POLIAKOV,Leon.EspanhaOMitoGótico.InOMitoAriano.SãoPaulo.Perspectiva,1974.pp.3-8

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léon Pol'iakov O MITO ARIANO Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos EDITORA PERSPECTIVA i ' . :.i

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POLIAKOV,Leon.EspanhaOMitoGótico

Transcript of POLIAKOV,Leon.EspanhaOMitoGótico.InOMitoAriano.SãoPaulo.Perspectiva,1974.pp.3-8

léon Pol'iakov

O MITO ARIANO

Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos

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1 .. Espanha: O Mito Gótico

O fato singular da história da Espanha, com re!ação àos outros grandes países ocidentais, é o secular domínio muçul­mano. Mas a invasão de 711 faz esquecer facilmente as que tiveram lugar três séculos antes, quando no rasto das tribos suevas e vândalas, os visigodos invadiram o país e ali se estabeleceram de maneira estável. No entanto, esta invasão assinalou igualmente com sua marca a história e as tradições espanholas.

Anterior1nentc, a conquista romana tinha apagado a cultura indígena a ponto de os habitantes da Península, com­plctan1entc latinizada, só terem guardado um vago sentimento de consti tuírem uma estirpe particular, ele "descender dos iberos" ( não van1os entrar nos pormenores destas reminis­cências tribais ou regionais nem nos den1orarmos no caso excepcional da língua e da cultura bascas). Com a cristia­nização, os iberos descobriram além disso que tinham, com o restante do gC.:nero humano, Adão e Noé por antepassados.

. Depois das invasões germânicas, o Arcebispo Isidoro de Sevilha, o autor mais erudito e mais influente da Europa pré-carolíngia, tomou a seu cargo emparentar o mais estreita­mente possível entre si os iberos invadidos e os· visigodos invasores, ligando os primeiros a Tubal e os segundos a Magog, ambos filhos de J afé. Em seus escritos, não deixava de conceder a superioridade à raça dos conquistadores, que há tempos tinham subjugado a Cidade Eterna, e portanto tin11am adquirido os títulos ao domínio mundial 1. Mas os conquistados cran1 promovidos à dignidade de seus primos.

1. A . n ons-r, llP. cff ., v. 11 / l. pp. 445-456, e H AN !'i M l!S !'iMl!R, H/spanla-ldee 1111 d ( ," ut<'n111.n/111s , Zu rique, 1%0, pnrti<."'lllarmcnle pp. 103 e ss.

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Como bom servidor da dinastia visigoda, Isidoro úc Sevilha era, provavelmente, animado pela preocupação de urna coabitação pacífica: os exemplos da fusão de dois 1nitos par;1 selar uma amizade pelo sangue não faltam ncn1 na Antroro­logia nem na História, a começar pela lenda de Alba e d~ Roma. No entanto, na apreciação de numerosos historiu-

. dores espanhóis, esta união não foi perfcita1nente sclaJa, e um dos mais ilustres dentre eles, Mencndez y P~layo afirn1a­va que "os visigodos não eram espanhóis,,. As teses contrá­rias não faltaram, defendendo a parte gern1ânica, à maneira de Isidoro de Sevilha. Desde 1780, o primeiro apóstolo prussiano. da "germanidade", o Ministro Hertzberg, afirmava que "as nações espanhola e portuguesa descendem sobretudo dos visigodos, dos vândalos e dos suevos, com uma certa adição dos autóctones da antiga Espanha, os romanos e·-·Õs sarracenos ( ... ) , pode-se, pois, com razão qualificú-los de alemães" 2. Em 1868, a Anthropological l~evielv de l~ondrcs assegurava que se havia descoberto, em Iucatfí , "un1a fan1ília espanhola que permanecera inteiramente loira e puramente gótica, detendo durante séculos uma categoria e uma posic.:ão de supremacia oficial" 3. Ainda cm 1944, o historiador sueco J. Nordstroen1 escrevia que "a expansão da Espanha cristã era uma expansão da raça gótica" (a hjstória dos godos foi muito estudada na Suécia, de onde a tradição a faz prov.ir). Por seu turno, criticando Nordstroem, o sutil An1érico Castro acabava de escrever que "a aspiração a querer ser godos revela que os espanhóis da Idade Média não o eram, como não o era a terra que reconquistaram e repovoaram'' 4 . Pacífi­cas querelas de sábios, que, mesn10 num país tão inclinado às divisões intestinas como a Espanha ·moderna, jamais infla­maram nenhuma das facções en1 confronto. M<ls nc1n scrnprc foi assim, e se uma espécie de cortina se interpõe entre estes eruditos polêmicos e os tempos cm que, a acreditar cm Améri­co Castro, os espanhóis aspiravam a ser godos, é provavelmen­te porque, na Espanha unificada dos Reis Católicos, que s~ valia unicamente de Tubal, as rivalidades genealógicas se desenrolavam sob um signo totalmente diverso.

Aqui intervém o passado muçulmano ou judeu-muçul­mano da Espanha. Depois de completar a "Reconquista" cristã, os descendentes batizados dos muçulmanos e dos

2. Cf. E. F . HERTLBERG, Oeul'res politiques, Berlim, 1795, t. l, pp. 9 e si;.

3. Editorial note, Tht Anthropological Review, jan. 1868, p . 37 ( artiQ1• · -" on Anthropology).

-ç_ A. CASTRO, La rcalidcid histórica de Espaiúi, ~-d . .t.i~xico, 1954,

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judeus foran1 convertidos cn1 objeto de infân1ia, e "estatutos de pureza de sangue" divic.Jiranl os espanhóis ern duas castas, os Velhos Cristãos, de puro sangue, e os Cristãos Novos, de sangue i1npuro: portanto, a divisão era feita não cn1 função da "gern1anidadc" ou da "iberidade" dos antepassados remo­tos, mas cn1 virtude <la ortodoxia ou heterodoxia c.lestes. Nos tcr1nos de uma teologia elaborada por teólogos espanhóis, a falsa crença dos n1ouros e dos judeus tinha n1aculado outro­ra seu sangue, e esta 111ácula, ou "nota", tinha sido transn1iti­da hcreditaria1ncntc até seus rcn1otos descendentes, relegados na casta quase intocável dos Cristãos Novos ou conversos. Assim, desprezando o dogma da virtude regeneradora do batismo, un1 racisn10 institucionalizado se manifestava, pela primeira vez, na história européia. Deve-se notar que os teólogos que claboraran1 esta doutrina não ncgavan1 que as duas categorias de cristãos descendcsscrn <lc um pai con1un1, 1\dão, nlas considerava ql1c a rejeição de Cristo havia corrompido biologic:uncntc os conversos. Estes predon1ina­va1n tradicional1ncntc nas ativida<lcs artesanais e con1crciais: as rivalidades cconô111icas acobcrtavatn os ódios sagrados, ou scrvian1-lhcs de pretexto; provavclincnte, esta clivagc1n radical, ao mcs1110 tCfflpo cconô1nica e genealógica, teve grande peso na história da Península Ibérica, afJstando parlícular1ncnte os ''Velhos Cristãos" das atividades produtivas, estin1ulando o frcncsi nobiliário, que se estendia até aos trabalhadores e freava a ascensão de uma classe burguesa. Assim é que, nun1a conjuntura propícia, :.ispiraçõcs paratribais podem ter livre curso para rcn1odelar a seu talante as ideologias, o inflcctir o curso da história 5.

Este singular c;1pítulo <la história espanhola, legado <lc seu passado n1uçuhnano, confundiu os traços de un1a cliva­gen1 sociorracial que ren1onta a uma época pré-1nuçulmana. O certo é que o "1nito gótico'' conservou adeptos até na Espanha 1nodcrna. Comparando-o cn1 1827 ao "1nito franco" da França, o antropólogo francês Bory de Saint­Vincent escrevia: "Os godos tinham adquirido tal renon1c que u1n castelhano só se considera nobre quando descende <lc uma família goda. 'T'al capricho é anúlogo àquele dos fidalgotes de entre o R.cno e os Pircneus que não querem ser gauleses e se <lizcrn francos" 6 . A con1paração era provavcln1cnte defeituosa, pois na França moderna, a ''que­rela das duas raças" se desenrolava, como o vcre1nos, con1

5. Con1 relação ao problema da "purc1.i. ~e sangue", na Espanha 111.o<lcrn_~' ver nossa obra De Mahomet a11x h1arru11cs, l'ans, J9ú 1, ass!m cumo A. SIC!lOM-, Lcs controverses des status de "purcté de sang" cn Espagnc d11 XVc a11 XVIII• .fieclc, Paris, 1960 .

6. SAINT-VINCENT, B. de . I .'l10111 mc, essai ;.oologic111e sur lc ge11rc l111mai11.

Paris, 1827. p. 161.

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uma intensidade bem diferente. Contudo, o dicionário d a Academia espanhola registra ainda, em seu artigo "Godo": "Hacerse de los godos, vangloriar-se de ser nobre; Ser godo, ser de nobreza antiga" 7• No início do século XX, os latino-americanos tratavam de godos os espanhóis apaixo­nados pela nobreza 8• Portanto, o termo revestira-se de um valor sobretudo irônico, e o mesmo já se passava na literatura do Século de Ouro espanho1. Ccrv ~u1 tes, por exemplo, qualificava em excrgo Don1 Quixote ele (Jodo quijoto, illustro y claro 9 : neste sentido, o dobre da cavalaria em Espanha soava também para o mito gótico. Mas os príncipes e os cavaleiros da Idade Média, que foram os artesãos da Reconquista, levavam tão a sério seu passado visigodo como sua dignidade feudal.

Quanto a isto, o historiador espanhol José Maravall escrevia recentemente:

A ilusão do legado gótico certamente tinha valor de um mi to. Na origem, provavelmente não se tratava da explicação de um fato real, mas de uma tradição destinada a dar um sentido a atos e a uma série de afrontamentos belicosos, e esta tradição acabou por adquirir cm nossa história medieval a eficácia de uma crença coletiva. Com efeito, se toda uma série de rei s e de príncipes agiram corno o fizeram, é porque ouviam dizer cn1 torno <le si que eram os herdeiros dos godos. D aí o singular caráter dinfln1ico de nossa história medieval que, mais do que qualquer outra, parecia uma flecha lançada contra o alvo através <los ·séculos ...

M ais adiante, acrescenta: A tradição da herança gótica, que acabou por se espalhar por

toda a Espanha, evidentemente não pode ser considerada como uma versão autêntica dos acontecimentos que tiveram lugar no decurso de nossa Idade Média; n1as, estudando a história cio conceito de Espanha nesta época, deve-se reconhecer nela un1 tios fatores mais vigorosos desta idéia e da ação política que disto derivava 10 . •.

A ação exercida pela " herança gólica", tal con10 no-la descreve Maravall de modo sugestivo, mas procurando por assim dizer suas palavras, foi pois a de uma " realidade psíquica", de acordo com a terminologia freudiana. Em outras palavras, tudo se passava como se os príncipes cristãos da Espanha medieval, estimulados pela convicção de serem godos, se esforçassem na realidade de sua conduta como filhos de uma raça conquistadora; eis que esclarece por seu turno a fórmula de Américo C ast ro sobre os cspanl1óis que aspiravam igualmente a ser godos, mesmo sabendo que não

7. Estas indicações nos foram amavelmente fornecidas por M arcel Bataillon. 8. M OREL-FATIO, A. ~tudes sur l'Espagne. Paris, 1923 . . p. 169. 9. Esta fórmula encontra-se num soneto, atribuído ao "cavaleiro do sol"

(caballerQ del Fecho) , colocado no cabeçalho do Dom Quixote. 10 . MARAVALt.., J. A. El concepto de Espaíía en la edad media. M adri,

·"'i4. pp. 320 e 354.

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o cran1, e que assitn procuravam se identificar a reis que se prevaleciam de sua incomparável linhagem. Em 1436, há oito séculos de distância, o delegado do Rei João II de Castela ainda se valia do sangue visigodo de seu rei para obter no Concílio de Basiléia a precedência sobre os enviados dos outros príncipes, compreendidos aqui aqueles que dcs­ccnd ian1 dos "godos do Norte" 11.

Cabe; nssinalar que o non1c godo era prestigioso em tod;1 a Europa. Desde a Antiguidade, os P adres da Igreja e os cronistas o havian1 nin1bado de uma auréola que refletia o p:1vor e a ad1ni raçâo que os vencedores e os novos se­nhores de Ron1a, os búrbaros godos, alternativamente inccn­:-;ados ou 1na]ditos, Jhe inspiravan1. Assim, Santo Ambrósio con1parava-os aos terríveis gigantes Gog e M agog da Bíblia; n1ns Santo Agostinho via neles o instrumento especial da providência divina, enquanto Salvião fazia contrastar seus costumes puros e jovens com os da Roma decadente. Pode­r íamos mul tiplicar estes exemplos, testemunhando a prodi­giosa impressão que a queda da Cidade E terna produziu sobre os contemporâneos 12.

É destes escritos que h aure sua pritneira origem a for-. tuna moderna e variável do epíteto "gótico" para designar, desde o Rcnasci1nenlo, seja o que é caduco e reprovável ("bti rbádc gótica'' ), seja o que é sublime e eternamente jovc1n ("liberdades gó ticas"). O juízo estético ("catedrais gótiças,,) parece finalmente ter arbitrado este debate. En­trcn1cntcs, o "go ticisn10" conheceu fortuna ; passageira na 1 ngl:1tcrra. como sinônin10 de "germ anismo", e uma fortuna ainda melhor na Suécia, r~ítria lendá ria dos godos, identifi­cados co1n os gcrn1anos 13. Atribui-se a Carlos V a opinião segundo a qu :.11 quase toda a nobreza européia descendia dos godos da I::scandinúvia 14. É sabido que na Alemanha, " escrita gótica" designa ainda cm nossos dias uma es­crita e.m desuso considerada con10 escrita nacional. Estas c.Iicussõcs e estes termos f ortcmente evocadores vivificavam c1n todos os países a lembrança de acontecimentos semi-1cgcndários conhecidos cm todas as línguas romanas sob o non1c de "invasões bárbaras11

, 1nas que n líl'1gua nlcn1fi -a nuança não deixa de ser significativa - qualifica de "n1igraçõcs de povos" ( Voclkerwa11deru11ge11) . Assim é que ;is épocas, as culturas e as próprias línguas, dialogavam cada

11. Cf. A. BoRST, op . cir., v. Ill/ L, p. 985. 12. C f. HANNO HF.LUING, Goten 11nd Wa11 dale11, Zurique, 1954, pp . 3-52. 13. C f. SAM UEL K LIGEn, 'Iltc Gotl1x i 11 E11xfa11d. Ila.rvar<I. 1952 , e J o1m

HASLA<i, '"G othic" i 111 17, wul J 8, Jalir/11111dert, Colôn ia-Graz, l % 3. 14. Cf. T11. Btr::or::R, G cscl1icfite der G erma11enforscl11,11g, Leipzig, 1921,

V. ] , p. 61.

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uma a seu modo com o passado que se tornaria a era de referência das mitologias patrióticas das principais naçocs ,, . europeias.

Para a Espanhu1 podemos observar, concluindo, a antiga tendência a superestimar o sangue germânico, a linhagem de Magog, em detrimento da linhagem indígena de Tuba!. Reencontraremos tendências análogas cm outros países, primeiramente sob a forma de linhagens ligadas a outros personagens bíblicos, depois, uma vez esmagado o "Infame'', uma vez relegado o pai universal Adão ao museu das antiguidades, sob o signo das ideologias nacionalistas ou racistas dos tempos modernos que também ostentavam origens comuns (históricas ou biológicas). Na Espanha, onde o mito gótico cedo estiolou, é um racisn10 pensado e expresso em termos teológicos que lhe sucedeu. A origina­lidade da história espanhola poderia ser, do ponto de vista aqui considerado, rica em ensinamento. Com efeito, é primeiramente a preocupação com a pureza da fé, na hora

·da reunificação do país, que esteve na origem do estabeleci­mento da Inquisição espanhola; mas, rapidamente, o mito do sangue, da pureza de uma linhagem, colocou o dogma em ridículo. O verdadeiro afrontamento travava-se doravante entre uma casta pura, que era tida como da linhagem jafética, e uma casta impura, mais tarde dita semita. Este afronta­mento acompanhava uma história rica cm lutas intestinas, surdas na Espanha do barroco, ferozes no século XX, deter­minadas por inumeráveis fatores sobre os quais os historiado­res estão longe de concordar; o certo é que as pu1sõcs agressivas da coletividade com muita freqü ência eram derivadas, notemo-lo desde já, em proveito dos tun1ultos internos.