Poesia árabo-protuguesa
Transcript of Poesia árabo-protuguesa
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FUNDAMENTOS HISTRICOS DA POESIA LUSO-RABE
(NO SCULO DE ALMUTMIDE) NA
NOVA MSICA PORTUGUESA O AMOR E O VINHO
Eduardo Manuel da Conceio Candeias Raposo
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O
DE DOUTORAMENTO EM HISTRIA CULTURAL E DAS MENTALIDADES CONTEMPORNEAS
2009
Sob Orientao do Professor Doutor Antnio Pedro Vicente
OUTUBRO DE 2009
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Dissertao apresentada para cumprimento dos requisitos necessrios
obteno do grau de Doutor em Histria Cultural e das Mentalidades
Contemporneas, realizada sob orientao cientfica do Professor
Doutor Antnio Pedro Vicente
Declaro que esta Dissertao se encontra em condies de ser
apreciada pelo jri a designar.
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O candidato
Lisboa, 20 de Outubro de 2009
Declaro que esta Dissertao se encontra em condies de ser
apreciada pelo jri a designar.
O orientador
Lisboa, 20 de Outubro de 2009
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Maria Maria
Nascida no monte
beira da estrada
Maria
Bebida na fonte
Nas ervas criada
Talvez
Que Maria se espante
De ser to louvada
Mas no
Quem por ela se prende
De a ver to prendada
Maria
Nascida do trevo
Criada no trigo
Quem dera
Maria que o trevo
Casara comigo
Prouvera
A Maria sem medo
Crer no que lhe digo
Maria
Nascida no trevo
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Beiral do mendigo
Maria
Nascida no trevo
Beiral do mendigo
Maria
De todas primeira
De todas menina
Maria
Soubera a cigana
Ler a tua sina
No sei
Se deveras se engana
Quem demais se afina
Maria
Sol da madrugada
Flor de tangerina
Maria
Sol de madrugada
Flor de tangerina
Jos Afonso
(Cantares de Jos Afonso 1964)
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Nota de Abertura
A Poesia da Msica ao som da Pintura
Este trabalho foi escrito no Sul. E, mesmo quando pontualmente ali no estava
fisicamente, o Sul estava-me no corpo, estava-me no olhar, era o sabor do Sul que tinha
nos lbios.
Havia telas com o Sul na alma, havia Msica, havia Poesia, havia a amizade
fraterna do meu amigo Manel (o pintor Manuel Casa Branca).
O meu mundo era o seu simptico e suave atelier e era o castelo o castelo mais
bonito de todos, no s pelas suas runas e pela imagem de longe, muito doce
harmoniosa, mas tambm quando caminhamos por entre o Pao do Alcaide, nas suas
etreas runas, to romnticas.
O meu mundo era as amoras que colhia diariamente na Ecopista e me deliciava
com cada recanto daquele lugar paradisaco, lugar solar ou nocturno, onde eu gostava de
caminhar ao anoitecer.
Escrevia e esperava. A minha rotina era ento uma descoberta permanente, um
deslumbramento quase contnuo por cada pedra, cada monte em runas. Escrevia,
caminhava. Escrevia e esperava, esperava serenamente
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Agradecimentos
Em primeiro lugar, ao Professor Doutor Antnio Pedro Vicente que me aturou
ao longo de mais de cinco longos anos, Mestre da Histria e da sua investigao e
tambm, como um dia escrevi ficar conversa com o Professor Pedro Vicente uma
experincia avassaladora de simplicidade, de humanismo, de argcia intelectual, de
compreenso do mundo e da vida e do papel da histria nos nossos dias.
Os meus profundos agradecimentos ao meu amigo, o pintor Manuel Casa Branca
que me abriu as portas do seu atelier e da sua galeria, onde passei temporadas sempre
que me permitiam as obrigaes profissionais - nos ltimos meses, entre a msica de
que apaixonado e a beleza etrea da sua pintura, como intitulei o breve texto anterior:
A Poesia da Msica ao Som da Pintura. Esse gesto fraterno do meu amigo foi
determinante para chegar ao fim deste trabalho, depois de ultrapassar tantos escolhos
exteriores. A galeria 9Ocre foi tantas vezes o meu porto de abrigo. Obrigado Amigo.
Agradecer a um restrito grupo de amigos, que como escrevi na ltima edio do
Canto de Interveno 1960-1974, cada um sua maneira iluminam os meus dias:
sugerindo, apoiando, revendo infatigavelmente, encontrando solues informticas,
enfim reafirmando a solidez da amizade e de como so imprescindveis na minha vida:
sem eles, se existisse, seria infeliz, menos humano, menos sereno, menos fraterno,
menos lutador, menos sensvel no existia!
Queria tambm agradecer aos intrpretes, msicos, cantautores, investigadores
e arabistas que se disponibilizaram a ouvir as minhas interrogaes e a sugerir
caminhos: Professor Antnio Borges Coelho decano dos arabistas da
contemporaneidade - Professora Teresa Rita Lopes, Dr. Adalberto Alves, Ruben de
Carvalho, Lus Represas, Manuel Rocha, Tiago Bensetil e muito especialmente ao
Cludio Torres, Rui Curto, Janita Salom, Joo Afonso e tambm Nuno Bernardo. Aos
arabistas A. Borges Coelho, Adalberto Alves e Cludio Torres e o CAM (Santiago
Macias e a restante equipa), Jos Alberto Alegria e Adel Sidarus uma palavra muito
especial pelo contributo decisivo que, cada um sua maneira, tm tido para a
divulgao do legado islmico em Portugal. A vs devo a revelao desse passado em
mim adormecido mas to forte, to presente. O meu profundo reconhecimento.
Agradecimentos tambm ao amigo Francisco Constantino Pinto, assim como ao Dr.
Jos Domingues Gaspar e ao Dr. Jos Gonalves (CMA) pelas facilidades concedidas.
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Resumo
Fundamentos Histricos da Poesia Luso-rabe (no Sculo de Almutmide)
na Nova Msica Portuguesa O Amor e o Vinho
Eduardo Manuel da Conceio Candeias Raposo
Palavras-chave: Poesia, Sul, Portugal, Beleza, Amor, Vinho
Temos como objectivo estudar a importncia que a Poesia tem na Nova Msica Portuguesa, dando assim continuidade cronolgica ao estudo anterior, resultante da tese de mestrado e depois publicado: Canto de Interveno 1960-1974.
A Cano de Coimbra levou-nos ao lirismo trovadoresco e este ao Zjel, nascido em finais do sculo IX, na regio de Crdova, para ser cantado, fruto de um encontro de lnguas e culturas. A presena do Sul ser sempre uma constante.
Percebemos ento a importncia que o Sculo de Almutmide- Poeta-Rei (1040-1095) nascido em Beja - poder ter tido para a gnese da nossa poesia lrica, assim como este perodo de apogeu civilizacional, possibilitou o caldo de cultura existente no Garbe al-Andalus, onde poucas dcadas depois surgiu o reino de Portugal.
Ter sido nos sculos XI e XII que se inicia a caminhada potica que percorremos, destacando-se D. Dinis (e seu av Afonso X, o sbio), Joo Roiz de Castelo Branco, Bernardim Ribeiro, Antnio Ferreira, Gil Vicente, Lus de Cames, Francisco Rodrigues Lobo, Bocage, Marquesa de Alorna, e as vrias geraes do Romantismo, entre outros, que so o rosto visvel desta aventura lrica que marca indelevelmente a Histria de Portugal. Pessoa rev-se neste imaginrio potico de h quase mil anos.
Hoje, em 2009, depois de Coimbra e do Canto de Interveno, os intrpretes, cantautores e escritores de canes, identificados com a matriz do gnio da nossa msica popular, Jos Afonso, trilharam novos e inovadores caminhos musicais, mas a poesia, a grande poesia a marca da perenidade. assim que Srgio Godinho, Rui Veloso, Janita Salom, Vitorino, Fausto, Lus Represas e Trovante, mas tambm a Brigada Vctor Jara, Joo Afonso, Francisco Naia ou Eduardo Ramos (cantam-se ou) cantam, desde Almutmide e Ibne Sara a Carlos T, Joo Monge, Carlos Mota de Oliveira, Jos Jorge Letria, Hlia Correia, Lus Andrade (Pignatelli) e claro, Manuel Alegre, Sophia de Mello
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Breyner Andresen, Eugnio de Andrade, Maria Rosa Colao, Jos Afonso, entre muitos, no esquecendo os temas de raiz popular.
Assim, apenas vos queremos falar da Beleza. Da Beleza presente na Poesia e na Vida, o Amor e o Vinho - temas nos poemas transcritos - elementos caracterizadores deste pas com um patrimnio gentico no Sul mediterrnico, onde o Sol d o tom certo da sensualidade dos corpos e o vinho produz a languidez da libertao dos sentidos.
Deste pas que tambm fruto da sensibilidade dos seus poetas, dos seus reis-poetas.
Bebendo no apogeu civilizacional que acabava de acontecer no al-Andalus e nomeadamente aqui no Garbe fruto da sntese das civilizaes mediterrnicas que o Islo nos legou - nasceu Portugal. E sem esse legado anterior nacionalidade mas to presente, no dizer de Adalberto Alves: ns Portugueses seramos tambm outros, menos apaixonados() e Talvez que a Saudade no fosse dita em portugus e Cames ou Pessoa no pudessem ter sido.
Summary
Historical Grounds of Luso-Arabic Poetry (in the Century of Almutmide)
in New Portuguese Music Love and Wine
Eduardo Manuel da Conceio Candeias Raposo
Keywords: Poetry, South, Portugal, Beauty, Love, Wine
Our aim is to study the importance that Poetry has in the New Portuguese Music, thus giving chronological continuity to the previous study, which resulted from the masters thesis and was then published: Canto de Interveno 1960-1974.
The Cano de Coimbra took us to troubadoresque lyricism and this to Zjel, born in the end of the IX century, in the region of Crdova, to be sung, the result of a meeting between languages and cultures. The presence of the South will always be a constant.
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We then understood the importance that Sculo de Almutmide- Poet-King (1040-1095) born in Beja could have had to the genesis of our lyrical poetry, as well as how this period of civilizational apex, enabled the cultural melting pot which existed in Garbe al-Andalus, where a few decades later the kingdom of Portugal would arise.
It was in the XI and XII century that the poetic path we travelled began, with highlight to D. Dinis (and his grandfather Afonso X, the wise), Joo Roiz de Castelo Branco, Bernardim Ribeiro, Antnio Ferreira, Gil Vicente, Lus de Cames, Francisco Rodrigues Lobo, Bocage, Marquesa de Alorna, and the many generations of Romanticism, among others, who are the visible face of this lyrical adventure which indelibly marks the History of Portugal. Pessoa sees himself in this poetic imaginary of almost a thousand years..
Today, in 2009, after Coimbra and the Canto de Interveno, the interpreters, singer-songwriters and songwriters, identified with the matrix of our popular music genius, Jos Afonso, have trodden through new and innovative musical paths, but the poetry, the great poetry is the mark of continuity. This is how Srgio Godinho, Rui Veloso, Janita Salom, Vitorino, Fausto, Lus Represas and Trovante, but also the Brigada Vctor Jara, Joo Afonso, Francisco Naia or Eduardo Ramos sing their own Works and just sing the poetry from Almutmide and Ibne Sara, to Carlos T, Joo Monge, Carlos Mota de Oliveira, Jos Jorge Letria, Hlia Correia, Lus Andrade (Pignatelli) and, of course, Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugnio de Andrade, Maria Rosa Colao, Jos Afonso, among many, not forgetting themes of popular origin.
Considering the previous, we would say that we only want to talk about Beauty. The Beauty present in Poetry and in Life, Love and Wine themes in the transcribed poems characterizing elements of this country with a genetic heritage in the Mediterranean South, where the Sun gives the right tone to the sensuality of bodies and wine produces the languor of sensory release.
This country that is also the fruit of its poets sensibility, its poet-kings.
Drinking in the civilizational apex that had just happened in al-Andalus and namely here in Garbe resulting from the synthesis of the Mediterranean civilizations that Islam left as a legacy Portugal was born. And without that legacy previous to the nationality but so present, in the saying of Adalberto Alves: we Portuguese would also be others, less passionate() and Maybe Saudade would not be said in Portuguese and Cames or Pessoa could not have been.
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NDICE
Introduo ao Tema 1
Introduo 5
PARTE I DE ALMUTMIDE AO ROMANTISMO
Captulo I - ANTECEDENTES 1. A Sntese civilizacional ocorrida no al-Andalus 11
1.1 O Zjel gnese da cano provenal e da poesia lrica das modernas naes europeias 12
Captulo II A POESIA LUSO-RABE: GNESE DA POESIA LRICA 1.. O Amor e o Vinho na Poesia Luso-rabe no Sculo de Almutmide 17
1.1 - Ibne Amar 24
1.2 - Ibne Sara 30
Captulo III - O AMOR TROVADORESCO E O REINO DE PORTUGAL 1. - Portugal resultado do encontro de culturas 38
1.1 - Duas civilizaes que se encontram e se complementam 42
1.2. A Subtileza e a sumptuosidade do Sul deslumbra o Norte Rstico e
Frugal 46
2. - Portugal Medieval e Trovadoresco 49
2.1 - A cantiga de Pai Soares de Taveirs: primeiro documento potico em lngua portuguesa 49
2.2 - Afonso X e as Cantigas de Santa Maria 53
2.3 D. Dinis: o Rei-Poeta ou o Poeta-Rei 59 2.4 Joo Roiz de Castelo Branco ou a Perenidade da Potica
Trovadoresca 64
Captulo IV - O LIRISMO NO PORTUGAL RENASCENTISTA
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1. Bernardim Ribeiro: o Alentejano fundador da Poesia Buclica 66
2. Antnio Ferreira e A Castro: a portuguesssima sublimidade
shakesperiana- 68
3 Mestre Gil Vicente: a genialidade multifacetada do pai do Teatro
Portugus- 70
4 -Lus de Cames: o apogeu do lirismo- 78
Captulo V - A INFLUNCIA DA LRICA CAMONIANA DO BARROCO AO PR-
ROMANTISMO
1- A Poesia Buclica de Francisco Rodrigues Lobo 87
2 O Lirismo Fogoso de Bocage 90 3 A Marquesa de Alorna e a Gnese do Romantismo Literrio 96
Captulo VI - O ROMANTISMO 1- As Transformaes Profundas que Mudaram o Mundo 98
2 - As Escolas Romnticas- 101
3 O Romantismo em Portugal 104
4 O Primeiro Romantismo Portugus: Almeida Garrett e Alexandre
Herculano- 106
5 -O Romantismo sob a Regenerao- 107
6 A Gerao de 70 110 7- Poesia Romntica 112-
PARTE II DO SCULO XIX AO 25 DE ABRIL
Captulo VII - A CANO DE COIMBRA 1 -As origens do Fado 116
2-Hilrio e a Cano de Coimbra 120 3A gerao de oiro dos anos 20 127
4- Dois ciclos histricos. Os anos 20 e os anos 50 139
Captulo VIII - FERNANDO PESSOA E O VINHO
1 O Vinho no Mundo Mediterrnico 140
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2.A poca Contempornea e a Bacchica pessoana 142
3. Poetas do Sculo XX entre o Amor e o Vinho- 145
Captulo IX O CANTO DE INTERVENO 1 .A gnese do Canto de Interveno 155
2 -. Os Precursores 157
2.1 Jos Afonso 157
2.2 Adriano Correia de Oliveira 162
2.3 A Poesia de Manuel Alegre e a guitarra de Antnio Portugal 171
2.4 Lus Clia: a primeira voz no exlio 176
3. As novas geraes de cantautores, compositores e intrpretes 183
3.1 . Manuel Freire 184
3.2 Jos Jorge Letria 185
3.3 - Benedicto Garcia Villar -186
3.4 - Jos Barata Moura 188
3.5 - Tino Flores 189
4. A Terceira Gerao dos Cantores de Interveno 190
Captulo X - 1971: A RUPTURA MUSICAL E A GNESE DA NOVA MSICA PORTUGUESA
1- O Outono de 1971 191
2- Cantigas do Maio 192
3-Gente de Aqui e de Agora 195
4-Jos Mrio Branco 199
4.1 - Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades 205
Captulo XIO PAPEL SOCIOCULTURAL E POLTICO DO CANTO DE INTERVENO
- 1 - Contexto Histrico 209 2 Os Catlicos Progressistas 211
3 Francisco Fanhais 213
4 A divulgao do Canto de Interveno, suas consequncias e a reaco do Regime 219
4.1 A Rdio e a Imprensa 219
4.2 O Zip-Zip 221
4.3 - A eficcia dos recitais, a vigilncia da DGS e as proibies 223 4.4 Os recitais em Espanha e no exlio 228
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4.5 As editoras e a censura: as apreenses 230 5. A subverso dos militares 238
6 Os Festivais da Cano 239 7 - O espectculo de 29 de Maro no Coliseu e o 25 de Abril 242
PARTE III - A NOVA MSICA PORTUGUESA Captulo XII - A REVOLUO DE 25 DE ABRIL E O PREC
1-Do Movimento dos Capites ao MFA 244
2 As Prticas Culturais 249
3O CAC e o GAC 253
4 - O encontro entre Zeca Afonso e Amlia Rodrigues 255 5 - Introduo Nova Msica Portuguesa 256
Captulo XIII JANITA SALOM Cantar o Sul a cantar ao Sol to pouco e tanto 261
1-Do Redondo a Casablanca 263
2- Continuar Zeca com o Cante e a Poesia na alma 265 3 -O Teatro, Fado de Coimbra e Lua Extravagante 267
4- Cantar os Poetas do Sul - do Sculo XI ao XX 270
5- Vinho dos Amantes: novo degrau de uma obra intensa 273
Captulo XIV - VITORINO - O seu Amor o Sul 300
1 - Semear Salsa ao Reguinho e Laurinda 302 2 A colaborao com A. Lobo Antunes e o encontro com Cuba 304
3 Vitorino em discurso directo 308
Captulo XV RUI VELOSO O Primeiro beijo do Cavaleiro Andante ou como cantar o Amor 328
1 Do Chico Fininho ao Porto Covo e ao Cavaleiro Andante 329
2 Recorde de vendas e os encontros com B. B. King 330
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3 O Concerto Acstico ou o nosso imaginrio colectivo 331
Captulo XVI SRGIO GODINHO Escritor de Canes: 0 Porto aqui to perto com um brilhozinho nos olhos 358
1 Romance de um dia na estrada e Os sobreviventes 361
2-Precaridade vem de PREC 364
3 A versatilidade e o ecletismo em Srgio Godinho 365
Captulo XVII TROVANTE Uma gerao apaixonada a Cantar o Amor e amar-te , assim, perdidamente 403
1 De Baile no Bosque a Perdidamente 403
2 O fim e os reencontros 406
Captulo XVIII LUS REPRESAS CantautorA cantar o Amor entre Cuba e a lusofonia 421
1 O CCB, Espanha, Macau e Timor 422
2 Do Rio de Janeiro a Praga 423
3 No Rock in Rio Perdidamente olhos nos olhos 424
Captulo XIX FAUSTO Ou o Amor do mar 431
1 Angola e o mar 431
2 O precursor da Viagem 433
Captulo XX - BRIGADA VCTOR JARA A cantar a msica, a tradio e a divulgar o legado de Giacometti 455
1 As influncias do GEFAC 456
2 O melhor disco de msica tradicional 458
3 De Danas e Folias a Ceia Louca e os festivais 460
Captulo XXI JOO AFONSO Criador de Canes: A minha cultural musical Zeca Afonsina 472
1 De Moambique a Missangas 473
2 Espanha e Um redondo vocbulo 475
Captulo XXII FRANCISCO NAIA
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Sou Alentejano, Poeta e Cantor / filho dos montados , neto de uma flor 502
1- De Ourique-Gare ao Zip-Zip 503
2- O Canto subvertor da ditadura 506
3- Viver o PREC 508
4 - Cantes dalm Tejo e De Sol a Sul 511
Captulo XXIII EDUARDO RAMOS O Meu Corao rabe 542
1 A descoberta do alade ou o despertar da arabidade latente 543
2 De Beja a Angola 544
3 A importncia decisiva de Almutmide 547
4 Ao vivo no CCB 549
Concluso 564
BIBLIOGRAFIA 570
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LISTA DAS ABREVIATURAS
AA - Associao Acadmica
AAC - Associao Acadmica de Coimbra
AEIST - Associao de Estudantes do Instituto Superior Tcnico
AN - Assembleia Nacional
BE Bloco de Esquerda
CCB Centro Cultural de Belm CITAC - Crculo de Iniciao Teatral da Academia de Coimbra
EMGFA Estado-Maior General das Foras Armadas
FRELIMO - Frente de Libertao de Moambique
GAC Grupo de Aco Cultural
GEFAC Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra
GNR Guarda Nacional Republicana
IANTT - Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo
IST - Instituto Superior Tcnico
JUC - Juventude Universitria Catlica
JOC - Juventude Operria Catlica
LUAR Liga Unitria Antifascista e Revolucionria
MA - Movimento Associativo
MC Movimento dos Capites
ME - Movimento Estudantil
MFA - Movimento das Foras Armadas
MRPP Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado
MPLA - Movimento Popular de Libertao de Angola
MUD - Movimento de Unidade Democrtica
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MPP Msica Popular Portuguesa
NMP Nova Msica Portuguesa
ONU - Organizao das Naes Unidas
PAIGC - Partido Africano para a Independncia da Guin e Cabo Verde
PCP - Partido Comunista Portugus
PREC Perodo Revolucionrio em Curso
PS - Partido Socialista
PSR Partido Socialista Revolucionrio
PIDE/DGS - Polcia Internacional de Defesa do Estado/Direco Geral de Segurana
TEUC - Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra
UDP Unio Democrtica Popular
UEC Unio dos Estudantes Comunistas
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Introduo ao tema
Quando terminei o trabalho anterior, a tese de mestrado que
posteriormente deu origem a trs edies de um livro que tomou o nome de
Canto de Interveno 1960-1974, senti a necessidade de prosseguir
cronologicamente este estudo. At porque esta viagem que fiz pela msica
portuguesa, ou melhor dizendo, pelo movimento dos cantores de interveno, a
que no foi alheia a paixo e a entrega pessoal que pus na investigao, levou-
me a criar laos afectivos e fraternais com alguns dos protagonistas deste
movimento. Logo em 2001 iniciei um percurso de quase almocreve,
partilhando com a comunidade o saber e os conhecimentos apreendidos; pondo
assim em prtica, com a simplicidade mas com o rigor e a seriedade que se
impe e imponho a mim prprio, a tarefa de devolver a Histria, devolver a
Memria e a Identidade ao Povo, este legado que lhe pertence por direito
prprio.
Foi assim, que para alm das fraternais amizades e companheirismos
pontuais, aps uma breve primeira fase em que fiz colquios sobre o tema com
meios rudimentares, iniciei um dia uma nova etapa, aps um convite do
Municpio de Santiago do Cacm e da sugesto do ento Vereador e actual edil
Vctor Proena para me fazer acompanhar por um cantor e por msicos. Assim
aconteceu, e o convite surgiu naturalmente ao Francisco Naia, que participou
com os msicos que o acompanhavam na altura Rui Curto, acordeonista na
brigada Vctor Jara e o guitarrista Joo Pimentel. Da nasceu um projecto que
um espectculo homnimo j apresentado em dezenas de locais e salas, desde a
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Casa da Msica no Porto Festa do Avante, desde o Ayuntamiento de Badajoz
at Casa da Cultura de Coimbra ou ao Centro Cultural de Santarm nestes
dois ltimos casos a convite de dois protagonistas deste movimento,
respectivamente Manuel Freire e Jos Niza. Isto para alm de dezenas de
actuaes sobretudo no Alentejo e rea Metropolitana de Lisboa. Espectculo
que tem a particularidade de ter um apresentador em palco, projectando imagens
e documentos alusivos e contextualizando cada um dos temas, que vo desde a
Balada do Estudante (Capa Negra/Rosa Negra) at Grndola Vila Morena,
percorrendo a discografia de Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Lus
Clia, Jos Mrio Branco, Srgio Godinho, Manuel Freire, Francisco Naia,
Francisco Fanhais, Jos Jorge Letria e a obra potica de Manuel Alegre, Jorge de
Sena, Rosala de Castro, Sophia de Mello Breyner Andresen, Reinaldo Ferreira,
Geraldo Bessa Vctor, Hlia Correia, assim como do prprio Jos Afonso e do
Srgio Godinho, entre outros.
Este trabalho tem tido outras tantas dezenas de apresentaes, em
formato reduzido em colectividades, galerias, associaes, juntas de freguesia e
livrarias diversas como a FNAC (Almada e Cascais), com a participao de
orador que antecede o recital - em dois locais, Santo Aleixo da Restaurao e
Almada, com a participao do pintor Manuel Casa Branca, que conjuntamente
exps trabalhos seus -, apresentando as diversas edies do livro como o director
adjunto do Pblico Nuno Pacheco, nalguns casos, ou ainda os amigos Joo
Paulo Rama, antigo Governador Civil do Distrito de Beja e actual Presidente do
Conselho Geral do Instituto Politcnico de Beja e Antnio Ramos, amante do
canto e da poesia e investigador de histria local.
Aconteceram luminosos lanamentos do livro referido e do que se lhe
seguiu, Cantores de Abril. Entrevistas a cantores e outros protagonistas do
Canto de Interveno, realizados na Biblioteca-Museu Repblica e
Resistncia e na Casa do Alentejo, respectivamente em 23 de Fevereiro (13 anos
depois da morte de Jos Afonso) e em Novembro de 2000, assim como em 2005,
com a segunda edio do primeiro, pelo Jornal Pblico, em Abril de 2005
tambm na Casa do Alentejo. Contei com a participao solidria de diversos
cantores, msicos e diseurs Srgio Godinho, Manuel Freire, Francisco Naia,
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Rui Curto, Joo Pimentel, Jos Fanha, Bartolomeu Dutra ou Joo Paulo Guerra
(autor do prefcio) e Nuno Pacheco (que apresentou a 2 edio) entre outros, ou
a presena de figuras como Lus Clia, Jos Jorge Letria ou Zlia Afonso, Maria
do Cu Guerra, e fui alvo de apontamentos televisivos. Todavia, gostaria de
realar o lanamento da 3 edio de Canto de Interveno, acontecido no dia 25
de Abril de 2007, na Casa da Msica, apresentado pela amiga e poeta Maria
Lascas, no mesmo dia em que proferi a conferncia Jos Afonso o Canto da
Utopia, no mbito de uma importante homenagem que a Casa da Msica
dedicou a Jos Afonso, na passagem dos 20 anos da sua morte.
Esta experincia muito enriquecedora, levou-me a ter uma viso do
Mundo e do Homem mais humanista e mais tolerante; levou-me a dar novos
passos como investigador e cientista social e a crescer como ser humano.
Prosseguir cronologicamente este trabalho implicava estudar, debater a
msica herdeira, na contemporaneidade, deste importante movimento dos
cantores de interveno - grupos, projectos e percursos pessoais a que, nalguns
casos estou ligado pela amizade, pelo companheirismo ou que marcaram
musicalmente a minha adolescncia e juventude, eram uma espcie de farol, de
guia da potica desses verdes anos, antes de conhecer as pessoas e, de nalguns
casos com elas privar, existiam j afinidades poticas. E refiro-me a Srgio
Godinho, Rui Veloso, Janita Salom, Vitorino, Fausto, Lus Represas e
Trovante, Brigada Vctor Jara, mas tambm a projectos mais recentes como
Ensemble Moarabe de Eduardo Ramos, a Joo Afonso ou as novas formas de
reinterpretar Jos Afonso.,1 E, claro est, ao amigo Francisco Naia, agora com
uma nova formao onde pontuam actualmente msicos como Ricardo Fonseca,
Jos Carita, Nuno Faria, Gil Pereira ou Jorge Costa.
Mas para dar continuidade cronolgica ao trabalho anterior fiz em
percurso pela Cano de Coimbra, a que posteriormente dou conta, e, um belo
dia sigo o fio condutor de um texto de Manuel Alegre, onde dizia que o canto
de Coimbra tem talvez as suas razes na Provena e Uma das mais remotas
1 Ou Joo Cgado um excelente msico que conheci recentemente em vora, atravs da poeta Teresa Cuco e, a par duma amizade nova mas forte, conheci a invulgar estatura artstica do
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razes do fado de Coimbra o lirismo trovadoresco (NIZA, Jos, 1999: 21 e
22)
Da poesia Luso-rabe foi fcil chegar. E como conclu do trabalho
anterior, o movimento dos cantores de interveno alicera-se muito na grande
poesia, da a sua perenidade. Como dizia Mahmud Darwich, o poeta nacional da
Palestina: a poesia de interveno primeiro poesia e s depois que de
interveno, o que cantado durante este perodo de 1960 a 1974 a poesia de
grande qualidade, que toma, por aspectos variados, um carcter interventivo. Se
fosse poesia menor teria sido esquecida.
Tinha encontrado o fio condutor do meu trabalho. E depois de tentar
sistematizar diversos temas da poesia do sculo XI aqui no Garbe, escolhi dois
temas centrais e decisivos neste Sul Mediterrnico onde o Sol d o tom certo da
sensualidade dos corpos e o vinho produz a languidez da libertao dos sentido:
o Amor e o Vinho; que tero marcado a nossa potica desde a segunda metade
do sculo XI at ao incio do XXI, embora o primeiro tema mais do que o
segundo. Proponho-me, ainda que de uma forma breve e sintetizada, dar-vos
conta desse percurso, passando por Afonso X, D. Dinis, Cames, Gil Vicente at
Cano de Coimbra nos sculos XIX e XX mas em especial neste ltimo -,
Canto de Interveno e como fronteira do incio da Nova Msica Portuguesa, os
discos editados no Outono de 1971, nomeadamente Cantigas do Maio. Espero a
que tal me ajude o engenho e a arte.
msico e poeta que faz pop/rock alentejano a partir dos temas e dos ambientes nicos da plancie.
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Introduo
Cantar foi sempre um acto de celebrar a vida. Reportando-nos nossa
civilizao ocidental que floresceu nas margens do Mediterrneo, encontramos
os mais variados exemplos: cantava-se nos jogos olmpicos gregos, nos teatros
de Roma onde persiste a cultura greco-latina. Mas quando o Islo faz na
Pennsula Ibrica a sntese das civilizaes mediterrnicas, encontramos os
grandes poetas andalusinos e luso-rabes cantando, evocando o Amor e a
Natureza.
Encontramos o nosso Almutmide, Poeta-rei nascido em Beja, no sculo.
XI, Prncipe em Silves e depois rei em Sevilha que poderia ser de ascendncia
muladi e no arbica 2. A sua corte aquela onde se ter dado no al-Andalus, de
2 Tratando-se apenas de uma mera hiptese, visto no existirem dados, todavia num contexto de ascenso social, aps a queda do califado, em que o bisav de Almutmide, Muhammad Ab al-qasim ibne Abbd, juiz em Sevilha no tempo de Almanor viu suceder-lhe na judicatura o seu filhoAb al-Qasim que conforme Adalberto Alves (ALVES, 2004. 20) Este, pretextando matreiramente salvaguardar a autoridade de um fictcio califa, Hishm II al-Umayyad, acaba por tomar o poder, em nome prprio, fundando uma dinastia a abdida que viria a perdurar at ao colapso do reino do seu neto, al-Umtamid, frente invaso almorvida. Tendo presente Manuela Marn (MARN, 1992: 17) que nos diz, em traduo livre. Parece claro que o nmero de rabes de origem nunca deve ter sido muito () pois () muitos dos apelidos que vinculavam uma personagem com uma tribo rabe correspondia a uma realidade muito diferente baseada na existncia de laos de clientela (wal) com outra personagem este sim, de origem rabe ou, simplesmente , com as pretenses de descender de linhagem de prestgio. e refere Lus Molina, que num trabalho estudou 61 famlias andalusinas, na sua maior parte de sbios, ulemas, de um grupo social muito especifico, da elite social. Das 61 famlias, apenas 16 sero efectivamente de origem rabe, embora algumas com certas dvidas. Das outras 45, 12 so de origem desconhecida, claramente no rabe na sua maior parte, 22 procedem de clientes de omadas, tribos ou personagens rabes ou de um mawli oriental, cinco so berberes, dois tm um apelido rabe que no lhes devido e trs descendem de um escravo do califa Abd al-Rahmn I . Perante este contexto to complexo questionmos o arabista Cludio Torres (Entrevista: 2006) sobre a possibilidade de Amutmide ser de ascendncia muladi. C. Torres diz que no temos dados para defender a hiptese, mas que legtimo por esta hiptese, como legtimo por outras, mas apenas como meras hipteses. Pusemos a mesma questo ao arabista Adalberto Alves (Entrevista: 2006) tendo A. Alves mantido o que defende no trabalho citado, que passamos a referir: A dinastia que assim se inicia reclamar-se- sempre de uma pura origem rabe, qual os trs soberanos-poetas que a compem no deixam de fazer abundante aluso nos seus versos. Com efeito, os antepassados de Ab al-Qsim seriam elementos da tribo Lakham, de origem iemenita, chegados pennsula em 740, com Balj ibn Bishr al-Qushair e originrios de Hims, por sua vez , descendentes do lendrio rei de Hira.()
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uma forma mais completa, o apogeu civilizacional que o Islo possibilita ao
fazer na Pennsula Ibrica a sntese de todas as civilizaes mediterrnicas
(TORRES, Entrevista: 2006) E se no perodo califal de Crdova suplanta
Bagdad, posteriormente nos pequenos reinos taifas este perodo ureo tem
continuidade e desenvolve-se, descentralizando saber, cincia, arte, msica,
poesia. Nesse intenso perodo e nas dcadas posteriores onde a poesia tem um
papel fundamental, encontramos cerca de 40 poetas de grande qualidade em
curto perodo histrico de menos de 150 anos 3 s na regio do Garbe, que
ento corresponde ao actual territrio portugus a Sul de Coimbra. conquistada
pelo cristo Sisnando em 1064.4
Almutmide, filho e pai de poetas, o mais universalmente conhecido e
admirado poetas luso-rabes, figura nas Mil e uma Noites, e sua poesia, assim
como a de outros grandes poetas deste perodo, ilumina toda a lrica portuguesa,
como verificamos lendo Lus de Cames, tambm cantado pelo Zeca Afonso.
Afonso X, que talvez tenha vivido em Coimbra (TORRES, Idem) ento
a cidade mais importante a norte do Tejo, e talvez por isso soube rodear-se de
sbios e de artistas e foi dos monarcas cristos mais cultos e que manteve das
cortes de Crdova e Sevilha essa continuidade literria e civilizacional, onde o
seu neto D. Dinis foi beber a delicadeza de uma corte onde os jograis
entoavam cantigas de Amor, de Amigo, de Escrnio e Maldizer.
Gil Vicente, em muitas das suas peas que encenou em vida, cantava a
modernidade do Portugal da Expanso Martima, cantava o ser portugus,
Partilho a postura de Cludio Torres, pelo que cientificamente levanto a mera hiptese, de Almutmide ser de ascendncia muladi, como o contexto descrito poderia possibilitar 3 Embora uma parte considervel, como o caso de Almutmide, Ibne Amar ou Ibne Sara tenham vivido e produzido a sua obra potica na segunda metade do sculo, excepo de Ibne Sara que morre em 1123- 4 Relativamente grafia dos nomes rabes, optmos pela adoptada pelo Prof. Antnio Borges Coelho, pioneiro do arabismo contemporneo, e grafia de David Lopes e no a espanhola, a francesa, a inglesa, a portuguesa de Herculano, a de Frei Jos da Santo Antnio Moura, porque tal como o ilustre arabista nos diz no Prlogo 1 Edio do seu Portugal na Espanha rabe (a obra pioneira do arabismo portugus) ()Para evitarmos o arbtrio de uma interpretao pessoal, tanto mais grave quanto desconhecemos a lngua rabe, optamos pela grafia de David Lopes, o arabista que iniciou entre ns, em bases cientficas, o trabalho filolgico e histrico das fontes. Nas transcries respeitmos as grafias utilizadas, que nem sempre coincidem com a que adoptmos. Respeitmos sempre a grafia dos trabalhos citados, nomeadamente Joo de Barros na Pequena Histria da Poesia Portuguesa, que pode ser diferente da que est em vigor.
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quando a partir da corte do Prncipe Perfeito desabrochou em todo o seu fulgor
essa dualidade, como do mouro e do celta que nos habita5 esse entrecruzar de
sangue que nos possibilitaram chegar ndia e ao fim do mundo, deambular por
culturas to diversas mas to prximas porque a elas nos adaptmos e soubemos
ter a capacidade de amar a beleza e as mulheres do mundo inteiro, de igual para
igual, miscigenando(nos) em todas as paragens por onde Lus Vaz de Cames e
Ferno Mendes Pinto deambularam em deslumbre, algo tabu para outros povos
europeus.
Foi essa herana civilizacional bebida em Averris e noutros sbios
peninsulares e num legado multissecular de cincia e saber que nos possibilitou
a ns Portugal, e tambm, de certa forma Espanha fazer a Expanso Martima,
mas sobretudo ns e no a Frana ou a Inglaterra.
Cantou-se o amor e a natureza, a par dos feitos hericos. E a cantar
sempre se assumiu uma postura interventiva de denncia dos desmandos dos
poderosos, que bem patente no Teatro Vicentino.
Depois de Bocage, chegamos ao sculo XIX, onde a par do Romantismo
irrompe em Coimbra uma expresso potica e musical muito diversa do fado de
Lisboa e que se veio a denominar por Cano de Coimbra, Coimbra onde j no
sculo passado, o pioneirismo evolutivo de Antnio Menano e Edmundo
Bettencourt no canto e Artur Paredes na guitarra (que foram a sua face mais
visvel duma gerao diversa e multifacetada) temos esse perodo decisivo
conhecido pela gerao de oiro dos anos 20.
Quarenta anos depois, na passagem dos anos 50 para 1960, assistimos a
um novo ciclo histrico em Coimbra: osmose da Cano de Coimbra a algo
diverso, revolucionrio, como as lutas acadmicas que paralelamente vo
acontecer, ciclo esse protagonizado por Fernando Machado Soares, Lus Goes,
Antnio Portugal, Adriano Correia de Oliveira, pelo poeta Manuel Alegre e Jos
55 ALEGRE Trovador do Tempo Novo in Recordar Adriano Correia de Oliveira, (Coord. de Eduardo M. Raposo). Seixal: (edio dactilografada) Comisso de Homenagem a Adriano Correia de Oliveira, Outubro1992, que coordenmos. por ns citado em Canto de Interveno 1960-1974: 63.
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ante.
Afonso, quando se d incio ao movimento do Canto de Interveno de que o
autor das Cantigas do Maio foi o pai espiritual.
Aps o 25 de Abril de 1974, e depois de um breve interregno durante os
meses do PREC em que o canto livre apostou no imediatismo do texto e na
mensagem directa e panfletria, este movimento, agora sem a necessidade de se
direccionar para a luta pela liberdade, pelas razes bvias, reencontrou a sua
verdadeira essncia potica que muito provavelmente radica no perodo Luso-
rabe e que o Zeca Afonso, com uma postura necessariamente interventiva
(porque o estado da Nao a isso obrigava os homens livres e libertos como
ele)6. foi e a matriz
A grande poesia a razo de ser, o lirismo da nossa potica que
Almutmide cantou quase 10 sculos antes: o Amor. 7 Se Vitorino canta a
Laurinda do nosso Cancioneiro Popular, o irmo Janita Salom vai at
Marrocos ao encontro dum passado milenar comum, a Brigada Victor Jara
reinterpreta o nosso rico Cancioneiro, Fausto canta o Amor e a Saudade na
Expanso, Srgio Godinho, escritor de canes e Rui Veloso, cantam o
universo romntico urbano 8e Francisco Naia cantor do Sul, mantm viva,
para os 500 mil alentejanos radicados nos arredores de Lisboa, a pureza dos
poetas populares e do seu C
Ao mesmo tempo, a nova gerao, protagonizada por Joo Afonso, com
um percurso e um projecto prprio, canta o Zeca e reinterpreta o legado do
Canto de Interveno nos dias de hoje. Existe uma disparidade plural,
assumidamente interventiva: os movimentos hip-hop, o rap, onde cabem desde
os The Weasel ao Pac Man, mas tambm at a projectos que melodicamente se
situam na tradio do Zeca e do Adriano, recentemente surgidos. Ou ainda ou
6 Ainda hoje, 22 anos depois da sua morte, Jos Afonso continua a ter a marca de esquerdista e, por vezes, ainda subvalorizada a sua inigualvel obra de gnio maior da msica popular portuguesa em desfavor da sua postura cvica enquanto cidado que se ops frontalmente ao Estado Novo, mas que dizia que era o seu prprio comit central - o que eu chamo liberdade livre (Conferncia na Casa da Msica, 25 Abril 2007). Atente-se como em 2007, excepto no caso da Casa da Msica, a passagem dos 20 anos da sua morte, se no passou totalmente despercebida, no foi alvo de uma homenagem nacional como em 2009 aconteceu com um outro gnio da msica portuguesa, Amlia Rodrigues. 7 Que com o Natureza e o Trabalho so temas caracterizadores do Cante Alentejano. 8 O Porto aqui to perto, O primeiro beijo, entre muitos outros temas
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grupos na rea do pop-rock como os Cl. De referir tambm o universo do fado
contemporneo Caman, Dulce Pontes, Marisa, Mafalda Arnaut, ou Msia e a
fuso do fado com a cano urbana, onde Srgio Godinho est presente como
autor e Jos Mrio Branco como compositor e director musical.
O que mais nos importa a Poesia. Claro que a Poesia se se ficar apenas
pela sua beleza lrica, se no for tambm veculo e meio, para a alm da
indispensvel essncia e riqueza intrnseca, poder no cumprir este papel
interventivo. Mas em 60 e incios dos anos 70 houve uma conjugao mpar que
marcou um tempo histrico, a que Manuel Alegre sintetiza sabiamente: deu-se
o encontro da poesia e da msica que constituiu ento() o verdadeiro
vanguardismo esttico portugus ()(RAPOSO, 2000 A: 62 e 63)
A metodologia utilizada foi diversa. Se os primeiros tempos me levaram
tentativa de compreender as caractersticas do Fado ou como prefiro, a
Cano de Coimbra, assim que encontrei o fio condutor, referido
anteriormente, realizei diversas entrevistas, desde 2006 aos arabistas Cludio
Torres (8 de Maro) e ainda nesse ms a Adalberto Alves, que repeti em 2007,
2008 (tendo no Outono entrevistado ainda Antnio Borges Coelho) e em 2009.
Em Maro deste ano coordenmos, em parceria com o CIDHEUS e a CME, a
realizao de um Colquio Internacional em vora sobre Almutmide e a
Poesia do Garbe al-Andalus, tendo sido homenageado Antnio Borges Coelho.
Socorremo-nos paralelamente das diversas fontes secundrias sobre o perodo
islmico disponveis, tanto destes como de outros autores espanhis, franceses,
americanos. A partir de ltimo trimestre de 2008 inicimos as entrevistas ao
cantautores, intrpretes, compositores assim como o estudo da sua discografia
e da Poesia sempre presente nestes longos mas envolventes mais de cinco
anos, a Poesia desde o sculo XI ao XXI. J na fase mais adiantada do trabalho,
os sites existentes foram tambm utilizados como forma de aferir, comprovar,
esclarecer, at confrontar os entrevistados. Resumindo: entrevistas, discografia e
a Poesia, Internet e fontes secundrias (perodo islmico). E, claro, inmeras
fontes bibligrficas, incluindo trabalhos meus, peridicos, entre eles a Revista
Memria Alentejana, que fundei e dirijo.
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No nosso propsito ou ambio dissecar ou estudar exaustivamente,
numa perspectiva morfolgica ou sinttica a poesia luso-rabe, note-se bem. No
temos tal pretenso, porque isso obrigava-nos a dominar duma forma completa o
rabe, e tambm o latim, pois a lngua falada aqui na pennsula no sculo XI,
seria mais uma mescla do encontro do romano e do rabe dialectal, trazido do
Norte de frica pelos contingentes berberes enquadrados por uma minoria rabe,
como abordaremos no prximo captulo. Ter tal domnio lingustico obrigava-
nos a uma especializao que provavelmente no nos iria permitir, em tempo til
de vida realizar este trabalho que assim seria algo diferente. Tal no foi a nossa
opo, at porque julgamos ser o papel do historiador que, em vez de dar
respostas conclusivas, lanar hipteses, ainda que meras hipteses acadmicas
mas devidamente sustentadas cientificamente, isto , aventurar-se por mares
nunca dantes navegados, se necessrio for, mas com rigor e seriedade cientfica
e intelectual, Que seja este um modesto contributo para um olhar diferente sobre
500 anos da Histria do Garbe, que a Inquisio h outros tantos tentou apagar.
Mas mais do que os edifcios, o sentir, a alma, o canto e a Poesia que esto
vivas, dentro de ns e permanecem perenes. A interveno sem a fora e a
beleza da grande Poesia, seja ela erudita ou popular, algo datado. Sem ela este
movimento no se teria tornado na mais importante expresso da nossa msica
popular em 60 com o Canto de Interveno, com a sua continuidade histrica,
potica e musical aps o PREC, mas que ter a sua baliza cronolgica e ponto de
partida com as histricas edies do Outono de 1971: Gente de Aqui e de Agora
de Adriano Correia de Oliveira, Romance de um dia na Estrada e os Os
Sobreviventes de Srgio Godinho, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades
por Jos Mrio Branco, que tm o seu expoente em Cantigas do Maio, fruto do
profcuo encontro deste ltimo com Jos Afonso que mais uma vez revela a
sua enorme necessidade de experimentao e perfeccionismo, como acontecera
nove anos antes quando abandonara o acompanhamento guitarra de Coimbra e
iniciara um percurso muito prprio, o seu percurso que fez dele e da sua obra o
gnio maior da msica popular portuguesa e um dos gnios maiores da Msica
do Mundo.
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Hoje, 35 anos depois de 1974, na contemporaneidade, muito
provavelmente, a Nova Msica Portuguesa, no seria o que mais srio e criativo
acontece no panorama musical portugus e consubstancia um srio contributo
para a World Music.
PARTE I DE ALMUTMIDE AO ROMANTISMO
Captulo I
ANTECEDENTES
1 A sntese civilizacional ocorrida no al-Andalus
Admiro este Mouro que no defende a liberdade porque no deserto se sempre
livre, que no defende tesouros visveis porque o deserto nu, mas que defende
um reino secreto9
Ao falarmos do al-Andalus a Poesia est indiscutivelmente presente,
como uma das componentes e caractersticas peculiares deste perodo histrico
decisivo para a formao de Portugal.
Quando o Islo, assumindo-se como depositrio das civilizaes
Mediterrnicas greco-romana, persa e hindu, faz na Pennsula Ibrica a sntese
de todas as civilizaes mediterrnicas (TORRES; Idem), pe ao dispor dos
9 Saint-Exupry citado por Adalberto Alves em O meu Corao em rabe: 14.
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povos peninsulares esse fabuloso legado civilizacional to variado e complexo
que vai desde a Filosofia, a Cincia, a Medicina, a arte de navegao ou as novas
tcnicas e produtos agrcolas, a Jurisprudncia, a Histria, a Medicina, a
Geografia, a arte do Canto e da Dana, a Literatura, a Poesia .
1.1 O Zjel - gnese da cano provenal e da poesia lrica das modernas
naes europeias
J no perodo do Emirato de Crdova (756 a 928) d-se um
desenvolvimento das letras e das artes, para que muito ter contribudo a vinda
para Crdova do famoso msico e poeta iraquiano Ziriab - para a corte do emir
Abderramo II (821-852). (PALENCIA, 1928: 10). No reinado do ltimo emir
Abdulla que termina em 912, o Zjel sido inventado por Mocdem ben
Mufa, el ciego, natural de Cabra, na regio de Crdova. Este poeta, que viveu
no tempo dos emires Abdalah e Abderramo III - finais do sculo IX e primeira
metade do X (PIDAL, Ibidem) ter-nos- legado um novo sistema lrico a
muwaxxaha, com um sistema estrfico e mtrico em que se usa um rabe
popular mesclado com a lngua aljam, ou romance aljamiado, isto , o linguajar
cristo misturado com o rabe, falado pelos moarabes cristos submetidos ao
domnio muulmano, que tambm toma o nome de Zjel (bailada) quando era
usado esse rabe mais dialectal, como nos diz Ramon Menndez Pidal (Idem,
Idem:20).
O Zjel ou muwaxxha, pois um tristico monorrimo con estribillo com,
adems (esto es lo esencial), com un cuarto verso de rima igual al estribillo, rima
que se repite el cuarto verso de todas las estrofas de la misma cancion.(Idem,
Idem: 17).
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Ser esta cano rabeandalusa que est na gnese da poesia lrica das
naes modernas europeias, como sustenta Menndez Pidal, teoria arbico-
andalusa que defende que esta forma estrfica, assim como alguns elementos
da ideologia amorosa expressa no zjel rabo-andalus, influenciaram o
nascimento da poesia provenal, sobretudo o primeiro dos trovadores
conhecidos, Guilherme IX, conde de Poitiers e duque de Aquitnia (Cfr. Idem,
Idem:16).
Relativamente a esta forma estrfica chegam-nos relatos de dois grandes
escritores muulmanos: Ibne Bassame10, relatava, em 1109, em Sevilha, nas
biografias de literatos hispano-rabes; e Aben Jaldn, nascido em Tunes, em
1332 e falecido em 1406, considerado o grande filsofo da Histria e historiador
da Cultura, ainda segundo Menndez Pidal, que nos diz que:
Al decir de ambos autores, la estrofa inventada por Mucddam tena un
markaz, voz rabe que significa apoyo, estribo (lo mismo que la voz espaola
estribillo), en el cual se usaba el rabe popular mezclado al lenguage aljam o
romance hablado por los mozrabes cristianos sometidos al domnio musulmn;
sobre esse markaz compona Mucddam estrofas com mudanzas, agasan, y
vuelta, simt. concluindo Menndez Pidal que el zjel uma poesia nascida
para ser cantada no meio bi-racial e bilingue, falada num rabe romanizado e
num romance arabizado, no meio popular andaluz, onde ento interferiam dois
mundos lingusticos, o islmico e o cristo. (Idem, Idem: 19 a 20 e 26)
Esta poesia, ainda conforme este autor:
La muwaxxha compuesta com estas estrofas se llam tambin zjel
(bailada) cuando usaba ese rabe andaluz ms dialectal () Aben Jaldn nos
dice que el zjel vino a ser el sustituto vulgar de la casida rabe clsica,
parecindose a la casida por ser el uno y la outra composiciones bimembres,
cuya primera parte era dedicada al amor, y la segunda, al elogio de algn
personaje; los andaluces llegaron a ser sumamente refinados en este nuevo
gnero, y todo el mundo, tanto los instrudos como las clases populares, lo
10 Ibne Bassame (scs. XI/XII) de Santarm, poeta e autor da monumental Antologia, dedicada especialmente ao al-Andalus , obra decisiva e s ainda parcialmente traduzida Dakhira (O Tesouro) atravs da qual nos legou a produo potica conhecida no seu tempo.
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encontraban encantador, a causa de la facilidade com que se entenda y
aprendia ( Idem, Idem : 20)
O Zjel, que teve uma grande difuso para Oriente, ter sido difundido
para Ocidente atravs das cantoras andaluzas levadas fora em resultado de
escaramuas e batalhas que regularmente oponham os habitantes peninsulares
rabe-andaluzes e os cristos. Ter influenciado a cano provenal assim como
a poesia lrica das modernas naes europeias, desde a poesia galaico-
portuguesa, a aragonesa e a italiana.
Ainda conforme o mesmo autor, o poeta Ibne Bassame, que nos refere
tambm o zjel esta mescolanza lingustica, propagou-se rapidamente para o
mundo rabe, assim como para mundo romnico. (Idem, Idem: 26)
Partindo desta premissa, bem fundamentada, e chegando a um contexto
histrico-socio-cultural que antecede e possibilita o incio da nacionalidade
portuguesa, que tem a sua gnese numa populao onde os elementos muladi e
moarabe so amplamente maioritrios, encontramos os alicerces cientficos
para que possamos apelidar de luso-rabe, e no de rabe, a produo potica do
habitantes do Garb Alandalus, nomeadamente na segunda metade do sculo XI e
seguinte.
Iniciava-se assim a poesia trovadoresca e o seu meio corteso, onde os
prprios monarcas eram grandes poetas, como mais tarde, aps a conquista
crist, como veio a acontecer como prncipes mais cultos, personificados por
Afonso X, o Sbio, ou pelo seu neto, o nosso D. Dinis, o Poeta, com cortes
onde pontificavam os poetas, os cantores/cantoras, os sbios e os cientistas
rabes ou muladis.
Assim se percebe melhor como Crdova, que inicialmente se revia e
imitava as faustosas cortes orientais de Damasco e de Bagdad, a elas se vai em
breve comparar e at suplantar. O al-Andalus entrava no seu apogeu
civilizacional.
Abderramo III, (912-961) que inaugurou o perodo califal, procurou
para o Alal- dalus ordem e prosperidade no interior e respeito face aos reinos
vizinhos aumentando a produo da riqueza, fomentando a agricultura, o
-
comrcio, a indstria, as artes e as cincias que muito floresceram; embelezou
Crdova, que ento j se podia comparar com Bagdad. Tal apogeu da civilizao
material , conforme ngel Gonzalez Palencia (PALENCIA, Idem: 12 e 13),
tinha que ser acompanhado pelo desenvolvimento cientfico e literrio
O seu sucessor, Alqume II, considerado o mais tolerante e liberal dos
califas hispano-rabes - embora todos os seus predecessores fossem homens
cultos e cultivadores de bibliotecas, este monarca suplanta-os -, era um
entusiasta de livros preciosos e raros, tendo para tanto agentes no Cairo,
Alexandria, Damasco e em Bagdad, encarregados de copiar a qualquer preo
livros antigos e modernos, e a sua biblioteca era composta por quatrocentas mil
obras. (Idem, Idem, 14 e 15)
A tese defendida por Menndez Pidal e tambm, de alguma forma,
corroborada por J. Leite de Vasconcelos, que comea por nos referir que os
morabes eram bilingues, pois se falavam o seu idioma tradicional romnico e
o rabe (VASCONCELOS, 1958: 266) e continua: Constituindo um grupo
tnico bem diferenciado, com religio, leis e costumes prprios, no admira que
conservassem o seu falar tradicional; tendo por fora de conviver com os
vencedores, de quem diariamente dependiam, indispensvel lhes era aprender a
sua lngua. Isto no significa que todos a falassem. A gente rural do serto, sem
trato com os novos senhores, teria dela, se tivesse, um conhecimento rudimentar.
Nas grandes cidades, porm, o prestgio da lngua muulmana, instrumento de
uma civilizao superior, cativou, de todo, os Moarabes cultos, alguns dos
quais no s falavam polidamente o rabe, como o escreviam com nomeada
elegncia.
Os nossos Moarabes viveram na parte meridional do territrio
portugus. A falaram o seu romano at meados do sc. XII, poca em que,
merc da efectiva reconquista crist, comeou a operar-se a fuso do seu falar
com o dos Portugueses vindos do Norte. () Como fenmenos tpicos dessa
influncia, em que predominou, evidentemente, o portugus dos
reconquistadores, apontam-se, por exemplo, o desaparecimento do n e l
intervoclicos, caractersticos da fala morabe e ainda subsistentes em
topnimos como Mrtola e Fontanas, e a supresso, no grupo tch, peculiar do
-
dialecto do Norte, da dental t :tchave >chave, tcheio>cheio. ( Idem, Idem: 266
e 267)
O mesmo autor refere ainda, a terminar, aps transcrever moaxahas, (ou
excertos de), supostamente da autoria de hebreus e rabes, que segundo ele vem
lanar uma nova luz sobre o discutidssimo problema das origens do lirismo
peninsular da Idade Mdia, como ainda ampliar, e grandemente, os escassos
conhecimentos que possumos do romano moarbico. (Idem, Idem: 271).
Citamos dois breves mas belos e poderosos exemplos:
N I, de Ibn Ubada, que , talvez, o mesmo Ubada que comps a n xx.
O Poeta viveu na corte almeriense na segunda metade do sc. XI:
Mi sidi Ibrahim, ya nuemne dol^ye, vente mib de nohte. In non, si non queris, irme tib: garme a ob legarte.11
N XXIII, de moaxaha annima: Aman, ya habibi! Al-wahs me non fars. Bon, besa ma boquelha: E o s que te no irs.12
11 Traduo: Meu senhor Ibrahim, oh doce nome!, vem a mim de noite. Se no, se no queres, ir-me-ei a ti: dize-me onde encontrar-te.
Traduo: Merc, oh amigo! No me deixars s. Belo, beija-me a boquinha: eu sei que te no irs. (Idem, Idem: 270 e 271)
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Captulo II
A POESIA LUSO-RABE: GNESE DA POESIA LRICA NO
DEALBAR DA NACIONALIDADE
1 O Amor e o Vinho na Poesia Lusorabe*
no Sculo de Almutmide
1.1 A Dinastia Abdida
Este apogeu civilizacional com o desmembramento do Califado
(929/1031), aps a morte de Almanor e do perodo de instabilidade que se lhe
seguiu com desagregao do califado e a consequente criao dos pequenos
reinos taifas, mantem-se e paradoxalmente ou no, o fausto e o requinte da corte
califal vai atingir o seu apogeu maior na poca ou Sculo de Almutmide,
assim chamado ao breve mas intenso perodo civilizacional que compreende o
governo deste Rei-poeta- descendente da uma breve dinastia abdida iniciada
por seu av, Ab al-Qasim, conforme Adalberto Alves. (ALVES, 2004: 20)
Almutmide nasce em Beja, numa das cidades mais importantes deste
vasto territrio ocidental do al-Andalus, que entre os scs. VIII e XIII, quase
sempre gozou de um estado de relativa autonomia, que se aproximou, por vezes,
de uma quase independncia, (TORRES; MACIAS; 2003:119)
-
Filha de me bejense, Almutmide, que governou entre (1069-1091),
ser, nestes escassos 22 anos, senhor de um extenso territrio, com capital em
Sevilha. J no seu reinado acaba por incorporar todo o Garbe, assim como
Huelva, Ronda, Carmona, Jerez, Arcos, Niebla, Morn, Sevilha e Crdova,
sendo de longe a sua Taifa a maior e a mais importante do todo o Alandalus. Ele
e anteriormente seu pai Almutadide, tero tido o intuito de refazer o califado,
embora tal no venha acontecer. Ao poder territorial junta-se a figura de grande
Poeta, de benemrito e impulsionador das artes e das letras sendo a sua corte o
paradigma do apogeu civilizacional de ento.
Todavia, se neste perodo, autores que, como Adalberto Aves consideram
o justamente o Perodo ou Sculo de Almutmide, Sevilha, Toledo, Crdova e
Granada iluminam o al-Andalus de cincia e de saber, com refinado esplendor
nas artes e nas letras, no Garbe, embora numa escala menor, Beja, Santarm,
Lisboa ou Silves so importantes centros urbanos com todas as caractersticas a
que esto associadas neste perodo histrico, sendo Silves considerada a capital
cultural do Garbe, enquanto Beja, onde Almutmide nasceu em 1040, estava
ainda no final do seu apogeu vindo do perodo tardo-romano.
De Silves chegam-nos notcias da Poesia a brotar em cada instante, no
Palcio dos Balces, hoje desaparecido e onde Almutmide ter passado a sua
juventude rodeado da subtileza etrea da Poesia e da beleza feminina, bem
terrena, uma juventude despreocupada. Este perodo ser depois recordado no
poema Evocao a Silves dedicado ao seu grande amigo Ibne Amar, de
ascendncia humilde, natural de Estombar, que exerceu uma forte influncia na
sua formao literria e potica na juventude do Princpe.
Itimd
Invisvel a meus olhos, trago-te sempre no corao Te envio um adeus feito paixo
-
e lgrimas de pena com insnia. Inventaste como possuir-me e eu, o indomvel , que submisso vou ficando! Meu desejo estar contigo sempre. oxal se realize tal vontade! Assegura-me que o juramento que nos une nunca a distncia o far quebrar. Doce o nome que o teu e aqui fica escrito no poema: I timd.13
O desejo, a Paixo, o Amor por esta mulher espirituosa e, porventura,
senhora de grandes caprichos, a que o monarca faria milagres para
corresponder, maravilhado, encantado, como quando ter plantado amendoeiras
na Serra de Crdova (ou ser no Algarve?), porque ela queria ver neve; ou
quando desejou pisar barro e o soberano mandou misturar acar, canela e
perfumes no ptio do palcio para satisfazer o capricho da sua amada, como
verdadeiro apaixonado, como nos diz Angel Gonzlez Palencia ( PALENCIA,
Idem: 77)
O Amor e o seu poder, o maior de todos os poderes, o poder do Amor
como nestoutro, intitulado
Poder
meu olfacto teu odor delicioso e o teu rosto o senhor dos olhos meus, por seres minha, mesmo depois do adeus, que todos me chamam poderoso.14
13 (RAPOSO, 2008: 20) Cfr. verso de Adalberto Alves (ALVES, 2004: 101) 14 (Idem, 2008: 20) Cfr. verso de Adalberto Alves (ALVES, 2004: 83)
-
Ou estoutro, que figura nas Mil e Uma Noites, um dos seus mais belos
poemas onde, mais uma vez, em Almutmide se denota um tocante e persistente
acento pessoal
Inocultval Por receio de quem espia com muita inveja a roer ela no veio nesse dia, para trada no ser pla luz que do rosto esplende, plas jias a tilintar e pelo perfume do mbar a que o corpo lhe rescende: que ao rosto, com o manto, tap-lo inda poderia, e as jias, entretanto, facilmente as tiraria, mas a fragncia do encanto, pra ocult-la, que faria?15
E Ou esses negocios
Ou em Eclipse ela levantou-se e ocultou o brilho solar dos olhos meus. assim fique oculta da m-sorte!
15 (Idem, Ibidem) Cfr. verso de Adalberto Alves (Idem, Idem: 111)
-
ela sabe que uma lua. e que melhor para ocultar o sol seno a face da prpria lua?16
Aqui em verso de Adalberto Alves, havendo outra, de Borges Coelho
cantado por Janita Salom no disco To e pouco e tanto- e que no respectivo
captulo transcrevemos - onde Manuel Alegre, trovador da contemporaneidade,
escreveu:
H no sul um silncio povoado de sons, um misto de cigarras, zibelinas,
besouros, uma espcie de zumbido do tempo, por vezes rasgado pelo grito do
milhafre.
Se fosse pintor, pint-lo-ia sob a forma de um trao branco em fundo
azul. Um risco, nada mais do que um risco.
O Escudo, um dos primeiros poemas conhecidos de Almutmide, e
que teria sido feito a mando de seu pai que lhe havia solicitado a descrio de
um escudo de fundo azul, ricamente trabalhado a ouro e prata.(ALVES, 2004:
65 )
O Escudo
vede este escudo: seus autores no cu foram colher inspirao pra no ser plas lanas penetrado: nele as Pliades esculpiram, estrelas que auguram a vitria. uma cercadura lhe deram douro puro, luz da manh vestindo o horizonte17
16 (Idem, Ibidem) Cfr. verso de Adalberto Alves (Idem, Idem: 107)
17 Verso de Adalberto Alves (Idem, Idem: 65)
-
Neste contexto da segunda metade do sculo XI em que um desequilbrio
populacional em benefcio dos muladis, devido a mais converses, tem o efeito
perverso de diminuir os impostos pagos a populao morabe - agora em menor
nmero -, o que provoca um aumento de impostos a toda a populao, pois cada
vez so necessrias mais verbas para travar a cada vez mais poderosa ameaa de
Afonso VI, que cobra impostos aos reinos taifas para no os atacar, mas que no
passa de uma paz precria e cada vez mais so necessrios maiores contingentes
de mercenrios para garantir a segurana das populaes do al-Andalus. Mas
esta no uma poltica popular, ainda mais face sumptuosidade da corte, e
neste caso a de Sevilha que personifica o apogeu civilizacional do mundo de
ento. E isso custa dinheiro, muito dinheiro.
E neste contexto que a sumptuosidade de uma corte que parte de uma
conjuntura histrica irreversvel que havia de perder Almutmide, mal visto aos
olhos dos alfaquis e dos ulemas, que consultados pelo soberano almorvida
Ysuf, reconhecem-lhes o direito de reunificar o al-Andalus devido a duas
infraces lei islmica: a (supostsa) cobrana ilegal de impostos e o pagamento
de tributos aos cristos.
A poesia eivada de erotismo, onde o elemento bquico est muito
presente, mas tambm a saudade da sua Silves onde viveu certamente os mais
suaves e decisivos anos da sua vida: a amizade com Ibne Amar e o encontro com
Itimade, em Evocao de Silves, que de Sevilha dedica ao seu amigo de longa
data, neste excerto:
Sada, por mim Abu Bakr, Os queridos lugares de Silves E diz-me se deles a saudade to grande quanto a minha. Sada o palcio dos Balces Da parte de quem nunca os esqueceu. Morada de gazelas e lees Salas e sombras onde eu
-
Doce refgio encontrava Entre ancas opulentas E to estreitas cinturas! Mulheres nveas e morenas Atravessavam-me alma Como brancas espadas E lanas escuras. Ai quantas noites fiquei, L no remanso do rio, Nos jogos do amor Com a da pulseira curva Igual aos meandros da gua Enquanto o tempo passava E me servia de vinho: O vinho do seu olhar s vezes o do seu copo E outras o da sua boca. Tangia cordas de alade E eis que eu estremecia Como se estivesse ouvindo Tendes de colos cortados. Mas retirava o seu manto Grcil detalhe mostrando; Era ramo de salgueiro Que abria o seu boto Para ostentar a flor.18
Ou neste, breve mas belo poema onde o Vinho, como se intitula, o pano de fundo duma atmosfera carregada de erotismo e sensualidade:
O Vinho a noite lavava as sombras
18 Verso de Adalberto Alves (ALVES, 1991: 148)
-
das suas plpebras com a aurora. ligeira corria a brisa. bebemos vinho velho, cor de rubi, denso aroma, suave corpo.19
1.2 Ibne Amar
Abu Bakr Muhammad ibne Amar, denominado al-Andalus, amigo
ntimo do Prncipe, que o nomeou governador de Silves e posteriormente seu
Vizir (primeiro-ministro) e que, depois de vrias traies ao seu senhor e amigo
devido a uma ambio desmedida, acabaria morto s suas mos.
Como diz diz Adalberto Alves (ALVES,1991: 61)A sua poesia de
uma elegncia requintada, fruto de um superior domnio da lngua, e o brilho da
imagstica sobrepe-se, de facto, a um acento pessoal que s se manifesta como
expresso de orgulho, forma de afirmao de qualidades auto-atribudas. E
conclui o mesmo autor: Ibn Ammar foi poeta multmodo que cultivou, a par
das formas clssicas, a muwassahat e o zajal, ao servio dos gneros lrico,
ditirmbico ou satrico. Excelentes poetas, como Ibn Sahal de Sevilha, foram
influenciados pela sua obra, e dele disse al-Marrku que foi um dos gloriosos
poetas que seguiram as pisadas de Ibn Hn al-Andalus.
Como no nos vir memria a lrica camoniana neste requinte, nesta
elegncia?... neste excerto, ou no seguinte:
Do Amor
olhai quo grande o amor apaixonado que vcio e delcia e fogo ardente.
19 Idem, (ALVES, 2004: 76)
-
no busqueis pelo amor um dominado sede antes escravos pela sua lei e assim sereis livres finalmente. disseram: fez-te o amor sofrer intensamente! me agradam suas penas! foi o que afirmei. o corao quis doena pr corpo nos vestir a liberdade da escolha eu lhe outorguei. censurais-me de emagrecido andar. mas a excelncia dadaga, a que se resume seno finura do seu gume? troastes por a amada me deixar mas a noite derradeira de cada lunao rouba dos olhares a face do crescente. pensastes que a brisa da consolao, como um sono profundo, est presente? secou-se o amor com o fogo do amor com ela ficar meu pranto defensor. como o meu corao se lacerava quando se inclinava graciosa e a redeno das madeixas despontava! a quem foi dado contemplar seu vu escondendo uma manh to luminosa que abraava um nocturno cu? dona da alma do jardim, terno ramo, corao de zimbro, cora que eu amo*
-
o brilho do seu rosto amarfanhava a prpria lua em todo o seu esplendor e o grasnar dos gansos em redor era o ornamento que a cercava. da noite da unio nasce o dia enfim e o odor da volpia vem a mim. minhas lgrimas caram copiosas sobre o belo jardim daquela face assim humedecendo suas rosas at que o destino o desenlace me fez beber da taa da separao e me tornei brio desde ento.20
bem-amada
minhalma quer-te com paixo ainda que haja nisso uma tortura e alegre vai na nsia da procura que estranho ser difcil nossa ligao se os desejos dambos concordaram! que quereria mais meu corao, ao desejoso te buscar em vo, se meus olhos te viram e amaram?
20 Verso de Adalberto Alves, (ALVES, 2000: 78 e 79) *O poeta usa uma metfora, certamente, para simbolizar um corao pequeno como uma baga de zimbro
-
Allh bem sabe que no h razo de vir aqui seno para te ver. que o vigia no nos possa achar se o nosso reencontro acontecer pra os teus lbios doces eu provar. folgarei no jardim da tua face, beberei desses olhos o langor, e mesmo que um terno ramo imtasse o teu talhe grcil, sedutor, valerias mais que o imitador. no te ocultes, oh jardim secreto: quero colher meu fruto predilecto!21
ou ainda em carta ao prncipe, exilado em Saragoa por Al-Mutadid, pai deste, evocando Silves:
Saudade como falar de ti, Silves, sem que uma lgrima me caa como a do enamorado enternecido, ou de ti, Sevilha, sem um suspiro de ansiedade? sois terras vestidas, pela chuva fina, com a tnica da mocidade,
21 Verso de Adalberto Alves (Idem, Idem: 82)
-
a mocidade que se desvaneceu quando me furtou meus amuletos assaltou-me a memria dos amores ardentes como se me consumisse um lume violento no mais profundo deste meu corao. oh noites minhas de antigamente! Que me importavam censuras dos crticos! Nada me desviava do amor mais louco. A insnia vem-me de uns olhos lnguidos E sofro por uma silhueta de esbelto talhe.22 ()
Ou estoutro dedicado ao seu amigo, senhor e rei:
A Al-mutmid (II)
Quantas noites passadas l no aude Sinuosas deslizavam as correntes do rio Como manchadas serpentes. As correntes murmuravam junto a ns Ao passar, qual gente ciumenta, A querer magoar-nos fora da calnia. Mas no recanto escolhido Era o jardim que vinha visitar-nos Enviando seus presentes Nas perfumadas mos da brisa.23
22 Verso de Adalberto Alves (Idem, Idem: 73)
-
Ou este pequeno excerto de um longo poema dedicado a Almutmide
MAIA UMA rodada copeiro, Que j se ergue a aragem da manh E a estrela de alva Desviou a rota da noite viajeira. A alvorada trouxe-nos brancura de cnfora Assim que a noite reclamou seu negro mbar. O jardim parece uma donzela vestida com uma tnica Bordada a flores e adornada com prolas de orvalho24
()
Ou ainda esta bela reflexo sobre como, s de quem da lei do amor se sente escravo atinge a liberdade plena
BOM que no esqueais Que o que d ao amor rara qualidade a sua timidez envergonhada. Entregai-vos ao travo doce das delcias Que filhas so dos seus tormentos. Porm, no busqueis poder no amor Que s quem da sua lei se sente escravo Pode considerar-se realmente livre. 25
Ou ainda esta breve mas deliciosa evocao do universo feminino:
23 Verso de Adalberto Alves (ALVES, 1991: 66 e 67) 24 Verso de Adalberto Alves (ALVES, Idem: 68 e 69) Cfr. nos diz Adalberto Alves, trata-se da justamente clebre qada em ra, metro kamil, dedicada a al-Mutamid ()
25 Verso de Adalberto Alves (Idem, Idem: 65)
-
A Amada Ela uma frgil gazela: Olhares de narciso Acenos de aucena Sorriso de margarida. E se seus brincos se agitam Quedam-se os braceletes na escuta Da msica do requebro da cintura.26
1.3 Ibne Sara
Ibne ara (Ab Muhammad ibn ra a-antarn), outro dos mais
importantes poetas luso-rabes , nasceu em Santarm, onde morreu em 1123, no
incio do domnio almorvida, depois de uma vida atribulada. Poeta muito
apreciado pelos literatos do seu tempo, que o citam amide. Os seus versos,
variados no tema e na forma, de cunho pessoal, revelam um apurado domnio do
rabe, recorrendo frequentemente s subtilezas que a lngua permite.
De que reproduzimos este belo poema:
Laranjeira
So as laranjas brasas que mostram sobre os ramos
a suas cores vivas
ou rostos que assomam entre as verdes cortinas dos palanquins?
26 Verso Adalberto Alves (Idem, Ibidem)
-
So os ramos que se balouam ou formas delicadas por cujo amor sofro o que sofro? Vejo a laranjeira que nos mostra os seus frutos: parecem lgrimas coloridas de vermelho pelos tormentos do amor. Esto congeladas mas se fundissem, seriam vinho. mos mgicas moldaram a terra para as formar. So bolas de cornalina sobre ramos de topzio e na mo de zfiro h martelos para as golpear. Umas vezes beijamos os frutos outras cheiramos o seu olor e assim so alternadamente rostos de donzelas ou pomos de perfume27.
encontramos uma ode lindssima Natureza que se transfigura em
Mulher, na mulher amada, e onde o vinho tambm est presente.
O Zfiro e a Chuva
Se buscas remdio no sopro do vento sabe que em suas baforadas h perfume e almscar Vm a ti carregadas de aromas como mensageiros com saudaes da amada.
O ar prova os trajes das nuvens, escolhe
27 (RAPOSO; 2008:21) Cfr. verso de Antnio Borges Coelho (COELHO, 2008: 530 e 531)
-
um manto negro.
Uma nuvem carregada de chuva faz sinais ao jardim saudando-o e logo chora enquanto as flores riem.
A terra d pressa nuvem para que lhe acabe o manto e a nuvem com uma das mos tece os fios da chuva enquanto com a outra borda flores de enfeitar28
Neste breve reflexo breve, sobre o Amor, o Vinho, onde tambm a Natureza e
a Saudade esto presentes, e onde gostaramos de incluir, para alm dos
referidos poetas, outros tambm excelentes poetas de: Santarm (Ab Ahane,
ibne Bassame); vora (Ibne Abdune, Ibne Ayyas Alieburi); Beja (Albaji);
Lisboa, Alcabideche (Ibne Mucana Alisbuni); Silves (Mariame Alansari, Ibne
Almilhe, Ibne Asside, Assilbia, Ibne Hisn, Ibne Zuhr Aliiadi, Alcartajani),
Mrtola (Ab Imrane Almertuli); Loul (Ab Arrabi Soleimane ibne Isa Cutair);
Faro (Ab Alane Salh ibne Salih Assantamar, Ibne Alalame Assantamar);
Cacela (Ibne Darrague Alcacetali) ou Alccer do Sal (Abdal ibne Amr),
(COELHO, Idem: 509 a 547), onde se contam, s entre meados dos sculos XI
e XIII quatro dezenas de poetas mas destes, uma larga maioria que ultrapassa a
trintena, viveu e produziu a sua obra na segunda metade do sculo XI, tendo
alguns vivido ainda nas primeiras dcadas do sculo seguinte; certamente sero
apenas uma nfima parte da grande produo dos justamente chamados poetas
luso-rabes, onde encontramos a gnese da nossa poesia lrica do sculo de
Almutmide e seguinte.
Em Almutmide (e nos poetas deste perodo) na sua lrica vo beber D.
Dinis, Cames, Fernando Pessoa, chegando at aos nossos dias, com Sophia,
28 Verso de Borges Coelho (Idem, Idem: 528 e 529) Este outro belissmo poema de Ibne Sara, tambm interpretado por Janita Salom, no disco To pouco e tanto, de que faremos referncia no respectivo captulo.
-
Alegre e todos os grandes poetas e escritores de canes que cantam o Amor, a
sensualidade, a Paixo, a Natureza, a Saudade do ser portugus.
Almutmide que personificando tudo isso, essa nossa gnese potica,
mas tambm o estadista visionrio, que teve continuidade em D. Joo II, ele,
poeta do destino, encontrou o desterro e a morte em terras magrebinas como
D.Sebastio, ele que foi, sobretudo, o Prncipe do Renascimento, Amante e Rei,
no dizer de Adalberto Alves, que citamos,
A nossa poesia trovadoresca, quer as cantigas de amigo quer as de
amor, quer as de escrnio e mal-dizer, so filhas directas das muwashshaha, e
do zajal rabes. E a saudade, palavra indizvel, a no ser em portugus e rabe,
cantada j no nasib da velha ode qasida ante-islmica. Essa saudade a
mesma que os habitantes de Testou (Tunsia), Tlemcen (Arglia) ou Tetuo
(Marrocos) sentem da terra do verde e da gua, o ndalus, de onde
injustamente foram expulsos h quatro sculos. Talvez por isso, ainda hoje usem
os seus apelidos portugueses e espanhis, e tm penduradas, nas paredes dos
lugares que habitam, velhas chaves ferrugentas das casas que aqui foram
forados a abandonar29
Este mundo mediterrnico feito de subtileza, qual reino secreto, situado
sobretudo na parte meridional do nosso actual territrio nacional, mas que h
menos de mil anos se estendia ao norte do Tejo, entre Santarm e Coimbra, era
habitado pelos nossos antepassados, na sua quase totalidade muladis e
morabes, herdeiros da sntese civilizacional das culturas milenares
anteriormente existentes - como atrs referimos -, mas protagonistas do apogeu
civilizacional que levaria Portugal em quatrocentos e quinhentos a liderar a
expanso martima.
Do professor A. Borges Coelho cito este delicioso texto, embora longo
mas perfeitamente esclarecedor:
Do sculo XI primeira metade do sculo XIII, os poetas do Garbe
adejavam como zanges perseguindo a abelha mestra do poder. Almutdide, de
Sevilha, seguindo os versos de Ibne Amar, premiava os poetas cortesos, no s
-
com o vesturio e o sustento mas com virgem nbil, e corcel de nobre raa e
sabre adornado de pedrarias.
H prncipes poetas como Almutmide (+ 1095) ou seu filho Arradi,
senhor de Mrtola e em Mrtola assassinado pelos almorvidas no ano de 1091.
Por sua vez, Ibne Amar, de Silves (1031-1086), de modesta origem, alou-se a
um principado em Mrcia e pagou o feito com a vida, na mesma poca em que o
cristo desterrado Cid (senhor em rabe), el Campeador talhava para si um
principado na Valncia mourisca.
Crdova deixara de ser o corao e a cabea do Andaluz. Os tributos
impostos pelo Islo e o saque da guerra santa ficavam agora retidos nos
pequenos principados ou reinos de taifas, alguns talhados no territrio que hoje
Portugal: Mrtola berbere de Isa e Ibne Taifur (um sculo mais tarde de Ibne
Caci); Silves, dos Banu Mozaine; Faro, dos Banu Hrune; vora, dos Aftsidas;
vora e Beja, dos Banu Uazir.
No se pode recusar a alta qualidade literria de alguns poetas nascidos
em territrio de Portugal: Almutmide, de Beja; Ibne Amar, de Silves; Ibne
Mucana, o lisboeta, o de Alcabideche (+ 1068?); Ibne Sara, de Santarm
(+1123); Ibne Asside, de Silves (1052-1127), tambm filsofo e autor do Livro
dos Crculos. E porque no Arradi, senhor de Mrtola, e Ab Imrane Almertuli
(o de Mrtola) (+1094 ou 1095)?
Estes poetas indicam os seus instrumentos de trabalho: a escrivaninha
com o seu canivete, o clamo, os bicos de cana, os tinteiros, o papel (novidade
na Europa), os grossos volumes manuscritos que adornavam bibliotecas de
prncipes e de particulares. Famosa a biblioteca do aftsida Omar Almutauquil,
senhor de vora.
Mas estes poemas no so para ler em voz baixa como quem reza, mas
para recitar ou cantar os seres literrios, nas orgias que terminavam quando a
aurora rasgava o novo dia. Por isso, uma das qualidades mais prezadas era a
facilidade e rapidez do improviso. O alade, a ctara ou instrumentos mais
populares como o adufe, a flauta, as castanholas e o pandeiro marcavam o ritmo.
29 (RAPOSO; 2008: 21) citando Adalberto Alves
-
O vinho decantava nas pipas, nos odres, nas garrafas e brilhava nas taas
passadas de mo em mo roda da lareira. No se trata de vinho figurado, vinho
literrio, mas vinho que sobe e trepa, por vezes amansado com gua.
H um requinte nestes saraus nocturnos que temos dificuldade em ver na
corte de Afonso VI de Leo e Castela, principalmente depois do seu casamento
com a francesa Elisabeth e a invaso da Ordem de Cluny e dos guerreiros
francos.
Os poetas do Garbe exaltavam o perfumador e os perfumes (das ervas da
serra algarvia destilavam-se perfumes excelentes). Ibne Amar no dispensava,
mesmo na priso, a navalha de barba e o depilador. As mulheres ostentavam
corpetes, colares, arrecadas, pendentes, braceletes nos braos e nos tornozelos,
cinturo.
As orgias no contavam s com homens e os seus belos copeiros.
Cantoras escravas participavam nestas veladas nocturnas onde o sexo jogava
cabra-cega. Ibne Amar desejava que o raquibe (dono) da cantora Tarabe no
estivesse presente. A escrava de Alquinane, comprada por 3000 dinares pelo
senhor de Santa Maria do Oriente, no tinha igual na arte da escrita, na
caligrafia, na dico sem falhas dialectais. Conhecia a morfologia, a
lexicografia, a mtrica. Sabia de medicina, de histria natural, anatomia e outras
cincias. Distinguia-se na luta, na corda com escudos na mo e em jogos com
lana, sabres e punhais afiados. De tudo isto nos informa o circunspecto Ibne
Haine. E tanta cincia e arte para continuar escrava.
()
Os poemas andaluzes olham a vida de cima, dos palcios como o das
Varandas em Silves, das alcovas, das casas de campo com seus vergis e
jardins. No Palcio Bendito de Sevilha coexistiam as salas e alcovas com os
jardins, com a masmorra na torre sobre a porta e o cemitrio.
A alcova integrava-se como residncia-fortaleza na cidade ou Medina,
marcada pela mesquita-aljama, o zoco ou mercado. Ruelas e vos enovelavam-
se entalados entre as muralhas com almenas, rasgadas aqui e ali por portas
flanqueadas de torres. Havia casas ricas com colunas e casas trreas e casas de
-
sobrado e casas prprias e casas de aluguer ou mesmo casas com retrete e gua
corrente como a arqueologia mostrou recentemente no castelo de Silves.
s portas chegavam as caravanas, carregadas de mercadorias e de
notcias, anunciadas pelo pregoeiro.
O mundo muulmano um mundo de cidade onde no falta o ouro e a
prata, onde tilintam as moedas de ouro, os mizcales de ouro de lei dos
almorvidas.
()
Os mercadores e artfices com as suas tendas organizavam-se em
corporaes, como pode ler-se nos versos de Almertuli. A mercadoria humana
dos escravos e escravas podia ser agrilhoada ou presa com um tronco soldado
em redor do p.
Nos rios e nos mares litorais enfunavam-se as velas dos navios com as
suas florestas de velas ou avanavam as galeras fora do brao dos remeiros.
Os poetas cantavam a guerra, uma guerra de cavaleiros, comparados, quando
fogem derrotados, a searas sangrando pelo vermelho das papoilas.
Os cavaleiros cobrem-se de lorigas, couraas, cotas de malha, apertadas
pelo cinturo donde pende a espada que pode ser indiana, dourada, ou cravejada
de pedrarias. E empunham o punhal, o sabre, a lana.
Os cavalos entram em cena seguros pela rdea e o estribo. Para Ibne
Asside, de Silves, a noite serve de veste a um cavalo preto a quem a aurora pe
malhas brancas nos cascos. Moirisco Babieca, o cavalo alcanado numa algara
por Cid, el Campeador.
Bandeiras, trombetas e tambores animam o corao dos combatentes.
Ficaram clebres os tambores de pele de hipoptamo, feridos pelos infantes
almorvidas na batalha de Zalaca. Os soldados cristos so comparados a
tartarugas quando transportam sobre os ombros os seus escudos de alce.
-
Mas falta nestes poemas de guerra a fora do Cantar del mio Cid quando
tambm ns, leitores, sentimos o sangue do inimigo a correr pelo nosso
cotovelo.
O tecelo aparece preso na sua rede. Ibne Sara no esquece o novel ofcio
de papeleiro. E se quase no h referncia ao trabalho campons no faltam os
poemas que exaltam as laranjeiras, as peras, as mas, a beringela, a alcachofra.
Ibne Mucana, o poeta de Alcabideche, canta com uma modernidade
surpreendente as cebolas, as abboras, os cereais e os javalis da sua terra natal e
pinta-se a cortar as silvas com uma podoa. Temos dificuldade em ver neste gesto
os guerreiros afonsinos ou os Minaqias de Cid, el Campeador.
O trabalho campons alimentava os palcios, as mesquitas, os exrcitos,
corria no vinho das orgias. Po, vinho, azeite marcavam ento como hoje o
nosso espao mediterrnico.
Os poetas cantavam fascinados a gua e os jardins. Jardins com rosas,
margaridas, lrios, narcisos, mas tambm com laranjeiras, repuxos e tanques com
tartarugas. Para a escrava-princesa Itimade Romaiquia, no simulou Almutmide
o milagre da neve com as amendoeiras floridas? (COELHO, Idem: 27 e 30)
-
Captulo III
O AMOR TROVADORESCO E O REINO DE PORTUGAL
1 Portugal resultado do encontro de culturas
Iniciamos agora um percurso breve pela nossa Poesia lrica, desde a
fundao da nacionalidade at ao perodo contemporneo. No nosso objectivo
um estudo aprofundado e exaustivo da poesia Lrica; nem sequer estudo lhe
chamaria, antes sinalizao, durante estes mais de oito sculos e meio, repito, to
s sinalizar alguns Poetas mais representativos, que, pensamos, atravs da sua
obra do corpo a uma continuidade que, acreditamos, se ter iniciado na segunda
metade do sculo XI e chega ao sculo XXI; da pena dos poetas e poetas-
letristas para a boca dos cantores e cantautores, protagonistas do que
designamos por Nova Msica Portuguesa.
Entre outros trabalhos com informao geral e avulso, socorremo-nos
sobretudo de duas obras: Pequena Histria da Poesia Portuguesa de Joo de
Barros (BARROS, 1941; 5 a 122), que pelo seu carcter de sntese permite-nos
esta viagem diacrnica pela Histria da nossa Poesia e Histria da Literatura
Portuguesa, de Antnio Jos Saraiva e scar Lopes (SARAIVA, LOPES,
1996: 653 a 913), esta pelo seu carcter exaustivo; com base nela abordamos
sobretudo o Romantismo - momento Histrico decisivo e alicerador da
Modernidade pelos temas tratados - o Amor e o Vinho - h um certo ambiente
romntico subjace