positivas e sustentáveis da produtividade a fim de atingir níveis de renda per capita
compatíveis com a média dos países desenvolvidos é fato pacífico entre os
economistas desde Adam Smith. O problema é como um país pode superar a
condição de país pobre para entrar no seleto clube dos países ricos. E, mesmo neste
clube, o desenvolvimento econômico não implica necessariamente redução da
desigualdade social, como mostrou, recentemente, Milanovic (2016). Embora o
desenvolvimento possa ser influenciado por fatores não econômicos, como os
históricos, antropológicos, sociológicos e culturais, os economistas abstraem-se
desses fatores e concentram-se nas forças puramente econômicas.
Existem duas abordagens gerais sobre o fenômeno do desenvolvimento
econômico: i) a neoclássica, segundo a qual o desenvolvimento econômico resulta
basicamente da confluência de forças ligadas à oferta, como a acumulação de capital
físico & humano e o progresso tecnológico (Solow,1956; Romer, 1986; Lucas, 1988;
Grossman e Helpman, 1991) e ii) a estruturalista, de acordo com a qual a demanda
de curto e de longo prazos constitui o principal fator propulsor e de sustentação do
processo de desenvolvimento (Kaldor, 1966; Dosi, Pavitt e Soete, 1990).
No entanto, levando-se em conta que ciclos de demanda deprimida que
reduzem o apetite das firmas para aumentarem os investimentos e a busca por
petróleo) e, como consequência, um boom das exportações desses produtos. Devido ao efeito-renda positivo, o processo prossegue desviando a demanda doméstica para bens não comercializáveis (por exemplo, serviços tradicionais) e, por conseguinte, provocando uma tendência de apreciação da moeda doméstica em termos reais. No longo prazo, o principal efeito perverso da Dutch disease é acarretar desindustrialização prematura e travar o dinamismo das economias em desenvolvimento. Para um modelo neoclássico sobre o fenômeno, ver Corden e Neary (1982); e para uma discussão estruturalista, ver Bresser-Pereira (2008).
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inovações podem ser alternados com ciclos em que as firmas, mesmo diante de um
ritmo lento de incremento da demanda, podem estar dispostas a manter o ritmo de
inovações - inclusive radicais, como foi o caso dos enormes investimentos levados a
cabo após a crise global de 2008, os quais, segundo a UNCTAD (2018), têm levado à
disseminação das chamadas indústrias de tecnologias digitais, como a robótica e
inteligência artificial, internet das coisas (IoT) e produção inteligente com impressão
3D -, o desenvolvimento econômico deve ser entendido como o resultado da interação
das forças da demanda e da oferta.
No âmbito da abordagem estruturalista, nota-se algum esforço na formulação
de modelos teóricos de desenvolvimento em que a interação dos fatores ligados à
demanda e à oferta explicam o ritmo de crescimento da produtividade no longo prazo.
Fazzari, Ferri e Variato (2017:1), por exemplo, apresentam um modelo de
desenvolvimento que põe em xeque a “visão de que o crescimento econômico além
do curto prazo isto é, no médio e no longo prazo] possa ser explicado apenas pelo
lado da oferta”. Nesse modelo dinâmico, entretanto, a demanda continua sendo a
força propulsora principal do crescimento do produto real no longo prazo, de tal sorte
que o incremento da oferta tende a se acomodar ao crescimento da demanda,
induzida, por sua vez, pela trajetória da demanda autônoma e do supermultiplicador
hicksiano.2 Diferentemente de Kaldor (1966), para quem não haveria qualquer fator
limitador do desenvolvimento pelo lado da oferta,3 Fazzari, Ferri e Variato (2017:3)
concluem que “enquanto o crescimento econômico no longo prazo é induzido pela
demanda (demand-led), o modelo demonstra que as restrições do lado da oferta
podem limitar a taxa máxima de crescimento a ser alcançada”.
Entendido, assim, como um fenômeno complexo decorrente de fatores
relacionados tanto à demanda como à oferta, o desenvolvimento econômico é
caracterizado pelos seguintes fatos estilizados ou regularidades empíricas (Ros, 2013;
McCombie e Thirlwall, 1994):
2 Ancorado na hipótese keynesiana de que as economias capitalistas tendem a operar abaixo do pleno-emprego e, portanto, com capacidade ociosa, este modelo do supermultiplicador, originalmente formulado por Hicks (1950) e modelado seminalmente por Serrano (1996), confere ao incremento das despesas autônomas relacionadas ao aumento do grau de utilização da capacidade um dos fatores propulsores mais importantes, via expectativas, de ativação da demanda de longo prazo e, consequentemente, de aceleração da taxa de investimento e do próprio crescimento econômico. 3 Kaldor (1966) asseverava que o único fator limitador potencial do crescimento pelo lado da oferta poderia ser a disponibilidade de trabalhadores, mas o autor argumentava que os capitalistas, uma vez que se defrontassem com tal impeditivo, tenderiam a introduzir progresso técnico poupador de trabalho.
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i) assumindo como ponto de partida uma economia subdesenvolvida, trata-se de
um processo através do qual os recursos, notadamente trabalho, são
paulatinamente realocados do setor agrário tradicional, de baixa
produtividade, para o setor industrial moderno (isto é, a indústria de
transformação ou setor manufatureiro) que, em virtude de sua elevada
intensidade capital-trabalho e maior poder gerador e difusor de progresso
tecnológico, é considerado o de maior produtividade da economia. Numa
palavra, este fato estilizado implica que o desenvolvimento econômico se
consubstancia como um processo de contínua diversificação e mudança
estrutural direcionadas aos segmentos industriais de maior produtividade e
sofisticação tecnológica (Lewis, 1954);
ii) como a indústria de transformação no seu conjunto, pelas razões apontadas no
item anterior, é o único setor sujeito a economias de escala estáticas e
dinâmicas4, à medida que ela cresce e diversifica, absorvendo recursos do
setor de baixa produtividade, tende a comandar e sustentar o aumento das
taxas médias de produtividade da economia como um todo, enquanto
persistirem diferenciais expressivos de produtividade (“gaps”)
intersetoriais;5
iii) mesmo quando um país já tenha logrado atingir um nível de renda per capita
próximo à média mundial, alcançando, com isso o status de país em
desenvolvimento ou país “emergente”, seguem persistindo os gaps de
produtividade entre a agricultura, indústria e serviços. Nessa perspectiva,
Kaldor (1966) conceitua o desenvolvimento econômico como um processo
mediante o qual uma economia transita de um estágio de “imaturidade” para
um estágio de “maturidade” industrial.
iv) somente quando um país alcança o estágio de maturidade industrial é que a
tendência de realocação de recursos dos setores agrícola e industrial para
4 Ocorrem economias de escala estáticas quando os custos unitários de uma empresa, de um segmento ou da indústria de transformação como um todo se reduzem quando suas escalas de produção aumentam, em resposta ao incremento dos investimentos; ocorrem economias de escala dinâmicas quando os custos unitários de uma empresa, de um segmento ou da indústria de transformação com um todo se reduzem quando suas escalas de produção aumentam, em resposta ao incremento da capacitação tecnológica. 5 Essa é a chamada lei de Kaldor-Verdoorn, segundo a qual quanto maior a taxa de crescimento do produto industrial (em valor adicionado), maior a taxa de crescimento da produtividade industrial. Como o incremento da produtividade dos setores não industriais depende do crescimento da produtividade do setor industrial, este, ao fim e ao cabo, é o principal determinante do ritmo de variação da produtividade média da economia como um todo. Ver Kaldor (1966) e McCombie e Thirlwall (1994, cap.2)
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os segmentos de maior produtividade do setor de serviços refletiria um
processo de desindustrialização que poderia ser entendido como benéfico
e natural. E, à esta altura, com o setor agrícola já mecanizado e com níveis
de produtividade significativamente maiores do que na fase tradicional ou
intermediária, os gaps de produtividade intersetoriais terão sido reduzidos
para níveis próximos de zero (Kaldor, 1966);
v) caso o processo de desenvolvimento seja interrompido pela
desindustrialização prematura, antes que o estágio de maturidade industrial
tenha sido alcançado, a economia perde tração estrutural para continuar
crescendo com avanços positivos e sustentáveis da produtividade no longo
prazo (Palma, 2005);
vi) a realocação prematura de trabalhadores para o setor de serviços só não será
problemática se este engendrar forte sinergia com a indústria de
transformação, o que depende de que o crescimento daquele setor seja
comandado pelos segmentos de maior produtividade, vinculados à indústria
de tecnologia da informação, comunicação e demais tecnologias digitais, e
não pelos de baixa produtividade, como comércio, varejo e serviços
domésticos (UNCTAD, 2018, cap. II e III);
vii) para que o processo de desenvolvimento não seja recorrentemente abortado
por crises do balanço de pagamentos, o país deverá contar com uma cesta
de exportações em bens e serviços com maior dinamismo nos mercados
globais que sua cesta de importações. Isso não significa que as estratégias
de desenvolvimento sejam guiadas por práticas mercantilistas que coíbam
os fluxos de importações ao longo do processo de desenvolvimento, mas
que este seja acompanhado por mudanças estruturais que promovam uma
diversificação do padrão de comércio exterior tal que a elasticidade-renda
da demanda de longo prazo dos bens exportados seja maior do que a
elasticidade-renda da demanda de longo prazo dos bens importados;6
viii) ao longo do processo de desenvolvimento econômico, é crucial que os dois
principais preços macroeconômicos (taxa de juros real e taxa de câmbio
real) sejam mantidos, tendencialmente, nos seus respectivos níveis
6 Ou seja, para que seja bem-sucedido, o desenvolvimento deve respeitar a chamada lei de Thirlwall, segundo a qual o catching up dos países em desenvolvimento do Sul em relação aos países desenvolvidos do Norte depende de que a elasticidade-renda dos bens exportados pelos primeiros seja superior à elasticidade-renda de seus bens importados. Ver Thirlwall (1979) e Cimoli e Porcile (2010).
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corretos, o que significa que a taxa de juros real média deve permanecer
em nível abaixo da taxa média de retorno do capital e a taxa de câmbio real
deverá manter a moeda ligeiramente subvalorizada: no que concerne à taxa
de juros real, não há o que discutir, já que é ela que determina, junto com
as expectativas de longo prazo, as decisões de investimento empresariais
(Keynes, 1936, cap.11 e 12); já o papel da taxa de câmbio real tem sido
objeto de forte controvérsia no Brasil nos anos recentes. Alguns
economistas argumentam que a sobrevalorização da moeda doméstica
tende a melhorar a distribuição de renda em favor dos trabalhadores, devido
ao aumento dos salários reais 7 . No entanto, como demonstraram,
teoricamente, Krugman e Taylor (1978), Bresser-Pereira, Oreiro e Marconi
(2014) e Ros (2013), este efeito só se mantém nos curto e médio prazos.
No modelo matemático demonstrado por Ros (2013, cap.11), o efeito de
uma depreciação real da moeda doméstica é, de fato, reduzir os salários
reais e, consequentemente, afetar negativamente a demanda agregada e o
crescimento econômico no curto e médio prazo, como já haviam
demonstrado Krugman e Taylor (1978) em seu artigo seminal. No entanto,
o efeito negativo da queda dos salários reais sobre o crescimento é,
seguindo Ros (2013, cap.11), compensado pelo aumento da taxa de lucro
esperada, que ativa, por sua vez, a acumulação de capital e, ao fim e ao
cabo, a produtividade média agregada da economia no longo prazo. 8
Adicionalmente, a literatura empírica é literalmente conclusiva a esse
7 Isso ocorreria porque a sobrevalorização da moeda ajuda a deprimir o nível de preços domésticos - seja pela redução de custos dos bens importados, seja pela pressão competitiva externa -, e, consequentemente, para dado nível de salário nominal, a aumentar o salário real. Laura Carvalho (2018:62) é uma das autoras de linhagem estruturalista que duvida dos efeitos benéficos da subvalorização da moeda ao afirmar que, no caso do Brasil, “os defensores dessa estratégia argumentam que, no longo prazo, a produtividade do trabalho cresceria mais rápido graças ao desenvolvimento de setores de maior sofisticação, o que permitiria também um crescimento mais acelerado dos salários no futuro”. E conclui: “o fato é que não chegamos nem perto disso”. No entanto, sua crítica não procede, porque o real ficou sobrevalorizado, em termos tendenciais, praticamente na maior parte da década em que a autora centra sua análise (2004-2014), e, para que os efeitos de uma subvalorização marginal fossem benéficos, teria sido preciso que a mesma se mantivesse no longo prazo. 8 Note que um desavisado poderia argumentar que tal modelo contraria a hipótese de Keynes segundo a qual os investimentos não dependem dos salários reais (como sustentavam os velhos “clássicos” e ainda sustentam os “novos-clássicos”). De fato, não dependem. No entanto, o modelo de Ros (2013, cap.11) em nada contraria a teoria keynesiana do investimento, uma vez que a queda dos salários reais influencia positivamente a taxa de lucro esperada de longo prazo, ou seja, afeta, indireta e positivamente, a eficiência marginal do capital.
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respeito: supondo tudo o mais constante, moedas sobrevalorizadas
reduzem o crescimento econômico no longo prazo.9
ix) segundo Amsden (2001: 185-189), salvo as raríssimas exceções de Hong-
Kong e Suíça - em ambos os casos devido a especificidades históricas do
período em que se se industrializaram - não existe qualquer outra
experiência posterior à Revolução Industrial em que o desenvolvimento
econômico tenha resultado de práticas de laissez-faire ou adesão
incondicional ao livre-comércio nos planos bilateral, regional ou multilateral.
Nessas circunstâncias, Chang (2003:2) é taxativo ao afirmar que “os países
desenvolvidos não conseguiriam estar na posição em que se encontram
agora se tivessem utilizado as mesmas políticas econômicas e instituições
que recomendam aos países em desenvolvimento atualmente”; e que “a
maioria dos países desenvolvidos utilizou ativamente políticas industriais e
comerciais consideradas hoje “más políticas”, como a proteção de indústrias
nascentes, subsídios às exportações, entre outras que foram praticamente
banidas pelos acordos multilaterais da Organização Mundial do Comércio
(OMC)”.
3. Política industrial e desenvolvimento econômico: aspectos teóricos,
instrumentos e problemas
Como as teorias do desenvolvimento econômico procuram capturar as
principais variáveis estruturais que explicam o crescimento econômico no longo prazo,
o papel da política industrial é, geralmente, abstraído da análise teórica. No entanto,
dificilmente o avanço da produtividade, da mudança estrutural e do catching up será
exitoso se depender apenas do livre funcionamento das forças de mercado. Grosso
modo, existem três argumentos teóricos principais que amparam a adoção de uma
política industrial orientada para o objetivo de lograr o catching up: i) o argumento
neoclássico das falhas de mercado (market failures); ii) o argumento nacionalista da
proteção da indústria nascente; e ii) o argumento neoschumpeteriano para a redução
dos gaps tecnológicos e a consecução do catching up.10
9 Ver Razin e Collins (1999), Dollar e Kraay (2003), Williamson (2008), Rodrik (2008), Gala (2008) e Berg e Miao (2010). 10 Para uma resenha crítica mais detalhada desses argumentos, ver Nassif (2000).
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O argumento neoclássico das falhas de mercado parte da premissa de que, se
forem satisfeitas todas as condições requeridas para manter uma estrutura de
equilíbrio econômico geral walrasiano e o alcance do ótimo de Pareto - concorrência
perfeita nos mercados de bens e fatores de produção, funções de produção com
tecnologias sujeitas a retornos constantes de escala, preferências homotéticas em
nível global, dentre outras condições restritivas - a ausência de intervenções nos
mercados doméstico (laissez-faire) e externo (livre-comércio puro) seria o regime de
política econômica mais adequado para assegurar o crescimento econômico e a
alocação ótima dos recursos escassos. O laissez-faire e o livre-comércio seriam a
política ótima (first-best), de tal sorte que não haveria qualquer justificativa para a
adoção de política industrial, já que os mecanismos de preços de mercado seriam
suficientes para alimentar os agentes econômicos com todas as informações
necessárias para alocar os recursos produtivos disponíveis e alcançar o ótimo social
(Corden, 1974).
No entanto, como no mundo real, a predominância de diversas falhas nos
mercados de bens (monopólios, oligopólios, etc.) e de fatores de produção (barganha
entre sindicatos de trabalhadores e empresas, racionamento de crédito, assimetria de
informações, etc.) tende a produzir divergências entre os benefícios marginais
privados e sociais, a abordagem neoclássica chega a admitir a adoção de uma política
industrial, mas por meio de mecanismos da política econômica doméstica ou
comercial externa exclusivamente orientados para o objetivo de corrigir aquelas falhas
(Corden, 1974). Além disso, na perspectiva neoclássica, qualquer intervenção
governamental utilizada com o intuito de corrigir falhas de mercado será sempre uma
política subótima (second-best), comparada ao laissez-faire e ao livre-comércio puro,
que são considerados regimes de política ótima (first-best). De todo modo, como os
neoclássicos duvidam de que o governo seja munido das informações relevantes para
identificar corretamente as falhas de mercado, eles tendem a privilegiar instrumentos
horizontais de política industrial, os quais beneficiariam, em princípio, o sistema
econômico como um todo, e não segmentos específicos.11 Ou seja, os neoclássicos
criam uma camisa de força para a adoção de um conjunto mais diversificado de
11 Cabe lembrar que muitos instrumentos de política horizontal têm efeitos setoriais ou regionais, como, por exemplo, uma ferrovia ligando a extração de minério desde o local de produção até um determinado porto localizado em outra região. Embora os incentivos governamentais para a construção da ferrovia sejam entendidos como um mecanismo de política industrial horizontal, na prática, os produtores localizados mais próximos à referida infraestrutura serão mais beneficiados do que os localizados em regiões mais longínquas da mesma.
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mecanismos de política industrial, baseados no argumento de que as falhas de
governo poderiam agravar as falhas de mercado. Note, porém, que, segundo o
argumento neoclássico, o objetivo da política industrial é produzir resultados
meramente estáticos, já que está focado exclusivamente em compensar perdas
virtuais de bem-estar para a sociedade como um todo, e não em acelerar o processo
de mudança estrutural e catching up ao longo do tempo.
O argumento nacionalista da proteção da indústria nascente foi pioneiramente
indicado por Alexander Hamilton (1791), o secretário do Tesouro do primeiro governo
norte-americano pós-independência, e elaborado por Friedrich List (1841), quando
tanto os Estados Unidos como a Alemanha mantinham-se bem atrasados em relação
à Inglaterra, que detinha o status de principal potência tecnológica, econômica e
financeira da economia mundial em meados do século XIX. O argumento está
amparado na ideia intuitiva de que um país pobre e atrasado em relação à fronteira
tecnológica internacional tenderia a perpetuar suas condições “naturais” de vantagem
comparativa estática, baseada em produtos primários ou tradicionais, cuja base
principal de produção é a utilização intensiva dos recursos abundantes disponíveis no
país (trabalho ou recursos naturais). Teoricamente, o argumento é bastante sólido ao
captar, implicitamente, a hipótese de que os setores agrários tradicionais, sujeitos a
retornos decrescentes, dificilmente seriam capazes de absorver o excesso de mão de
obra criado pela taxa de crescimento populacional. Por conseguinte, embora os
autores não detivessem o domínio preciso desses conceitos, eles tinham plena
consciência de que apenas uma estratégia de desenvolvimento capitaneada pelo
crescimento e diversificação da indústria de transformação, sujeita a retornos
crescentes estáticos e dinâmicos de escala, teria potencial suficiente para que um
país subdesenvolvido viesse a superar sua condição de atraso econômico e social.
Na defesa da proteção da indústria nascente – ou seja, do processo de
industrialização como condição sine qua non para a consecução do catching up -,
Hamilton e List defendiam uma combinação de instrumentos de proteção, tais como
tarifas aduaneiras incidentes sobre os fluxos de importação, subsídios à produção e
ao crédito, dentre outras. O argumento para proteção da indústria nascente foi
teoricamente tão poderoso que chegou a ser defendido pelo economista liberal
clássico John Stuart Mill (1848)12 e, após a II Guerra Mundial, amparado pelo Artigo
12 No geral, Mill (1848) era um entusiasta das práticas de livre-comércio amparadas pelo princípio das vantagens comparativas. No entanto, abria exceção para a adoção de taxas protecionistas, a fim de que um país atrasado pudesse adquirir a habilidade e experiência tecnológica já alcançada por um
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XVIII do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) e preservado
pela Organização Mundial do Comércio (OMC), que permite que os países pobres
utilizem barreiras à importação para promoverem indústrias nascentes. De qualquer
forma, é importante destacar que o argumento para proteção da indústria nascente
não se aplica aos países em desenvolvimento que já tenham alcançado a posição de
semi-industrializados, mas apenas aos países que ainda se encontram na condição
de subdesenvolvidos.
Já o argumento neoschumpeteriano dos gaps tecnológicos é mais apropriado
para justificar teoricamente a política industrial em países em desenvolvimento ainda
em fase de “imaturidade” industrial na perspectiva kaldoriana, os quais, por razões
diversas, como crises de dívida externa, inflação crônica, desindustrialização
prematura, entre outras, interromperam o processo de catching up e entraram em
processo de estagnação econômica, como tem sido o caso do Brasil desde o início
da década de 1980. O argumento, cuja tradição remonta a List (1841) e alcança
Posner (1961), é retomado pelos trabalhos de economistas neoschumpeterianos
como Cimoli, Dosi e Soete (1986), Cimoli (1988), Dosi, Pavitt e Soete (1990) e Cimoli
e Porcile (2010), para demonstrar teoricamente que os fatores mais importantes para
explicar o dinamismo tanto do comércio como do crescimento econômico estão
associados ao hiatos (gaps) tecnológicos absolutos existentes entre setores e
países - neste caso, medidos pelos diferenciais de renda per capita – no plano
global.13 Os modelos neoschumpeterianos retomam a tese original de Schumpeter
(1942) de que são as inovações tecnológicas os fatores preponderantes para acelerar
o processo de desenvolvimento econômico, para demonstrar que são elas que,
associadas à acumulação de capital, produzem e reproduzem as diferenças absolutas
e relativas entre as capacitações tecnológicas e os ritmos de crescimento da
produtividade e da renda per capita entre os países na economia global.
outro país mais adiantado, cuja “superioridade sobre o primeiro, em um ramo de produção, muitas vezes vem apenas do fato de ter começado antes”. Mill (1848:381-282), no entanto, sugeria critérios bem mais racionais do que muitos economistas entusiastas do protecionismo, já que advertia que seria essencial a seletividade de setores com real potencialidade de absorção tecnológica e que o tempo de proteção não fosse além do necessário para que as empresas protegidas pudessem obter o domínio tecnológico sob condições competitivas. 13 Cabe enfatizar que o argumento para proteção da indústria nascente pressupõe a existência de gaps tecnológicos entre países, mas a recíproca não necessariamente se aplica. Por exemplo, o argumento para política industrial mais adequado para o Brasil atualmente, que já alcançou estágio de país semi-industrializado, é o baseado na existência de gaps tecnológicos significativos em relação à fronteira internacional, e não o da proteção da indústria nascente.
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Os modelos de gaps tecnológicos apresentam um argumento poderoso para a
adoção de uma estratégia de política industrial nos países em desenvolvimento,
sobretudo naqueles que passaram por processo de desindustrialização prematura
(Brasil, inclusive), devido a duas razões principais: primeiro porque, como os setores
diferem entre si quanto ao ritmo e potencial de gerar e difundir inovações, uma vez
desencadeados retornos crescentes dinâmicos que se manifestam, por sua vez, como
causa e efeito das inovações e do progresso tecnológico, na ausência de política
industrial, os gaps tecnológicos entre setores e países tendem a ser tornar
autocumulativos, dadas as características de path-dependence e lock-in de suas
respectivas trajetórias tecnológicas (Arthur, 1989)14; e segundo, porque, como os
setores industriais diferem entre si quanto aos retornos de escala (estáticos e
dinâmicos) e à capacidade de gerar inovações e difundir externalidades econômicas
positivas para a economia como um todo, na ausência de política industrial, os sinais
emanados exclusivamente das forças de mercado tendem a ser insuficientes para
promover uma alocação de recursos que maximize a potencialidade do retorno social,
expresso em aumento sustentável da produtividade, do crescimento da renda per
capita e da redução da desigualdade.15
No modelo de gaps tecnológicos de Cimoli e Porcile (2010), estes autores
demonstram, matematicamente, que a capacidade de os países em desenvolvimento
do Sul, “imitadores de tecnologia”, fazerem o catching up com os países
desenvolvidos do Norte, considerados “inovadores”, dependem de duas condições
fundamentais a serem preenchidas pelos primeiros: i) que sejam bem-sucedidos na
estratégia de diversificar sua estrutura produtiva e sua cesta de exportações em bens
e serviços de elevada elasticidade-renda das exportações; e ii) que a elasticidade-
renda da demanda de suas exportações seja superior à elasticidade-renda da
demanda de suas importações, ou seja, que satisfaçam a lei de Thirlwall, o que
pressupõe que a política industrial deverá focar em atividades, segmentos e setores
com elevado potencial de imitar, absorver, lançar e difundir inovações para
14 Segundo Arthur (1989), um processo de mudança tecnológica é path-dependence quando eventos passados (“a história”) exercem poderosa influência sobre as inovações, o aprendizado e o progresso tecnológico futuros; e torna-se locked-in quando eventos históricos submetem a economia ao monopólio de uma tecnologia (superior ou não). 15 Krugman (1992:14) enfatiza que “o retorno social dos recursos alocados nos setores de alta tecnologia supera o retorno privado e, por isso, à medida que a concorrência internacional leva
determinados países que aderem a práticas de livre-comércio puro e incondicional] a desviarem recursos desses setores para os setores que operam sob retornos constantes ou decrescentes, tal processo tende a reduzir o bem-estar social.”
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segmentos, setores e/ou para a economia como um todo. Numa palavra, a política
industrial relevante em países que se encontram em processo de semi-estagnação
econômica, como é o caso do Brasil, consiste em retomar o processo de mudança
estrutural e diversificação da estrutura produtiva e exportadora em direção a bens e
serviços de elevada elasticidade-renda da demanda nos mercados globais.
Se há argumentos teóricos sólidos favoráveis à adoção de uma estratégia de
política industrial orientada para acelerar e sustentar o processo de catching up, as
dificuldades residem em delimitar e combinar um conjunto de instrumentos que
produzam os benefícios esperados nos médio e longo prazos. Num artigo intitulado
“Industrial policy: don’t ask why, ask how”, Rodrik (2008a) discute justamente tais
problemas concernentes à implementação e gestão da política industrial. Embora não
exista uma regra de bolso, das experiências exitosas dos chamados tigres asiáticos
(Coréia do Sul, Taiwan, Singapura e Hong Kong), podemos extrair os seguintes
requisitos fundamentais para que a política industrial seja consistente e produza
resultados positivos (Amsden, 1989; 2001; Wade, 2003; Mazzucato, 2013):
i) priorização permanente dos investimentos governamentais em infraestrutura
física (modal diversificado de transportes, planejamento e mobilidade
urbana, saneamento, etc.) e humana (sistema adequado de saúde e
educação em todos os níveis, do ensino infantil ao superior): se o papel da
política industrial é produzir mudanças estruturais voltadas para a
diversificação da produção de bens e serviços de maior sofisticação
tecnológica, é evidente que países que evitam o aparecimento de gargalos
e deficiências na infraestrutura física, de saúde e educação conseguirão
gerar maiores externalidades positivas para reduzir os custos associados à
modernização de atividades já existentes e à introdução e difusão de
inovações. Cabe ressaltar, no entanto, que a consecução de investimentos
orientados para a criação e manutenção da infraestrutura básica da política
industrial não assegura per se as condições suficientes para a promoção da
mudança estrutural e do catching up. Isso significa que é preciso que os
governos estabeleçam estratégias claras com respeito a quais atividades,
segmentos e setores serão priorizados ao longo do tempo;
ii) seletividade das atividades, segmentos e setores prioritários ao longo do árduo
esforço de catching up: embora o princípio da vantagem comparativa
implique a conclusão normativa equivocada de que todos os países obtêm
14
ganhos recíprocos emanados da adesão incondicional ao livre-comércio -
porque se ampara em hipóteses irrealistas como retornos constantes de
escala, concorrência perfeita nos mercados de bens e fatores, demanda
homotética, etc. -, ele contém uma mensagem prática da maior relevância:
como nenhum país será eficiente em condições autárquicas, para que a
política industrial consiga obter resultados eficientes em termos estáticos
(redução de custos unitários) e dinâmicos (aumento da produtividade e do
crescimento econômico no longo prazo), é necessário que os bens e
serviços decorrentes das atividades, segmentos e setores considerados
não prioritários (notadamente os bens de capital e bens intermediários que
não sejam focados pela política industrial) tenham tarifas de importação
reduzidas ou iguais a zero;
iii) foco em atividades, segmentos e setores com potencial de desencadear
inovações tecnológicas: este requisito é importante não apenas porque são
as inovações tecnológicas a principal fonte estrutural de crescimento no
longo prazo, mas também porque os países subdesenvolvidos e em
desenvolvimento já costumam contar com vantagens comparativas
“naturais” em setores tradicionais, sejam eles intensivos em trabalho não
qualificado ou em recursos naturais;
iv) criação de mecanismos que capacitem as empresas dos setores manufatureiro
sujeitos a economias de escala – bem como os segmentos de serviços,
quando for o caso – a se tornarem competitivas para alcançar o mercado
global: embora ainda permaneça válida a hipótese de Linder (1961)
segundo a qual a obtenção de competitividade exportadora em diversos
segmentos do setor manufatureiro requer o aproveitamento prévio de um
mercado interno suficientemente grande o bastante para esgotar as escalas
mínimas eficientes para competir no mercado internacional, o fato é que o
governo pode oferecer incentivos internacionalmente aceitos (por ex.,
drawback, crédito à exportação de manufaturados, etc.) para acelerar o
acesso das empresas exportadoras potenciais ao mercado internacional.
Com isso, elas não apenas serão capazes de aprimorar o aprendizado
tecnológico e o padrão de qualidade dos bens produzidos, já que contarão
com o feedback de consumidores de países de diferentes níveis de renda
per capita, como também contribuirão para o aumento das divisas
15
necessárias para sustentar o equilíbrio do balanço de pagamentos no longo
prazo;
v) cobrança permanente de resultados por parte das empresas que recebam
benefícios públicos ou contem com proteção tarifária: o governo deve estar
dotado de instituições e recursos humanos que possam acompanhar os
resultados das empresas que recebam proteção industrial (via tarifas de
importação e subsídios públicos), expressos pelo aumento da produtividade
do trabalho, redução de custos unitários e esforço exportador, todos estes
considerados indicadores fáceis de serem obtidos e calculados. Como já
sugeria John Stuart Mill (1848), caso as empresas protegidas não mostrem
resultados concretos ao longo do tempo, os incentivos devem ser reduzidos
ou, no limite, retirados;
vi) estratégia de política voltada para o investimento direto estrangeiro (IDE): a
exemplo dos países asiáticos, os mecanismos de atração de investimento
direto estrangeiro devem focar não apenas os aspectos quantitativos de
estimular maiores influxos líquidos, mas também negociar condições para
que as filiais de multinacionais transfiram tecnologias para firmas locais que
operem em atividades, segmentos ou setores correlatos;
vii) prazo para a concessão de proteção aduaneira e outras formas de incentivo à
produção local: embora a teoria econômica não contemple uma resposta
acerca do prazo requerido para que o aprendizado tecnológico consiga
convergir os custos unitários e o padrão de qualidade para os níveis
vigentes nos países inovadores, é fato que a experiência exitosa dos países
asiáticos mostra que o governo deverá reduzir paulatinamente os
incentivos concedidos, até que os mesmos sejam totalmente eliminados.
Para isso, a cada programa de política industrial, as empresas devem estar
informadas desses prazos, para que se preparem para enfrentar, mais
adiante, a pressão competitiva externa. Mesmo que os prazos inicialmente
planejados possam ser, excepcionalmente, alargados, é preciso rigorosa
disciplina para evitar que os empresários sejam levados à inação e à
tentativa recorrente de perpetuarem a obtenção de rendas improdutivas
(rent-seeking; ver Krueger, 1974);
viii) e, provavelmente, mais importante, uma contínua coordenação entre a
política industrial e a política macroeconômica do país: isso significa, como
16
já analisado anteriormente, que os policy-makers deveriam engendrar
esforços para que os mecanismos da política macroeconômica,
normalmente manejados com o objetivo de assegurar o crescimento e a
estabilidade monetária, sirvam também para ancorar os objetivos
esperados da política industrial, em especial o aumento da produtividade e
a persecução da trajetória de catching up, como já discutido previamente.
Cabe lembrar que o papel da política macroeconômica é assegurar um
ambiente de estabilidade não apenas para satisfazer às demandas dos
mercados financeiros, mas, principalmente, para prolongar, o máximo
possível, o “estado de confiança” (para usar o termo consagrado por
Keynes, 1936: 148) necessário para que os “espíritos animais” dos
empresários sejam atiçados a se arriscarem na incerteza inerente às
expectativas de lucros decorrentes dos investimentos em capital físico e em
inovações. E, com respeito ao alinhamento das políticas industrial e
macroeconômica, vale a pena reproduzir a proposição de Kaldor (1970)
sugerindo que, tudo o mais constante, a taxa de câmbio real subvalorizada
atua como o mais poderoso instrumento de política industrial. De acordo
com o autor (Kaldor, 1970:152),
“dentre os dois instrumentos que agem no sentido de reverter os efeitos
adversos tendenciais da ”eficiência dos salários” – a proteção aduaneira e
a desvalorização da moeda em termos reais -, este último é
indubitavelmente superior ao primeiro. A desvalorização que produza uma
ligeira subvalorização da moeda doméstica], com tem sido argumentado,
nada mais é do que a combinação de uma tarifa ad valorem uniforme sobre
todas as importações e um subsídio ad-valorem uniforme sobre todas as
exportações.”
4. Uma proposta de política industrial para o Brasil na era da economia digital
A dificuldade com que os governos brasileiros se defrontam em implementar
políticas industriais consistentes contribui para o contra-argumento falacioso de que a
melhor política industrial é a ausência de política industrial, o que significa acreditar
que o livre jogo das forças de mercado serão capazes de propiciar a melhor alocação
17
estática e dinâmica dos recursos produtivos. 16 Como tal hipótese tampouco é
verdadeira, haja vista os fatos estilizados discutidos na Seção 2, a melhor saída é
entender que, assim como o domínio das tecnologias resulta de um processo
idiossincrático no qual as empresas “aprendem fazendo” (learning-by-doing”),
mediante sucessivas tentativas de erros e acertos, para que se maximize a eficiência
da política industrial é preciso que o governo, em articulação com os atores privados
e as diversas esferas institucionais, aprenda com os diversos erros já cometidos no
passado. Reconhecer e evitar tais erros já seria um bom começo.
Falta, então, discutir qual política industrial seria mais adequada, afinal, para o
Brasil na era da chamada economia digital.17 Os resultados de uma pesquisa recente
(Nassif et.al., 2019), podem ajudar a responder essa questão. Decompusemos a
variação da produtividade do trabalho entre 1950 e 2011 nos dois componentes
sugeridos pela metodologia de McMillan e Rodrik (2011): i) mudança estrutural
(structural change ou intersectoral change), em que a variação da produtividade média
agregada num país é fortemente afetada pela realocação de recursos dos setores de
baixa para os de alta produtividade; e efeito intrassetorial (within change ou sectoral
change), em que a variação da produtividade média agregada decorre de
características inerentes ao próprio setor, como intensidade capital-trabalho,
progresso tecnológico setorial, dentre outras. Se um país em desenvolvimento não
tiver atingido ainda nível de maturidade produtiva e os seus ganhos de produtividade
totais forem predominantemente de tipo intrassetorial (within change), McMillan e
Rodrik (op cit.), seguindo os argumentos seminais de Kaldor (1966), sustentam que
sua trajetória de eficiência econômica de longo prazo passa a ser redutora de
crescimento econômico ou growth-reducing. Mas se predominarem os ganhos
decorrentes de mudança estrutural, a trajetória de incremento da produtividade tende
a ser indutora de crescimento no longo prazo ou growth-enhancing. Os resultados,
apresentados na Gráfico 1, confirmam os já apresentados por outros estudos que
utilizaram a mesma metodologia:18
16 Para uma avaliação das políticas industriais adotadas no Brasil desde o processo de substituição de importações, ver Nassif (1995; 2003) e Nassif, Bresser-Pereira e Feijó (2018). 17 Sobre os diversos impactos de longo prazo emanados das indústrias de tecnologias digitais, ver UNCTAD (2018) e Furtado et al. (2018). 18 Ver Firpo e Pieri (2016) e Silva et al. (2016).
18
Gráfico 1
Decomposição da produtividade do trabalho na economia brasileira -
em percentual acumulado: 1950-2011
Fonte: Nassif et al (2019).
Entre 1950 e 1979, dos ganhos de produtividade do trabalho acumulada, de
247,56%, os ganhos induzidos por mudança estrutural (131,65 p.p.) foram superiores
aos emanados da mudança setorial (115,91 p.p.); no período 1980-1994, a variação
total daquele indicador foi negativa (-19,53%), com variação induzida por mudança
estrutural muito reduzida (6,02 p.p.), enquanto a oriunda de mudanças do próprio setor
foi negativa (-25,55 p.p.); já no período 1995-2011, a variação acumulada da
produtividade do trabalho foi medíocre (apenas 13,54%), com variação induzida pelas
mudanças estruturais inferior (5,82 p.p.) à decorrente de mudanças inerentes ao
próprio setor (7,72 p.p.). Esse resultado não seria preocupante se o Brasil já tivesse
atingido nível de maturidade da estrutura produtiva, situação a partir da qual o
potencial para mudanças estruturais tende a ser esgotado e os ganhos de
produtividade passam a ser induzidos pelo progresso tecnológico setorial, como já
discutimos na Seção 2, seguindo os argumentos originais de Kaldor (1966).19
Considerando, portanto, a “imaturidade” da estrutura produtiva, o longo
processo de estagnação da produtividade média agregada e a dramática
19 Ver o argumento teórico original no artigo clássico de Kaldor (1966).
19
desindustrialização prematura observada desde os anos 2000 20 , uma política
industrial para o Brasil na próxima década deveria contemplar dois objetivos
principais: i) retomar o processo de mudança estrutural por meio da reindustrialização
dos diversos segmentos industriais que perderam competitividade desde o início da
década de 2000, como já discutimos em trabalho anterior (Nassif, Bresser-Pereira e
Feijó, 2018); e ii) conectar a estrutura produtiva brasileira (agricultura, indústria e
serviços) com as novas tecnologias digitais, que têm sido denominadas de Indústria
4.0. Como comenta Furtado et al. (2018), Indústria 4.0 ou indústrias de tecnologias
digitais são termos usados para se referir à quarta revolução industrial em curso,21
pela qual os sistemas manufatureiro e de serviços vêm incorporando diversas
tecnologias consideradas disruptivas, com base em sistemas cibernéticos,
tecnologias microeletrônicas e digitais, inteligência artificial, robótica e internet das
coisas (IoT), as quais produzirão impactos significativos na produção, emprego,
competitividade e fluxos de comércio e investimento globais.
Como não há necessidade de reinventar a roda, uma proposta extremamente
útil é a fornecida por Miguez et al. (2018), que, a partir da metodologia matricial de
capacitações tecnológicas básicas proposta por Andreoni (2018), reconstroem uma
matriz tecnológica relacionando as indústrias-alvo da política industrial com as
respectivas bases de conhecimento relativas às tecnologias intensivamente utilizadas,
sejam de forma direta ou transversal. A proposta dos autores é relevante porque
permite não apenas focar os setores passíveis de reestruturação a partir de
tecnologias já difundidas, como também propiciar saltos tecnológicos com base nas
novas tecnologias digitais relacionadas à chamada Indústria 4.0. Assim, os autores
20 De acordo com Rodrik (2016), a região asiática (China incluída) foi a única a ficar imune ao processo de desindustrialização prematura, já que a participação média de sua indústria de transformação (em valor adicionado, a preços de 2005) no PIB aumentou de 16% para 28% entre 1980 e 2013, ao passo que essa mesma participação no Brasil foi reduzida de 21% para 13% em igual período (a preços de 1995, segundo dados do IBGE). 21 Como mostra Landes (1969, capítulo 1), em seu monumental “The unbound Prometheus: technological change and industrial development in Western Europe from 1750 to the present”, o termo “revolução industrial” (com minúsculas) refere-se às diversas mudanças tecnológicas deflagradas por inovações radicais, como a introdução da máquina a vapor em meados do século XVIII (primeira revolução industrial), a difusão dos bens de capital mecânicos, dos processos químicos, da eletricidade e da indústria automotiva entre o final do século XIX e início do século XX (segunda revolução industrial), a revolução microeletrônica e informática no final do século XX (terceira revolução industrial) e, agora em curso, a emergência e difusão das tecnologias digitais (quarta revolução industrial). Segundo Landes, o termo “Revolução Industrial” (com maiúsculas) refere-se à única na história da humanidade, deflagrada na Inglaterra, em meados do século XVIII, e difundida para o restante da Europa Continental, nos séculos seguintes, cuja consequência marcante foi, com a mecanização do sistema produtivo, consolidar o sistema capitalista como modo de produção hegemônico.
20
criam uma taxonomia para as diversas bases de conhecimento, conectando-as com
as respectivas atividades tecnológicas a saber, conforme discriminadas na Tabela 1.22
Tabela 1
Bases de conhecimento da matriz tecnológica
Conhecimento tecnológico básico Processos tecnológicos específicos
Ciência avançada (advanced analytics) Algoritmos e programação; inteligência artificial; big data; modelagem e simulação
Biotecnologia Biomateriais; bioprocessos; células-tronco; genética e genômica
Eletrônica e ótica avançadas Eletrônica avançada; ótica e optoeletrônica; sensores
Processo manufatureiro padrão e avançado Equipamentos e dispositivos convencionais; engenharia de processo; robótica; sistemas de controle e monitoramento
Materiais avançados Materiais compósitos; novas ligas metálicas; novos materiais
Nanotecnologia Nanotecnologia
Processos físico-químicos Processos mecânicos; processos químicos
Redes de comunicação Hardwares e softwares para redes de comunicação
Sistemas de energia Armazenamento, geração e recuperação de energia; redes inteligentes (smart grids)
Fonte: Adaptado de Miguez et al. (2018:11).
Com base na taxonomia proposta por Miguez et al. (2018), procuramos mapear
alguns setores-alvo, cujas justificativas estão relacionadas aos seguintes objetivos,
dependendo caso a caso: i) buscar incremento tecnológico (upgrading), com base nas
vantagens comparativas efetivas ou potenciais, mediante melhora das condições
tecnológicas já existentes e/ou introdução de inovações incrementais; ii) buscar
avançar em saltos tecnológicos em setores com elevada capacidade de difundir
tecnologia para outros setores ou para a economia como um todo; e iii) promoção de
setores com elevada capacidade para desencadear efeitos tecnológicos e de
demanda para frente (upstream networks), os quais - como demonstra formal e
22 Para maiores detalhes da metodologia, ver Miguez et al. (2018).
21
empiricamente Liu (2018), neste artigo seminal baseado nas experiências da Coréia
do Sul na década de 1970, e da China, nas décadas recentes -, detêm maior potencial
para gerar efeitos dinâmicos positivos na economia como um todo. Na Tabela 2,
elencamos onze setores-alvo, indicando, para cada um deles, suas respectivas bases
de conhecimento (extraídas de Miguez et al., 2018) e as justificativas que amparam
tais escolhas.
É importante enfatizar que, obviamente, nem todos os segmentos que
constituem os setores discriminados na Tabela 2 serão alvo da política industrial,
cabendo aos policy-makers analisar e decidir, com base em indicadores quantitativos
e qualitativos e em articulação com as entidades das classes produtoras, aqueles com
maior potencial para que sua produção seja internalizada no país e aqueles cuja
demanda seria abastecida pelas importações. Com respeito às novas tecnologias
digitais, em que parte dos processos tecnológicos específicos estão discriminados na
Tabela 1, vale lembrar a velha tese de Carlota Perez e Luc Soete (1988), para quem
as “janelas de oportunidade” abertas aos países em desenvolvimento que tenham
acumulado capacitação tecnológica mediana são mais promissoras justamente nas
fases de transição para uma nova revolução radical, já que ainda não estão definidas
as trajetórias tecnológicas futuras, o que parece ser o caso da revolução digital em
curso. Com efeito, a UNCTAD (2018:69) comenta que, na perspectiva de alcançar o
catching up, “a economia digital oferece enormes oportunidades para o surgimento de
novos setores, a promoção de novos mercados e o aumento do potencial de ganhos
de produtividade necessários para melhorar o padrão de vida nos países em
desenvolvimento.”
22
Tabela 2
Setores-alvo para a política industrial brasileira na era da economia digital
Setores-alvo Justificativas Bases de conhecimento principais
1. Complexo agroindustrial Upgrading tecnológico a partir das vantagens comparativas já existentes
Biotecnologia; eletrônica e ótica avançada; processo manufatureiro padrão e avançado; redes de comunicação; ciência avançada.
2. Petróleo e gás Upgrading tecnológico a partir das vantagens comparativas existentes e potenciais
Processo manufatureiro padrão e avançado; materiais avançados; redes de comunicação; ciência avançada; sistemas de energia.
3. Biocombustíveis Upgrading tecnológico a partir das vantagens comparativas potenciais
Biotecnologia; processo manufatureiro padrão e avançado; processos físico-químicos.
4. Indústria química Upgrading tecnológico a partir das vantagens comparativas potenciais; salto e spillovers tecnológicos; e efeitos de encadeamento para frente (upstream networks)
Biotecnologia; processo manufatureiro padrão e avançado; nanotecnologia.
5. Fauna, flora, medicamentos e vacinas
Upgrading tecnológico a partir das vantagens comparativas potenciais; salto tecnológico
Ciência avançada; biotecnologia; nanotecnologia; processos físico-químicos; processo manufatureiro padrão e avançado; eletrônica e ótica avançada; redes de comunicação.
6. Complexo industrial da saúde (equipamentos e materiais)
Salto e spillovers tecnológicos Eletrônica e ótica avançada; processo manufatureiro padrão e avançado; materiais avançados; ciência avançada; nanotecnologia.
7. Automotivo Salto tecnológico para novos sistemas energéticos
Sistemas de energia; manufatura padrão e avançada; materiais avançados.
8. Bens de capital Spillovers tecnológicos; e efeitos de encadeamento para frente (upstream networks).
Sistema manufatureiro padrão e avançado; redes de comunicação; inteligência artificial
9. Eletrônica Salto e spilllovers tecnológicos; e efeitos de encadeamento para frente (upstream networks).
Processo manufatureiro padrão e avançado; eletrônica e ótica avançada; materiais avançados; redes de comunicação.
10. Defesa e indústria aeroespacial
Salto e spillovers tecnológicos Ciência avançada; eletrônica e ótica avançada; sistemas de energia; sistema manufatureiro padrão e avançado; materiais avançados; nanotecnologia; processos físico-químicos; redes de comunicação.
11. Serviços da Indústria de Tecnologia da Informação e Comunicação
Salto e spillovers tecnológicos; e efeitos de encadeamento para frente (upstream networks).
Ciência avançada; eletrônica e ótica avançada; materiais avançados; redes de comunicação
Fonte: Elaboração própria, baseada na taxonomia de Miguez et al. (2018) e nos resultados de Liu
(2018).
23
E, finalmente, entender que a economia digital não está dissociada do
processo manufatureiro propriamente dito. Como mostra o último Trade and
Development Report da UNCTAD, de 2018, “como não há evidências robustas de que
a participação passiva nas cadeias globais de valor (CGV) gere spillovers
significativos para os países em desenvolvimento, a política industrial deveria priorizar
a geração de maior valor agregado doméstico e não estrangeiro, é bom que se diga,
como defendem os apologistas das CGV] nos processos produtivos, maximizando os
efeitos de encadeamento para frente e para trás, encorajar a transferência e absorção
de tecnologia, bem como a difusão de conhecimento, além de priorizar a diversificação
em direção à produção de bens de serviços de maior conteúdo tecnológico”
(UNCTAD, 71), na linha do que discutimos na Seção 2 deste estudo.
Cabe destacar, por fim, que uma política industrial para o Brasil na era da
economia digital deveria contar com os seguintes requisitos:
i) manter níveis baixos de proteção tarifária, com reduzido nível de dispersão
intersetorial, de sorte que as tarifas aduaneiras sejam manipuladas,
precipuamente, com o objetivo de estimular as inovações, salvo as
exceções de praxe, tais como a necessidade de acionar os códigos
antidumping ou anti-subsídios;
ii) priorizar o multilateralismo, o que significa que a melhor opção para o Brasil,
sendo um global trader (Nassif e Castilho, 2018), seria não discriminar
parceiros comerciais, mas, no que tange aos acordos regionais, a melhor
alternativa estratégica é priorizar a cooperação Sul-Sul, posto que, devido
à similaridade tecnológica, tenderia a gerar maiores ganhos dinâmicos do
que a cooperação Sul-Norte (UNCTAD, 2018);
iii) dadas as enormes restrições fiscais do país, as subvenções públicas deveriam
ser canalizadas prioritariamente para investimentos em pesquisa e
desenvolvimento (P&D), saúde, educação e infraestrutura física e de
suporte digital. A UNCTAD (2018:92) adverte que “o potencial de
desenvolvimento das tecnologias digitais nos países de renda média poderá
ser eclipsado se não houver espaço de política econômica, industrial e
regulatória apropriado para promover a infraestrutura e capacitação
digitais”;
iv) ter em conta que, em virtude dos elevados custos fixos associados à
engenharia de projetos, seja no âmbito do setor manufatureiro, seja na nova
24
economia digital, as filiais de multinacionais continuarão se deslocando para
países em desenvolvimento, em que a decisão de localização deverá
sopesar a qualidade da infraestrutura disponível, as condições mínimas de
capacitação técnica das empresas que formam o tecido industrial, o grau
de qualificação da mão de obra e os diferenciais de salários relativos entre
países. Logo, já passou da hora de o Brasil se mirar na experiência de
diversos países asiáticos e procurar obter contrapartidas das filiais
estrangeiras para viabilizar a absorção e difusão de tecnologia (spillovers)
para produtores locais, por meio de joint-ventures, licenciamento e outras
formas de transferência tecnológica, sobretudo nas áreas de Inteligência
Artificial e Robótica;
v) muitos analistas têm denominado a indústria de processamento de dados (Big
data) como o novo combustível - como fora o petróleo na segunda
revolução industrial - da nova era digital, mas por se tratar de fonte de
recursos infinita, Big data tem grande potencial para excluir o acesso de
competidores potenciais e gerar posições de monopólio e estratégias rent-
seeking. Isso sugere que os governos dos países em desenvolvimento
devem, sempre que possível, escapar à tentação de assinar acordos que
reconheçam direitos de propriedade intelectual (UNCTAD, 2018:81 e 88);
vi) e last, but not the least, cabe, mais uma vez, advertir para que os policy-makers
brasileiros evitem manter a moeda brasileira sobrevalorizada em relação à
cesta de moedas de seus principais parceiros comerciais, sob pena de que
os esforços e dispêndios de recursos públicos e privados direcionados à
inovação sejam anulados pelos influxos de importações indesejadas.
5. Conclusão
Embora tenha recolocado no foco da estratégia de desenvolvimento o estímulo
à inovação em setores estratégicos no país, a retomada da política industrial nos
governos Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2014) pecou pelos
excessos, tais como ausência de seletividade, uso excessivo de subsídios públicos,
falta de cobrança de resultados e ausência de coordenação com a política
macroeconômica – que manteve elevadas as taxas de juros reais e a moeda
sobrevalorizada na maior parte do período -, o que acabou abalando a reputação dos
25
economistas estruturalistas brasileiros. No entanto, os equívocos cometidos não
eliminaram os argumentos robustos favoráveis à política industrial, nem a evidência
de que é praticamente impossível que um país alcance a posição de país desenvolvido
engajando-se em práticas de laissez-faire e livre-comércio incondicional.
Nesse artigo, procuramos discutir os argumentos teóricos, os mecanismos
utilizados e os problemas enfrentados pela política industrial em qualquer país que
orienta seu processo de desenvolvimento para o objetivo de perseguir mudanças
estruturais e alcançar o catching up. Os resultados da política industrial são incertos
em qualquer país, porque seu sucesso depende fundamentalmente da habilidade com
que é concebida e da harmonia com que são manejados seus diversos mecanismos,
como a definição das atividades, segmentos e setores prioritários, a fixação da
proteção aduaneira, os tipos de subsídios a serem concedidos, os mecanismos de
financiamento, a coordenação com a política macroeconômica - de que depende a
manutenção de taxas de juros reais compatíveis e taxas de câmbio reais
competitivas - , dentre outros. Com argumenta Robert Wade (2015), “a política
industrial, entendida como um esforço focado em metas para mudar a estrutura
produtiva de uma economia e acelerar o processo de desenvolvimento, deve ser
entendida com uma “roda interna” (“inner wheel”) cujos efeitos dependem de “rodas
externas”(“outer wheels”) das condições macroeconômicas e políticas que a
permeiam”.
No Brasil, repete-se à exaustão que o país tem fracassado porque não se
inseriu nas chamadas cadeias globais de valor, que se formaram como decorrência
da enorme fragmentação da produção em produtos finais, partes, componentes e
outros bens intermediários na economia global, nas últimas décadas. Entretanto, é
preciso lembrar que as cadeias globais de valor são comandadas pelas grandes
empresas multinacionais. Os países asiáticos têm sido os mais exitosos na inserção
nessas cadeias globais, porque têm justamente combinado liberalização comercial
gradual com políticas industriais que privilegiam a incorporação de serviços de
informação e tecnologia digital nos processos de fabricação industrial.
Neste artigo propomos uma política industrial centrada nos objetivos de
promover a reindustrialização dos setores que perderam competitividade nas últimas
décadas, criar vantagens comparativas dinâmicas por meio do upgrading tecnológico
nas atividades, segmentos e setores em que o país detenha vantagem comparativa
efetiva ou potencial, viabilizar o salto tecnológico em atividades, segmentos e setores
26
novos, mediante a incorporação de tecnologias da revolução digital em curso, bem
como priorizar setores com grande potencial de gerar efeitos de encadeamento para
frente (upstream networks). Ainda que as novas tecnologias digitais estejam tornando
cada mais difusas as fronteiras tradicionais entre os setores manufatureiro e de
serviços, entendemos que ambas continuarão umbilicalmente entrelaçadas, motivo
pelo qual nossa proposta de política industrial consiste em concentrar os estímulos
nas diversas bases de conhecimento tecnológico – da tradicional ao digital - ,
conectando-as com as indústrias que seriam priorizadas pela estratégia sugerida.
Nossa proposta requer apenas intervenções moderadas do Estado, abstendo-se do
uso de instrumentos tradicionais de proteção como tarifas de importação, de sorte que
as subvenções públicas passem a se concentrar nos investimentos em pesquisa e
desenvolvimento (P&D), saúde, educação e infraestrutura física e de suporte digital.
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