Poderosa 2 - s Rgio Klein

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  • Tudo o que ela escreve com a mo esquerda se transforma em realidade. Dar vida s palavras torna Joana Dalva uma pessoa especial... Mas como usar esse poder para superar a saudade da av?Ou ajudar uma amiga a se livrar da anorexia?Ou escapar de um seqestro e enfrentar a violncia sem perder a cabea?Esses so alguns desafios que a garota que tem o mundo no mo registra em seu dirio de bordo. Em plena travessia da adolescncia, ela encontra um pas cheio de delicias e perigos, apaixona-se perdidamente pela terra vista e acaba descobrindo o Brasil.

    Sucesso de pblico e crtica, o primeiro livro da srie foi finalista do Prmio Jabuti/2006. Em Poderosa 2, Srgio Klein navega ainda mais longe pelos sete mares da adolescncia, mas passageiros de todas as idades vo querer embarcar nessa aventura...

    Filosofia no escuro

    O penltimo desejo da minha av era ser cremada. De uns tempos pra c, ela passava o dia inteiro de cama, olhando para o teto ou escavando a parede com as unhas. Nos raros momentos de lucidez, agarrava minha mo com o que lhe restava de foras e me dizia que no queria atravessar a eternidade debaixo da terra , tudo menos isso!. Negava-se a ficar trancafiada dentro de um caixo abafado e escuro ;s de pensar nessa hiptese, disparava a espirrar. Era intil lembrar que os mortos no sentem alergia. No largava minha mo enquanto eu no lhe prometia , jurava, dava minha palavra de honra que seu corpo seria cremado. Arriscava , ento o ltimo pedido: -Quero que minhas cinzas sejam jogadas sobre um canteiro de rosas. Na minha opinio, tanto faz apodrecer no subsolo ou virar carvo. O que realmente importa saber para onde vai a alma, a aura, o esprito , a essncia ou que nome tenha o chipabstrato que faz o olho brilhar e deixa a pele arrepiada. Mas v Nina tambm se preocupava com o corpo, e, pensando bem, talvez no seja justo conden-la por esta vaidade de ltima hora. Depois do ltimo pedido, ela soltava um riso nostlgico e me perguntava pela trocentsima stima vez se eu sabia que as rosas eram as flores preferidas do v Plnio. Dizia ento, que naquele tempo ningum ficava com ningum. Ficar no portugus arcaico, no passava de um verbo intransitivo. Se um cara estava a fim de uma garota, era obrigado a cumprir um ritual que comeava com uma troca de olhares distncia (isso tinha o nome de flerte, eu consultei o dicionrio) e s chegava ao beijo na boca no fim de uma maratona que durava semanas e, em casos mais graves, meses. Parte importante desse ritual era a serenata, hoje praticamente extinta, mas houve um tempo em que o sonho de consumo dos garotos era aprender violo para tocar debaixo da janela da namorada em noite de Lua Cheia. Nem todos , porm, entendiam de msica ou levavam a srio esse papo de romantismo. Meu av, por exemplo, achava que amor primeira vista, alma gmea e felicidade eterna eram os ingredientes da frmula de um xarope enjoativo, com terrveis efeitos colaterais, que os comerciantes empurravam nos consumidores goela abaixo com o propsito de aumentar o lucro na venda de flores, jias e bombons. A opinio de v Plnio s mudou quando ele se envolveu num acidente. Atrazado para o trabalho, saiu correndo atrs de um bonde e trombou com uma garota que atravessava a rua. Ela estava voltando da escola e caiu perto do meio-fio, esparramando na calada o contedo da bolsa. Do cotovelo esfolado no saiu uma gota de sangue, mas a estudante fez cara de dor e perguntou ao apressadinho por que ele no prestava ateno por onde andava. Plnio no respondeu. Ajoelhou-se no meio da rua para recolher os livros e cadernos e ento

  • descobriu um nome-Nina- na etiqueta da capa do Atlas. Ficou olhando para garota com um sorriso luntico. Ela no via ande estava a graa e , de braos cruzados, esperou que ele tivesse a humildade de pelo menos lhe pedir desculpas. Mas o coitado parecia aflito demais para agir de acordo com regras. Depois de reunir e devolver o matria escolar, Plnio respirou fundo para ganhar coragem e finalmente conseguiu dizer alguma coisa: -Quer se casar comigo Nina ? L estava ele, de joelhos, em pleno centro das cidade, sob o sol indiscreto do meio-dia, declarando-se a uma desconhecida. Mas e da?Era como se de repente tivesse perdido o medo do ridculo. Contrariando todas as suas teorias, admitiu que a paixo era mais que uma metfora comercial e baixou a cabea como um condenado que se prepara para ouvir a sentena. Pelo que a v Nina me contava, o dilogo foi mais ou menos assim: -Eu gostaria de saber-ela resmungou- de que manicmio voc fugiu. -Garanto que no sou louco. Bom, pelo menos por enquanto. Mas prometo perder o juzo se voc no aceitar o meu pedido. -Era s o que me faltava... Eu nem conheo voc! Meu av levantou-se do cho e estendeu a mo trmula. Muito prazer, Plnio. Seu futuro marido -Mas como tem cara-de-pau neste mundo! Fique sabendo... A frase morreu pela metade. Quando esticou o dedo no nariz do Plnio, Nina deixou mostra o arranho provocado pelo tombo. Foi imediatamente interrompida: -No me diga que voc est com dor de cotovelo por minha causa. -Minha dor no e no de! -Portugus no meu forte. Voc bem que podia me dar umas aulas particulares. -E voc podia me dar licena. -Espere a, Nina. Vou levar voc a um hospital pra cuidar desse machucado -Chegando em casa eu mesma fao um curativo. -Boa idia -concluiu Plnio. - Onde que voc mora? Foi intil Nina alegar que conhecia o caminho e no precisava de bab. Temendo estar diante de um maluco de carteirinha, ela permitiu que Plnio a acompanha-se e at mesmo carregasse os livros e cadernos. Na porta da casa, ele ainda teve a audcia de perguntar se no podia fazer uma visitinha, afinal de contas estava curioso pra conhecer os sogros. Foi rechaado com um no, adeus, mas preferiu entender quem sabe um dia. Conhecido o endereo, no foi difcil descobrir o telefone. Ligava para a casa de Nina todos os dias e acabou fazendo amizade com a empregada, uma garota negra, ops, uma afro descendente de mais de 100 quilos a quem chamava carinhosamente de tia Anastcia. A mulher simpatizou com Plnio(To apaixonado esse moo. Ele merc uma chance!) e passou a lhe dar informaes preciosas. Com a ajuda de Tia Anastcia, Plnio descobriu que Nina estudava na Escola Normal, assistia s matins de domingo no Cine Fox, devorava bombons e palavras cruzadas, morria de medo de lagartixa, mas tinha d das baratas, gostava de ler poesia em voz alta e tinha feito um curso de grafologia por correspondncia, no qual aprendera que a janela da alma eram as mos, no os olhos. Tia Anastcia tambm contou que Nina escondia uma frustrao, quase um complexo:jamais havia recebido de presente uma msera serenata! Ao saber desse segredo, Plnio comprou um violo e matriculou-se num curso intensivo do conservatrio. Tinha um ouvido to ruim que o professor achou que ele fosse surdo e , no

  • fundo, esperava que ficasse mudo. Meu av passava o tempo livre no quarto, praticando o dever de casa, at que os dedo comeassem a sangrar e os vizinhos ameaassem chamar a polcia se ele no parasse com a maldita cantoria. Com medo de ser despejado, foi obrigado a abandonar o conservatrio e vendeu o violo a um seresteiro chamado Henrique. Confessou ao msico que estava apaixonado e pediu-lhe ajuda pra aprender algum instrumento, qualquer um, s assim seria capaz de fazer uma serenata pra Nina. -Aprender um instrumento leva tempo- deve ter sido a resposta. Se voc no sabe tocar, por que no canta? Henrique chamou para um ensaio os companheiros de seresta. Ao ouvir a voz de Plnio, os msicos se dividiram entre tapar os ouvidos e torcer o nariz. Todos concordaram, porm, que um sujeito to desafinado s poderia participar da serenata se jurasse permanecer em silncio, limitando-se a mover os lbios pra fingir que cantava. Tinham afinal um nome a zelar. E no queriam manchar a reputao com uma chuva de ovos. Era vspera do Dia dos Namorados quando Nina foi acordada por uma cano de amor. sentiu-se, a princpio, meio confusa, sem saber se a msica vinha do sonho, at que se animou a sair da cama e se debruou na janela. Plnio ficou frente do grupo e comportou-se como um boneco de ventrloquo, mas a garota estava to emocionada que no desconfiou da farsa. No dia seguinte, recebeu um buqu de rosas vermelhas e um carto com um soneto de amor. Comeou a ler o poema em voz alta, como gostava de fazer, e deteve-se diante de um verso que terminava com a palavra corao. Era como se de repente, estivesse sob o efeito de hipnose:simplesmente no conseguia tirar os olhos do c-cedilha! Parece incrvel que em uma nica letra, ou melhor, que um minsculo sinal grfico possa mudar um destino. Mas com a minha av foi assim! partir do que havia aprendido no curso de grafologia distncia, concluiu que o autor daquele cedilha era uma pessoa sensvel, inteligente, culta, amvel, gentil e bem-humorada. Ligou pra agradecer as flores e aceitou o convite pra ir ao cinema. *

    No sei se estas anotaes podem ser classificadas como dirio. Escrevo em cantos de caderno, margens de livros, blocos de rascunho, guardanapos de papel, embalagens de presente, sacolas de po e folhetos de propaganda. o que se pode chamar de literatura multimdia, uma atividade que desconhece horrios e d risada do bom senso. s vezes, passo dias sem rabiscar um nico comentrios, dependendo do grau da TPM na escala Richter, chego a pensar que estou seca e perdi a inspirao pra sempre. Mas de repente, quando menos espero, ao provar um bife mal passado ou no meio de uma explicao sobre polgonos irregulares, sinto um comicho na mo esquerda e abandono o almoo ou a aula pra registrar uma idia luminosa. Acostumada a conviver com o caos, no vejo sentido em comprar um caderno espiral com capa cor-de-rosa pra contar que de manh fui escola e tive aula disso e daquilo, no almoo comi sufl de cenoura, mais tarde malhei na academia, voltei pra casa de nibus, lanchei em frente a tev, fiquei pensando em fulano at pegar no sono e dormi abraada ao travesseiro. No sei como tem gente que perde tempo relatando passo a passo a rotina, chegando ao cmulo de mencionar que foi ao banheiro e at o que fez l dentro. Estou falando da Leninha. To infantil, coitada!Ontem tarde, veio aqui em casa para estudar e me pediu que eu corrigisse o dirio dela. Naturalmente reagi com espanto. Considero o dirio uma pea to ntima quanto, sei l, uma calcinha ou um suti- a gente na

  • deveria emprestar e muito menos sair mostrando por a. Mas Leninha no pensa assim. Ela me diz que sou sua melhor amiga e, como escritora, conheo gramtica o suficiente pra fazer uma faxina na ortografia. Vamos dizer que, daqui a trinta, quarenta anos, o tal dirio seja encontrado no fundo de um ba. Se estiver cheio de abobrinhas, o que os futuros netos vo dizer da av? E eu achando que s os escritores sonham com a posteridade... Diante da insistncia, passei os olhos nas anotaes e descobri no apenas erros de ortografia, mas de acentuao, de concordncia, regncia, coeso, coerncia e lgica. Fiquei pensando na decepo dos futuros netos da Leninha, mas o que mais me chamou a ateno foi o estilo. Alis, a falta de estilo. as pginas so poludas por desenhos de coraes, lbios, olhos, estrelas, espirais, asteriscos, arrobas, e uma infinidade de cones indecifrveis, sem falar na coleo de adesivos fluorescentes. No alto da pgina, minha amiga anota a data e comea o relato com um vocativo bastante original:Meu querido dirio. com se estivesse desabafando para um ursinho de pelcia ou uma boneca de pano, a quem faz questo de contar, em ordem cronolgica, uma seqncia interminvel de dias idnticos e sem uma pitada de tempero. Para no magoar Leninha, eu disse que ainda no podia me considerar escritora. Minhas obras completas se resumem a uma redao publicada no Olho Vivo, o jornal da escola, portanto no me sinto com autoridade para posar de crtica literria. Se deseja uma opinio segura, por que no mostra o dirio para professora Clarice? -E os adesivos?-perguntou Leninha, querendo a qualquer custo me arrancar um elogio. -Voc no imagina como brilham no escuro! Tnhamos fechado a porta do quarto para no incomodar minha av, que dorme no quarto ao lado e tem o sono muito leve. Leninha apagou a luz a fim de me mostrar os adesivos brilhantes, mas eu aproveitei a escurido para fazer filosofia e perguntei a mim mesma, de mulher pra mulher, se eu tambm me preocupava em deixar uma para meus netos virtuais. Em outras palavras, o que me leva a escrever? Quando tm de responder a essa pergunta, os autores dizem que escrevem porque querem ser imortais, ou ficar famosos, ou ganhar uma fortuna, ou conquistar atrizes e modelos, ou espantar o tdio, ou mentir sem culpa, ou fugir da realidade, ou adiar a loucura, ou se vingar do zero que um dia ganharam de uma antiga professora de redao. nenhum desses motivos me apetece. Se fosse entrevistada, eu diria que comecei a escrever com a humilde pretenso de criar histrias que divertissem os leitores- entre os quais, naturalmente, estou includa. Na verdade sou a primeira da fila. Foi com esse inocente propsito(divertir o professor Apolo e, de quebra, faturar uma boa nota no trabalho de Histria)que compus a tal redao publicada no Olho Vivo. Estvamos estudando a Idade Mdia e recebemos a tarefa de fazer uma dissertao sobre uma personagem marcante desse perodo. Escolhi , ento, Joana dArc, de quem sou meio xar. Minha me at hoje devota da santa padroeira da Frana e cismou em me dar o nome de Joana, enquanto meu pai queria porque queria homenagear a me dele, Dalva, recm -falecida. Em resumo:fui batizada de Joana Dalva. Nunca vou perdoar o escrivo por ter sido cmplice desse desastre. Joana Dalva!Isso l nome de escritora? Mas como eu ia dizendo, Apolo encomendou a pesquisa e me botou no mesmo grupo da Danyelle. Encarregada da primeira parte da pesquisa, ela tirou da internet uma poro de pedaos e emendou um no outro at transformar Joana dArc num verdadeiro Frankenstein. A concluso do trabalho- narrar a cena da fogueira- ficou por minha conta. Pra compensar os remendos da Dany, achei que tinha a obrigao de ser a mais original possvel. E , de

  • mais a mais, qual a graa em repetir que Joana dArc foi presa pelos ingleses, julgada e condenada por bruxaria e morta na fogueira aos 19 anos?O que me encanta na literatura justamente a possibilidade de surpreender os leitores, por isso deixei de lado a Histria e inventei que a herona francesa tinha escapado da priso e conduzido o exrcito francs vitria contar os ingleses. Terminada a Guerra dos Cem Anos, Joana volta cidade natal e vive o bastante pra narrar as suas memrias. Eu que quase fui atirada fogueira quando li a redao na sala de aula. O professor Apolo s faltou me chamar de herege e condenou nossa equipe a um zero inafianvel. A pena, porm, no tardou a ser revista. Naquela mesma noite, os jornais da tev anunciaram uma manchete que botava fogo na Histria:um grupo de arquelogos franceses tinha encontrado o dirio de Joana dArc, no qual ela confirmava todos os detalhes da minha redao. S ento descobri que a literatura podia mudar o mundo- pelo menos, a minha literatura. Canhota, tudo o que escrevo com a mo esquerda se converte em realidade imediata. Pode parecer que eu utilizo esse dom pra produzir grandes faanhas, como mexer na biografia de personalidades e alterar o curso da Histria. No bem assim. Boa parte das minha histrias se passa no ambiente domstico e tem como personagens meus pais , meu irmo, minha av, colegas, professores e vizinhas. Mas no sou escrava do realismo:tambm gosto de lidar com personagens fictcios e foi isso o que fiz na tarde em que ?Leninha me mostrou o seu dirio fluorescente. O esganado do meu irmo tinha acabado de voltar da escola e, como sempre, ligou a tev para jogar videogame e perguntou o que que tinha pra comer. Minha me j estava na cozinha, preparando um copo duplo de vitamina, quando deu um berro por causa de uma barata voadora e me fez pensar na Salete. Dona do salo de beleza que eu freqento , Salete costuma dizer que trocar lmpadas e matar baratas so tarefas exclusivas dos homens. mais exatamente dos maridos: pra isso , afinal, que eles servem. Acontece que meus pais esto separados, e, na minha casa o nico representante do sexo masculino meu irmo Xandi. O pirralho tem 8 anos bem vividos, mas continua agindo como se o prprio umbigo fosse o Sol ao redor do qual gravitam todos os planetas da Via Lctea. Hipnotizado pelo videogame, ele no ouviu a gritaria. S eu , portanto, poderia ajudar minha me. Ela enxugava as lgrimas com um pano de prato e apontava para o canto da cozinha:era l, debaixo do fogo, que a nojenta tinha aterrissado. Sinto nojo de barata como qualquer garota, ou como qualquer garota normal, de modo que cogitei telefonar para meu pai. Mas minha me no concordou:matar barata coisa de marido atual e no de ex! Ser que eu no poderia, quem sabe, resolver a situao de outro jeito? Tudo bem, no me custava nada. Peguei um lpis e anotei no canto do caderno, longe dos olhos de Leninha: A terrvel barata voadora Vai se transformar num Inseto inofensivo Dali a instantes, uma joaninha saiu de baixo do fogo. Minha me me agradeceu a frase com uma piscadela cmplice e continuou preparando a vitamina do Xandi. Leninha foi at a cozinha para tomar um copo dgua e, por um triz, quase pisou na minha minscula personagem. Antes que ocorresse um acidente, encostei o dedo no cho e esperei que a joaninha escalasse meu brao. Quase morri de ccegas quando se aproximou do meu cotovelo, detendo-se ao lado de uma pinta que deve ter confundido com um macho tmido.

  • Logo depois, percebendo o engano, voou em ziguezague pela sala e seguiu em direo ao corredor. Deixei-me guiar pela joaninha at o quarto da v Nina, que estava deitada e lado e esburacava a parede com as unhas. Confesso que nunca compreendi esse estranho passatempo e, na falta de uma boa explicao, acabei me contentando com a verso oficial da famlia:a coitada tinha perdido o juzo e vivia num mundo sem lgica, onde a nica distrao possvel era cavar um buraco na parede do quarto. Se estava procurando algo, naquela tarde ela encontrou: -Que saudade!-sussurrou, virada para parede. -mas voc no mudou nada , hein?. Na verdade, ficou ainda mais bonito. Quando deu pela minha presena , v Nina me disse que precisava ir embora. Ora essa, pra onde?Apontou o buraco na parede e me contou que meu av estava l dentro, espera, com o mesmo casaco que tinha usado na noite da primeira serenata. Parece que ela queria me falar da tal noite, mas s teve foras pra sorrir e lentamente largou a minha mo.

    Vergonha de morrer

    Um dia desses, na aula de Literatura, Clarisse abriu um livro do Dummond e leu o poema Memria, que termina dizendo que as coisas findas, muito mais que lindas, estas ficaro. Transcreveu, ento, os versos no quadro e comentou que o poeta se referia s mortes que a gente vai acumulando ao longo da vida. -como assim, a gente?-indignou-se Danyelle, cruzando os dedos em figas e dando trs batidinhas na carteira. -Ainda sou muito nova pra ficar pensando nisso. Papo mais depr! Danyelle era considerada a maior semeadora de abobrinhas da sala;quem poderia levar a srio a garota que se acha a rainha da Inglaterra s porque possui um y no meio do nome?Eu seria capaz de apostar que ela receberia uma chuva de vaias, mas a turma lhe deu apoio e se voltou contra a professora. -Baixssimo astral!-disse Leninha. Um poema assim no acelera o corao nem provoca suspiros. Debrucei-me na carteira da minha ingnua amiga e tentei lhe explicar que a poesia no tem a funo de aumentar o nvel de adrenalina no sangue do leitor. Meu sussurro foi engolido, no entanto, pelo vozeiro do Guto: -Por que que todo poeta tem mania de escrever sobre a morte?Ser que isso no afasta os leitores? Tive vontade de responder que todas as formas de arte tratam dos mesmos temas, inclusive os filmes de exterminadores de andrides a que os garotos assistem com gua na boca. Mas nesse instante Marcelo ergueu o brao e ficou estalando os dedos at que Clarisse lhe deu a palavra. Ele sempre comeava lembrando que era o representante da turma e dessa vez no foi diferente: -Como representante da turma, tenho de concordar com os colegas. A gente ainda tem muita vida pela frente e no quer perder tempo com assunto que da terceira idade. Depois de ouvir todas essas prolas, Clarisse perguntou se algum mais queria se manifestar. Eu adoraria nadar contra a correnteza e fazer uma defesa apaixonada do Drummond , acontece que no gosto de falar em pblico(meu forte escrever sozinha) e preferi esperar pelo depoimento da professora. Ela disse que o poema no tinha nada de fnebre, mrbido ou sinistro. Os versos traziam, sem dvida, uma certa dose de melancolia, mas isso no deveria ser confundido com pessimismo. Muito pelo contrrio: preciso

  • apostar todas as fixas na esperana pra supor que as coisas findas sobrevivem morte. Pensei que Clarisse continuaria falando sobre literatura, mas de repente fechou o livro e pulou para a filosofia . Contou que tinha nascido numa cidade do interior, onde os velrios eram realizados em casa, com a janela aberta e na presena das crianas, que desse modo se acostumavam a encarar a morte. Mas, de uns tempos para c, esse assunto virou tabu e sumiu das salas de visita. Tem gente que evita pensar na morte ou at mesmo pronunciar a palavra pelo menos na frente dos filhos- . Sob o pretexto de impedir que a garotada sofra, muitos pais esto ajudando a formar uma gerao que se julga eterna e trata a morte como um fenmeno que s ocorre com os outros. -As pessoas, antigamente, tinham medo de morrer-concluiu Clarisse. -Hoje em dia, parece que sentem vergonha. *

    Clarisse tem razo quando diz que as famlias varrem a morte pra baixo do tapete. Na minha famlia , pelo menos, foi assim. Ao entrar no quarto da v Nina e me ver chorando diante da cama, minha me no veio me abraar nem me ofereceu o ombro. S estava preocupada em impedir que Xandi assistisse a cena . Com receio de causar um trauma irreversvel , chegou ao cmulo de me pedir que levasse meu irmo at o playground e ficasse l brincando com ele at que o corpo da minha av fosse levado do apartamento. O plano no decolou. Antes que eu pudesse enxugar os olhos , Xandi apareceu no quarto e viu a joaninha passeando na testa da v Nina. -engraado- limpou o bigode de leite na manga da camiseta . -por que a vov no sente cosquinha? Contar ou no contar , eis a questo!Minha me tentou tirar o garoto do quarto, mas ele conseguiu soltar o brao e se debruou na cama pra examinar a joaninha de perto . -A sua av ... -disse minha me se engasgou nas reticncias. -Morreu . J sei-disse meu irmo. - mas ela no tem mais nenhuma vida? Xandi percebeu a nossa cara de espanto e informou como funcionava seu jogo preferido de videogame:o gladiador iniciava o combate com uma nica vida, mas deixava de ser vulnervel medida que derrotava os inimigos e ia colecionando vidas extras at alcanar a imortalidade. No foi fcil explicar que as regras do videogame no se aplicam ao mundo real. Sem saber o que dizer, minha me gaguejou que as almas viajam para o cu, e foi cruelmente metralhada de perguntas. Quanto tempo dura essa viagem?Qual a velocidade do foguete?No cu existe tev?Celular?Internet banda larga? Tive de ajudar minha me a rebater o interrogatrio, mas nem sempre as respostas coincidiram e de vez em quando entravam em conflito. Mas Xandi no estava nem a para as nossas tmidas explicaes. Ajoelhada no colcho, ele esticou o brao sobre o rosto da v Nina e me deu a impresso de esboar uma carcia de despedida... Que iluso! O gesto era parte da estratgia de capturar a infeliz joaninha! Nunca fui militante ecolgica, dessas que se amarram a troncos de rvores para impedir o avano das motos serras, mas viro bicho quando deparo com um animal judiado. Conheo bem o meu irmo:a pretexto de realizar experincias cientficas, ele no hesita em arrancas as asas de mosquitos, amputar as patas de besouros e esfregar vaga-lume nos dentes para ver se o sorriso brilha no escuro. No sei do que Xandi seria capaz se tivesse nas mos uma joaninha. Temendo pelo destino da minha personagem, senti aflorar o instinto maternal quando meu irmo conseguiu agarr-la e saiu correndo pela casa. Pensei que fosse se trancar no seu quarto, mas a porta ficou entreaberta. Do corredor , vi o

  • moleque trepar na estante e retirar da ltima prateleira uma caixa de sapatos. Em vez de guardar a joaninha l dentro, abriu a tampa e esvaziou a caixa. O cho encheu-se de pequenos insetos, que foram colocados lado a lado, pacientemente, embora muitos no soubesse que deveriam ficar quietos . Quando todos estavam mais ou menos alinhados, Xandi estalou os dedos e deu a largada. Assistir a corrida de insetos parece coisa de maluco, mas talvez seja o modo que xandi encontrou para distrair do sofrimento. No querendo deix-lo sozinho, pensei em pedir a Leninha que fizesse companhia a meu irmo e aproveitasse pra proteger os insetos de qualquer experincia cientfica. Minha amiga, porm tinha evaporado, deixando pra traz a mochila. Eu, hein!Liguei para a portaria. Seu Esteves demorou um sculo pra atender e bocejou que no, no tinha visto ningum descer do elevador. No viu porque , como sempre, estava dormindo em servio! Isso era o que eu queria responder, mas no est entre aspas porque na ltima hora mordi a lngua. No seria justo despejar no porteiro o coquetel de raiva, tristeza e desamparo que eu sentia com a morte da minha av. Agradeci entre os dentes e fui at a sala pra saber com quem minha me estava brigando. Deixando de lado o orgulho, ela havia telefonado para o consultrio do meu pai. A secretria Xirlei com X, informou que no momento o doutor Renato estava fazendo uma extrao e no podia ser interrompido, mas minha me disse que era caso de vida ou morte, alis de morte e comeou a chorar, Peguei o telefone, dei a noticia a Xirlei e pedi que avisasse meu pai. No sei como ele se virou para dispensar o paciente e driblar o trnsito do fim de tarde:o fato que levou menos de dez minutos pra chegar ao apartamento. Ficou abraado a minha me, sem dizer nada, e por um instante apostei que um dia voltaria a se entender. O abrao s no foi mais longo porque o trogl do meu irmo entrou na sala e se pendurou no pescoo do meu pai. -Voc sabia-ele foi logo perguntando -que a vov no sente mais cosquinha ? V Nina e meu pai sempre conviveram numa bem-humorada simbiose:pra se vingar das piadas de sogra que ele contava na hora do almoo, ela preparava sobremesas irresistveis, mesmo para um inimigo das cries. Depois que v Nina sofreu o derrame e no pde mais ir ao consultrio, meu pai continuou tratando dela em cs, ajudando na escovao e no uso do fio dental. Ela costumava perder a pacincia e morder o dedo do genro, que, por sua vez, ameaava arrancar-lhe os dentes -sem anestesia- se no se comportasse como uma boa menina. Agachado ao lado da cama, meu pai roava as costas da mo no cabelo ralo da v Nina. Estava to distrado que no viu minha me abrir o guarda-roupas e sacudir os cabides. -Preciso de ajuda pra esconder a roupa da mame. Vocs acham falta de respeito se ela for enterrada com um vestido estampado? Eu no estava com a cabea pra decidir o ltimo modelito da v Nina. Mas nem por isso fiquei quieta: -Espere ai, me. ela cansou de pedir pra ser cremada. -Que histria essa? -Pediu, sim. Me fez prometer, inclusive, que jogaria as cinzas numa roseira. -Bobagem, Joana. Nos ltimos tempos, a mame no dizia coisa com coisa. Meu pai saiu em defesa da sogra: -Tambm no assim. Apesar da doena, dona Nina tinha muitos momentos de lucidez. -Como que voc sabe Renato? Voc nem mora mais nesta casa!

  • -Muito bem, minha querida. Mas no tempo em que eu morava... -guas passadas. E no me chame de querida, por favor. Muito menos de minha querida. O silncio ficou pesado, mas terminou com um pedido de desculpas. Minha me admitiu que estava nervosa e procurou se justificar. Professora de Histria na faculdade, ela costumava associar o ritual da cremao ao martrio sofrido pelos judeus na Segunda Guerra. No gostava da idia de pulverizar os mortos e muito menos as cinzas por a. Por que no enterrar a v Nina ao lado do corpo do v Plnio, no tmulo da famlia, onde a gente pode rezar e levar flores no Dia de Finados? -Porque no era isso o que ela queria-respondi, sem disfarar a irritao. - E ningum precisa ir ao cemitrio pra rezar pelos mortos. Xandi perguntou o que significa cremao e ouviu do meu pai uma explicao breve, mas didtica. Ao compreender o motivo da briga, meu irmo falou sobre um nmero de circo que tinha visto na tev: o mgico trancava a assistente numa caixa e dividia a mulher ao meio com um serrote. -Vocs podiam fazer igual com a vov. Da cintura pra cima, ela seria enterrada, e da cintura pra baixo, cremada. Ou ento o contrrio. Quem ganhar o par ou mpar escolhe. A crueza da proposta encerrou a discusso. Minha me acabou se resignando a respeitar o desejo da v Nina, mas em troca exigiu que jogssemos as cinzas numa roseira do prprio cemitrio. Fez questo, ainda, de mandar gravar no tmulo uma frase em memria da minha av. E encomendou a criao do epitfio escritora da famlia. _*_

    Por que a maioria dos homens no chora em pblico?Talvez seja falta de tempo. Acho que meu pai gostaria de ficar aqui em casa, recordando as piadas que contava para a sogra e os doces que ela fazia, mas teve que sair atrs de um mdico que assinasse o atestado de bito. Enquanto minha me me pedia ajuda na escolha do vestido da v Nina, Xandi queria que eu fosse ao quarto dele para ver o fim da corrida: a joaninha estava na frente e j se aproximava da linha de chegada! No pude atender nenhum dos dois: o telefone falou mais alto. Bastou que eu ouvisse al para reconhecer a voz do Marcelo; como representante da turma, Le me apresentou os psames e perguntou onde seria o velrio. Eu disse que no sabia e sugeri que ligasse mais tarde. O telefone voltou a tocar, ainda mais estridente; dessa vez era a Danyelle. Ela comeou a choramingar e confessou que gostava muito da v Nina, mas at que de mim. Aquilo era o qu, um elogio ou uma ofensa?Na duvida, respondi obrigada e aproveitei para perguntar como soubera da notcia. Leninha no entrou no quarto da v Nina, mas com certeza percebeu que ela havia morrido e se encarregou de avisar Deus e a escola. Colegas, professores e diretores resolveram me ligar ao mesmo tempo e fazer as mesmas perguntas sobre o local do velrio. Fiquei com a orelha fervendo e adotei uma soluo extrema: tirar o telefone da tomada!Nem assim foi possvel uma trgua: logo em seguida o interfone tocou e me deixou ansiosa. E se eu tivesse de enfrentar uma comisso de alunos em visita oficial de psames? Foi um alivio quando seu Esteves me informou que quem estava l embaixo era Salete e o filho. Joo chegou soprando a franja, como costuma fazer nos momentos de aflio. Faz pouco tempo que a gente est namorando, mas j aprendi a interpretar o cdigo de gestos que ele utiliza quando no sabe o que dizer. Estava ali pra me consolar em silncio e, apesar da timidez, no teve pudor em me abraar na frente da me. Seguimos os trs at o quarto da v Nina. Salete fez uma orao na cabeceira da cama e depois do amm comentou que nunca conhecera um esprito to... fashion! Enxugou os

  • olhos com um leno de papel e retirou da bolsa um estojo de primeiros socorros cosmticos. Pediu licena pra maquiar a minha av e, ante o olhar de censura do filho, apressou-se em explicar que no usaria cores fortes, apenas um pouco de blush pra quebrar a palidez. Minha me aprovou a idia e perguntou se no seria o caso de passar base nas unhas e tambm dar um jeito no cabelo da v Nina. Salete disse que sim, faria o servio completo, mas antes me chamou num canto e examinou a palma da minha mo esquerda. - Parece um mapa do tesouro ela disse, maravilhada. Veja s a extenso da profundidade desta linha. Voc nasceu poderosa, Joana, e capaz de fazer o que quiser. At milagres. Embora seja a dona do salo de beleza, Salete no abandonou o alicate. Ela continuou trabalhando como manicure e, atendendo aos pedidos, tambm exerce o dom de vidente. Muitas freguesas que vo atrs dela, a pretexto de cuidar das unhas, esto mais interessadas em mostrar a palma da mo pra saber se a linha do destino lhes reserva um marido rico ou um prmio acumulado da loteria. Acreditando ou no em quiromancia, no h como negar o talento da Salete. Foi ela quem previu que eu tinha o mundo na mo e poderia transformar a realidade com as palavras. Sempre confiou na fora da minha fico e um dia me pediu o favor de ressuscitar o Frederico. Este cachorro, apesar de vira-lata, possui o nome e olhar de gente e tratado como membro da famlia. Tinha sido morto pelo ex-marido da Salete e jazia numa poa de sangue quando concordei em criar uma frase pra tentar o milagre. Foram, na verdade, duas frases, rabiscadas no canto de uma conta de luz: Frederico no gato, mas tambm tem sete vidas. E vai se levantar agora mesmo. Mal terminei de escrever, o bicho mexeu o rabo, sacudiu o pelo mido de sangue e comeou a correr e latir pelo quintal. Disse Salete que no h diferena entre ressuscitar um cachorro e uma av. E completou, quase sem voz: - Por que voc no junta algumas palavras pra botar a dona Nina de p? Repeti que tinha respondido minha me a propsito da cremao: - Porque no era isso que ela queria. No faz muito tempo, pensei em fazer uma redao pra acabar com as rugas, estrias e cabelos brancos da v Nina. Chegamos a conversar sobre isso, mas ela resmungou que no sonhava ser eterna e s desejava curtir a velhice em paz. Concluso: se no queria rejuvenescer, que motivos teria pra ressuscitar? Salete concordou com a minha lgica, mas no parecia muito convencida. - Engraado ela disse, espiando a palma da mo da minha av Essas linhas mostram que a dona Nina ainda tinha muita vida pela frente. Vestido estampado, sandlias de salto e um colar de prolas que dava duas voltas no pescoo: foi assim, com roupa de festa, que v Nina passou a noite do velrio. pena que ningum pde atestar a elegncia da anfitri; o caixo dos ps at o queixo, deixando mostra o rosto levemente maquiado e as mos de unhas impecveis cruzadas na altura do peito. Compareceram capela do bairro alguns vizinhos, colegas de faculdade da minha me e dois ou trs clientes do meu pai. O que mais me comoveu, no entanto, foi a inesperada presena de tantos moradores de rua: muitos falavam com saudade do caldo de feijo que v Nina preparava e distribua, antes de adoecer, com a ajuda de voluntrios. As pessoas chegavam ao velrio de cabea baixa, soltavam um suspiro diante do caixo, distribuam tapinhas nas nossas costas e diziam que minha av foi descansar, que ela estava

  • com uma expresso serena, que Deus sabe o que faz, que para morrer basta estar vivo, que foi uma perda irreparvel, que o mundo ficou mais pobre. Sei que a inteno era nos consolar, mas a falta de originalidade dos comentrios me deixou ainda mais deprimida. Acredito que a literatura tem o papel de combater os clichs, os chaves, as palavras gastas, as frases feitas e de efeito: evitar, em resumo, que a lngua seja corroda pelas repeties e se transforme num mugido de vaquinhas de prespio. O problema que diante da morte as pessoas perdem a naturalidade. Lembrar histrias divertidas da v Nina talvez servisse pra consolar a famlia, mas quem se atreveria a misturar humor e morte? O nico lance engraado da noite ficou por conta da Leninha. Ah! Essa minha amiga no existe! O sonho dela tornar-se primeira-dama, mas por enquanto no tem idade pra se casar com um candidato a presidente da Repblica e se contenta em ficar com o representante da turma. No sei se Marcelo gosta de poltica ou apenas usa o prestgio do cargo pra impressionar as garotas. De um jeito ou de outro, ele se julga uma autoridade e me cumprimentou com tanta cerimnia que merecia ser tratado por Vossa Excelncia. Leninha tambm no parecia vontade. Pendurada no brao do Marcelo, arrastava os ps lentamente e por pouco no tropeou nos degraus da entrada. Tive a impresso de que ela no enxergava direito e achei que a culpa fosse dos culos escuros. Logo descobri, no entanto, que se movia feito cega, ops, deficiente visual porque estava de olhos fechados. Ao me abraar, Leninha se desculpou por ter fugido da minha casa s pressas, acontece que no se sentia preparada pra ver o cadver da minha av. Confessou que tinha pnico de gente morta e s concordara em ir ao velrio porque me considerava uma irm - e tambm por insistncia do Marcelo. Foi ele quem lhe deu os culos e o brao pra que elka caminhasse sem abrir os olhos. O medo no era privilgio da minha trmula amiga. Das colegas de sala presentes ao velrio, a maioria s conhecia os mortos do cinema e permaneceu na entrada da capela. Ouvi a professora Clarice dizer a um grupo de garotas arregaladas que a gente aprende fico pra cair na realidade, portanto no d pra continuar fingindo que a morte no existe ou que s acontece com os outros. Apesar de todos os argumentos, as colegas me acenaram de longe e no se aproximaram do caixo. Agradeci a presena acenando de volta, mas minha mo ficou parada no ar quando vi um deus grego invadir o recinto. No, eu no estou exagerando. O professor de Histria personifica o ideal de beleza clssica. Pela pitada de grisalho, d pra arriscar a idade, algo em torno dos 40, mas o fsico de garoto sarado ainda provoca arrepios e suspiros. No admira que, entre as garotas, Paulo seja conhecido como Apolo. Alm de todos os atributos anatmicos, ele inteligente, culto, irnico e, ufa, solteiro. Faz Algum tempo que Salete conquistou o corao de Apolo e tornou-se a mulher mais invejada da escola. Os dois atravessaram a capela sob uma onda de murmrio e tietagem; Dany chegou a pegar o celular pra tirar uma foto do casal. Enquanto Salete abraava minha me, Apolo apertou a mo do meu pai e em seguida veio falar comigo. O assunto? No fao idia. Na nsia de descobrir se os olhos dele eram verdes ou azuis, no prestei a menor ateno s palavras. Talvez tenha tentado me consolar com alguma frase pr-fabricada, mas o que me trouxe alento foi ganhar um beijo e sentir a face espetada pela barba por fazer... Essas reticncias no significam que estou de olho no Apolo. A ligao que mantenho com essa divindade meramente platnica - nem poderia ser diferente: afinal de contas, ele anda saindo com a me do meu namorado. Ou ser que Joo e eu s estamos ficando?

  • Seja como for, Joo no sabia o que fazer pra aliviar o meu sofrimento. De vez em quando, vinha me abraar e me perguntava se eu estava bem, se precisava de alguma coisa, se no queria ir at a lanchonete da esquina pra tomar um suco de maracuj. E a pacincia de bolso e, sentado num canto, ficou cuidando de um bichinho virtual de estimao que a cada minuto apitava de fome. Muita gente j estava incomodada com o barulho, mas por sorte Joo entende desses joguinhos eletrnicos e sentou-se junto ao cunhado pra lhe mostrar como se enche a pana do bicho. Foi nessa hora que dei pela presena de um senhor de cabea branca e cabelos na altura dos ombros. Seria um morador de rua? Passou algum tempo parado porta, como se hesitasse em entrar, depois avanou pelo corredor central da capela. medida que se aproximava, pude reparar que, no dorso da mo dele, havia um Z tatuado. Pensei que fosse algum cliente do meu pai, mas os dois se cumprimentaram to formalmente que abandonei essa hiptese. Da minha av, ao contrrio, ele devia ser ntimo, tanto assim que se debruou no caixo e comeou a soluar. A invaso do velrio por um desconhecido em prantos s deixava duas alternativas minha imaginao de escritora: ou o sujeito era doido, ou ento a vida da v Nina escondia a surpresa de um amor explosivo. Mas ela sempre me pareceu to apaixonada pelo v Plnio... Dessa vez, as reticncias simbolizavam o caos. Minha cabea estava zonza de perguntas quando o homem tirou um leno de bolso e esfregou os olhos midos. Por fim, veio falar comigo. Em vez de me dar os psames, ele se limitou a lamentar: - uma pena, Joana, que no pude ser seu av. O que ser que ele queria dizer? Pegou uma flor sobre o caixo e foi embora sem explicar como sabia o meu nome.

    Vitamina de aveia com av

    A viagem de Cabral at o Brasil no foi exatamente um cruzeiro de luxo. Naquela poca, os navegadores j sabiam que a Terra redonda, mas muitos marujos ainda duvidavam dessa teoria e embarcavam nas caravelas com receio de despencar numa cachoeira que os levaria aos quintos dos infernos. Chegar ao fim do mundo, porm, no era o nico temor da tripulao dos treze navios que em 22 de abril de 1500, depois de navegar um ms e meio, finalmente avistou o Monte Pascoal e esfregou os olhos pra ter certeza de que no estava sonhando. Alm dos monstros que assombravam a imaginao recm-sada da Idade Mdia, os navegantes tinham de enfrentar obstculos concretos, como tempestades, maremotos, escorbuto, navios piratas, falta de comida, e de gua potvel. Oficiais e marinheiros alimentavam-se de carne salgada, cebola, vinagre, azeite, gua e vinho, mas o prato principal, por assim dizer, eram os chamados biscoitos de marear. Tratava-se de uma bolacha salgada que, ultrapassado o prazo de validade, transformava-se numa pedra fedorenta e destrua os dentes, estmagos e intestinos mais aventureiros. A diarria se espalhava como uma epidemia, por isso duvido que algum marinheiro tenha encontrado foras pra berrar terra vista, como contam os livros de Histria. Onde aprendi tudo isso? Nas aulas de literatura! Clarice acredita que a fico se nutre de todas as disciplinas, de modo que no pediu licena a Apolo pra discorrer sobre as grandes navegaes. Depois de nos contar como os tripulantes comiam, trabalhavam, dormiam, se divertiam e faziam as necessidades, a professora revelou que tinha um especial interesse por um daqueles personagens. No estava falando de Cabral, como muita gente pensou,

  • mas de Pedro Vaz de Caminha, autor do primeiro texto da lngua portuguesa produzido em nosso territrio. Na opinio da professora de Literatura, no existem textos totalmente objetivos ou isentos de ideologia; at mesmo as bulas de remdio esto carregadas de metforas, e, pra bom entendedor, a poesia brota nas estrelinhas como erva nas frestas das caladas de cimento. Embora no seja considerada uma obra literria, h um bocado de fico na carta que Caminha escreveu ao rei de Portugal, dom Manuel I, o Venturoso, relatando as belezas naturais da nova colnia e os bizarros costumes indgenas. A carta foi assinada em 1 de maio, portanto Caminha deve ter levado mais de uma semana pra conclu-la. Ser que estava intoxicado pelos biscoitos marear e precisou de alguns dias, aps o ds embarque, pra encontrar inspirao? Clarice disse que o ideal seria examinar cada pargrafo do documento, mas por falta de tempo tinha selecionado alguns trechos que passou a ler em voz alta. Ao ouvir que alguns ndios tinham os beios furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau, Danyelle no se conteve: - Eu aposto que os portugueses ficaram encantados quando viram as ndias com piercing! Mas mesmo muito convencida! S porque tem meia dzia de argolas espalhadas pelo corpo, Dany acha que esse tipo de adereo seria capaz de impressionar os marujos. Convencida e insistente: - As ndias s usavam piercing no rosto? Ou ser que, como eu, tambm enfeitavam outras partes... Mais secretas? - No se esquea informou Clarice de que elas andavam nuas. No havia nenhuma parte secreta onde esconder um piercing. - Nuas? os garotos perguntaram em unssono, frustradssimos por no terem nascido no fim do sculo XV e participado da expedio de Cabral. Marcelo foi o porta-voz da curiosidade masculina: - Voc est querendo dizer, professora, que as ndias desfilavam sem nada? No usavam, sei l, nem uma peninha de arara? Clarice respondeu com um trecho de carta: - A feio deles serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que mostrar a cara. Acerca disso so de grande inocncia. . - No entendi disse Leninha. Se os ndios estavam com vergonha, por que no vestiam uma canga? Ou, ento, um vestidinho bsico? - Quem se sentiu envergonhado foi o Caminha explicou Clarice. De acordo com a rgida moral da poca, no ficava bem escrever ao rei que as nativas do Novo Mundo deixavam mostra os genitais, ou o sexo, ou a vulva. Os autores eram obrigados a usar palavras mais sutis, como vergonha, que nesse contexto deixa de ser substantivo abstrato e vira concreto. - Imagem a adrenalina dos gringos disse Guto quando eles viram as ndias com as... Vergonhas de fora! O comentrio destinava-se s carteiras vizinhas, mas a sala inteira escutou e riu. Guto no se intimidou: - isso mesmo, gente. Depois de passar tanto tempo no mar, os marinheiros olhavam para os golfinhos e enxergavam sereias. Pra mim, esses caras vieram ao Brasil pra fazer turismo sexual! - Tambm no assim disse Clarice. Mas reconheo que, infelizmente, houve casos de

  • agresso e estupro. - Os marinheiros usavam camisinha? perguntou Dany. Ou ser que eles no se preocupavam com a AIDS? Clarice lembrou que naquele tempo havia outros males: - O que matava os ndios era a varola, a malaria, o tifo, a difteria. Eles tinham pouca resistncia s doenas dos brancos. At um simples resfriado podia ser fatal. Joo levantou o brao: - E cncer de pele? Os ndios ficavam to expostos ao Sol... A pergunta era dirigida professora, mas Dany, pra variar, se intrometeu: - ndio no bobo garoto! Voc acha que eles no usavam protetor solar? - Caminha conta disse Clarice, com os olhos outra vez na carta que andavam l outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua prpria cor, e metade de tintura preta, um tanto azulada; e outros quartejados Destaques. Quer dizer, pintados de xadrez. Como vocs vem, no h nenhuma meno a protetor solar ou coisa parecida. - E da? rebateu Dany. Quem garante que o Pedro no mandou um e-mail dando mais detalhes sobre os ndios? Ningum conseguiu segurar o riso. Fazia poucos dias que v Nina havia morrido. Por isso eu ainda no tinha nimo pra participar dos debates em sala de aula. Mas no consegui engolir as abobrinhas da Dany: - O nome Pero, e no Pedro. Como que ele ia passa rum e-mail para o rei de Portugal? Entrando num cyber caf em plena selva? - O Brasil no tinha computador admitiu Danyelle. Mas o Pero pode ter trazido um laptop na bagagem. O coro de vaias e assobios transformou a sala num sambdromo. Clarice teve trabalho pra encerrar o carnaval fora de poca: - Nenhum texto pode ser plenamente compreendido fora do seu contexto histrico. E a carta de Pero Vaz de Caminha, como todos sabem, data de 1500. Naquele tempo, meus queridos, ainda no havia piercings, nem biquni, nem AIDS, nem protetor solar, nem internet. Fez uma pausa e concluiu com um conselho enigmtico: - Vocs precisam fazer histria. Est na hora de descobrir o Brasil!

    Pelo fato de ter uma filha que pretende ser escritora, dona Snia se acha no direito de depositar sobre os frgeis ombros da coitada a tarefa de criar mensagens originais em cartes de aniversrio, formatura, bodas de prata e Natal. Pobre de mim! J cansei de explicar que nada disso gnero literrio, mas minha me entende que uma imaginao de onde brotam tantas personagens e situaes mirabolantes no ter dificuldade de juntar umas palavrinhas pra cumprimentar parentes, vizinhos e alunos da faculdade. O pior que s vezes nem sei quem so os aniversariantes e formandos. Quando digo que difcil desejar parabns a quem no conheo sem cair em velhos clichs, sou acusada de preguiosa, arrogante e insensvel. Epitfio tambm no tem nada a ver com fico. C entre ns, eu e meu dirio, acho que de extremo mau gosto essa literatura fnebre, feita de boas intenes e letras de bronze, que tenta resumir a vida do falecido em meia dzia de palavras definitivas que o tempo corri e cobre de musgo. Mas no estava com cabea pra discutir com a minha me e, em nome da paz domstica, aceitei a misso quase impossvel de escrever uma frase pra ornamentar o tmulo da famlia.

  • Como v Nina cozinhava com mos de fada, pensei em mudar a abertura do epitfio: em vez de Aqui Jaz, que tal Era um a vez? Vamos ver... Era uma vez uma menina que escolhia os namorados pela caligrafia e apaixonou-se por um falso seresteiro, fazia a melhor macarronada de todo o planeta, inclua a Itlia, tinha a mania de cavoucar a parede com a unha, estalar os dedos da mo, fazer careta na frente do espelho, colocar o cabelo atrs da orelha, dormir com um p fora da casa e resolver palavras cruzadas. Ignoro quanto custa cada letra de bronze, mas duvido que minha me concordasse em pagar por um texto to longo. Por que no manter apenas as trs primeiras palavras, era uma vez, e deixar o resto pra conta da imaginao de quem visita o cemitrio? Segui para o quarto da v Nina em busca de inspirao. Fiquei algum tempo diante da porta. A veneziana fechada criava uma penumbra de filme de suspensa. Abri a janela e me senti mais vontade. O sol ocupou parte do assoalho e se refletiu no termmetro sobre a mesinha de cabeceira. O mercrio marcava 38: a ltima febre da minha av. Puxei a gaveta com a ponta dos dedos e, entre plulas, colrios e pastilhas, encontrei uma foto do meu irmo com a lngua de fora. Minha reao foi imediata: tirei as caixas de remdio, uma por uma, na iluso de deparar com alguma imagem da nica neta da v Nina. Mas nada... Nem mesmo um retratinho 3 x 4! Reclamar com quem? Tratei de engolir o cime e abri a porta do armrio. Estava examinando uns vestidos quando minha me entrou no quarto e me estendeu a mo: - Cad a minha frase? Pedi um pouco mais de prazo, mas ela disse que no podia passar o resto da vida esperando que a minha inspirao desse o ar de graa; j sabia onde encontrar as letras de bronze e ia at a loja pra fazer a encomenda. Tinha acabado de chamar um txi, portando eu dispunha de poucos minutos pra criar uma frase inesquecvel em homenagem memria da minha av. Sem saber por onde comear, s me restava apelar para a escrita automtica. Este mtodo foi muito utilizado pelos escritores do movimento surrealista, no inicio do sculo passado, e consistia em despejar no papel todas as idias que cassem na telha do inconsciente. Nada de ficar encarando a folha em branco, mordendo a tampa da caneta ou coando a cabea procura da palavra ideal ou da frase redonda e bem torneada. O autor deveria se esforar pra libertar-se da autocensura e deixar a mo isenta de culpa pra arrancar do fundo da intuio as histrias mais verdadeiras. Tudo isso, na teoria, muito bonito, mas quem disse que funciona na prtica? Comigo, pelo menos, no d certo: a primeira verso dos meus textos me enche de desconfiana. No me refiro, evidentemente, as anotaes neste dirio, que no sero lidas por ningum e muito menos publicadas. Mas nas aulas de redao gasto mais tempo rabiscando meus prprios hierglifos e quase sempre sou a ltima a terminar. Dessa vez, porm, eu no tinha escolha: ou adotava a tcnica surrealista, ou no teria como atender ao apelo da minha me. Enquanto ela bisbilhotava as gavetas e cabides do armrio, arranquei uma folha do bloco onde estava anotado o horrio dos remdios da v Nina. Peguei uma canta e escrevi sem pensar:

    V Nina est viva e Forte no meu corao.

    Mal pinguei o ponto final, senti a fisgada do perfeccionismo. Que coisas piegas, meu Deus! Como fui capaz de escrever uma bobagem to sem graa e previsvel?

  • A melhor soluo seria rasgar o papel em pedacinhos, mas no havia tempo a perder e me contentei em cortar as palavras v e meu; no tinha direito, afinal de contas, de monopolizar a homenagem. O resultado Nina est viva e forte no corao ficou um tanto capenga. Corao de quem? Experimentei nosso corao, corao da famlia, corao dos amigos. As trs locues me pareceram infelizes e foram descartadas com um rabisco. Fiz uma nova mudana e repeti a frase para testar o ritmo:

    Nina est viva e forte Dentro da gente

    Foi quando tocou o interfone: seu Esteves avisando que havia um txi parado em frente portaria. Minha me tomou o papel da minha me e nem se deu ao trabalho de ler. Saindo do quarto, apontou para o armrio e me informou que pretendia doar todas as roupas e sapatos da v Nina para uma instituio de caridade. - melhor fazer isso logo, seno esse quarto vira um museu. Se voc quiser escolher alguma coisa... Depois que ficou doente, v Nina quase no saa da cama. A maior parte do guarda-roupa estava fora de moda, mas com essa onde retr ainda dava pra ressuscitar algumas peas. O que mais me atraiu a ateno foi um casaco de l cheio de bolsos, que retirei da gaveta e provei diante do espelho. Parecia feito pra mim! Desfilei pelo quarto de um lado pra outro e, por fim, enfiei a mo no bolso. L estava, alm do meu retrato, a receita do caldo de feijo. Danyelle vivia dizendo que o piercing, muito mais que um modismo, representa um grito de protesto contra o avano da globalizao selvagem e uma tentativa de fazer a revoluo social e poltica a partir da prpria pele . No sei de onde tirou essa bobagem, mas duvido que estivesse pensando em mudar o mundo quando chegava escola anunciando que tinha pendurado uma argolinha em local secreto. No satisfeita, lanava desafios que faziam borbulhar a testosterona dos garotos: quem descobrisse o tal esconderijo ganhava o direito de beijar a argola. As loterias aconteciam semanalmente e quase todas foram ganhas pelo Guto; graas a telefonemas annimos da prpria Danyelle, ele ficava sabendo previamente do resultado. Faz algum tempo, contudo, que ela no pendura mais nenhum novo piercing. possvel que a mania tenha terminado porque no restam mais locais secretos na sua pele metlica. Segundo as lnguas mais afiadas, o fim das apostas tambm tem a ver com o desinteresse do professor de Histria. Ele nunca participava das loterias, apesar de inmeras dicas que Dany escrevia no rodap das provas. No sei se ela pretendia impressionar Apolo ou Guto quando cismou de modificar mais uma vez o visual. Corriam boatos de que dessa vez adotaria um estilo mais agressivo, cravando o piercing nas plpebras, cobrindo o nariz com a tatuagem de um drago ou fazendo ponta nos dentes pra exibir um sorriso apenas de caninos. Mas ningum poderia imaginar que fizesse justamente ao contrrio. - Ser que estou to mudada? Ela sorriu, diante da perplexidade dos colegas. Tudo o que fiz foi tirar os piercings, s isso. Aquele monte de argolas j estava me cansando. Apolo aproximou-se da primeira fila e examinou a aluna bem de perto antes de dar uma opinio: - Gostei, garota. Voc muito bonita pra ficar com o rosto todo espetado. Bonita ainda v l, mas muito? O elogio abriu uma ferida d inveja na auto-estima das

  • garotas. Sou obrigada a confessar que tambm achei a declarao um exagero, mas no fundo sabia que Dany no tinha chance de desbancar a Salete. Apolo disse que preciso coragem pra mudar e resolveu dar o exemplo. Em geral, entrava na sala apressadinho, mandando abrir a apostila na pgina tal seno a gente corria o risco de perder o trem-bala da Histria. Mas dessa vez foi diferente. Depois de circular entre as carteiras em silencio, o professor encarou a turma e fez uma srie de perguntas. Como tinha surgido a internet? Em que perodo a aids se tornou uma epidemia? Desde quando se usa filtro solar? Qual a primeira brasileira famosa a desfilar de biquni pelas praias? Era bvio que j estava sabendo das abobrinhas da aula de Literatura, como aquela do laptop na bagagem de Pedro Vaz de Caminha. Para um professor to dedicado, deve ser frustrante lecionar pra estudantes que ignoram o processo histrico e imaginam que o Renascimento utilizava a mesma tecnologia da modernidade. Apolo repetiu o conselho de Clarice: - Vamos seguir o exemplo de Cabral e descobrir o Brasil? Leninha entendeu que faramos uma excurso a Porto Seguro e contou que tinha passado as frias por l, numa delicia de pousada com vista para o mar, caf-da-manh tropical e desconto para adolescentes. - Se voc quiser, fessor, eu posso falar com o meu pai. Ele conhece o dono da pousada e, de repente, descola uma diria mais barata. Ser que vai a turma toda? Muita gente confirmou presena, mas Apolo jogou gua gelada na euforia coletiva: - Que excurso? No preciso ir longe pra descobrir o nosso pas. Na opinio do professor de Histria, o umbigo do Brasil fica na Bahia, pois foi l que comeou a se formar o embrio da cultura brasileira. Mas esse um conceito to vasto que talvez seja melhor falar em culturas brasileiras. Ou ser que o plural no suficiente pra conter toda a diversidade de manifestaes sociais, polticas, artsticas, folclricas, lingsticas, religiosas e culinrias que formam a nossa identidade? Apolo disparava uma pergunta atrs da outra e cutucava a imaginao da turma: - Se o Brasil fosse uma pessoa e fizesse um teste de DNA, quem vocs acham que seriam os pais? Quando os alunos responderam que somos filhos de ndios, portugueses e negros, Apolo concordou em parte e acrescentou que estes talvez sejam os nossos pais biolgicos. No podemos nos esquecer, no entanto, dos pais adotivos e padrinhos que ajudaram a criar esta nao: franceses, holandeses, espanhis, italianos, alemes, japoneses, rabes, enfim, o mundo inteiro corre em nossas veias. Muito antes de ser batizada, a globalizao j estava no sangue brasileiro. - correto dizer provocou Apolo que vivemos no pais do carnaval, do futebol e da feijoada? O prprio professor respondeu que no existe um nico carnaval: as escolas de samba do Rio so completamente diferentes dos trios eltricos de Salvador, que no tm nada a ver com os blocos de frevo e maracatu de Recife e Olinda. E, alm do carnaval, ou melhor, dos carnavais, o Brasil participa de corpo e alma da lavagem das escadarias do Senhor do Bonfim, na Bahia; das procisses da Semana Santa, em Ouro Preto, Mariana e outras cidades histricas de Minas Gerais; da Festa do Divino em Pirenpolis, em Gois; Do Bumba-meu-boi, em So Lus do Maranho; da disputa entre Caruaru, em Pernambuco, e Joo Pessoa, na Paraba, pra saber qual a festa junina mais quente do planeta; do confronto entre os blocos Garantido e Caprichoso, em Parintins, no Amazonas; da Bienal de So Paulo; da procisso do Crio de Nazar, em Belm do Par; do Dia do Romeiro, em

  • Juazeiro do Norte, no Cear; e de tantos e tantos outros festejos. A aula j estava no fim quando Apolo decidiu torturar os estmagos famintos dos alunos com a enumerao das obras-primas da nossa culinria. Mesmo admitindo que a feijoada o prato brasileiro mais famoso, ele garantiu que nenhum paladar que se preze pode ficar indiferente ao churrasco gacho, ao barreado paranaense, ao frango com quiabo mineiro, moqueca capixaba, ao vatap baiano, ao arroz com pequi goiano, ao pato no tucupi paraense ou tapioca manauara. A turma no conhecia pessoalmente todas aquelas delcias (s quais eu acrescentei o caldo de feijo temperado da v Nina), mas a maioria ficou com gua na boca. Antes que comessemos a babar, Apolo disse que seria maravilhoso conhecer de perto a diversidade cultural brasileira, viajando por todos os recantos do Brasil pra participar de festas, provar os cardpios regionais, ouvir os diferentes sotaques e expresses, visitar museus, teatros, igrejas, monumentos, praas, parques e jardins. - Mas isso, quem sabe, fica para as frias. Em vez de fazer a excurso que a Leninha tinha sugerido, convido vocs a descobrir o Brasil sem sair da cidade. A proposta causou burburinho. Apolo estalou os dedos pra obter silncio e se explicar: - Uma boa maneira de conhecer um pais ouvir o homem comum e resgatar as suas aventuras annimas. S assim d pra saber como a cultura, em suas mltiplas expresses, afeta o dia-a-dia de cada um. Pausa para Apolo ajeitar o cabelo e fazer uma pergunta delicada: - Quem de vocs ainda tem av ou av vivo? Senti os olhos embaados, mas consegui segurar o choro. Entre os felizardos que levantaram o brao, no eram muitos o que visitavam regularmente os avs. Alguns preferiram o conforto de um convvio distncia: se o papo ficasse chato, bastava desligar o telefone ou sair da internet. Outros, como Guto, no queriam conversa: - Bem que eu gostava de falar com o meu av. Mas, de uns tempos pra c, ele ficou meio biruta e vive me confundindo com o meu pai. - Biruta ou no, seu av deve ter uma poro de histrias na ponta da lngua disse Apolo. E so essas historias que vocs vo registrar quando a gente visitar os internos de uma clinica da terceira idade. Marcelo traduziu o espanto da turma: - Pega leve, professor. Ser que no existe um lugar mais agitados pra gente descobrir o Brasil? Apolo ignorou a pergunta: - Cada aluno vai entrevistar um dos moradores da clnica e depois fazer uma redao. Procurem saber em que cidade nasceu o entrevistado, do que gostava de brincar, com quem se casou, onde trabalhou, o que queria ser quando crescesse e o que acabou sendo. Imaginem que vocs so reprteres e esto colhendo dados para uma matria sobre as mudanas do pas nas ultimas dcadas. bom levar lpis e papel e ir anotando o depoimento. Ou, se for o caso, um gravados porttil. Mas cuidado: tem gente que fica muda diante de um gravador. Pra vencer a resistncia dos mais resmunges, Apolo deixou bem claro que a tal reportagem valia nota. A penso deixada por v Plnio no era l grande coisa, por isso v Nina teve de se virar pra sustentar a casa e comeou a fazer doces e salgados pra fora. Vendia, a principio, para os alunos e professores da escola onde minha me estudava, mas os elogios viraram propaganda e multiplicaram a freguesia. Pra atender s encomendas, foi necessrio

  • contratar ajudantes, comprar um fogo de seis bocas e diversificar o cardpio. Mas nada se comparava ao caldo de feijo temperado. Como v Nina morava no primeiro andar, o aroma chegava facilmente calada. Os moradores de rua ficavam sentados no meio-fio, tapeando a fome com o nariz e acabavam ganhando uma tigela de caldo. Comida boa e de graa? A notcia se espalhou pela cidade e, em pouco tempo, uma multido de mendigos, ops, de carentes descobriu o endereo do prdio. As filas comeavam nos degraus da portaria, estendiam-se muito alm da esquina e quase sempre terminava em briga. A distribuio de senhas no resolveu o problema. Alm dos engraadinhos que tentavam passar na frente, a golpes de cotoveladas, havia intrusos com emprego e residncia que se disfaravam de carentes chinelos, bon e culos escuros s pra desfrutar do tempero da v Nina. Uma dessas figuras era a sndica do prdio. Ela atravessava a rua a semana de regime, disputando queda-de-brao contra o ponteiro da balana, mas no sbado sentia o perfume do caldo e quase mergulhava na panela. A nsia de emagrecer (ou, pelo menos, de parar de engordar) provocou uma crise de autoritarismo. Numa reunio extraordinria entre os condminos, a dona alegou que a rua estava virando um antro de vagabundos e props a adoo de uma nova clusula no regulamento do prdio: fica terminantemente proibida, a partir desta data, a prtica filantrpica nas imediaes da portaria. A essa altura, v Nina contava com o apoio de uma equipe de colaboradores que cuidavam de todos os detalhes: da compra dos ingredientes fiscalizao das filas. Mas como fazer essa estrutura funcionar sem um local fixo pra distribuir o caldo de feijo? Quem trouxe a soluo foi o responsvel pela igreja do bairro. Ao saber da implicncia da sndica, padre Lzaro disse que aquele projeto no podia morrer e saiu distribuindo as refeies nos becos e praas onde dormiam os moradores de rua. De modo geral, eles adoraram a idia, mas no possvel agradar a todos. Adalgisa foi uma que no gostou da novidade e, apesar de chuva, passou a noite fazendo viglia do prdio da minha av. Era alta, grada, desengonada e trazia na boca uma cicatriz que formava com os lbios uma cruz. O sorriso leve, quase ingnuo, amenizava a falta de alguns dentes. Tinha a mania de piscar alternadamente, um olho de cada vez, e no fixava os olhos fundos em ningum. Vivia sozinha, sem famlia nem amigo, carregando a tiracolo um gato de pelcia que lhe servia de travesseiro. Padre Lzaro procurou Adalgisa e perguntou-lhe por que no se conformava em receber refeies num dos locais de entrega, como todo mundo. Do alto dos seus quase dois metros, ela disse que no era um cordeirinho pra seguir rebanho, s iria embora depois de jantar e no tinha medo do diabo. Minha av achou melhor lev-la pra casa e deu-lhe um prato de caldo. Adalgisa jantou, repetiu, comeu a sobremesa e, por fim, pediu pra ir ao banheiro. Acabou dormindo dentro da banheira, com a cabea apoiada no gato de pelcia e as pernas compridas pra fora da borda. Dar abrigo a uma estranha pode ser perigoso, mas v Nina ignorou a prudncia e apostou na intuio. Como botar na rua uma coitada que no tinha pra onde ir, ainda mais noite e debaixo de chuva? No apenas acolheu a inesperada hspede, como arranjou-lhe um cobertor e substituiu o gato por um travesseiro de verdade; no dia seguinte, a sim, poderia despedi-la sem remorso. Mas de manh no havia ningum na banheira. Chegando cozinha, minha av encontrou o caf pronto, a mesa posta e nenhum prato na pia. Adalgisa estava beira do tanque tentando clarear as meias da me, que nessa poca tinha a minha idade e assim como eu

  • adorava tirar os sapatos pra patinar no assoalho. V Nina provou um gole de caf: suave e doce como ela gostava... Cad coragem de mandar a mulher embora? Precisava mesmo arranjar uma empregada e, ainda que sem referncia, ofereceu-lhe a vaga. Foi ento que Adalgisa entrou na historia da minha famlia. No que fosse boa cozinheira: s o que sabia, na verdade, era fazer caf e olhe l: costumava exagerar na quantidade de acar, assim como carregava no sal quando se metia a preparar o almoo. Tambm no podia ser classificada como a melhor faxineira do mundo; tinha altura pra alcanar as prateleiras de cima, mas deixava o p se acumular na estante da sala por pura preguia de esticar o brao. V Nina no reclamava do servio; em vez de bancar a patroa, decidiu trat-la como filha. Ensinou-lhe a ler, escrever, escovar os dentes, usar absorvente, cortar o bife, andar de bicicleta e falar olhando nos olhos. Minha me se lembra de Adalgisa com carinho e conta e conta que ela sempre comia uma fatia e encomenda quando fazia entrega na casa das freguesas, gostava de abrir as correspondncias pra mostrar que j sabia ler, morria de cimes da minha av e um dia sumiu sem mais, nem menos, nem adeus, nem bilhete, nem pista, nem nada. Padre Lzaro tinha adorao pela minha av e fez questo de celebrar a missa do stimo dia de uma alma que veio ao mundo pra tornar a vida mais saborosa. Salivando de saudade, relembro a luminosidade do arroz, a irreverncia das massas, a delicadeza das carnes, a alegria das gelatinas e das compotas que nasciam das mos abenoadas da v Nina. Declarou que ela transformava a refeio mais singela numa santa ceia e tentou descrever o caldo de feijo servido aos nossos irmos sem-teto. Enquanto padre Lzaro procurava um adjetivo altura do tempero do caldo, olhei para o outro lado da igreja e vi o senhor de cabelos compridos que, no dia do velrio, disse que gostaria de ser meu av. Ele me acenou com a mo esquerda, onde havia um Z tatuado, e logo em seguida foi embora. Ser que estava cansado do falatrio do padre? Ou teria sado pra comer alguma coisa? Escolho a ltima opo. Aquela conversa sobre carnes e massas tinha atiado o apetite dos fiis eu, pelo menos, fiquei com gua na boca. Ao fim da missa, meu pai perguntou a minha me que tal se a gente fosse a um restaurante... como nos velhos tempos. Ela alegou que tinha de corrigir umas provas e recusou o convite de cabea baixa, fingindo consultar o relgio de pulso, mas por trs dessa desculpa civilizada havia mgoa, humilhao e revolta por ter visto o ex-marido almoando com a secretria numa pizzaria do centro da cidade. Minha me garante que no tem cime do meu pai e acha natural que ele se divirta e seja feliz pra sempre. Esse argumento s funciona, contudo, no confortvel terreno do discurso. Por mais amigvel que seja uma separao, flagrar o ex-marido com outra no colrio pra nenhuma mulher sobretudo se essa outra tem 20 anos a menos e pode se dar ao luxo de dispensar suti e maquiagem. Talvez eu devesse chamar minha me num canto da igreja e dizer que ningum deve ser crucificado por causa de um lanche com a secretria, mas conclu que uma missa de stimo dia no era a ocasio mais apropriada pra esse tipo de papo-cabea. Por outro lado, estava morrendo de saudade do meu pai e tratei de arranjar um jeito de ficar perto dele: - Pra que ir a um restaurante? A gente podia lanchar l em casa. Minha me me mostrou os dentes e me trucidou com um olhar de fcil traduo: a ltima coisa que queria na vida era perder a noite de sbado cozinhando para o ex-marido. Apressei-me em informar que eu mesma iria para o fogo e acrescentei que faria em homenagem memria da v Nina. Houve uma epidemia de pigarros quando anunciei o cardpio: caldo de feijo!

  • Meu pai posou a mo no meu ombro e me advertiu de que ningum tem o poder de repetir uma obra prima. Como eu seria capaz, por exemplo, de alcanar o mistrio daquele tempero? - simples eu disse. V Nina me deixou a receita como herana. Minha inteno no era apenas homenagear minha av; pra falar a verdade, eu tambm pretendia impressionar o Joo e resolvi cham-lo para o lanche. Ele disse que no tinha vocao pra cobaia, mas no hesitou em aceitar o convite. Depois de muita insistncia, meu pai conseguiu convencer minha me a entrar no carro; foi meu irmo, porm que se sentou ao lado do motorista. Ela achou melhor ficar no banco de trs, entre Joo e mim, de onde podia observar as reaes do ex-marido pelo espelho retrovisor. Passamos num supermercado pra comprar os ingredientes e de l seguimos pra casa. Minha me se ofereceu pra me dar uma fora, mas ela no tem muita intimidade com as panelas e seria bem mais til longe da cozinha. Por que no fazia sala para o meu pai? Eu j me dava por satisfeita de contar com o meu suporte tcnico-afetivo do Joo, que me ajudou a catar, lavar, cozinhar, bater no liquidificador e refogar o feijo. Em seguida, acrescentei as carnes lingia em rodelas, paio desfiado - e temperei a mistura com cebola, alho, sal, cheiro-verde e louro, obedecendo rigorosamente s medidas constantes da receita. Minha me aceitou minha sugesto e foi conversar com o meu pai. Mas que conversa? O dilogo resumia-se a uma troca de impresses sobre o calor fora de poca, a falta de chuvas e as bruscas mudanas de temperatura. Era lamentvel: depois de tantos anos vivendo juntos, eles precisavam da ajuda da meteorologia para se livrar do silencio. O estoque de monosslabas j estava se esgotando no memento em que meu irmo apareceu na sala com um quebra-cabea e despejou todas as mil peas no cho. Existe passatempo mais torturante que montar quebra-cabea com o estmago vazio? Os dois sentaram-se no cho pra brincar com o caula, mas a fome foi mais forte que a pacincia e estragou a brincadeira. Antes que meu pai comesse as peas, desliguei o fogo e pedi a Joo que levasse a panela para a mesa. O aroma estava divino e, modstia parte, no ficava nada a dever obra-prima da minha av. Xandi chegou a dizer que j podia me casar, mas mudou de idia na primeira colherada: - Eu que no queria ser seu marido falou olhando para o Joo. Essa sopa no tem gosto de nada! Aleguei que o caldo no era sopa e mandei que o engraadinho deixasse de implicncia mas ele no foi o nico a condenar o meu tempero ou, pensando bem, a falta de tempero. Apesar da fome, meu pai no conseguiu reprimir uma careta de decepo. Minha me me disse que toda receita tem l suas manhas e me perguntou se, por acaso, eu no tinha me esquecido de nenhum ingrediente. - Vai ver concluiu meu irmo que a v Nina usava feijes mgicos. Como na histria que a professora leu pra gente um dia desses. Joo detesta comida quente e at ento no se arriscaria a enfrentar o caldo. A famlia esperava, com a sdica ansiedade, que o coitado tambm torcesse o nariz, mas ele jurou que estava uma delcia e quase me convenceu de que o elogio era sincero. pena que tenha levantado o brao quando o Xandi ligou para uma lanchonete e perguntou quem queria um cheeseburger.

    No dia seguinte, logo aps o almoo, minha me apareceu na minha frente abraada a um

  • pote de madeira. Era como se carregasse uma relquia sagrada, um mapa do tesouro, uma descoberta arqueolgica capaz de revolucionar a histria da arte. No foi difcil adivinhar o contedo da urna. - Estou indo ao cemitrio informou. Vou ver se l tem alguma roseira pra jogar as cinzas da sua av. Encarrelhada de cumprir o ltimo desejo da v Nina, deixei de lado uma antologia de poetas modernistas e segui at o quarto pra trocar de roupa. Minha me me assustou quando voltei sala e afirmei que estava pronta. - Voc vai ela me examinou de cima a baixo assim? Dei uma geral na minha blusa e no encontrei nenhum desfeito: no estava suja, nem desabotoada, nem do avesso. Demorei uns bons segundos pra perceber o motivo da pergunta: o problema, pelo visto, era a minha saia curta e vermelha demais para o padro de qualidade da minha me: - No fica bem voc ir ao cemitrio de minissaia, ainda mais pra cumprir um ritual solene como espalhar as cinzas da sua av. A memria dos nossos entes queridos merece um mnimo de respeito. Com que direito minha me me acusava de neta desnaturada? Achei que deveria responder a altura e sugeri que procurasse um oculista: a minha saia batia dois dedos acima do joelho, no mximo trs, e tecnicamente no poderia ser considerada mni. Falei que o comprimento da roupa ou a cor do tecido no tem nada a ver com a falta de respeito. Vestir luto, c entre ns, era um costume do sculo passado. Ou retrasado? -Ningum precisa se fantasiar de grana-conclu- para mostrar que ama os entes queridos. Essa expresso, alis, est fora de moda e no deveria ser repetida por uma professora universitria. Pensei que minha me fosse me perguntar quem era eu pra lhe dar conselhos sobre comportamento e linguagem. Era assim que costumava agir quando no tinha mais argumentos: assumindo o papel de mulher madura que no se deixa abalar pelas oscilaes hormonais da adolescncia. Naquele dia porm, mudou de ttica, apelando para a chantagem emocional: -Precisa me tratar assim? A minha prpria filha! Eu s estava falando para o seu bem, Joana. Por que voc insiste em ser do contra? Na hora de entrar no carro, fui obrigada a botar no colo a urna com a cinzas da minha av. Minha me percebeu o meu desconforto e parou de me perturbar com suas queixas e resmungos. Mas, quando chegamos ao cemitrio, assisti a outro ataque de nervos: -Olhe s o que eles fizeram- rosnou minha mo. -Bando de incompetentes! Eles, no caso, eram os responsveis pelas letras de bronze escritas no tmulo. Alm do nome completo da v Nina, havia uma estrela ao lado da data de nascimento e uma cruz junto ao dia da morte. O que mais estaria faltando. -A sua frase, Joana! Cad a frase que voc escreveu em homenagem a sua av? Vrios familiares estavam enterrados ali, inclusive meu av Plnio, e as respectivas inscries ocupavam quase todo o tmulo. Eu ia dizer que no havia espao para o epitfio da v Nina, mas a metralhadora da minha me j havia mudado de alvo. Ela teve um piti quando olhou ao redor e no viu uma s roseira: -E agora? Onde que a gente vai jogar as cinzas? Aleguei que aquilo no era problema. Ciente do meu poder de transformar literatura em realidade, minha me adivinhou a minha inteno, tirou da bolsa uma caneta e um guardanapo de papel e me ditou o seguinte: Uma roseira vai brotar no tmulo da nossa

  • famlia. Foi nesse instante que ergui os olhos e vi um senhor de cabelos longos cruzando o porto do cemitrio com um buqu de rosas vermelhas. Meu corao bateu forte: eu no podia perder a chance de entrar em contato com aquele misterioso personagem e descobrir por que ele tinha afirmado, no velrio da v Nina, que queria ser meu av. Mas como desvendar este segredo sem uma boa dose de privacidade? Pra poder conversar com o sujeito em paz, ignorei o ditado da minha me e escrevi outra frase: Reunio urgente na faculdade. Todos os professores convocados. O celular tocou em seguida: a diretora da faculdade avisou que faria uma reunio em meia hora e no queria saber de ausncia, nem mesmo com atestado mdico. Minha me no tinha tempo para me dar uma carona e me pediu que levasse a urna para casa; num outro dia com mais calma, a gente voltaria ao cemitrio para espalhar as cinzas de v Nina. No havia muitas rvores ao redor para quem pretendia bancar a espi. Escondida atrs de um cipreste magrelo, observei minha me se afastar com pressa e passar ao lado do homem com o buqu de rosas vermelhas. Ele parou para dizer al, mas acho que ela no ouviu. O cemitrio municipal tinha sido construdo sobre um morro, por isso o cara levou um tempo para alcanar o tumulo da minha famlia. Chegou l em cima ofegante e, enquanto recuperava o flego ficou alisando as letras de bronze do nome da minha av. Depositou as flores com os olhos baixos, como se pretendesse fazer uma prece, mas de repente tirou do bolso uma gaita e comeou a soprar. A cano era triste e , mesmo sem letra, parecia falar de paixo. Quando ele parou de tocar, eu no sabia se chorava ou se aplaudia. Optei por sair de trs do cipreste e me aproximei para puxar conversa: -Tava ali atrs, quietinha, escutando. No queria interromper. -Ol, Joana Dalva!- ele no parecia aborrecido. - Voc gostou? No pude disfarar o espanto. -Como que voc sabe o meu nome? -Primeiro a sua opinio. Sinceridade, hein? -Gostei, sim. Meio triste, mas bonita. -Fiz essa cano na noite em que conheci a sua av. Chama-se Choro para a Nina. -Quer dizer que voc compositor? -Comecei tocando violo para conquistar o corao das garotas em noites de serenata. S depois de conhecer sua av que passei a curtir gaita, a flauta, o sax e outros instrumentos de sopro. Acho que so os mais indicados para quem precisa desabafar. -V Nina no me falou dessa msica. -Nem podia. Ela nunca ouviu. Eu no estava entendendo nada: -Mas voc acabou de dizer que conheceu a minha v. S vi de longe-ele suspirou. Eu estava em frente a casa dela, tocando violo com um grupo de amigos e tambm com seu av. Ele era muito desafinado e me pediu ajuda para fazer uma serenata. Fiquei to encantado com a Nina que cheguei a errar uns acordes. Opa! Aquele histria eu j conhecia. Mas queria saber com certeza que estava falando com o personagem certo: -Voc, por acaso o Henrique? -Agora sou eu que me pergunto: como que voc sabe o meu nome? -Minha av dizia que v Plnio tinha um ouvido pssimo, mas queria porque queria fazer uma serenata pra ela e se reuniu com um grupo de msicos liderados por um tal de

  • Henrique. -E o que mais ela contou? -No dia seguinte serenata, v Nina recebeu um buqu de rosas vermelhas e um carto com um poema. Ela era muito ligada nesse lance de grafologia e usava a letra para escolher ou descartar os canditados... Como mesmo que se falava antigamente?

    -Pretendentes- disse Henrique, tolerante com a minha ignorncia. -isso mesmo. Meu av era um desses pretendentes e mandou as rosas com uns versos. Todo poema de amor tem a palavra corao, at a nenhuma novidade, mas minha av se encantou pelo cedilha do c e decidiu dar uma chance ao dono daquela letra. Henrique me olhou sem piscas: -olhe s que ironia! Quem mandou as flores fui eu. Por essa, eu no esperava. Se a letra do carto no era do v Plnio, ento quer dizer que a minha av... escolheu o pretendente errado?! -Eu era um rapaz muito tmido-prossegui Henrique, e usava o violo como uma espcie de escudo. To tmido que no tive coragem de assinar o carto. Pouco tempo depois, soube que Plnio estava noivo e ia se casar com Nina. -E voc- Pensei em voz alta - Guardou essa paixo no bolso? -Naquela poca, eu j ganhava a vida como musico e recebi uma proposta para me apresentar no exterior. Dizem que o tempo cura tudo, at amores impossveis, ento resolvi provar o remdio. Morei em muitos paises, toquei com artistas maravilhosos e conheci uma poro de mulheres. Mas todas tinham o mesmo defeito, elas no eram a Nina. Eu estava aflita para saber o fim da histria e dei um salto no tempo: -Minha av ainda era nova quando ficou viva. Voc podia ter ido atrs dela. -Fazia mais de um ano que seu av tinha morrido quando eu soube da noticia. Minha vontade era pegar o primeiro avio, mas eu estava no meio de uma turn e no podia dar as costas ao pessoal da banda. Ento, escrevi uma longa carta para Nina contando que tinha lhe mandado aquelas flores, que o poema do carto era de minha autoria, que estava disposto a abandonar carreira internacional e voltar ao Brasil para que a gente casasse. Tentei encurtar o suspense: -E a? -A minha carta tinha tantas pginas que estofou o envelope. A resposta, em compensao, foi um bilhete escrito as pressas. Em meia dzia de linhas, Nina disse que ainda amava Plnio e no pretendia se casar de novo, muito menos com um violeiro desconhecido e insistente. -Vai me desculpar, Henrique. Duvido que minha av fosse capaz... -Tambm fiquei chocado e fiz uma nova tentativa. Mas a resposta foi parecida e terminava com um pedido: se eu gostasse dela de verdade, nunca mais voltasse a lhe escrever. Pedir desculpas pela minha av? Achei que isso soaria ridculo e me limitei a baixar a cabea pra ouvir o ultimo captulo: -Voltei ao Brasil algumas vezes, mas nunca me atrevi a procurar a Nina. Medo de levar outro fora, entende? Quando finalmente criei coragem, j era tarde demais. Sua av tinha adoecido e no reconhecia mais ningum. Dessa vez, no dava pra dizer ops e ser politicamente correta: aquele homem da terceira idade era um velho sem nenhum eufemismo. Ele passou a me no rosto, deixando mostra a tatuagem da mo. No a me contive: -O que significa esse Z?

  • Henrique levantou a mo, virando a letra de lado: -Isto um N, Joana. Pra disfarar os lbios trmulos, botou a gaita na boca e tocou mais um pedacinho de Choro pra Nina. Por fim, apontou para a moldura oval pregada cabeceira do tumulo, que mostrava uma imagem antiga da minha av. -Se voc no se importar, eu gostaria de continuar vindo aqui, de vez em quando, para trazer umas rosas vermelhas e tocar um choro para ela... -Foi minha me- esclareci- quem mandou pendurar essa foto. Mas v Nina no esta enterrada a. Abri a tampa da urna com cuidado e joguei uma pitada na mo do Henrique. Ele ficou to emocionado que nem conseguiu me agradecer. Juntou as cinzas com a ponta dos dedos e guardou nos furinhos da gaita.

    Depois da reunio convocada pela diretora da faculdade, minha me foi buscar Xandi na escola e teve de enfrentar um engarrafamento que lhe tirou o humor pelo resto da semana. Entrou em casa com a sua pior cara de TPM e foi direto para o chuveiro, alegando que precisava de uma ducha para relaxar o corpo e a alma. Meu irmo largou a mochila em cima do sof, jogou os tnia para cima e invadiu a cozinha com a delicadeza de um garoto das cavernas. Apesar de levar uma merenda reforada, costuma chegar da escola desatinado de fome e fazer uma vitamina misturando tudo o que v pela frente: leite com refri, mel com ketchup, chocolate em p e farinha de aveia com o resto da farofa do almoo. O resultado uma pasta grossa que quase pifa o liquidificador sem falar, claro, nos danos para o intestino. Mas no sempre que Xandi consegue engolir esse coquetel explosivo, Naquela tarde, por exemplo, ele no passou do primeiro gole. Eu estava no sof da sala, tentando assistir um filme na tev, no momento em que foram acionadas as turbinas do liquidificador. H barulho no mundo mais irritante? Nem motor de dentista mexe tanto com os meus nervos. Fechei a porta da cozinha e aumentei o volume da tev, mas continuei com a impresso de estar vendo um filme do tempo do cinema mudo. Pra meu desespero, o zumbido do liquidificador deu lugar a um acesso de tosse. Xandi demorou a ficar quieto, mas o silncio repentino me trouxe mais aflio do que alivio. E se o meu irmo estivesse engasgado? Na duvida, fui at a cozinha e encontrei o garoto respirando normalmente. Eu que perdi o ar quando olhei para a mesa e vi que ele tinha aberto a urna da minha av. Esse chocolate ele disse est estragado. Foi voc que comprou? Chocolate? Aquilo s podia ser um pesadelo. -Voc est insinuando... que usou esse pote para fazer vitamina? - S botei umas duas ou trs colheres, mas achei o gosto uma droga. Fui at mesa para fechar a urna e descobri que estava vazia. Mal tive voz para perguntar: -Cad o resto? Xandi respondeu com naturalidade: - Joguei na pia, ora. Quem que vai comer chocolate estragado? Foi a que o mundo desabou. Quando dei por mim, estava sacudindo o pescoo do meu irmo e berrando que s um canibal idiota poderia confundir cinzas com chocolate e beber a prpria av na vitamina. Ele no deve saber o que significa canibal, mas no gostou de ser chamado de idiota e me agrediu com alguns palavres que nem eu sei soletrar. -Quero ver rosnei quando eu contar para a mame o que voc fez.

  • No foi preciso. De braos cruzados na porta da cozinha, ela acompanhava a discusso com o cabelo arrepiado - s no sei se por causa do banho ou da raiva. Pensei que fosse praticar um canibalismo sem metforas, devorando Xandi vivo e cru, mas ela se limitou a lhe dizer que no falasse palavro. Virou-se para mim: - Por que voc no guardou a urna num lugar seguro? Ao chegar do cemitrio, fui cozinha para tomar um suco e acabei esquecendo a urna em cima da mesa. Tentei contar isso a minha me, mas ela no me deixou terminar e jogou toda a culpa no meu colo: - Se voc no fosse to desligada, Joana Dalva, as cinzas no teriam se perdido. E agora, o que que sobrou de sua av? Apelei para a minha literatura. - Eu posso fazer uma frase... - J estou cansada dessa sua mania de escrever certo por linhas tortas ela gritou. Quem voc pensa que para querer consertar o mundo? Xandi sorriu, vitorioso, como se fosse o filho nico. Sa da cozinha, me tranquei no quarto e afundei o rosto no travesseiro.

    Desembarque na Ilha de Vera Cruz

    Os professores acharam que a atividade proposta pelo professor de Histria entrevistar pessoas da terceira idade pra tentar descobrir o Brasil deveria ser explorada por todas as disciplinas: a idade dos entrevistadores serve de base pra clculos matemticos, o modo de falar tem a ver com a Geografia, as rugas e tremores so explicados pela Biologia, os casos e lembranas podem virar literatura. A diretora da escola, dona Nlia, vive falando em interdisciplinaridade e ficou to entusiasmada com o projeto que reservou uma manh inteira para o grande evento: uma excurso a clinica geritrica da prefeitura, mais conhecida como asilo municipal. Muitos colegas planejavam falar, mas mudaram de idia ao saber que seriam punidos com um cilindro de zeros um para cada disciplina. - Logo hoje resmungou Danyelle que eu ia matar aula para fazer o meu book. Talvez por causa do y cravado no meio do nome, Danyelle tem a mania de salpicar o discurso com palavras inglesas. Em vez de desculpas, diz sorry; no telefone, hello e goodbye; a hora do intervalo coffee break; quando est feliz, grita yessssssss! And so on. No acredito que o velho e bom portugus esteja ameaado pela invaso brbara de outras lnguas, como temem alguns gramticos, mas no d para entender por que tanta gente transforma o nosso idioma numa espcie de esperanto colonizado. - Eu no sabia ironizei que voc tambm escreve. Do que fala o seu livro? A clinica no fica longe da escola, por isso todos concordamos diretora, professores e alunos em fazer uma caminhada. Diante da minha pergunta, Danyelle se deteve e me olhou de lado, sem saber se eu estava zoando ou se era de fato uma ignorante em matria de moda. Acho que ficou com a segunda opo: - mas que livro? No mundo fashion, minha querida, book um lbum de fotos das garotas que querem seguir carreira de modelo e manequim. Uma espcie de carteira de identidade. Dependendo do caso, serve at como passaporte. S ento entendi por que Danyelle tinha se livrado dos piercings. Leninha estava do meu lado e teve uma crise de tietagem: - Ento, vou ter duas amigas famosas. Uma modelo e outra escritora! Posso ser secretria

  • de vocs. Ou, quem sabe, empresaria?! Danyelle ia dizer alguma coisa, mas de repente enrolou as palavras, cambaleou e caiu desmaiada... bem em cima de mim! Leninha e eu juntamos nossas focas e levamos ela at o meio-fio. Logo em seguida, ela recobrou os sentidos e passou algum tempo de cabea baixa. Colegas e professores sugeriram que botasse sal debaixo da lngua, esfregasse os pulsos, cheirasse lcool, chupasse limo, respirasse fundo, deixasse de frescura, enfim, havia palpites pra todos os gostos. Dona Nlia cogitou chamar um mdico, mas Danyelle garantiu que estava melhor e acrescentou que no pretendia atrapalhar a excurso. Tudo o que precisava era de um pouco de sossego, por isso respirou aliviada quando a professora Clarice se ofereceu pra lhe fazer companhia e sugeriu turma que seguisse na frente. Achei que Danny no me queria por perto, mas ela segurou a minha mo e no deixou acompanhar a turma. Leninha tambm quis ficar: -Se eu for mesmo na sua empresria, tenho de cuidar da sua sade. A risada de Danyelle era um bom sinal. Ela se levantou coma ajuda de Clarice, deu alguns passos apoiada no meu brao e aos poucos foi ganhando equilbrio e confiana. - a primeira vez que vc desmaia? -perguntou Clarice. Danyelle confirmou com a cabea. Leninha soltou sem pensar: -Quando minha ficou grvida, ela vivia desmaiando. -Vire essa boca pra l- reagiu Danyelle. - Filhos no combinam com passarela. Clarice no parecia surpresa: -Ento voc tambm quer ser manequim? -Tambm? -espantou-se Danyelle, temendo a possvel concorrncia. -Voc conhece outras candidatas? -No tenho uma estatstica precisa, mas boa parte das minhas alunas j pensou em virar modelo. Ah, sim! E atriz de novela. -Qual o problema? No pecado fazer sucesso. O sorriso no disfarava a irritao de Danyelle. Clarice no se intimidou: - O problema quando a garota pra de comer pra ficar co