Política Social, Temas e Questões - Potyara Pereira.pdf
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Conselho Editorial da
area de Servico Social
Ademir Alves da Silva
Diis& Adeodata Bonetti
Elaine Rossetti Behring
Maria Lticia Carvalho da Silva
Maria Lalcia Silva Barroco
Potyara A.
P
Pereira
P olit ica S oc ial
Dados Internacionais de Catalogagão na Publicagào CIP)
Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Pereira, Potyara A. P.
Politica social : temas questries / Potyara A. P. Pereira. — 2. ed.
— a o
Paulo : Cortez, 2009.
Bibliografia.
ISBN 978-85-249-1391-4
1. Politica social 2. Politica social - Histdria 3. Servico social
I. Titulo.
08-02811
CDD-361.2509
Indices para catblogo sistemfitico:
1. Politica social : Histdria : Bermestar social 361.2509
temas questhes
2' edicdo
®EDITORA
a
CNPq
Owribo•Avaelyks
N EGP CS
7/26/2019 Política Social, Temas e Questões - Potyara Pereira.pdf
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8
POTYARA PEREIRA
Assim, os direitos tradicionais e os novos direitos nao sdo apenas
incompativeis entre si, mas logicamente discrepantes, pois enquanto os
dois primeiros servem a ideologia do livre mercado e da livre vida indi-
vidual, os tiltimos imptiem limites ao despotismo do mercado e ao indi-
vidualismo possessivo dos cidaddos tradicionais . Não admira, diz
Macpherson (p. 43), que os capitalistas ocidentais se oponham, e os go-
vernos ocidentais se mostrem indiferentes, a reivindicacao dos novos
direitos, e que ambos acolham corn satisfacao qualquer critica a eles en-
derecada, pois, para esses capitalistas, foram as pressOes do Terceiro
Mundo e do mundo comunista que fizeram corn que os direitos sociais
fossem incluidos na Declaracäo Universal dos Direitos Humanos da
Organizacäo das Naceies Unidas (ONU), em 1948. E é no 'Ambito dessa
problematica que o
Welfare State
vem perdendo forca, desde meados
dos anos 1970, e a politica social vem assumindo uma nova configura-
c5o sob o comando do ideario liberal agora revisitado e denominado
neoliberal.
Mas, antes de prosseguir corn a trajetOria da politica social, envere-
dando por caminhos situados para alem do Welfare State,
torna-se im-
portante explicitar o processo referente a contraditOria relacäo entre po-
litica social, Estado e sociedade e diferenciar conceitualmente a politica
social de outras categorias analiticas correlatas.
E
o que sera visto nos
dois prOximos capitulos.
bordagens tearicos sobre o Estado em sua relacäo
corn a sociedade e corn a politica social
u r {
p A D
Capitu10 111
-/
)
1 Situando urn enigma
Urn fato que chama a atencao no estudo da relacäo entre Estado e
sociedade é o tardio interesse teOrico para corn o
Estado em agio,
isto
para corn aquele tipo de
Estado dotado de obrigacOes
positivas que
tavelmente o impelem a exercer
regulaciies sociais por meio de politicas.
Tal fato nao deixa de ser intrigante, pois, se do ponto de vista da
liberdade
essa ingerencia pode ser indesejAvel, do ponto de vista da aqui-
sicao de condiciies basicas para o exercicio dessa liberdade, ela a neces-
saria. Ademais, ao se privilegiar a
igualdade
substantiva (e nä°
mera-
mente formal . • • • -
• • • •
• Estado faz-se im • rescindivel. Afinal, nao
se persegue a igualdade sem o protagonismo estatal na aplicacäo de
medidas sociais que reponham perdas
moralmente
injustificadas. Da
mesma forma 5
• .
am
direitos sociais sem politicas
pir-
blicas que os concretizem e liberem individuos e gru • os tanto da condi-
cdo de necessidade
quanto do estigma produzido por
atendimentos so-
ciais descomprometidos corn a cidadania.
E
o Estado, alem disso, que,
ao mesmo tempo em que limita a desimpedida KA° individual pode
garantir direitos sociais, visto que a sociedade the confere poderes ex-
clusivos para o exercido dessa garantia. Na pratica, a ingerencia do Es-
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2. ResistenciasteOricas clóssicas e contempordneas) ao
Estado social
100
P O T Y R J E R R
tado na realidade social
e
tao antiga, que so quem nao esteja
disposto
reconhece-la, nä° a percebe. Mesmo nos regimes liberals mais
ortodoxos,
expressamente avessos
a
intervencao estatal, o Estado sempre interveio
politicamente para atender demandas e necessidades, seja da esfera do
trabalho, seja da esfera do capital. A esse respeito Polanyi (1980: 144)
e
certeiro na observacao de que os chamados mercados livres jamais fo-
ram
v
erdadeiramente livres, visto que des nao funcionariam se seg
sem o seu prOprio curso. As ind6strias e os comercios, diz ele, especial-
mente os mais importantes, sempre foram contemplados corn tarefas -
protetoras, corn exportacOes subsidiadas e corn subsidios indiretos dos
salarios (p. 144). 0 prOprio
laissez-faire,
considerado urn dogma do pen-
samento liberal, foi sustentado pelo Estado mediante farta legislacao,
que repelia regulamentacoes restritivas , e robusta burocracia estatal
aparelhada para executar as tarefas estabelecidas pelos adeptos do
beralismo (idem).
Nao ha, portanto, explicacao facil para o fato de o papel ativo do
Estado, imbricado
a
sociedade e mediado por polfticas de intervencao
(sociais e econOmicas), so recentemente vir merecendo tratamento ana-
litico mais amplo e consistente — especialmente no que diz respeito ao
contexto social. Ao certo, sabe-se que esta tendencia remonta a pensa-
dores sociais classicos e que ela nao
a
exclusiva de uma tradicao te6rica
particular. Pelo contrario, guardadas as devidas diferencas, tanto
mar-
xistas
(notOrios criticos da regulacao social do Estado) como
ntio-marxis-
tas,
deixaram,por muito tempo, no limbo essa instigante questao, cone-
sera visto, a seguir, corn o intuito de fornecer informacOes sobre as difi-
culdades teOricas que, desde os cldssicos, o Estado Social enfrenta.
Se se retr iEeder ao pensamento social do seculo XIX ver-se-d que
so de forma indtreta e tangencial ele se referia ao papel afivo do Estado
P O U T I C A S O C I A L
10 1
em sua relacão corn a sociedade. Isso decorria tanto do fato de, naquela
época, a acao estatal ser socialmente restrita, quanto, implicita ou expli-
citamente, haver reservas intelectuais a respeito da possibilidade de o
Estado interferir nos assuntos da sociedade. Alêm disso, como sempre
soi
acontecer, havia a preocupacao analitica de se centrar em fatos que
estavam na ordem do dia, como as extraordinarias
tran
sformacOes e
expansao econOmicas — temporariamente
in
terrompidas pelas revolu-
cOes politicas de 1848 — que constituiram a verdadeira mola propulsora
do capitalism°. Como ob e
ob
m 2005: 21), a saita, vasta e
a
parentemente ilimitada ex
ta ista mun tar
favoreceu
e
spetacularmente o surgimento de uma nova ordem social e
de ideias e credos prontos a legitima-la e ratifica-la .
Est
abeleceu-se,
com isso, o triunfo do liberalism
°
burgués sobre ideais socialistas ou
socia
l-democratas, embora os homens que oficialmente presidiram os
o
(Bismarck,
na Alemanha; Napoleao na Franca) — e usaram_a_Estada_corm c
mite executivo da classe
c
l
o
minante,como, em 1848, Marx e Engels e-
nunciaria
o
Mani esto do Partici° Comunista.
Nao de
admirar, pois, que entre eminentes pensadores sociais do seculo XIX —
como Emile
D
urkheim, Max Weber e Karl Marx, para citar os mais visi-
tados — um possivel Estado
Soci
aLrepresentasse seri° perigo ao exerci-
cio da liberdade ou
da
emancipacao dos individuos, grupos ou classes
Da parte de Durkheim (1858-1917) — um dos criadores da sociolo-
gia cientifica, ou de uma ciéncia positiva da sociedade, e da teoria fun-
cionalista — bastante conhecida a resistencia em admitir a importan-
cia da presenca de uma organizacao estatal forte nas sociedades indus-
triais modernas, pelos perigos de controle autoritario que ela poderia
exercer. Para ele, o fato de o Estado nao ser
s
uficientemente capaz de
interesses da burguesia [fossem] profundamente reacionarios
subalternos.
1. Conceito
du
rkheimiano, de raizes gregas (sem lei), usado para caracterizar comportamen-
tos a-sociais (criminosos, por exemplo).
Po
steriOrmente, o conceito passou a ser utilizado por ou-
tros sociOlogos, como Robert Merton (1970), para designar
co
mportamentos desviantes em relacäo
lidar corn o problema da anomia
1
pobrezada moralidade na
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Europa mod erna, exigia que se organizassem corporacoes profissionais,
que se opusessem a m oral do progresso fundado no individualismo, e
supremacia estatal. Nesse sentido, as corporacoes funcionariam como
Orgaos intermediarios entre o Estado e os particulares (os individuos).
Sua principal fur-10o seria a de corrigir patologias causadas pela espe-
cializacäo e pelo
a
perfeicoamento c rescentes requeridos pela sociedade
industrial . E isso so seria possivel por meio da organizacAo d e urn con-
junto articulado e solidario de maneiras de ser, agir e pensar (equivalen-
te ao das sociedades simples), relacionado aos quadros da vida econO-
mica e sobre ela exercendo poder moral. E tendo em vista essa finalida-
de que Durkheim julga as corporacOes como mediacäo imprescindivel
para evitar possiveis abusos de poder do Estado. A serventia dessas
corporacoes consistiria ndo nos servicos econOmicos que poderiam pres-
tar, mas na influencia moral que poderiam exercer — posto que so esse
poder moral seria capaz de
conter os egoismos individuais, de manter no coracâo dos trabalhadores
urn mais vivo sentimento de solidariedade comum, de impedir que a lei
do mais forte se aplique tao brutalmente as relacties industriais e comer-
ciais (Durkheim, 1977: 17).
Caracterizando-se, tamb6m, como versa° pessimista a respeito da
intervencdo social do Estado, o pensamento do
al e
mAo-Max_Weber (1864-
/ 1920) — urn dos nomes mais influentes no estudo do cTeseil
lvo virnento
do capitalismo, da racionalizacâo e da compreensao da acdo humana
(inauguradora da sociologia compreensiva ou interpretativa, corn base
em tipos ideais) — ndo privilegia, igualmente, a interyenac
i
social do
Estado, embora ndo compartilhe da visäo funcionalis
ta de Durkheim.
Mas esse
d
esprivilegiamento nä° se deve a um desconhecimento de sua
a finalidades e normas previstas por determinados grupos ou sociedades. Corn outras conotacOes,
o conceito vem significando contestacao, revolts, anarquismo, reformismo e ate mesmo
exclusrio
ocial
que, segundo Gough (2000), atualmente resgata a sociologia de Durkheim para explicar o
fent:omen° da aparente excludencia de individuos e grupos dos valores, normas, oportunidades,
politicas e direitos prevalecentes nas sociedadescapitalistas contemporineas.
102
P O T Y A R A P E R E I R A
P O L I T I C A S O C I A L
103
p
ar
t_e_da-realizaidade_politigssosiais
na
Alemanha — considerada ber-
co dessa experiencia sob a egide de Bismarck — mas a uma conviccdo
pessoal refletida no seu propOsito intelectual de se ocupar do desenvol-
vimento de teorias, deixando aos politicos a formulacào e aplicacAo de
medidas praticas.2
Eis porque a teoria de Weber sobre o
Estado tern um cunho mais
conceitual e analitico, coerentemente corn sua postura cientffica de pro-
curar conhecer a realidade por meio da apreensao do sentido que os
atores atribuem as suas prOprias acOes. E dal que ele retira elementos
para a construcAo de seus tipos ideais, conferindo ao seu metodo carater
eminentemente analitico e generalizante.
Alem disso, o desinteresse
weber
• • .4 .
encia
uma concepcäo de Estado (especialmente do Estado modern()) que o
ass°Fia
a uma
a e
etuar
relacOes
de_dominacdo e sujeicAo por
melocitzsaparelhos
militar e
buro-
crAti
a
cculte
cia...corrussiano de sua epoca. Por
isso, para eTe o que diferenciava o Estado d os demais tipos de o rganiza-
cäo sociais e politicas, era urn poder peculiar:
o monopOlio legal da violen-
cia.
Era o exercicio
racional-legal
desse monopOlio — que, na verdade,
nao e o meio normal, nem o linico meio de que se vale o E stado — que
constitui, segundo ele, o elemento d efinidor do poder estatal e garante o
dominio continuado de homens sobre homens em urn dado territ6rio.
Ott melhor, o Estado para Weber 6 a iinica fonte do direito a violencia,
sustentado pelo consentimento dos dominados
e por urn quadro
juridi-
co e administrativo que the c onfere, poder, racionalidade e legitimidade.
Assun, quanto mais esenvo vida e industrializada se torna uma socie-
dade mais ela tende a exigir o dominio racional-legal prOprio do Estado
2. Segundo Gabriel Cohn (1979, p. 72), Weber, no inicio do seculo XX e no auge do Estado.
prussiano, participou da Associacao de Politica Social fundada pelos adeptos do chamado Socia-
lismo de CAtedra . Contudo, posicionou-se contra os objetivos principais dessa Associacdo, que
eram os de realizar e promover acOes para enfrentar grandes problemas sociais na Alemanha da
epoca. A seu ver — e isso the custou o afastamento da Associacdo — esta deveria dedicar-se
pesquisa cientffica sem restringir-se ao exame empirico de problemas especfficos para fins praticos
diretos.
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moderno, indicando que a raid() estatal é histOrica, a despeito da ten-
dencia de se tornar cada vez mais burocratizada para evitar que a socie-
dade seja manipulada por interesses pessoais.
D em
onstrando tambem desconfianca em relacao ao Estado, Marx
(1818-1883) e Engels (1820-1895) igualmente minimizaram a importan-
cia dessal7-
.
Ist--------dt sua capacidade de
-est
ar
-
cial — so que guiados por outros pressupostos. De acordo corn a teoria
marxiana do Estado, este se*a t
r
—
fir
e emento da superestrutura e, como
rtair
>{m fenOmeno transitOrio. Assim, da mesma forma como o Estado
nao existiu nas sociedades primitivas, quando nao se conhecia a divisao
do trabalho e a estrutura de classes, ele deixaria de existir numa socie-
dade comunista futura quando novamente estaria ausente a divisao de
classes sociais. Sendo assim, o Estado so seria necessario onde uma clas-
se dominante, possuidora dos meios de producao (proprietarios de es-
cravos, senhores feudais e capitalistas) se apropriasse do produto do
trabalho da classe explorada (escravos, servos da gleba e proletarios). Ai
o Estado funcionaria como urn aparato coletivo e, portanto, urn instru-
mento de reproducao das relacOes dominantes.
Implicita nessas postulacOes classicas esta, portanto, a ideia de que
apolitica social
i
associada a urn Estado ativo, necessariamente nao pro-
move e nem emancipa quem se encontra em
posicao sociaeT--d
e
esi-
ual. Pelo contrario, di tunciona como urn meio para manter a desi-
gua cUaA:le
4
ae r
i)
etuar a dominacao do Estado como urn instrumento
manejavel
105
das pessoas consklet
zac
Ias improdiitivas,mas pela sua reintegasLao ao
processo
produtivo.
Afinal, por baixo e em volta dos empresdrios capita-
l istas, os 'trabalhadores pobres', descontentes e sem Lugar, agitavam-se e
insurgiam-se (Hobsbawm, 2005), no rastro das revolucOes de 1848 .3
Tal estrat6gia de insercao dos pobres no processo produtivo, em
atencao as reivindicacOes das massas, nao se deu, porem, sem dificul-
dades; pois, se por urn lado ela confirmava que
a burguesia
reconhecia
as desigualdades sociais como o resultado de contradic_Oes
estruturais
do sistema capitalista, por outro despertava o temor liberal de esvazia-
ento de sua fundamentacao te6rica e ideolOgica e de seu processo de
acumulacao via espoliacao do trabalho. Afinal, transformar a area social
— que engloba a educacao, a sadde, a habitacao, a previdencia social, a
assisténcia — em esfera de responsabilidade publics, significaria afron-
tar o mito do
laissez-faire.
Isso conduziu a constantes reavaliacOes das teorias clâssicas, que
se viram instadas a repensar seus postulados. Mas, enquanto as teorias
nao-marxistas, especialmente as de corte funcional, era enderecada uma
pressao em busca de contribuicOes
justificadoras
cla partici
p
acao do Es-
ta c
ona
n
rderasQrial, as teoas marxistas abriram:se yerspectivas de
reflexOes criticas sobre os novos arranjos do capitalismo, incluindo o
Estado,para
se manter dominante.
Mesmo assim, ambas as modernas reformulacOes (marxistas e nao
marxistas) concederam ao Estado Social importancia marginal. Autores
3. Conhecido como a primavera dos‘povos , o periodo em que eclodiram os movimentos
revolucionarios de 1848 na Europa, a partir da Franca, teve como marca principal a revolta das
massas prontas para transformar revolucOes moderadamente liberais em
revolucoes sociais
(Hobsbawm, p. 20). Com efeito, em meio a crise econOrnica, desemprego e insegurarica social —
numa epoca em que o mundo se tomou efetivamente capitalista industrial — as reivindicacOes
revolucionarias francesas por sufrâgio universal, democracia e direitos trabalhistas, deram a
pressâo de ter chegado o moment() da derrocada da velha ordem social europeia e da ascensao de
urn socialismo potencialmente global (Hobsbawm, p. 28). Afinal, os movimentos de 1848 se alas-
traram por varios pafses da Europa (Alemanha, Gracia, Hungria, Belgica, Poli5nia, Italia) e esten-
deram seus tentaculos, segundo Hobsbawm ate Pernambuco (Brasil), corn a insurreicâo de 1848, e,
mais tarde, Colombia. E digna de nota tambem a informacao de que foi com as revolucdes euro-
peias, de 1848, que a classe trabalhadora tomou consciència de si como classe.
elos grupos no poder.
Entretanto, as transformacOes econO micas, sociais e politicas, rela-
cionadas ao avanco industrial, criaram condicOes objetivas para o corn-
prometirnento inadiavel do Estado corn os problemas resultantes das
de i
g
ualdades sociais. "Em certa medida" — salienta
Gouldner_(1970:
78) — o rrescirnento mesmo do Estado Benfeitor [Social] significa que o
problerna tern se tornado tao grande e complexo que ja nao é possivel
deixa-lo sob o controle do mercado e d e outras instituicOes tradicionais .
Em vista disso, e diferente da assisténcia tradicional, cada vez mais a es-
trategia do Estado consistiu em optar nao pelo isolamento dos pobres e
-
104
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POTYARA PEREIRA
POLITICA SOCIAL
107
funcionalistas como Parsons (1902-1979) e seu discipulo e colaborador
Smelser — embora tenham incorporado em seus esquemas conceituais
e analiticos elementos explicativos para dar conta de fatos so ciais emer-
gentes — demonstraram escassa preocupacao com a andlise do bem-
estar, ainda que Smelser tenha dado mais atencao a esse aspecto. Parti-
cularmente nesse autor percebe-se a disposicao de aceitar e realcar o
papel preponderante do Estado na ordem social, em contraposicao as
primeiras postulacOes parsonianas de que os sistem
dais funciona-
riam melhor se obedecessem a lOgica da auto-regulacao das relaeOes
sociais em economias de mercado.
Contudo, em que pesem esses pequenos avancos te6ricos e a pr6-
pria revisao de Parsons de seus supostos
f
uncional-sistemicos, admitin-
do que a estabil idade soc ial so poderia ser mantida por uma adm inistra-
cao oriunda do subsistema politico e do go verno, o que se tern em mate-
ria de analise funcionalista da politica social e pequeno. E nao poderia
ser de outra forma, ja que o interesse teOrico pela ex ansao do interven-
( cionismo estatal, voltado para a corre ao eloureducdo de desigualda-
des sociais, sigrrificarid
a- nu r a existencia de desequi_Kbriosintecos
ao
sist
enradie
r sua prOpria teoria.
Nao o bstante, e possivel detectar no pensamento parsoniano algu-
mas inovacOes. Contra seus primeiros arranjos conceituais, que nao con-
templavam o cardter impositivo da acao social intencional e desconfia-
y
arn do Estado Social que surgia nos Estados U nidos corn as reformas
do
New Deal
durante a Grande Depressao dos a nos 1930, ele teve que
refletir sobre a realidade desse Estado. Mas o fez sempre privilegiando
aspectos sOcio-culturais e conferindo a eles a responsabilidade pelo agra-
vamento dos problemas sociais. Assim, por exemplo, atribuia aos defei-
tos dos sistemas de socializacao a proliferacao desses problemas, dedu-
zindo que o seu ajustamento sistemico exigia novos programas de edu-
cacao e ate.medidas policiais ou castigos mais eficazes. Isso, certamente,
como lembra Gouldner (p. 317), impregnava o seu quadro explicativo
de tensties e impasses, ja que ele nao se prestava ao manejo instrumen-
tal de populacties adultas nas sociedades industriais" modernas. As-
sim, ao mesmo tempo em que a teoria parsoniana "quis adaptar-se ao
Estado Social", tomou-se dificil faze-10 dada a sua enfase na manuten-
cab da ordem social (que teimava em mudar) por ajustamento.
A presenca insofismavel do Estado Social exi u tambem reavalia-
cOes na concepeao marxista desse Estado, detectadas nas analises pio-
neiras
d
e_autor
g
ssontemporaneos como John Savil le, James O'Connor e
orime.ire-Claus_Offe, dentre os mais diretamente envolvidos corria
tematica da politica social. Tais autores, em vez de se prenderem a no-
cao de Estado restrito, presente no pensamento marxiano do seculo XIX,
passaram a considerar urn arco mais amplo de intervened° estatal, dan-
do importancia ao seu carater contraditOrio e a sua dimensao politica
ativa. Urn pensador marxista que pode ser considerado referenda des-
sa nova abordagem (embora nao ao estudo da politica social) e.
__&.to-
nio Gramsciern recai o merit° de ter teorizado a respeito do
Estac
oampliad.o_e_ciaautangmia relativa date, no que foi seguido e
aperfeicoadokem ce.rtos aspectos) por Nicos Poulantzas. Corn isso,
n o
se
quer dizer que esses estudiosos contemporaneos da relacao entre
Estado Social e sociedade tenham rechaeado a perspectiva de "bem-
estar social" de Marx,' mas sim que, confrontados com fenOmenos e
processos inusitados no seculo XX, passaram a atualizar e ampliar o
legado te6rico marxista, mesmo nao apresentando uma contribuicao
homogenea.
De qualquer modo, ainda que analisando o E stado Social de forma
incipiente, esses marxistas contemporaneos comecaram a tecer c onside-
racOes teOricas
sobre ele
e nao somente
contra ele.
Assim, partindo da
ind
e
f
efutaeact_ao_pensamentasodahclemocrata,de que o bem-
estar social foiproduto do movimento-social ista e representou Irma alte-
raiva nore
i
me capitalista (Saville,principalmente), a lite-
ratura marxista foi se preocupando co rn questoes mais densas. Passou a
pOr em relevo a autonomia relativa do Estado e as contradicOes — prin-
cipal e secundaria — na relacao entre Estado e Sociedade (a guisa de
4. Na verdade Marx postula um conceito global de bem-estar, contrapondo ao Estado de Bern-
Es t ar a S o
s
darle de Bem-Estar, ou seja, a sociedade pOs-revolucionAria onde seria alcancado o
verdadeiro igualitarismo ou a passagem do estado de necessidade para o de liberdade igualitaria.
0>< 0096r5Cv14
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P O U T I C A S O C I A L
Poulantzas); as contradict
5es e crises fiscais do Estado (O'Connor) e os
mecanismos intemos que garantem ao Estado o carater de classe (Claus
Offe). tontudo, como sera visto corn mais detalhes neste capitulo, a con-
, trfi
----
.
17
Acão marxista para a politica social carece de mergulhos mais fun-
1
dos na origem, desenvolvimento,
versatilida
de,institudonalidadefi-
i nanciamento, fiscalidade, ideologias e implicacOes
e
contimciti
cas da politica social — nao obstante esforcos denodadosmente
r e c 7 : 5 1
eados de autores, como Ian Gough que, nos anos 1970, fez uma
_ ,
radiografia da economia politica do Estado de Bem-estar__ ro eu e es-
udou a politica social por urn angulo mais complexo. Nao foi
a
toa que,
nos fins dos anos 1970, circulou na Europa, a partir da Inglaterra, o ter-
mo O'Goffe como urn amalgama (acrossemia)
5
dos nomes O'Connor,
Gough e Offe para identificar
6
a "lenda"
(O Goffe s tale)
neo-marxista
dominante no campo da politica social.
Esta é a raid° porque vale a pena falar separadamente, e corn mais
informaceies, do conteticlo das abordagens nao marxista e marxista do
Estado vis-à-vis a sociedade e a politica social, retomando aos classicos.
3. A obo rdagem nao-marxista e a questdo do Estado socia l
Como ja foi dito, as abordagens nap-mancistas, sejam_funcionais,
sejam compreensivas, nao se ocuparam diretamente de examinar o Es-
tado em acao, mormente na esfera social.
Retomando Durkheim, veremos que ele, apesar de fazer mencties
ao Estado interventor e de se contrapor as ideias de outro pensador nao
marxista — Herbert Spencer (1820-1903) — sobre esse terra, muito pou-
co avancou teoricarnente.
Reducdo de palavras, nomes, expressers a letras ou sflabas iniciais para criar um novo
termo composto.
Fato mencionado na aula inaugural proferida por Gough na Universidade de Bath/UK, em
21 de janeiro de 1999.
109
De fato, se se quiser encontrar na obra dos classicos de inspiracdo
funcional maiores consideracties sobre a questa° do Estado, e de suas
implicacOes no ambito do
bem-estar social,
sera por Spencer que se de-
vera comecar. Foi este quem, efetivamente, mais escreveu contra o inter-
venciois
mn
defendendo, segundo Mishra (1989), tuna especie
de politica social do
laissez-faire.
Embora nao se pretenda enveredar por Spencer nesta reflexao, é
valid() apresentar pontos-chave de seu discurso
anti-social,
pois alguns
deles encontram campo fertil no pensamento liberal contemporaneo.
Em sua opiniao, os processos que se verificam na sociedade vin-
culam-se a ordenamentos sociais "espontaneos" que surgem de forma
"natural". Sendo assim, os homens nao deveriam intervir intencional-
mente nesses processos, haja vista que existem na sociedade mecanis-
mos inatos de co ntrole que os habil itam a selecionar, corn acerto, os mais
aptos. Por essa perspectiva, qualquer medida adotada pelo Estado para
proteger aqueles que se revelam inferiores por estupidez, vicio e ociosi-
dade, podera produzir conseqiiencias desastrosas, ja que so a natureza
possui uma lOgica racional e detern o segredo do enigma de como flui o
progresso. Por isso, interferir nesse processo e violentar a evolucao na-
tural. E dentre as atividades que, para ele, nä° deveriam ser realizadas
pelo Estado, incluem-se aquelas caracterizadas como areas nao produti-
vas como a educacao e a satide.
Todavia, os argumentos de Spencer, a despeito de pretenderem ser
uma justificacâo cientifica do principio do
laissez-faire,
fortalecendo o
ideario
l
iberal-burgués, foram apresentados mais em tom de polemica,
envolvendo juizos de valor. Assim, empenhado em atacar a intervencao
do Estado e em ressaltar as virtudes do
laissez-faire,
ele pouco explicou a
natureza das instituicaes de bem-estar.
No que concerne, porem, ao carater e as funcOes do Estado, ele
forneceu urn esquema explicativo, consoante corn os principios do
darwinismo,
que, apesar de polemic°, marcou a sua presenca no campo
do co nhecimento sociolOgico. Para ele, o Estado, como aparelho regula-
dor, tenderia a regredir na medida em que a sua feicao industrial se
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P O T Y A R A P E R E I R A
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POTYARA PEREIRA POLITICA SOCIAL
111
distanciasse da sua feiedo militar, ficando as suas funcOes reduzidas
mera administracdo da Justica (Durkheim, p. 252). Tal pensamento esta
de acordo corn a sua lei da evoluedo, segundo a qual o progresso resulta
da integracdo da materia e de concomitante dissipacdo do movimento;
neste processo, a materia passa de uma homogeneidade indefinida e
incoerente a uma heterogeneidade definida e coerente, e o movimento
retido sofre uma transformacdo paralela (Spencer, 1905). Em suma, a
evoluedo e a passagem do simples para o complexo, atraves de diferen-
ciacOes sucessivas (Spencer, 1896).
Foi corn base nessa lOgica que ele estabeleceu a distilled° entre a
sociedade de tipo militar e a sociedade de tipo industrial . A primei-
ra era caracterizada pelo poder absoluto dos superiores sobre os subo r-
dinados; pelo imperio da lei baseada na religido e nas creneas coletivas;
pela centralizacdo e ausencia de l iberdade e garantias individuals e, por-
tanto, pela submissdo dos individuos ao Estado. Trata-se, como enfatiza
Durkheim, "de urn despotismo organizado que aniquilaria os indivi-
duos (p. 224). Em contraposiedo, na sociedade industrial predominaria
a descentralizacdo, o govern° representativo, a livre iniciativa e a liber-
dade contratual entre os homens, indicando que a vontade dos indivi-
duos e sob erana e que o E stado existe para servi-los. Neste caso,
a solidariedade social nao seria (...) outra coisa senao o acordo de que os
contratos sao expressao natural. 0 tipo d e relacOes sociais seria a relacao
econOmica, desembaracada de qualquer regulamentacao e tal qual como
resultasse da iniciativa inteiramente livre das partes. Numa palavra, a
sociedade nao seria sena° o relacionar de individuos trocando os produ-
tos de seu trabalho, e sem que nenhuma acao propriamente social viesse
regular essa troca (Durkheim, p. 234-5).
Ora, e justamente contra a idea evolutiva e ao individualismo exa-
cerbado de Spencer que D urkheim se posiciona. Se, em principio — como
esclarece na Divisdo do Trabalho Social — Durkheim admite, como
Spencer, que "o lugar do individuo na sociedade, inicialmente nulo, is
aumentando corn a civilizacdo (p. 224), em suas conclusOes opOe-se
frontalmente ao raciocinio spenceriano. Isso porque, em vez de atr ibuir
a anulacdo do individuo nas sociedades primitivas a dominacdo de uma
autoridade despOtica — dado o constante estado de guerra em que se
encontram essas sociedades — Durkheim a explica pela completa au-
sencia de qualquer centralizacdo. Por esta 6tica, o Estado resultaria dos
prOprios progressos da divisdo do trabalho e da transformaedo que teve
como efeito fazer passar as sociedades do tipo segmentar ao tipo orga-
nizado (p. 255). Essa passagem, segundo a lOgica durkheimiana, ocor-
re da seguinte forma: quando a sociedade de tipo segmentar perde a
vitalidade em decorrencia do desaparecimento progressivo da sua orga-
nizacdo peculiar, ela a absorvida pelo
Orgao central.
E isso a assim por-
que este
Orgao, ao nao encontrar mais as
resistencias que freavam a sua
expansdo, desenvolve-se e atrai para si
funciies antes desempenhadas
pelos Orgaos locais. Desse modo, quanto mais vasta e diferenciada for a
sociedade, mais completa sera esta fusäo — o que, em outras palavras,
significa que o Orgao central sera mais volumoso quanto mais as socie-
dades forem avancadas. Todavia, diz Durkheim, nao queremos dizer
que normalmente o Estado absorve em si todos os Orgaos reguladores
da sociedade, quaisquer que eles sejam, mas somente aqueles que sào
da mesma natureza dos seus, isto 6, que presidem a vida geral (p. 256).
As funceies econOmicas, por exemplo, nao estariam absorvidas no Esta-
do,
embora possam estar submetidas
a
sua acao. Corn isso ele queria
salientar que e possivel a existencia de urn conjunto de functies distintas
e relativamente autOnomas ao Estado, sem que a sua coerencia seja des-
truida.
A furled° do Estado estaria vinculada as normas juridicas que
determinam a natureza e as relacOes das ftmcOes estratificadas,
gracas a
divisao
do trabalho. 0 Estado seria "o 'Orgdo do pensamento social',
concentrado, deliberado e reflexivo, distinto da o bscura consciencia co -
letiva (Durkheim, 1950: 95), difundida por toda a sociedade.
Assim, ao co ntrdrici do que propugnava Spencer, Durkheim enten-
dia o Estado com o o Orgd o em relaedo ao qual, nas sociedades avanea-
das, a situacdo de dependencia do individuo vai aumentando, embora a
liberdade deste de crer, querer e agir, seja maior do que nas sociedades
simples. E isso se daria porque cada corpo d e normas juridicas, que cabe
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POTYARA PEREIRA
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POLITICA SOCIAL
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ao Estado administrar, esta acompanhado por urn corpo de normas
morais. Sao estas que refreiam os apetites, regulam e conectam as espe-
cializaceies profissionais, fazendo corn que os homens aceitem volunta-
riamente fungOes e recompensas desiguais Esta incluida af a idea de
primazia da consciencia coletiva sobre a individual, mas agora configu-
rada na gab do Estado e no papel fundamental das crencas e sentimen-
tos coletivos, mormente da moral e da religido, o que demonstra que,
em se tratando do Estado, o conceito de consciencia coletiva de Durkheim
foi sendo substitufdo pelo de representagdo coletiva. E esse conceito (li-
gado a concepgao de que é pela representagao que o grupo se concebe a
si mesmo em sua relagao corn os objetos que o afetam) que permitiria
distinguir melhor "entre crencas cognitivas e crencas morais, entre di-
ferentes crencas e sentimentos e entre crencas e sentimentos associa-
dos a estagios diferentes do desenvolvimento de uma sociedade"
(Luckes, 1977: 18).
Ve-se, assim, que a principal discordancia entre Spencer e Durkheim
nao recai tanto na expansào do Estado, mas nas conseqUencias dessa
expansdo. No que diz respeito a este fato, sou inclinada a acreditar, corn
M ishra, que Durkheim ai se posiciona de forma dilematica, pois se, como
filOsofo, parecia nao ver corn bons olhos o aumento das atividades esta-
tais, confiando mais nas corporacOes (revelando uma nostalgia pelas
sociedades simples), como cientista social ele teria que reconhecer e ex-
plicar esse fato. E foi com o cientista — mais precisamente, como soc iblo-
go — que ele se contrapes a Spencer. Rejeitando a visa() contratual e
utilitaria deste, referente a ordem social nas sociedades industriais, as-
sim como a sua nogao do jogo livre dos interesses individuais, Durkheirn
acredita que a regulagao social efetuada por um Orgdo central modera-
dor constrangeria os individuos na defesa de interesses prOprios. Con-
tudo, embora se subentenda do seu raciocinio que as sociedades moder-
nas poderiam executar a solidariedade sem atender a questao da desi-
gualdade social, ele pouco se deteve neste aspecto. Sua preocupacao
principal residiu mais em descobrir os meios de restringir os desejos
dos homens e de seus apetites individuais do que pensar nas formas do
atendimento de suas necessidades.
Diferente de Durkheim, a preocupacao de Weber volta-se para ou-
tra diregao e envolve concepgeies distintas no que concerne aos valores
morais e a insergao dos individuos na cultura utilitaria, prOpria do Esta-
do moderno. Destarte, ao destacar a importancia das ideias em geral e
da aka religiosa em particular, como influencias fundamentais sobre o
desenvolvimento do mundo ocidental, ressalta a importancia e a auto-
nomia das ideias dos individuos sobre a sociedade. Isso nao so contra-
diz o pensamento de Durkheim — segundo o qual a acao social é expli-
cada pelas fungOes que desempenha no atendimento de certas necessi-
dades da sociedade — como se choca corn a maxima de Marx de que a
consciencia é determinada pela existencia.
E corn base nesses pressupostos que Weber, em vez de considerar
os valores morais como fatores restritivos dos apetites humanos — com o
faz Durkheim — os ve como estimuladores dos esforgos individuais
para alterar padrdes sociais estabelecidos. Portanto, se a preocupacao
de Durkheim corn o desenvolvimento do Estado moderno, correspon-
dente ao crescimento da industrializac5o, era corn a destruicäo da or-
dem social, a de W eber era corn a rotinizagao da vida humana em d ecor-
rencia do dominio da burocracia total. A este causava temor, nao a pos-
sibilidade de desordem social, mas a predominancia de uma ordem social
tab poderosa que inibisse o individuo de participar corn paixäo da sua
vida e do seu destino.
Em suma, ao mesmo tempo em que Weber confiava na importan-
cia da eficiéncia e da racionalidade da peculiar burocracia do Estado
moderno — ja que isso garantiria o fortalecimento e autonomia da na-
cdo — ele temia a sua supremacia sobre a vontade dos individuos.
A possibilidade de que isso viesse a acontecer se explica pela se-
guinte sintese do raciocinio weberiano: o quadro administrativo tfpico
da dominacao rational-legal, ou seja, a burocracia, constittii urn elemen-
to intermediario entre dominantes e dominados, tendo em vista assegu-
rar a adequada efetivagäo do mandato dos dominantes. Contudo, como
esta burocracia nao exerce a mediacäo entre os dois termos, no sentido
de propiciar a passagem de urn a outro e, em conseqiiencia, desapare-
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POTYARA PEREIRA
POLTI CA SOCIAL
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cer, estabelece-se a possibilidade do instrumento apropriar-se da corn-
petencia e do poder daqueles que o usam e transformar-se de meio em
fim. Neste caso, os dominantes perdem grande parte do controle exter-
no sobre a burocracia, ao mesmo tempo em que os dominados passam a
ser, em grande medida, submetidos aos seus designios. E isso, para urn
intelectual que privilegiava a participacao do indivicluo na histOria da
humanidade, nao deixava de causar certo desencanto.
Percebe-se que as teorias ate aqui apresentadas, apesar de terem
levado em conta o E stado, o seu crescimento e a sua complexidade, nao
se ocuparam de suas politicas e
i
nstitucionalidades, sobretudo daquelas
voltadas para protecao social. Dessa forma, tem-se a impressao de que,
no que tange a este particular, tais teorias sao relevantes apenas como
marcos referenciais as formulacOes que co ndenam a intervencao estatal ,
as quais reaparecem nas concepcOes contemporaneas tratadas a seguir.
Tomando Parsons como um expoente contemporaneo do pensa-
mento sociolOgico, no marco da analise nao-marxista, constata-se que as
suas preocupacOes corn o
Welfare tate
so ocorreram a partir da decada
de 1960.
Antes disso (fins da decad a de 1 930), seu interesse tecir ico assenta-
va-se no propOsito d e criar urn quadro conceitual geral para a analise da
ordem social, sem basear-se em evidencias empiricas. Combinando o
voluntarismo, de inspiracdo weberiana, corn a visao durkheimiana se-
gundo a qual os ordenamentos sociais sac) vistos como urn sistema de
elementos inter-atuantes, Parsons concebeu um esquema explicativo do
cardter sistémico da sociedade, sem relegar ao segundo piano os indivf-
duos. Desse modo, contrariando D urkheim, nao privilegiou o social so-
bre o individual, nem a consciencia com um sobre as orientacties subjeti-
vas das pessoas. Mas, seguindo W eber, destacou o papel das ideias como
estimuladoras das awes, se bem que dentro de uma (Aka mais otimista
acerca do potencial positivo dessas ideas.
Entretanto, como esclarece Gouldner (p. 134), depois da Segunda
Guerra Mundial, a teoria de Parsons, assim como, de modo geral, as
teorias vinculadas a tradicdo de analise funcional, passou a valorizar o
aspecto social. Tanto foi assim que, em o "Sistema Social", livro publi-
cado em 1951, Parsons deu enfase a indole da interdependencia sistemi-
ca das forcas estabil izadoras do sistema, bem como aos mecanismos que
o mantem em equilibria tomando subsidiario o carater estimulante dos
valores e ideias. Foi a partir dal que ele destacou a existencia de quatro
requerimentos funcionais necessarios a sobrevivencia de uma socieda-
de ou de qualquer sistema social: a manuterigio de padroes,
a
obtengio de
metas, a adaptactio
e a
integracao.
A
manutencao de padrOes relaciona o sistema cultural ja que este,
segundo Parsons, se organiza em torno das caracteristicas de comple-
xos de significado simbOlico, que contribuem para a continuidade dos
padroes de valores hisicos.
A
obtencao d e metas relaciona a personalidade dos individuos, pois
o sistema de personalidade e a "agencia primordial dos processos de
agar) (Parsons, 1974: 14).
Ao organismo conductual relaciona a adaptacao, visto que se trata
de urn subsistema que
inclui urn conjunto de condicoes a que as awes devem a daptar-se e corn-
preende o mecanismo primario de inter-relacâo com o ambiente fisico,
sobretudo mediante a entrada e o processamento de informacäo no siste-
ma nervoso central e a atividade motora para enfrentar-se as exigencias
do amb iente fisico (Parsons, p. 15).
A
integracao relaciona o sistema social, destacando-se neste pre-
requisito funcional a preocupacao corn a coordenacao das unidades cons-
titutivas do sistema
e
corn o estabelecimento da harmonia e cooperacao
entre as partes.
7.
Mais ou menos nessa mesma epoca, tambem a verse° do funcionalismo oferecida por
Robert K. Merton manifestou uma tendencia a restaurar o utilitarismo social. Merton encarou as
orientacoes subjetivas das p‘
ccnas (o componente voluntarista) de tuna maneira totalmente 'secula-
rizada; ao considerà-las como so urn entre muitos fatores analiticos, desprovido de todo
p t os
especial, adotou explicitamente como ponto de partida as conseqUencias funcionais de diversas
pautas socials (Gouldner,
p.
134).
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Analisadas por essa lOgica, as instituicOes de bem-estar pertencem
ao subsistema integrativo, já que a sua principal funcao consiste em
manter o conflito e a desarmonia social em niveis mais baixos possiveis.
Este e urn raciocinio que permeia grande parte das analises atuais sobre
politica social.
Mas a intervencao social institucionalizada, com vista ao bem-
estar, e urn fato que entrou posteriormente nas elaboracOes teOricas de
Parsons e, mesmo assim, de forma tangencial. Na verdade, tal assunto
so veio a merecer maiores consideracOes na obra de seu discipulo
Smelser.
Consoante corn o esquema sistemico parsoniano, pode-se deduzir
que o bem-estar assumido pelo Estado trata-se de urn evento relaciona-
do as mudancas nos arranjos institucionais prevalecentes e, como tal,
algo que deve ser explicado dentro do processo de diferenciacdo social,
responsavel pela maior especializacdo das funcOes de integrac5o. Essa
explicacdo conduz, necessariamente, a se procurar relacionar a teoria
parsoniana corn a realidade histOrica do Estado Social nos Estados Uni-
dos, pois, se esta teoria relutava em reconhecer relevOncia ao
Welfare
State —
que ganhava corpo na prO pria patria de Parsons — e interessan-
te saber o que o levou, posteriormente, a mudar de ideia.
Sabe-se que na decada de 1930, durante a Grande Depressao eco-
nOmica, a teoria de Parsons quase nada tinha a ver corn os requeri-
mentos exigidos por urn incipiente Estado Social. "Como ndo acredita-
va ser possivel resolver a crise corn os intentos da ajuda social do
N ew
Deal,
a sociologia voluntarista de Parsons se orientou a determinar que
era necessario integrar a sociedade apesar das privacOes gerais"
(Gouldner, p. 137).
Contudo, as marcas da Grande Depressäo continuaram nos Esta-
dos Unidos, mesmo apOs a Segunda Guerra Mundial, no inicio dos anos
1940, e a consequente prosperidade econ6mica americana. "A legislacao
do
New Deal
havia promovido novas expectativas e novos interesses
criados entre os profissionais da classe media, assim como da classe
oper.iria que havia captado um vislumbre do que o Estado podia fazer
por ela (Gouldner, p. 136). Foi al que o Estado social ganhou visibilida-
de nos E stados Unidos e se impOs como fato social aos cientistas sociais.
Em vista disso, o enfoque sistemico de Parsons teve de incorporar
novos elementos, ate entäo ndo estudados de forma sistematica, tais
como: o
poder,
o
governo
e sua relacâo corn os
direitos de cidadania.
Nesta
fase aparece de maneira mais clara a sua disposicdo de privilegiar o sis-
tema sobre os individuos, em vista de sua manutencdo, apoiado no con-
sentimento de seus integrantes.
Essa visa° da solidariedade societal correspondia ao interesse pratico do
Estado Bem -Feitor em achar maneiras de obter lealdade e conformidade,
e a sua premissa operativa segundo a qual a estabilidade da sociedade se
reforca mediante a conformidade as expectativas "legitimas" de estratos
sociais despossuldos, dos quais se espera, por sua vez, que aceitem vo-
luntariamente a etica convencional (Gouldner, op. cit., p. 138).
Esta é a razdo porque,
so depois da Segunda Guerra Mundial,
Parsons se interessou por teorias como a do ingles T. H. Marshall, que
inclula nos direitos de cidadania os direitos sociais, reconhecendo, da
mesma forma que o autor ingles, serem estes alvo de atencao
Alem disso, ad rnite ser necessaria a existencia de urn governo mais forte
do que os tradicionalmente existentes e a confianca nele depositada pelo
povo (Parsons, 1960).
Isso, sem chivida, representou uma m udanca significativa nos pon-
tos de vista de Parsons, embora nao indique uma reestruturacdo de seu
esquema teOrico. Na verdade, mesmo admitindo novas categorias ana-
liticas, os seus quatro pre-requisitos funcionais permaneceram os mes-
mos para todas as sociedades, em qualquer moment° histOrico. 0 que
mudou foram as suas explicacOes dos arranjos institucionais por meio
dos quais novas e d iferentes funcOes seriam executadas, como pode ser
atestado na sua andlise sobre poder.
Ai, o seu exame girou em torno do sistema politico, como um
subsistema teoricamente correspondente ao da economia, dando gran-
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POTYARA PEREIRA
POL:TICA SOCIAL
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de enfase a comparabilidade entre o conceito econOmico de mediacao
(no sentido de
distribuicao)
e o de poder politico. Neste particular tem-se
a impressao de que ele pretendeu solucionar o velho dilema referente
natureza do poder, que e o de definir se ele e urn fenOmeno de
coergio
ou
de
consenso.
Na sua Otica, entretanto, o poder seria as duas coisas, ja
que, em sua estrutura lOgica, e urn meio generalizado do processo poli-
tico, tal como o dinheiro e um meio general izado do processo econOmi-
co. Sendo assim, o poder e por ele considerado urn meio simbOlico ge-
neralizado que circula e opera no processo de interacao social, nao the
interessando saber
quem a
dominante e dominado, qual o grau de poder
do dom inante, ou que conseqiiencias decorrem dessa polarizacao. 0 que
mais the interessa demonstrar e que o poder, como o dinheiro, e urn
insumo
(input)
que pode ser combinado corn outros elementos para pro-
duzir certos tipos de produtos
(outputs)
funcionais (Gouldner).
Percebe-se, assim, que mesmo sofisticando a sua analise a respeito
do poder, a integracao social continua sendo uma necessidade imperio-
sa em sua teoria, a qual devem estar submetidos todos os fatos sociais
emergentes, inclusive o bem-estar.
Demonstrando maior preocupacao corn a analise do bem-estar,
Smelser desenvolveu urn raciocinio que, embora continue privilegian-
do a integracao social , encara o desenvolvimento como uma relacao con-
flituosa entre diferenciacao e integracao, redundando na uniao entre
estruturas diferenciadas de sociedades, sobre novas bases.
Assim, para Smelser, a mudanca da inthistria domestica para a da
producao fabril, por exemplo, criou problemas de integracao. Os meca-
nismos integradores que funcionavam no ambito domestico, mediados
por parentes, vizinhos e conjuntos pre-modernos de relacties, tornaram-
se obso letos ante o desenvolvimento industrial . Contudo, esse processo
deu nascimento a varias instituicties e organizactles que, embora dife-
rentes
das anteriores, cumpriram funcao integradora tao eficaz quanto a
exercida por aquelas. E o caso das Agencias de Recrutamento e Inter-
cannbio, dos Sindicatos, da regulacao do governo por meio de politicas
— inclusive a social
das Sociedades de Cooperacao (M ishra, 1989).
Implicita nessa visao de mudanca, via processo de diferenciacao e
recomposicao da integracao sobre novas bases, esta a analise do bem-
estar como mecanismo integrador nas sociedades complexas, mas em
interdependencia corn as demais funcOes bAsicas do sistema. Desse mod o,
nas sociedades industrializadas, diferentes instituicOes desenvolvem o
bem-estar como reforco adicional a famflia e aos grupos de parentesco,
que ainda permanecem como uma estrutura importante de suporte aos
individuos. Esta e a razao porque varias organizacties formais e infor-
mais, de cunho religioso ou laico, oferecem resposta as necessidades
que, nas sociedades primitivas, dada a ausencia de especializacao, eram
supridas pela comunidade e pelo parentesco. Nesse estagio de desen-
volvimento, a religiao, segundo Smelser, assumia urn papel importante
no processo de integracao, poise justamente ela — como
organizagio
conjunto de crencas —
que simboliza e articula a ideia de comunidade.
Nessa fase, portanto, ela apresenta functies diferentes das que exercia
nas sociedades simples, nas quais era vista mais como
conjunto de cren-
gas
do que
organizacao
preocupada corn o bem-estar (M ishra).
Todavia, na so ciedade industrial , conforme salienta Smelser, novas
modificacOes foram introduzidas. Aumentou a especializacao no traba-
lho ao tempo em que se intensificaram a complexidade social, a mobili-
dade espacial e oc upacional, fazendo corn que a farnil ia, a com unidade e
a prOpria igreja se enfraquecessem como organizacOes integradoras. Em
compensacao, novas estruturas especializadas e institucionalizadas sur-
giram e se ocuparam do bem-estar, vinculadas nao so ao Estado, mas
tambem a empresa e a varias associacties voluntarias. Foi nesse estagio
que se destacou a intervencao do Estado Social, acompanhada da acao
assistencial de organizacOes particulares como o mecanismo integrador
por excelencia da sociedade industrializada.
Esta e a visa() funcional mais divulgada do papel do Estado Soc ial,
chegando a influenciar analises que, mesmo se autodenominando de
antifuncionais, enredaram-se nas malhas do raciocinio l inear e evolutivo,
ate agora desenvolvido por significativa parcela dos mais atuais esfor-
cos teOricos.
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4
Abordagem marxista e a questôo do Estado social
Alicercada em outros pressupostos, a teoria aqui chamada de mar-
xista coincide, pelo menos num ponto, corn as teorias tratadas na secao
anterior: seu pequeno interesse pela artalise do Estado Social.
Mas, antes de se apreciar a contribuicao que essa teoria, ainda que
indiretamente, Iegou ao estudo da politica social, convem fazer um es-
clarecimento a respeito do que se esta denominando de abordagem
marxista. Trata-se, sem dl vida, do prOprio pensamento de Marx e da-
queles autores que, mesmo introduzindo em seus estudos novas cate-
gorias de andlise, mantem suas ideas basicas alicercadas no pensamen-
to marxiano.8
Partindo de Marx, tem-se que a discussao a respeito do bem-estar
desloca-se do ambito do Estado para o da sociedade. Isso porque, pre-
vendo a extingdo do Estado , Marx nä°
y
e como se d aria o bem-estar no
marco das atividades estatais. 0 Estado, para ele, tern o mesmo efeito
dominador em qualquer regime, nao importam as formas de governo
que venha a apresentar: é sempre urn instrumento de dominacao e de
manutencao da estrutura de classes. Assim, somente quando o Estado
for superado e substituido por uma soc iedade sem classes, conhecer-se-d
o bem-estar.
Entretanto, alem de suas conviccOes intelectuais e politicas contra o
Estado e, conseqiientemente, contra o capitalismo, urn outro fato deve
ter contribuido para o desinteresse de Marx pela analise do Estado So-
cial: em sua epoca, tanto as instituicOes de bem-estar quarto as prOprias
politicas sociais eram escassamente desenvolvidas, apesar da expressao
que a intervencao estatal vinha ganhando desde os fins do seculo XIX.
8. Tal ressalva justifica-se dada a multiplicidade de tendencias marxistasque se desenvolve-
ram atraves dos tempos — cada uma delas julgando-se a verdadeira interprete de Marx — a ponto
de o marxismo se constituir, hoje em dia, em campo de disputas entre correntes competitivas. E por
isso que, mesmo ciente de que a escolha dos autores que irei analisar nao esteja imune a criticas,
acredito que a convergencia de postulados basicos e o rnelhor criterio de identificacâo de afinida-
des entre fundadores e seguidores desse paradigma.
Corn efeito, se se quiser detectar o interesse de Marx por algum
aspecto relacionado
a
Nä° interventora do E stado, no campo social , sera
na legislacao fabril que se devera deter (Mishra). Ai ele parece ter sido
impar, dentre os principais teOricos classicos, no empenho em analisar
corn detalhes os A tos de Fabrica e retirar frutiferas i lacOes a respeito das
possibilidades de desenvolvimento do bem-estar nas sociedades capita-
l istas. Foi nesse trabalho, caracterizado com o uma especie de estudo de
caso, que Marx da a impressao de reconhecer na legislacao fabril um
passo positivo em direcao a reformas sociais no capital ismo. Para ele, de
fato, a legislacao fabril foi a primeira reacao consciente e sistematica dos
trabalhadores contra as condicOes espoliadoras de vida e de trabalho a
que estavam subjugados (Marx, 1975a: 402), nä° importa que outros
grupos e classes sociais tenham apoiado (estrategicamente) tal legisla-
cao — como foi o caso d a aristocracia agraria. 0 significativo para ele foi
a acao da classe trabalhadora na conquista dessa legislacao.
No entanto, essa postura de Ma rx em relacao ao carater reformista
da legislacao fabril constitui urn ponto polemic° quando a comparamos
corn as suas propostas de mudanca revolucionaria.
9
Como diz Mishra,
urn exame menos a tento, neste particular, parece indicar que M arx pos-
sui duas visOes de mudanca: uma, revolucionaria, resultante do con-
fronto entre forcas produtivas e relacOes de producao (corn superacao
desta) e, outra, reformista que, no caso da legislacao fabril, parece indi-
car urn processo desenvolvimentista em que as mudancas se dariam
gradualmente, mediante a Ka° da classe trabalhadora dentro da pro-
pria lOgica do sistema capital ista.
De fato, Marx encara c om otimismo as reivindicacties dos trabalha-
dores contra o Estado, no seculo XIX, para que este criasse medidas
9. Por reformismo entende-se (...) uma corrente politica dentro do movimento operario que
nega a necessidade de luta de classe, da revolucao socialista e da ditadura do proletariado e pensa
que pode conseguir o socialismo unicamente corn reformas, em colaboracdo corn outras classes
(...). Como exemplo das primeiras correntes reformistas, tern-se, entre outras, a dos bernsteinianos
e kautskianos, na Alemanha; os economistas e os mencheviques na Russia; e os austromarxistas, na
Austria (Kerning, 1975: 11).
•
P O U T I C A S O C I A L
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POLITICA SOCIAL
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122
POTYARA PEREIRA
limitadoras dos abusos nas relacOes de trabalho da epoca, mas o faz corn
reservas. Para ele, tal mobilizacao trabalhista representou urn passo ini-
cial para a explicitacao de contradicOes no capitalismo, cujo enfrenta-
mento era considerado urn ca minho histOrico importante para a disso-
lucao dessa forma de producao e estruturacao de uma nova forma (Marx,
p. 90). Corn isso, torna-se evidente que, na visa° de Marx, a legislacao
por si so nao traria a justica almejada pelos trabalhadores, ja que ela
seria administrada por frac
6es da burguesia que fazem parte do prO prio
Estado como seu comite executivo. Dal as dernincias por ele feitas ao
descumprimento das leis corn a complacencia do Estado, bem como das
martipulacOes e das formas capciosas de se apurar irregularidades, pra-
ticadas pelas autoridades parlamentares, em detrimento dos interesses
dos trabalhadores.
Disso resultou o seu ceticismo nao so a respeito da eficacia da legis-
lacao fabril , mas de toda e qualquer medida de b em-estar real izada numa
sociedade de classes, porque, neste tipo de so ciedade, a ausencia de pro-
tecao social efetiva das massas, ou mesmo dos trabalhadores, constitui
urn fenOmeno prOprio do modo de producao c apitalista. Por isso, neste
sistema, havers sempre pobres, nao obstante a utopia das reformas das
condicOes b urguesas de exploracao. Seguridade para todos, no seu pon-
to de vista, so ocorrera quando existir a propriedade coletiva dos meios
de producao, o que significa que, do produto total do trabalho se obte-
nham os meios para o sustento dos incapazes de trabalhar e para a ma-
nutencao de instituicOes co mo escolas e hospitais (M arx, 1975b).
Contudo, ao mesmo tempo em que ressalta o poder do Estado so-
bre a classe trabalhadora e o controle que aquele exerce sobre esta, por
meio de medidas reguladoras de reproducao so cial, Marx deixa claro na
sua analise sobre o Estado que este e necessario ao m ovimento histOrico
que conduzird a uma sociedade sem c lasses. Em outros termos, coeren-
te corn a sua iclëia central de que a passagem para o socialismo se daria
quando se concretizassem todas as etapas do processo de formacao do
capitalismo, ele
y
e a existencia do Estado burgues — resultante da rela-
cao entre forcas econOrnicas e formas politicas — como uma superestru-
tura importante que, ao garantir a reproducao ampliada do capital e a
acumulacao, acentua as contradicOes d o sistema capitalista, contribuin-
do para a sua deterioracao. E mais, que nesse contexto relacional entre
estrutura e superestrutura, o Estado nao se constitui urn fato superfluo
e separado da sociedade civil.
Na
verdade, a sociedade civil, isto e, as relacties econOmicas, vivem no
quadro de um Estado determinado, na medida em que o Estado garante
aquelas relacOes econOmicas. Pode-se dizer que o Estado 6 parte essen-
cial da estrutura econOmica, 6 urn elemento essencial da estrutura econO-
mica, justamente porque a garante (Gruppi, 1987: 27).
Ha, portanto,
na dinarnica do funcionamento do Estado capital ista,
a existencia de co ntradicOes, assim configuradas: a maquina estatal ser-
ve amplamente aos interesses da classe dominante, mas a sua prOpria
universalizacao exige que ele de atencao a sociedade como um todo.
Assim, da mesma forma que ele ajuda a explorar os trabalhadores, tem
de atender as suas reivindicacOes.
Esta implicita neste raciocinio a ideia da existencia de dois niveis
de contradicO es que vao ser exploradas pelos seus seguidores, especial-
mente Poulantzas (1981): o das
contradicaes principais,
resultantes da luta
entre classes antagOnicas, e o das
contradiccies secunddrias,
resultantes d as
relacOes contraditOrias entre classes e fracOes de classes no prOprio seio
do E stado. Estas contradicOes sao agucadas pelas
principais
que, por sua
vez, sac) as responsaveis reais pelas mudancas revolucionarias que de-
verao ocorrer no sistema capitalista, redundando na sua extincao. E foi a
este tipo de contradicao que M arx deu maior atencao.
Ve-se, entao, que a idêia de
revolucdo
em M arx e a pedra angular de
sua teoria e esta presente, de forma coerente, em toda a sua obra, in-
cluindo os escritos de sua juventude.
Tal ideia parte do
principio da critica
desenvolvido pela esquerda
hegeliana, mas tornado por Marx em sentido mais amplo e dentro da
perspectiva materialista. Para Marx, o poder material deve ser destrui-
do pelo poder material, viabilizando-se tal destruic ao pela praxis revo-
lucionaria". Eis por que, no seu ponto de vista, a revolucao precisa de
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POTYARA PEREIRA
urn protagonista que seja capaz de empreender o ato da auto-realizacao
do homem. Esse protagonista e o proletariado que, por ser injusticado,
converte-se em libertador dos oprimidos, depois de superada a sua auto-
alienacao.
Nessa postura humanistica do jovem M arx, detectavel em suas ob ras
A Quest Judaica e a Critica a
Filosofia do Direito de Hegel, ja se vislumbra
o principio da luta de classes que, posteriormente, vai constituir urn dos
fundamentos de sua postura revolucionaria. Mas, nessa postura perce-
be-se, tambem, ao lado da perspectiva objetiva da revolucao, urn rasgo
subjetivo, haja vista que, no seu entender, a revolucao é determinada
por condicOes materiais, porem reforcada por elementos imateriais en-
tre os quais a vontade. Esta a uma outra questao polemica em torno de
Marx, ja que a sua referencia
a
vontade no processo revolucionario tern
sido alvo das mais diferentes interpretacOes.
Porem, o que e nitido e pacffico em sua obra é a c oncepcao de que
a revolucao e o resultado de urn processo hist6rico que se desenvolve
dialeticamente, gracas ao choque entre forcas produtivas e relacOes de
producao, sem descartar o papel das
faros vivas no movimento da his-
tOria. Disso se conclui que a histOria e a vontade sac) dois elementos
presentes na teoria revolucionaria de Marx e do marxismo, podendo ser
detectados, juntos ou nao, em varias passagens do pensamento do mes-
tre e de seus seguidores, o que afasta qualquer laivo de mecanicismo
nestes autores. Assim, na pol'emica travada corn Proudhon em A Miseria
da Filosofia,
M arx fala da oposicao entre proletariado e burguesia como a
luta de classe contra classe que, levada a sua mais alta expressao, signi-
fica a revolucao total na qual aparece o choque do "homem contra o
homem como U ltima solucao . E no prOlogo de 0 Capital,
ele fala da lei
econ6mica do movimento da moderna sociedade como uma tendencia
que nao comporta saltos nem variacOes fora das fases naturais de seu
desenvolvimento.
Corn Engels, Marx refere-sea revolucäo como urn processo com-
post° de elementos econOmico s, culturais e politicos que se influenciam
mutuamente, tendo, porem, no econOmico, o determinante principal.
Nesse sentido, sac) as mod ificacOes das forcas prod utivas que revolucio-
nariam o processo de trabalho, derivando dal repercussoes sobre outras
instancias. Todavia, essas modificacOes nao sac) produtos de processos
naturais que se realizam independentemente da vontade; para que haja
transformacao das forcas produtivas, a necessaria a participacao cons-
ciente das classes subalternas. A mobilizacao das massas trabalhadoras,
imersas no progresso eco nOmico, cid-se justamente pela tomada de cons-
ciencia da miseria crescente do proletariado nessa situacao de progres-
so. A necessaria e crescente consciéncia do homem
no
processo de traba-
lho se converte na consciencia
do
processo de trabalho. Dal que o cho-
que entre as forcas produtivas e relacOes d e producao se caracteriza tanto
como urn processo revolucionario que se da objetivamente como uma
acao subjetivamente conduzida.
Dessas colocacOes deduz-se que, para Marx, a pobreza e a riqueza
sao resultantes do modo de producao de uma dada sociedad e e que, sob
a exploracao capitalista, o bem-estar é sempre uma conquista da classe
trabalhadora. Isso porque, no sistema capitalista, a gestao da riqueza
deixada a merce dos mecanismos impessoais do mercado, nao leva em
conta as necessidades humanas e o principio da cooperacdo. Pelo con-
trail°, impera, sob tal regime, a coercao e a competicao. Sendo assim, os
valores do bem-estar nä° podem fazer parte desse tipo de sociedade.
Para que haja prevalencia desses valores torna-se necessario que a pro-
ducao seja regida por urn
criterio social
e a distribuicao pelos imperati-
vos das
necessidades humanas.
Isso, por seu turno, requerera que o domi-
nio do mercado, da propriedade privada dos meios de producao e da
producao para o lucro seja extinto e haja o controle comunal sobre as
condicOes de trabalho e de vida. As condicOes para tal transformacao,
segundo Marx, ja estao presentes na prOpria sociedade capitalista, de-
vendo apenas ser acionadas. Esta deve ter sido a raid() por que Marx
prestou pouca atencao as
Poor Laws
e as politicas de saale, de educacao
pdblica, e de habitacao, realizadas no sec ulo XIX, preferindo, ao
cOntra-
rio, encarar
os problemas que as ensejaram como pecas de acusacao c on-
tra o sistema capitalista e contra a plausibilidade das reformas sociais.
Mas, a meu ver, esti justamente ai o embriao de uma possivel teoria
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POTYARA PEREIRA
marxista da sociedade de bem-estar que, embora negadora do Estado,
encontra-se na b ase desta Instituied
o. Esta ai tambern a explicacdo fun-
damental para que se possa entender os dilemas e as l imitacOes da poli-
tica social no ca pitalismo, trabalhados mais p
r
ofundamente pelos segid-
dores de Marx.
Pode-se dizer que foi a partir dos anos 1960 que houve no campo
marxista um despertar de interesse te6rico pela intervenedo social do
Estado e,
conse
quentemente, pelo chamado Estad o de Bem-E star. Afi
nal, as mudancas verificadas na estrutura e nas competencias do Esta-
do, inexistentes na epoca de Marx, precisavam agora ser explicadas,
dando-se enfase aos aspectos politicos e sociais presentes no funciona-
mento do Estado capitalista. Assim, os
de
senvolvimentos teOricos mar-
xistas tern procurado compensar a falta de teorizacdo acerca das insti-
tuieOes politicas corn urn debate que, nä° muito diferente das preocupa-
eOes l iberais a respeito da controversia entre el itismo
versus
pluralismo,
visualiza o Estado ora como um Estado capitalista
tout court,
ora como
urn Estado
na
sociedade capitalista, rechacando as duas principais pos-
turas hoje consideradas limitadas: a que considera a mudanca politica
como puro resultado da Na() das classes sociais; e a que
y
e o Estado
como o co ndutor de todo o processo de mudanca porque as classes so-
ciais sdo debeis.
No cerne dessas preoc upacoes esta., sem chivida, a postura teOrica
e metodolOgica de, ao rechacar as po laridades entre Estado e Sociedade,
ou a mera luta de classes contra classes, delinear o espaco ou as arenas
dentro das quais ocorrem relacOes contraditOrias de pod er, ou relacOes
de forcas deco rrentes das contradicOes principais e secunddrias, a guisa
de Poulantzas (1981), bem como a maneira como se ddo essas relacOes.
Poi essa visa°, nao apenas deverd ser privilegiado o processo histOrico
da intervened() do Estado — como ja e usual nas analises mais recentes
do
d
esenvolvimento politico, por parte daqueles que comecaram a ne-
gar a eficdcia explicativa das teorias sistemicas — mas analisar as cone-
10. È o caso de Huntington, Apter, Barrington Moore
Jr.
entre outros.
POLITICA SOCIAL
127
x6es entre os que tern poder (dentro do aparato do Estado) e os que se
encontram alijados dele. Ou seja, interessa saber quais sdo e como se
ddo os mecanismos especificos de poder no contexto do capitalismo
avancado.
A d escoberta dos trabaihos de Gramsci foi, inegavelmente, o fator
decisivo para a adocdo dessa postura analitica. Foi a partir dele que se
comecou a questionar a validade de se pensar a esfera politica como
uma deducdo quase que automatica da infra-estrutura econOmica. Corn
Gramsci foi possivel conceber o Estado como uma esfera passive! de
possuir autonomia, mesmo que relativa, colocando-se acima e alem da
sociedade civil em sit-LINO
es de crise de hegemo nia e, portanto, de insta-
bil idade. M as, tal autonomia, ao mesmo tempo em que decorre da capa-
cidade organizacional do E stado frente as foreas soc iais confl itantes, re-
sulta tambern do apoio que este recebe dos estratos sociais mais impor-
tantes sediados no pacto de do minacdo. Sendo assim, tal autonomia ndo
pode ser vista dissociada da sociedade.
Foi com base nessas formulaeOes que grande parte dos marxistas
preocupados corn a questdo do bem-estar desenvolveu as suas reflexaes.
Uma das mais antigas andlises marxistas sobre o
welfare state e
de
John Saville (Mishra, 1982). Combatendo, como ja comentado, a visa°
social-democrata do
welfare state
do segundo p6s-guerra, de que este
seria urn produto do m ovimento social ista e que, no que tange a seguri-
dade e a igualdade, teria alcaneado avaneos significativos, apresenta
argumentos que contradizem essa visdo. Para ele, o desenvolvimento
do Estado Social e o resultado da interacdo de tres principais fatores: a
luta da classe trabalhadora contra a sua exploracdo; a necessidade do
capitalismo industrial em possuir uma forca de trabalho cada vez mais
produtiva; e o reconhecimento da classe proprietdria de que a necessa-
r io pagar urn preeo pela seguranca politica do regime. Eis porque, mes-
mo sendo urn resultado da luta operdria — fato que Savil le, como m ar-
xista, enfatiza — as politicas de bem-estar, a seu ver, ndo deixam d e ser
um arranjo da burocracia estatal (e, portanto, da classe media que a corn-
poe) a servico da acumulacdo e
da estabilidade politica. Sendo
assim
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POTYARA PEREIRA
alem de tais politicas nao afetarem, absolutamente, a estrutura de classe
da sociedade capitalista, elas ainda oneram a classe trabalhadora, ja que
sao, em grande parte, financiadas por essa classe (Saville, 1996).
De forma sem elhante, autores como D omhoff, que elegeram como
foco de artal ise o contexto norte-americano do
New Deal,
chegam a mes-
ma conclusao de que a intervencao do Estado, inclusive na esfera social,
visa a manutencao e a reproducao do sistema capitalista
Contudo, os argumentos marxistas em torno do intervencionismo
estatal foram tornando-se mais complexos e passaram a incorporar ca-
tegorias analiticas que, por nao estarem explicitas na teoria de Marx e
Engels, sac) consideradas desenvolvimentos dessa teoria. E o caso de
Poulantzas, corn a retomada da ideia gramsciana de autonomia relativa
do E stado; de O'Connor, corn a sua referencia as crises fiscais do Estado
bem-feitor; de Clauss Offe, com a sua reflexao sobre os mecanismos se-
letivos do processo de dominacao estatal, e de Gough, considerado por
Saville (1996) o realizador da melhor abordagem marxista da economia
politica do
Welfare State,
nos fins dos anos 1970.
Vejam-se, sucintamente, as contribuiceies de Poulantzas e O'Connor
para, a seguir, falar-se do primeiro
ll
Claus Offe — que deu grande aten-
cao aos processos internos do Estado (que the garantem carater de clas-
se) — e de Ian Gough, urn dos neo-marxistas europeus que, como ja
indicado, formou corn O'Connor e O ffe urn grupo de criticos do sistema
capitalista, conhecido como O'Goffe — amalgama (acrossemia) das pri-
meiras silabas dos sobrenomes dos tres autores.
Poulantzas (1981: 91), extrapolando as formulacOes marxianas de
que o Estado e produto da base material, admite-o, em certos casos, tal
como Gramsci, como dotado de autonomia relativa. Desse modo, argu-
menta que o Estado nao é urn utensilio ou urn instrumento de capitalis-
tas individuais que ocuparam o aparelho do Estado, mas esta compro-
metido (mais politica do que economicamente) com os interesses da classe
11. Claus Offe identificado como marxista. Hoje ele defende urn socialismo que nao rompe
corn a lOgica do mercado, denominado socialismo pOs-industrial (ver Little, 1998).
POLITICA SOCIAL
9
capitalista. Nesta perspectiva, o Estado capitalista expressa urn carater
de classe, possibilitando, dessa forma, a dominacao politica da burgue-
sia sobre a sociedad e, ja que esta seria incapaz de governar diretamente.
Em vista disso, a autonomia do Estado nao se daria como algo externo
as classes representadas no bloco no poder, mas resultaria da dinamica
interna do Estado ou das c ontradicOes secundarias presentes no seu in-
terior — que contrapOem fracties de classes entre si .
Esta autonomia se manifesta concretamente pelas diversas medidas con-
traditOrias que cada uma dessas classes e fraceies, pela estrategia especi-
fica de sua presenca no Estado e pelo jogo de contradicOes que resulta
disso, conseguem introduzir na politica estatal, mesmo sob a forma de
medidas
negativas:
a saber, por mein de oposicoes e resistencias a tomada
ou execucäo efetiva de medidas em favor de outras fracOes no bloco do
poder (e, particularmente o caso, hoje em dia, das resistencias do capital
nao monopolista frente ao capital monopolista). Essa autonomia do Esta-
do em relacâo a tal ou qual frac
do do bloco no poder existe, pois, concre-
tamente como autonomia relativa de tal ou qual setor, apareiho ou rede
do Estado em relacdo aos outros (Poulantzas, p. 155-6).
M ais interessado em apontar as contradicOes e crises do Estado de
Bem-Estar, O'Connor (1977) argumenta que as duas principais funcOes
por ele assumidas — a acumulacdo,
visando o crescimento econOmico
mais generalizado, e a
legitimactio,
visando a criacao de condicOes de
harmonia social — sao mutuamente contraditOrias. Isso porque, enquan-
to que os gastos do E stado relacionados as primeiras funcOes tendem a
crescer, as possibilidades de se levantar recursos adequados e suficien-
tes para arcar corn esses gastos tendem a diminuir, ja que o excedente
econOm ico continua sendo apropriado pelos grupos privados. Ha, por-
tanto, uma tendencia dos gastos palicos a crescer mais rapidamente
do que os meios para financia-los, gerando crise fiscal. Tal crise, entre-
tanto, tende a exacerbar-se pela pressao d e varios interesses especificos
sobre o o rcamento pablico, visto que nao s6 o s pobres, os desemprega-
dos e os trabalhadores exigem participacao nos gastos estatais, mas tam-
bent as corporaco es e as indÜstrias. E desde que tais exigencias
sao
rea-
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POTYARA PEREIRA
lizadas por meio do sistema politico (e ndo so do mercado) ndo ha o
equilibrio idealizado; ha, sim, crise e instabilidade fiscal, ameacando a
prOpria base produtiva.
Essa 6, segundo M ishra (1989), uma das raras contribuicoes a eco-
nomia politica do Estado Social, de corte m arxista.
Offe, por sua vez, no intento de
it
mais alem das explanapies ge-
rais sobre o papel do Estado capital ista e das relacOes de poder tratadas
por outros autores
c
ontemporaneos, construiu urn modelo de analise da
estrutura interna do Estado e da sua racionalidade admin
istrativa (Offe,
1972).
Este autor introduz a ideia da dominacan estatal atraves de processos
seletivos, o que implica dizer que o Estado tern que extrair de interesses
muito limitados e especfficos dos grupos dominantes urn interesse de
classe geral, ao mesmo tempo em que assegura a exclusdo de interesses
anticapital istas — o segundo mecanismo selet ivo (Boschi, 1979: 44) .
Em outras palavras, esses mecanismos que envolvem uma ampla
gama de arranjos institucionais dentro do aparelho do Estado, operam
em urn sistema hierarquizado de filtro contendo quatro niveis
(estrutu-
ra, ideologic, processo e repressdo)
cada urn servindo para excluir os ele-
mentos ndo filtrados pelas instancias anteriores. Assim, a
estrutura
de
cada sistema politico constitui um espaco consolidado institucionalmente
onde co existem formalmente premissas e bloqueios a ac äo institucional.
Dessa forma, ela inclui elementos como garantias constitucionais a pro-
priedade privada, excluindo, portanto, uma ampla variedade de politi-
cas anti-capitalistas da agenda do Estado.
Se, porem, algumas politicas escapam a
estrutura,
elas podem ser
controladas por mecanismos ideolOgicos caracterizados por normas ideo-
lOgicas e culturais que restringem certas medidas sancionadas pela es-
trutura. Desse modo, "somente tuna parte da politica estruturalmente
possivel pode ser atualizada, no contexto das restricoes normativas vi-
gentes" (Offe, p. 15). Alem disso, regras processuais, ou seja, procedi-
mentos de tomada de decisào politica criam condicOes mediante as quais
POLITICA SOCIAL
131
assegurado tratamento preferencial a certos temas e grupos de interes-
ses, em detrimento de outros. Relacionado a esse procedimento esta o
conceito de
ndo-decisdo,
segundo o qual uma serie de questOes nunca
chega a arena decisOria relevante, sendo, por isso, el iminada ou relegada
a segundo plano pelo sistema politico.
Finalmente, o aparelho repressivo entra ern cena para excluir cer-
tas alternativas que escapam ao controle dos demais niveis, por meio da
repressao direta realizada por O rgaos policiais, exercito ou justica.
Para dar conta d esse tipo de explicacdo, Offe da especial atencäo ao
sistema administrativo, embora ndo meno spreze o sistema econOmico e
o politico. Resulta clara, assim, a sua énfase no funcionamento do apa-
relho do Estado como uma forma de apreender os arranjos institucio-
nais que estäo por tras da definicao de determinadas politicas. Nesse
sentido, ele oferece tambem uma andlise dos mecanismos de selecäo
positivos do Estado caso essa selecdo favoreca determinada classe. Con-
tudo, a seu ver, dadas as contradicOes in-terms ao Estado, 6 dificil o esta-
belecimento de uma politica no interesse de todas as classes ou frac-6es
de classe que
compOem
o Estado. E por isso que o Estado tende a plane-
jar corn vista ao interesse do capitalismo com o um tod o, o que determi-
na a sua natureza de classe.
Em que pese as dificuldades de demonstrar empiricamente o fun-
cionamento desses mecanismos, ern periodos nao atravessados por c ri-
ses, Offe mostra que tais mecanismos transformam o Estado
na
socie-
dade capitalista em urn Estado capitalista .
No que se refere ao
W elfare State,
Offe, assim como os demais auto-
res marxistas revisados, entende que, nas sociedades capitalistas avan-
cadas, (independentemente de elas serem Estados de Bem-Estar adian-
tados ou atrasados) ha a co existéricia contraditOria da pobreza e da afluén-
cia e, consequentemente, da lOgica da producäo industrial voltada para
o lucro, e da lOgica das necessidades humanas, sem que a politica social
resolva essa contradicdo. Efetivamente, se o desenvolvimento do politi-
ca social não pode
ser
explicado, exclusivamente, a partir das necessida-
des, interesses e demandas sociais, mas pela transformacdo dessas exi-
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32
POTYARA PEREIRA
gencias em politicas, pela maquina estatal, resulta Obvio que tais politi-
cas nao podem cumprir sua promessa de igualdade, de socializacao dos
bens produzidos na sociedade e nem estimular sentimentos de confian-
ca, lealdade e esperanca por parte dos despossuidos. Tal socializacao,
quando ha, tende a visar muito mais as empresas, o que, procedendo-se
uma avaliacao de quem mais se beneficia corn a politica social, desco-
bre-se que o
Welfare State
é melhor definido como o capitalismo para os
pobres e socialismo para os ricos" (p. 213).
Quanto a Gough (1979, edicao inglesa; 1982, edicao espanhola), sua
abordagem da economia politica do bem-estar fez ressurgir, conforme
Cabrero (1982), estudos dessa natureza no ambito da politica social. Sua
grande contribuicao consistiu em reorientar o predominio da analise
marxista, de corte funcional, a respeito das origens, processamento e
conseqiiencias da chamada crise do Estado de Bem-Estar, nos fins dos
anos 1970, dando realce ao seguinte fato: de que o desenvolvimento do
Estado de Bem-Estar nas sociedades capitalistas avancadas reflete a na-
tureza da dinamica dessas sociedades e de suas contradicOes. Sao essas
contradicOes, segundo ele, que permitem considerar o Estado de Bern-
Estar como urn instrumento a servico tanto dos interesses dos capitalis-
tas quanto das lutas politicas da classe trabalhadora organizada — rom-
pendo corn a visa° de que este Estado estaria apenas comprometido
corn a burguesia. Nesse aspecto, Gough, a semelhanca de O'Connor e
Offe, corn os quais constituiu uma corrente de pensamento afim, confir-
ma o que sobre a sua producao se expressou Peter Leonard (1979):
todo trabalho marxista sensato e cuidadoso a respeito do Estado e da
economia tern que evitar cair tanto no funcionalismo quanto no volunta-
rism°, ou seja, tern que evitar contemplar o Estado de Bem-Estar como
totalmente opressivo ou como urn bastiao do socialismo dentro de uma
economia capitalista (p. 4).
Mem disso, do ponto de vista metodolOgico, Gough demonstrou
que o estudo da politica social imprescinde do conhecimento critic° da
relacao entre economia e histOria, assim como da compreensao das leis
POLITICA SOCIAL
33
do movimento do capital , por meio da qual o processo de co nstituicao e
desenvolvimento dessas politicas — incluindo as lutas de classes — pode
ser adequadamente captado. Nao foi a toa, pois, que este autor elegeu
como seu paradigma de analise o materialismo hist6rico.
* * *
Sao estas, para efeitos de introducao a analise das teorias sociais
das politicas de bem-estar, as principais abordagens (marxistas e nao-
marxistas) selecionadas, dada a sua presenca, direta ou indireta, nas di-
ferentes tematizacOes dessa materia ao longo do tempo. M as, alem des-
tas, outras aproximacoes teOricas, de cunho mais politico, sac) compul-
sadas no estudo da relacao contraditOria entre Estado e sociedade, da
qual decorre a politica social como processo c ontraditoriamente estrate-
g,ico. E corn o ob jetivo de abarcar um arco mais amplo de analise sobre
as precondicOes para o surgimento da politica social que se desenvolve-
rd, no prOximo capitulo, uma reflexao sobre o Estado
versus
Sociedade,
pondo de relevo, igualmente, as principais analises classicas e contem-
poraneas.
E isso sera feito corn a intencao de fornecer explicacifies teOricas
mais amplas sobre um tema que, de regra, tern sido pensado e tratado
de forma pragmatica.