Poder episcopal e saques rituais na periferia do Império ... · Conta um erudito historiador de...

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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1 Poder episcopal e saques rituais na periferia do Império: As solenes entradas dos bispos em Terra de Otranto (s. XVI-XVIII)* Paola NESTOLA bolseira post-doc Centro de História da Sociedade e da Cultura (CHSC) Universidade de Coimbra [email protected] Premissa Conta um erudito historiador de Gallipoli que, por ocasião da chegada à diocese do novo bispo António Perez De la Lastra (8 Maio 1679), o prelado se apresentou ao vigário geral com a fórmula «eu sou o bispo» 1 . Estas palavras, pronunciadas em castelhano língua de origem do antístite confundiram a autoridade local, a qual não havia reconhecido a identidade do forasteiro que teve que repeti-las. Com efeito, o prelado tinha chegado perante o vigário de um centro diocesano do vice-reino de Nápoles sem se anunciar previamente, e sem mostrar todos os sinais externos que distinguiam as suas funções e dignidade episcopal. Este episódio é sintomático do conjunto de fórmulas, gestos e acções que regulavam a entronização do neo-eleito na Sé. Era através desse ritual que o bispo começava a beneficiar da dignidade e do cargo do bispado 2 . O erudito do fim do século XIX, baseando-se em outras memórias sobre este acontecimento, provavelmente, queria exaltar a virtude do nobre bispo, que se distinguia pela modéstia e a simplicidade com que se apresentou incógnito na catedral. Por outro, embora evidenciando a inesperada chegada do prelado mais que a ignorância do vigário pelo idioma estrangeiro, procurava não desvalorizar a urbanidade da cidade de Gallipoli que, nos dias seguintes, festejou a sua entrada. Não se tratava de uma efémera e monolítica homenagem de boas vindas ao novo hóspede: segundo uma prática social do Antigo Regime, um específico cerimonial regulamentava esses extraordinários rituais cívicos. 1 *Agradeço à FCT pela oportunidade de desenvolver esta pesquisa que se enquadra no projecto SFRH/BPD/62887/2009. Além de isso, o meu agradecimento ao professor J.P. Paiva pela disponibilidade de ler e comentar este contributo, e a Maria de Jesus Assunção pela ajuda na tradução. Bartolomeo RAVENNA, Memorie istoriche della Città di Gallipoli, Napoli, presso Raffaele Miranda, 1836, pp. 479-480. 2 Gaetano MORONI, Dizionario di erudizione storico-ecclesiastica, vol. XCVI, Venezia, Tipografia Veneziana, 1859, pp. 1-14.

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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1

Poder episcopal e saques rituais na periferia do Império:

As solenes entradas dos bispos em Terra de Otranto (s. XVI-XVIII)*

Paola NESTOLA

bolseira post-doc Centro de História da Sociedade e da Cultura (CHSC)

Universidade de Coimbra

[email protected]

Premissa

Conta um erudito historiador de Gallipoli que, por ocasião da chegada à diocese do

novo bispo António Perez De la Lastra (8 Maio 1679), o prelado se apresentou ao vigário

geral com a fórmula «eu sou o bispo»1. Estas palavras, pronunciadas em castelhano – língua

de origem do antístite – confundiram a autoridade local, a qual não havia reconhecido a

identidade do forasteiro que teve que repeti-las. Com efeito, o prelado tinha chegado perante o

vigário de um centro diocesano do vice-reino de Nápoles sem se anunciar previamente, e sem

mostrar todos os sinais externos que distinguiam as suas funções e dignidade episcopal.

Este episódio é sintomático do conjunto de fórmulas, gestos e acções que regulavam a

entronização do neo-eleito na Sé. Era através desse ritual que o bispo começava a beneficiar

da dignidade e do cargo do bispado2.

O erudito do fim do século XIX, baseando-se em outras memórias sobre este

acontecimento, provavelmente, queria exaltar a virtude do nobre bispo, que se distinguia pela

modéstia e a simplicidade com que se apresentou incógnito na catedral. Por outro, embora

evidenciando a inesperada chegada do prelado mais que a ignorância do vigário pelo idioma

estrangeiro, procurava não desvalorizar a urbanidade da cidade de Gallipoli que, nos dias

seguintes, festejou a sua entrada. Não se tratava de uma efémera e monolítica homenagem de

boas vindas ao novo hóspede: segundo uma prática social do Antigo Regime, um específico

cerimonial regulamentava esses extraordinários rituais cívicos.

1 *Agradeço à FCT pela oportunidade de desenvolver esta pesquisa que se enquadra no projecto

SFRH/BPD/62887/2009. Além de isso, o meu agradecimento ao professor J.P. Paiva pela disponibilidade de ler

e comentar este contributo, e a Maria de Jesus Assunção pela ajuda na tradução.

�Bartolomeo RAVENNA, Memorie istoriche della Città di Gallipoli, Napoli, presso Raffaele Miranda, 1836, pp.

479-480. 2

Gaetano MORONI, Dizionario di erudizione storico-ecclesiastica, vol. XCVI, Venezia, Tipografia Veneziana,

1859, pp. 1-14.

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Comuns a todos os espaços europeus católicos e dos impérios ibéricos do ultramar,

essas linguagens de poder têm sido objecto de uma detalhada atenção, sobretudo por parte da

historiografia portuguesa3. Em 1993, José Pedro Paiva, num exemplificativo contributo

consagrado à análise morfológica das entradas episcopais portuguesas na primeira metade do

século XVIII, sublinhava o débil interesse historiográfico por estas cerimónias públicas em

comparação com a atenção dedicada por outro género de ingressos civis ou religiosos4. Uma

avaliação que posteriormente aprofundou em estudo diacrónico, baseado no exame

comparativo de cinquenta cerimónias do género organizados nos heterogéneos espaços

europeus e nas dioceses de além mar de Espanha e de Portugal5. Postos em cena em ocasião

da tomada de posse da igreja catedral, também esses momentos de festa constituíam

importantes expressões da jurisdição, de carismática autoridade e da representação do poder

do bispo. Retomando as palavras de Paiva: «Os rituais de entrada episcopal eram uma forma

de manifestação do poder do bispo e da sua diferença de estatuto em relação a todos os outros

poderes e indivíduos da diocese»6. Para além disso, tratava-se de uma linguagem performativa

articulada por actores sociais, colocados num campo estratégico e numa rede de relações

sociais. Estas «liturgias de poder» representadas com gestos, posturas, acções e referências

simbólicas amplificavam e tornavam inteligível a dignidade episcopal. Sobretudo depois do

Concilio de Trento, quando as decisões conciliares haviam posto o bispo ao centro de uma

obra de renovação das estruturas eclesiásticas, de controlo, de disciplina e de orientação da

sociedade, reafirmando e fortalecendo a sua preeminência e autoridade7. Ora, logo nos

primeiros momentos de contacto com o próprio rebanho, o bispo exibia os sinais do seu papel

e da sua função social.

3 José Pedro PAIVA “A liturgy of power: solemn episcopal entrances in early modern Europe”, in Heinz

SCHILLING - István György TÓTH (eds.), Cultural Exchange in Early Modern Europe, vol. I; Religion and

Cultural Exchange in Europe, 1400-1700, Cambridge, Cambridge University Press, 2006, pp. 138-161; IDEM,

“Etiqueta e Cerimônias Públicas na Esfera da Igreja (séculos XVII-XVIII)", in István JANCSÓ e Iris KANTOR

(orgs.), Festa, Cultura & Sociabilidade na América portuguesa, vol. I, São Paulo, Hucitec, 2001, pp. 74-93;

IDEM, “O Cerimonial da Entrada dos Bispos nas suas dioceses: uma encenação de poder (1741-1757)”, in

Revista de História das Ideias, 15, (1993), pp. 117-146. Ver ainda o estudo sobre as entradas medievais de

Veronica JULEROT, ¨La première entrée de l'évêque: réflexions sur son origine", in Revue historique, CCCVIII/3,

(2006), pp. 635-675. 4 J.P. PAIVA, “O Cerimonial...”, cit., p.119.

5 IDEM, "A liturgy of power...", cit..

6 IDEM, “O Cerimonial...”, cit., p. 136.

7 Adriano PROSPERI, “La figura del vescovo fra Quattro e Cinquecento: persistenze, disagi e novità”, in Giorgio

CHITTOLINI e Giovanni MICCOLI, (eds.), Storia d‟Italia. Annali 9, La Chiesa e il potere politico dal Medioevo

all'età contemporanea, Torino, Einaudi, 1986, pp. 219-262; MARIO ROSA, “L'immagine del vescovo nel

Seicento”, in «Ricerche di Storia Sociale e Religiosa», 46, (1994), pp. 49-59; pelo espaço português: J.P. PAIVA,

Os bispos de Portugal e do Império 1495-1777, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, pp. 111-

170; Federico PALOMO, A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, Lisbona, Livros Horizonte, 2006, pp. 30-41.

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A atenção até agora dedicada a estas cerimónias, no caso italiano, à parte do anómalo

caso do soberano pontífice, simultaneamente bispo de Roma8, foi focalizada

fundamentalmente sobre algumas dioceses setentrionais da península italiana9. Estas análises

dos diferentes territórios da fragmentada geografia política italiana, estiveram atentas aos

momentos simbólicos das etapas e dos actores que participavam no rito, no decurso do qual

momentos de alegria figuravam a par com actos violentos. Estes últimos foram considerados

como «saques rituais», retomando a definição proposta pela historiografia não só italiana, que

procurou dar uma explicação a essas tenções, a esses gestos arrogantes executados sobre os

objectos e sobre o corpo dos prelados neo-eleitos, ou passados a melhor vida10

. Por estes

objectos feitos em pedaços, como observa Sergio Bertelli, «nada de valor económico, isto é,

nestas violências, mas algo de profundamente religioso»11

. Por outro lado, estas articuladas

performances eram extraordinários rituais de participação colectiva que contribuíam a

identificar uma cidade e os seus corpos sociais12

.

Quanto ao Sul do território italiano sujeito à coroa espanhola e organizado em 130

dioceses, das quais só 20% eram de padroado régio13

, a literatura recente não se mostrou tão

atenta a reconstruir esses extrordinários momentos que articulavam o território da cidade com

o dos seus espaços envolventes14

. Em 1997, o trabalho de síntese de Mário Spedicato com o

8 Maria Antonietta VISCEGLIA, La cittá rituale. Roma e le sue cerimonie in età moderna, Roma, Viella, 2002;

Martine BOITEUX, “La vacance du siége pontifical. De la mort et des funérailles à l'investiture du pape: Les rites

de l'époque moderne», in J.P. PAIVA (ed.), Religious Ceremonials and Images: power and social meaning (1400-

1750), Coimbra, Palimages, 2002, pp. 103-141, pp. 133-140; Irene FOSI, "«Parcere Subiectis, Debellare

superbos»L'immagine della giustizia nelle cerimonie di possesso a Roma e nelle legazioni dello Stato pontificio

nel Cinquecento", in Cérémoniale et rituel à Rome (XVIe-XIXe siècle), M.A. VISCEGLIA e Catherine BRICE,

(eds.), Rome, École Française de Rome, 1997, pp. 89-115. 9 Giulio BELVEDERI, “Studi Liturgici: cerimonie nel solenne ingresso dei vescovi in Bologna durante il

medioevo”, in Rassegna Gregoriana, 2, (1913), pp. 170-186; Roberto BIZZOCCHI, Chiesa e potere nella Toscana

del Quattrocento, Bologna, Il Mulino, 1987, pp. 34-36; Gabriella ZARRI, Recinti: Donne, clausura e matrimonio

nella prima età moderna, Bologna, Il Mulino, 2000, pp. 316-346; Daniela RANDO, Ceremonial Episcopal

Entrances in Fifteenth Century North-Central Italy: Images, Symbols, Allegories, in Religious..., cit., pp. 27-46.

10 Reinhard ELZE, “«Sic transit gloria mundi»: la morte del papa nel Medio Evo", Annali dell‟Istituto Storico

Italo Germanico in Trento, 3, (1977), pp. 23-41; Carlo GINZBURG, “Saccheggi rituali. Premesse a una ricerca in

corso”, Quaderni Storici, 22, (1987), pp. 615-636; Sergio BERTELLI, Il corpo del re. Sacralità del potere

nell'Europa medievale e moderna, Firenze, Ponte alle grazie, 1990, pp. 36-54; 87-103. 11

S. BERTELLI, Il corpo..., cit., p. 89. 12

Heinz SCHILLING, Urban architecture and ritual in confessional Europe, in Religious..., cit., pp.7-25. 13

M. ROSA, Diocesi e vescovi nel Mezzogiorno durante il viceregno spagnolo. Capitanata, Terra di Bari e Terra

d‟Otranto dal 1545 al 1714, in Giosuè MUSCA (ed.), Studi Storici in onore di Gabriele Pepe, Bari, Dedalo Libri,

1969, pp. 561-574; Mario SPEDICATO, Il mercato della mitra. Episcopato regio e privilegio dell‟alternativa nel

Regno di Napoli in età spagnola (1529-1714), Bari, Cacucci, 1996. 14

Para a capital napolitana: M. A. VISCEGLIA, Nobiltà, città, rituali religiosi, in EADEM, Identità sociali. La

nobiltà napoletana nella prima età moderna, Milano, Unicopli, 1998, pp. 173-205; Giovanni MUTO, “Apparati e

cerimoniali di corte nella Napoli spagnola”, in Francesca CANTÙ (ed.), I linguaggi del potere nell'età barocca. 1.

Politica e religione, Roma, Viella, 2009, pp. 113-150; Giuliana BOCCADAMO, “Il linguaggio dei rituali religiosi

napoletani (secoli XVI-XVII)”, ivi, pp. 151-166; Marcella CAMPANELLI, Espace sacré et espace urbain dans les

cérémonies religieuses de la Naples baroque, in Bernard DOMPNIER (ed.), Les Cérémonies extraordinaires du

catholicisme baroque, Clermont-Ferrand, Presses Universitaires Blaise-Pascal, 2009, pp.333-348.

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significativo título La lupa sotto il pallio15

, não tratou de maneira profunda este tipo de rituais

no contexto da análise sobre o episcopado de Lecce, embora estivesse atento a outros aspectos

da gestão e consumo do sagrado deste centro político-cultural da província onde mais alta era

a concentração de dioceses de padroado régio. De igual modo procedeu o estudo de Vittorio

De Marco analisando a diocese de Tarento, a mas rica em termos de rendas16

. Neste espaço

submetido à monarquia hispânica foram sobretudo os historiadores da arte e do espaço

urbano, que leram os cerimoniais das entradas episcopais dos centros periféricos como Lecce

ou Gallipoli, analisando em particular os pomposos e preciosos aparatos organizados no

contesto do efémero barroco17

.

O presente contributo procura aprofundar o percurso esboçado sobre as linguagens da

ritualidade política utilizadas na esfera religiosa, examinando os ingressos de uma área

específica do vice-reino napolitano, e apoiando-se num diversificado conjunto de exemplos de

modo a justificar um adequado estudo comparativo, numa região onde foi colocado um

universo episcopal regularmente oriundo de famílias da pequena nobreza ibero-napolitana18

.

Entre este articulado mundo há que destacar os bispos «nativos do reino» pertencentes à

ordem dos clérigos regulares (teatinos) ou seculares, como também - em percentagem mais

reduzida - prelados de origem portuguesa19

.

As fontes para estudar as cerimónias de entrada na diversificada região da Terra de

Otranto são de diferente natureza e finalidade, muitas vezes apresentam lacunas cronológicas

e topográficas20

. No estado actual da pesquisa dispõe-se de dados heterogéneos, recolhidos

15

M. SPEDICATO, La lupa sotto il pallio. Religione e politica a Lecce in Antico Regime, Roma-Bari, Laterza,

1996. 16

Vittorio DE MARCO, La diocesi di Taranto nell‟età moderna (1560-1713), Roma, Edizioni di Storia e

Letteratura, 1988, pp. 150-159; o importante documento encontrado no arquivo privado da familia do prelado

està editado e comentado nas paginas, pp. 323-334, e pp. 154 segs. 17

Vincenzo CAZZATO, Architettura ed effimero nel barocco leccese, in Marcello FAGIOLO e Maria Luisa

MADONNA (eds.), Barocco Romano e Barocco Italiano. Il teatro, l‟effimero, l‟allegoria, Roma-Reggio Calabria,

Gangemi, 1985, pp. 267-282; IDEM, Ingressi trionfali e teatri di morte. Momenti dell'effimero fra Cinque e

Ottocento nella Puglia Meridionale, in M. FAGIOLO, Atlante della festa in Italia, Roma, De Luca, 2008, pp.

360-376; Antonio CASSIANO e Regina POSO, “Il fervore degli arredi”, in Bruno PELLEGRINO (ed.), Storia di

Lecce dagli Spagnoli all‟Unità, Roma-Bari, Laterza, 1995, pp. 658-659. 18

M. SPEDICATO, Il mercato..., cit., pp. 201-203; Gaetano SABATINI, El espacio italiano de la Monarquía

distintos caminos hacia una sola integración, (Actas do congreso internacional Las Indias Occidentales:

procesos de integración en las Monarquías Ibéricas – III Jornadas de Historia de las Monarquías Ibéricas,

Mexico, Colegio de México, 25-27 Setembro 2007), (no prelo). 19

M. SPEDICATO, Episcopato e processi di tridentinizzazione nella Puglia del XVII secolo, Galatina, Congedo,

1990, pp. 27-66; Paola NESTOLA, “«Un Picciolo Ramo dell'Arbore Teatino» tra l'episcopato di Terra d'Otranto in

età viceregnale: distribuzione e sintomatica incidenza”, in Atti del Convegno di studi interdisciplinare Lorenzo

Scupoli (1530-1610) e il suo tempo, Otranto 25-26 settembre 2010, (no prelo) 20

Para os ingressos de Braccio Martelli de 6 Abril de 1553 e de Luigi Pappacoda de 2 de Dezembro 1639:

Cronache di Lecce, Alessandro LAPORTA (ed.), Ed. del Grifo, Lecce, 1991, pp. 18 e 44; para o ingresso de

Fabrizio Pignatelli de 24 Abril 1719: “Distinto ragguaglio del pomposo ricevimento e feste nell'arrivo

dell'illustrissimo monsignor vescovo D. Fabrizio Pignatelli”, Lecce, Tommaso Mazzei, 1719, pp. 2-17; para o

ingresso de Salvatore Spinelli de 1792: Nicola VACCA, Le cronache leccesi di Emanuele M. Buccarelli (1711-

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em crónicas e memórias da cidade, de anónimas relações, de actas da cúria diocesana.

Material relativo a catorze posses celebradas nos principais centros diocesanos com forte

vinculação ao rei: Taranto, Otranto e Brindisi sedes arcebispais régias, além de cidades

costeiras onde residiam representantes do rei; Gallipoli, também diocese costeira sob o

controle da coroa; finalmente Lecce, circunscrição do interior não sujeita ao privilégio de

Carlos V embora considerada o centro político-cultural da Península entre os mares Jónico e

Adriático21

. É necessário um último esclarecimento a respeito da ampla cronologia escolhida:

de todo o corpus documental as relações mais tardias e relativas à segunda metade do século

XVIII serviram para sugerir algumas hipóteses interpretativas dos rituais celebrados a partir

da segunda metade do século XVI e boa parte do século XVII. É esse o arco cronológico

durante o qual este território fronteiriço teve um papel fundamental na defesa do império

espanhol, desenvolvendo uma acção de assinalar e conter as incursões turcas, e também de

espionagem e de informação sobre o que se passava nos espaços do mediterrâneo oriental22

.

Das solenes entradas dos antistites procurar-se-á:

1) reconstruir a especificidade dos diferentes actos, dos topoi que marcavam os

espaços da cidade onde os prelados iriam afirmar os seus poderes;

2) aprofundar o significado simbólico das cruciais etapas que ritmavam as

procissões/cortejos envolvendo toda a comunidade, segundo regras de hierarquia e

precedência.

Será que uma análise focada sobre este aparato estrutural aparentemente frívolo pode

contribuir a tornar presente e visível o poder episcopal? E através de que formas de

1807), in «Rinascenza Salentina», 13, (1934), p. 9; para Taranto: “Relazione dell'entrata di Caetani Cardinale

Bonifacio arcivescovo di Taranto in detta città”, 2 giunho 1613, in V. DE MARCO, La diocesi..., cit., pp. 332-334;

para os ingressos dos arcebispos Alonzo Alvarez & Ossorio de 2 de Lulho 1673, Emanuele De Torres de 21

novembro de 1677, Francisco Ramirez de 1 maio de 1689, Diego de Prado de 1656: Memoria historica

dell'antichissima e fedelissima città di Brindisi del molto rev. Padre maestro Andrea della Monaca carmelitano,

Lecce, Pietro Micheli, 1674, pp. 707, 715-716, Pietro CAGNES e Nicola SCALESE, Cronaca dei sindaci di

Brindisi 1529-1787, R. JURLARO (ed.), Brindisi, ed. Amici della A.De Leo, 1978, pp. 1677 e 1688; pelos

ingressos dos bispos de Gallipoli: Antonio Perez della Lastra, 8 maio 1679; Orontio Filomarino, 8 maio 1700;

Antonio Maria Pescatori, 23 abril 1741: Biblioteca Comunale de Gallipoli (BCG), ms. 37, Memorie di Gallipoli

raccolte dal canonico Bartolomeo Patitari della Chiesa di Gallipoli, 1789, ff. 48 r-49 r; 49 v-50 r; 52 r-56 v; pelo

ingresso dos arcebispos de Otranto: Adarzo de Santander 18 de novembro 1657 e de Ambrogio Piccolomini

1676: Archivio Diocesano di Otranto (ADO), Carte Varie, 3, 1659-1669, Trattato delle sacre cerimonie e di

varie e diverse cose raccolte e scritte da me abate Gioseppe Procale, canonico e maestro di cerimonie della

metropolitana chiesa d'Otranto, ff. 31, 104. 21

M.A. VISCEGLIA, Territorio, feudo e potere locale, Terra d‟Otranto tra medioevo ed età moderna, Napoli,

Guida, 1988. 22

Giuseppe GALASSO, Alla periferia dell‟impero. Il Regno di Napoli nel periodo spagnolo (secoli XVI-XVII),

Torino, Einaudi, 1994; Aurelio MUSI, L‟Italia dei vicerè. Integrazione e resistenza nel sistema imperiale

spagnolo, Cava de’ Tirreni, Avagliano, 2000.

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“consensus” e de distinção entre segmentos sociais23

, além de integração e de auto

representação, pode ser manifestado o poder por parte dos expoentes da pequena nobreza

ibero-napolitana?

Adventus novorum episcoporum: morfologias e topoi de posse

«A 6 de Abril fez-se em Lecce o ingresso de mons Braccio Martelli sob o palio de

ouro finíssimo, o qual palio e o freio da cavalgadura, por uma parte traziam três gentis-

homens [...] e por outra três civis […] e houve controvérsia porque os gentis-homens não

queriam os civis e o dito palio foi saqueado pela infantaria de Lecce »24

.

A sintética crónica da entrada na capital provincial do bispo Martelli, na Primavera de

1553 é actualmente a mas antiga entre aquelas até hoje conhecidas para a área objecto de

estudo. Em poucas sequências, o cronista desenhou os traços mais salientes daquela cerimónia

solene: um acto de refundação da jurisdição episcopal, sublinhada pelas boas vindas públicas

por parte das autoridades locais e pela aclamação da população. Todavia, a cena não referia os

momentos de alegria como sucedia com análogos rituais celebrados no adventus novi

episcopi. A crónica, embora focalizando a atenção sobre Martelli, colocava-o no centro de um

campo de forças delimitadas por símbolos diversos, entre corpos sociais antagónicos e

também despojado da preciosa insígnia de soberania pelo grupo militar que deveria ter

garantido a ordem pública. Nenhuma enfatização da pessoa do neo-eleito, das suas qualidades

individuais e familiares, a não ser a referência à origem geográfica. À primeira vista aqueles

actos irreverentes parecem configurar uma recusa da nova autoridade estrangeira, tanto mais

se se pensar que com este nobre florentino se inaugurava um novo episcopado depois da

longa prelatura do bispo de origem leccese Giovan Battista Castromediano (1535-1552)25

. Na

realidade a escolha do prelado toscano tinha sido calibrada: uma dádiva pela fidelidade

demonstrada por um bispo de provada experiência que havia participado nas primeiras

sessões conciliares, pondo-se a favor do imperador. Com a nova nomeação favorecida pelo

imperador Carlos V estabelecia-se uma importante troca na escolha da autoridade eclesiástica:

uma selecção não feita com os critérios estritamente orgânicos dos equilíbrios internos dos

cónegos da Sé de Lecce, mas segundo as formas de recrutamento episcopal dispostas de

maneira cada vez mais calculada entre a coroa espanhola e a cúria romana. Embora não

23

Pierre BOURDIEU, “Sur le pouvoir symbolique“, AnnalesESC, 3, (1977), pp. 405-411; Idem, O Poder

simbólico, tradução Fernando Tomaz, Colecção Memória e Sociedade coordenada por Francisco Bethencourt e

Diogo Ramada Curto, Lisboa, Difel, 1989. 24

Cronache di Lecce..., cit., p. 18. 25

P. NESTOLA, I grifoni della fede. Vescovi-inquisitori in Terra d‟Otranto tra „500 e „600, [Apresentação de M.

SPEDICATO e J.P. PAIVA], Congedo, Galatina, 2008, pp. 143-159.

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inserida no plano da geografia diocesana de padroado régio, Lecce constituía uma das mais

importantes cidades vinculadas ao rei, particularmente controlada pela corte napolitana,

depois das desordens ali sucedidas, provocadas pela deflagração de algumas heresias. Sede de

importantes ofícios periféricos como o tribunal régio, o extraordinário capital demográfico de

25000 habitantes da segunda metade do século XVI contribuía para conotar a cidade como

centro de primeira ordem, embora com traços esfumados da fisionomia do seu episcopado:

uma autoridade sem rosto e sem voz, e da qual são pouco evidentes os papéis e as formas de

prestígio. O ingresso de Martelli poderia constituir uma prova ulterior da debilidade das

funções episcopais, um acto frágil de advento ao poder, violado por momentos de tensão que

forneciam uma imagem caótica da cidade. Não obstante isso, aquelas violentas acções

funcionavam como aglutinadoras sociais, estabelecendo relações recíprocas e tornando-as

visíveis através de multíplices detalhes. Há que sublinhar, com efeito, os emblemáticos

acessórios do rito processional como o precioso baldaquino e os freios da cavalgadura; os

heterogéneos actores da animada cena, expressões de latentes rivalidades juridico-sociais; a

agressividade de um grupo profissional para tomar posse de um objecto, o qual, já em

precedência tinha sido elemento de discórdia. Além disso, o contacto físico com aparatos que

tinham uma forte valência de legitimação constituía um atractivo sinal de afirmação dos

poderes locais. Embora fosse uma posse momentânea do símbolo sagrado da soberania, era

um acto através do qual as autoridades manifestavam um papel de prestígio no interior da

comunidade, participando activamente no rito e comunicando um sinal submetido, de todas as

formas, à descodificação e interpretação da colectividade no seu conjunto.

Os acompanhantes eram, com efeito, os representantes dos grupos sociais dominantes

que contendiam pelo importante cargo de presidente do governo local26

. No meio destes

expoentes do poder civil, desfilavam os representantes das famílias mais ilustres da cidade

que procuravam conseguir lugares preeminentes no oligárquico centro eclesiástico, isto é, o

cabido da catedral. Os componentes do governo local acompanhavam a entrada segurando as

varas do pálio do bispo, suportando de maneira equilibrada o precioso símbolo da sua

autoridade, e prendendo o freio da sua cavalgadura. Desta forma comandavam e

disciplinavam o próprio andamento do bispo que não procedia sem governo ou de maneira

autónoma. Para quantos conseguiam ler e decifrar aquele gesto ritual, era clara a alusão ao

importante papel que tinham na acção.

Para além de tudo isto, sabemos que o erudito bispo florentino se tinha preocupado em

cumprir todas as normas previstas pela tomada de posse da nova diocese avisando o seu

26

Ivi, pp. 187-188.

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rebanho da sua chegada27

, diferenciando-se assim do bispo de Gallipoli, Della Lastra, que se

apresentou incógnito. Não sabemos, porém, se pronunciou palavras de regozijo análogas às

do erudito canonista português, oriundo de Guimarães, Agostinho Barbosa28

. Este, por

proposta do soberano Felipe IV, foi nomeado a 26 de Fevereiro de 1649, bispo da pequena

dioceses de Ugento29

, sujeita à metropolia de Otranto. Depois da sua consagração (a 5 de

Abril de 1649), na longa carta pastoral enviada ao clero e à população diocesana, explicitava

quais eram as funções que o esperavam na qualidade de pastor solícito e vigilante – embora

“pusilânime” – daquele rebanho, chamado a cooperar demonstrando-se submisso30

. Um tom

humilhe evidente também num passo onde o erudito prelado circunscrevia o âmbito espacial

da sua acção. Provavelmente aludindo à situação de fronteira da circunscrição pela qual tinha

sido nomeado, o lusitano dizia: «Reconheço o peso do cargo recebido e não nego a minha

pusilanimidade. Por isso, pela caridade de Cristo vos que estais no limiar das virtudes

estendeis a mão da vossa oração a mim periclitante»31

.

Antes de chegar à sua diocese, num contexto de denúncia pela corrida dos candidatos

aos benefícios mais ricos, Martelli tendo temporizado para reclamar o subsídio caritativo que

lhe era devido32

, predisponha o novo ordinário a não ser visto como particularmente

interessado nas rendas do novo bispado. Apesar desta boa fama, a violenta apropriação

organizada pela infantaria constituía distinto momento do ritual que é representado por outros

co-protagonistas da cena. Este extraordinário momento de depredação desenrolado por uma

específica componente social era um gesto sintomático e que se configurava como uma fase

de desordem sobre o qual voltaremos nas próximas páginas.

De momento há que evidenciar que a incisiva crónica não dava conta plena de uma

miríade de outros detalhes que contribuíam para acreditar a tomada de posse do prelado na

nova diocese. Não são ditas por exemplo algumas normas de um cerimonial que, como foi

justamente evidenciado, se iniciava muito antes da chegada à diocese com a descrição da

viagem empreendida em direcção ao bispado33

. No caso do ingresso de D. Frei Miguel de

Bulhões, na diocese de Grão Pará (1749), por exemplo, mais de metade da descrição é

27

Archivio della Curia Arcivescovile di Lecce, (ACAL), Conclusioni Capitolari, mazzo I, libro I, (1552-1586),

f. 10. 28

Fortunato DE ALMEIDA, Barbosa Agostinho, in Dictionnaire d'Histoire et Geographie Ecclesiastiques, v. 6,

1937, Paris, Librairie Letouzey, pp. 664-665. 29

Arquivo Segreto Vaticano (ASV), Processus Datariae, vol. 28, ff. 71r- 84 v. 30

Pastoralis Solicitudinis Sive De Officio & Potestate Episcopi...Augustini Barbose, Lugduni, Anisson &

Possuel,1724, pp. 31-32. 31

«Agnosco pondus impositi muneris, nec diffiteor imbecillitatem meam. Quare per Christi charitatem

periclitanti mihi orationis vestrae manum tendite vos, qui in virtutum littore statis», ivi, p. 31. 32

ACAL, Conclusioni Capitolari, cit., f. 10. 33

J.P. PAIVA, “O Cerimonial...”, cit., p. 124.

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dedicada à narrativa das peripécias da viagem marítima34

. Também por via terrestre, da

mesma maneira, eram movimentadas as etapas e os momentos que cadenciavam as jornadas

do percurso, durante o qual a caravana episcopal atravessava territórios submetidos à

jurisdição de bispos metropolitas ou de poderes concorrentes, participando em manifestações

de boas vindas.35

.

Nestas primeiras fases já se vislumbra uma espécie de ritual de caridade entre bispos,

que evidenciava as cortesias e a urbanidade nas relações entre componentes do mesmo corpo,

ou entre comunidades e representantes de uma específica hierarquia social. Argumentos esses

tratados entre o final do século XVII e princípio do XVIII também por Pompeo Sarnelli, bispo

de Bisceglie (uma diocese do Norte de Apúlia), o qual dedicou um capítulo inteiro a este

tópico na Della fraterna carità che dev'essere tra' vescovi36

. No caso em estudo da província

no Sul de Apúlia, sinais desses exemplos edificantes podem ser a recepção feita ao exponente

da pequena nobreza, o arcebispo Gaetano Coscia, durante a sua viagem para chegar a Otranto

em 163537

. Na paragem em Lecce, o sufragâneo Spina e a cidade, receberam o metropolita

teatino oferecendo-lhe um precioso paramento com as armas da cidade e do nobre prelado que

foi doado à Virgem38

. Também na viagem de Fabrizio Pignatelli (1719) para Lecce, ou de

Antonio Maria Pescatori (1741) para Gallipoli, os itinerários foram cadenciados pelas

homenagens feitas nas cidades da malha diocesana setentrional da península otrantina39

. Um

específico sinal de concórdia pode ver-se, ainda no que passou em 1666 entre outro arcebispo

de Otranto e o suo sufragâneo titular de Castro, diocese esta não submetida ao padroado régio.

Em particular o metropolita espanhol Gabriel Adarzo de Santander deu ao bispo Francesco

António de Marco, «licença por sua benignidade de abençoar a comunidade, de levar a

mozetta e de fazer outros actos bispais e de cantar missa pontifical»40

, permitindo-lhe ainda

sentar-se debaixo do baldaquino erigido num lugar de prestígio na catedral. Cumprido depois

da nomeação do bispo oriundo da cidade de Otranto, e atestado com todas as concessões

feitas a um prelado de grau inferior, a cerimónia ia ser registada no manual do mestre de

cerimónias Procale, o qual fazia também menção a outra visita sucessiva do sufragâneo,

oficiada segundo as regras do Ceremoniale Episcoporum41

. As fórmulas de homenagem mais

34

Ivi; IDEM, “Etiqueta...”, cit., p. 81. 35

Ibidem, p. 125. 36

P. SARNELLI, Lettere Ecclesiastiche, Venezia, Antonio Bortoli, 1716, t. 3, lettera XV, pp. 42-44. 37

Cronache di Lecce..., cit., p. 44. 38

P. NESTOLA, “Giochi di scala provinciale e liturgie di potere nella «fedelissima» Lecce del 'secolo di ferro'”, in

Mediterranea. Ricerche Storiche, 17, (2009), pp. 517-542. [em linha] [Consult. 8 Mar. 2011], disponível em:

http://www.storiamediterranea.it/public/md1_dir/r1443.pdf 39

“Distinto ragguaglio...”, cit., pp 4-5; BCG, ms. 37, cit. ff. 52v-53r. 40

ADO, Carte Varie, cit., f. 36. 41

Ibidem.

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enfáticas e colectivas, no entanto, eram prestadas nas imediatas adjacências do “rebanho”,

pelos representantes das instituições e da nobreza feudal, além dos demais diocesanos,

segundo regras directamente proporcionais à importância do seu estatuto42

. No caso das

heterogéneas fontes à disposição podemos individuá-las excepcionalmente na entrada de 1613

do cardeal Bonifácio Caetani, o qual, nomeado por Taranto, foi recebido no limite do seu

território por uma solene comitiva, no dia anterior à sua chegada. Essa deslocação à sé mais

rica constituiu, além disso, uma promoção para o prelado titular da diocese calabrese de

Cassano, também de padroado real43

. Mais tardias são, ao contrário, as descrições das

entradas em Lecce de Fabrizio Pignatelli, e de Oronzo Filomarini ou de Antonio Pescatori em

Gallipoli. Minuciosas no delongarem-se sobre as etapas preliminares, nos circuitos, nos

acontecimentos e nas pessoas encontradas, essas memórias alinham-se crono e

tipologicamente com as encontradas para outros territórios do espaço imperial ibérico.

O sintético ingresso do bispo florentino Martelli é interessante pelo menos por ser

muito anterior à codificação estabelecida por Roma com o Cerimoniale Episcoporum44

. Esse

tratado normativo destinado a ter uma difusão Urbi et Orbi, editado no pontificado de

Clemente VIII (nome idêntico ao dos papas que tinham sido enfaticamente desmontados na

respectiva cerimónia de posse)45

, foi tomado como modelo também no manual manuscrito

redigido na segunda metade do século na sé metropolita de Otranto. Uma memória

particularmente focalizada sobre o verdadeiro protagonista da cena - o bispo - e de tudo o

necessário para a sua digna entronização46

.

Na segunda metade do século XVI o rito em Lecce, mais do que sobre o novo bispo,

concentrava a eficácia simbólica a favor das autoridades locais, identificadas pelos seus

nomes. Além disso não tinha um quadro de referência territorial concreto quer pelas etapas da

viagem, quer pelos lugares urbanos. Com efeito, os diversos actores moviam-se num espaço

abstracto do território, intra moenia, que naquela altura se compunha de vários edifícios civis

e eclesiásticos. Nem sequer a Porta Reale, o triunfal acesso (re)edificado em honra do

imperador Carlos de Habsburgo, fazia de cenário àquele advento presenciado pelo desfile dos

exponentes do governo local. Dedicado a Santo Giusto, mas em 1548 submetido a um

processo de decalage patronal, este antigo topos devocional constituía um concentrado de

simbólicos sinais e uma expressão de interacções vinculativas de afecto e lealdade para o

42

J.P. PAIVA, “O Cerimonial...”, cit. p. 124. 43

M. SPEDICATO, Il mercato..., cit., p. 86; V. DE MARCO, La diocesi...,cit., pp. 151 segs. 44

Sobre o Cerimoniale ver: J.P. PAIVA, “O Cerimonial...”, cit. p.122. 45

Ver a entrada Possesso, que faz referência a Clemente V e Clemente XIV, in G. MORONI, Dizionario..., cit.,

vol. 54, p.294. 46

ADO, Carte varie, cit., particularmente ff. 9 e segs.

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triunfante imperador47

. Representação identitária por nada efémera sobre a qual a cidade

«fidelíssima» queria contratar e conseguir particulares privilégios48

, também nesse espaço

fronteiro o triunfal arco com as duas colunas binadas era coroado pelo frontão decorado com

o emblema habsburgico da águia com duas cabeças. As decorações fitomórficas dos capitéis

aludiam, além disso, à flora local e, em particular a romã, disfarçava outros sinais da relação

estabelecida com o soberano que havia reforçado o sistema defensivo costeiro atenuando os

perigos turcos. Na economia do rito religioso, no entanto, aquele monumental acesso abria-se

a outros significados. Mais que juntar o eixo viário das capitais Roma e Nápoles, onde se

fazia a confirmação do novo eleito, aquele limes civitatis referia-se ao passo evangélico

associado ao munus pastoral. É forte o simbolismo na advertência do evangelista João (10,7)

«aquele que não entra pela porta no redil das ovelhas, mas sobe por outro lugar, é ladrão e

salteador. Mas aquele que entra pela porta é o pastor das ovelhas». Uma viva repreensão onde

era exaltada a imagem do bom pastor, vindo não como um ladrão para roubar e destruir.

Momento sacro e profano, funções civis e religiosas, na segunda metade do século XVI não

se conjugavam ainda concretamente nesta fase do segmentado rito de passagem intra moenia.

Uma fusão evidente no sucessivo ingresso, celebrado em Dezembro de 1639, em

ocasião do advento do bispo napolitano Luigi Pappacoda. Também ele foi trasladado de outra

diocese: uma ascensão social pelo benjamim da nobreza feudal, que passava de uma sé menor

(Capaccio) excluída da geografia de padroado régio, para o principal bispado da província

meridional de Apúlia49

. A sua nomeação sucedia ao longo episcopado de Scipione Spina

(1591-1639), uma longa prelatura manchada pela acção hegemonizante desenvolvida na

cidade pelos jesuítas e teatinos50

. A crónica da entrada de Pappacoda é rica em pormenores

quer no tocante ao rito de entronização, quer aos acontecimentos dos dias seguintes à morte

do antecessor e das cerimónias de propiciação que anteciparam o advento do neo-eleito. A

profusão de detalhes das fases sucessivas do rito concorria de maneira evidente a reactualizar

a imagem episcopal e o seu espaço de acção. Uma espécie de reafirmação da sua presença

diante do episcopado antecedente, como também perante outros corpos sociais que

participavam no evento51

. Neste caso, para além disso, dava-se outro impulso à imagem do

ordinário de Lecce sobre a hierarquia eclesiástica metropolitana (Otranto, Taranto e Brindisi)

de nomeação régia, com origem social na pequena nobreza napolitana, além de serem

47

P. NESTOLA, “Oltre il limite: identità e distinzione socio-territoriale a Lecce a metà '500”, L‟Idomeneo, 10,

(2008), pp. 119-129. 48

EADEM, “Giochi...”, cit., pp. 529-527. 49

ASV, Processus concistoriales, vol. 33 A, 2, ff. 465 r- 480 r (a. 1635); ivi, vol. 37, ff. 14-32, (a. 1639). 50

M.A. VISCEGLIA, Territorio..., cit. pp. 288 sgs; M. SPEDICATO, La lupa..., cit., capp. III-IV. 51

J.P. PAIVA, “Etiqueta...”, cit., p. 86.

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prelados da mesma ordem religiosa. Antes da chegada de Pappacoda, os arcebispos teatinos

Coscia e Surgente aproveitaram o período de sede vacante para presidir a importantes eventos

religiosos no principal centro da Terra de Otranto52

. Esta presença de antístites regulares

causava confusão entre a população de Lecce, pois podia significar uma forma de dominio

exclusivo dos teatinos sobre a cidade, pois eles já tinham o “monopólio do sagrado” e das

relíquias da santa padroeira da urbe. Portanto, na entrada de Pappacoda, uma mensagem

muito forte foi transmitida: uma espécie de ratificação e um memento em diferida pela nova

autoridade eclesiástica que iria trasladar-se na cátedra não sujeita juridicamente aos

mecanismos de escolha régia, mas que constituía o centro político-cultural da província.

Como já foi salientado noutro contributo, uma vez superada a limiar passagem, isto é a

porta da cidade, foi ali que o prelado napolitano se ajoelhou perto do altar construído para a

ocasião, parando naquele sintomático lugar e emblemático espaço da presença real53

. Por

outro lado, também na sede de Gallipoli a porta de acesso à cidade era fortalecida

simbolicamente com arcos efémeros cheios de inscrições para celebrar este momento, no qual

a Igreja se tornava propriamente sponsa episcopi54

. No curso do advento do bispo Della

Lastra, por exemplo, foi organizada uma espécie de representação onde um jovem sobre um

leito nupcial, qual metáfora do zelo, convidava o bispo a entrar «para que não se

deteriorassem os costumes pela ausência do seu pastor e prelado»55

. Um outro reflexo do

passo evangélico de S. João (10,8) que distinguia o bom pastor do mercenário, o qual

«quando vê chegar o lobo abandona as ovelhas e foge. Então o lobo ataca e dispersa as

ovelhas. O mercenário foge porque trabalha só por dinheiro, e não se importa com as

ovelhas».

Diferente, por sua vez, a memória desta crucial fase de acesso à cidade de Brindisi,

que evidencia sobretudo o momento no qual, antes de entrar no circuito urbano, o bispo tinha

que parar na igreja perto da porta, respeitando uma antiga tradição56

. Aquele edifício, em

tempos incluído no perímetro das muralhas urbanas, gozava da prerrogativa de igreja catedral

e tinha um valor simbólico pelo facto de custodiar as relíquias do protobispo S. Leucio, o qual

52

Sobre esta presencia teatina na cidade de Lecce dos arcebispos Gaetano Coscia (1635-1655) e Francesco

Surgente (1638-1640), P. NESTOLA, “Giochi...”, cit., pp. 28 sgs; além destes teatinos, também na cátedra de

Taranto havia uma outra activa figura da mesma ordem: Tommaso Caracciolo (1637-1663), expoente de uma

das mais prestigiosas famílias do vice-reino. Sobre este assunto: G. MUTO,”La nobleza napolitana en el contexto

de la monarquía hispánica: algunos planteamientos”, in Bartolomé YUN (dir.), Las redes del Imperio. Élites

sociales en la articulación de la monarquía hispánica (1492-1714), Madrid, Marcial Pons Historia, 2009, pp.

135-171. 53

P. NESTOLA, “Giochi...”, cit., pp. 28. 54

Ver: G. Zarri, Recinti..., cit. pp. 282-284; D. Rando, “Ceremonial...”, cit. pp. 41-45. Por Gallipoli, BCG ms.

37, cit., f. 48 v. 55

Ibidem. 56

P. CAGNES e N. SCALESE, Cronaca..., cit. pp. 1677 e 1688.

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tinha reevengelizado o litoral adriático57

. Uma paragem do ritual feita por todos os arcebispos

brindisinos que, como já dito, eram de nomeação régia e prevalentemente de nação espanhola.

Exemplificativos os cerimoniais de Alonso Alvarez Barba & Osorio (1673), de Emanuel de

Torres (1677), e particularmente do dominicano Francisco Ramirez (1689)58

. Todos chegados

à sé, contrariamente a frei Diego de Prado (1656) que não conseguiu receber nem sequer a

consagração papal. Segundo o cronista brindisino, embarcado desde Espanha para ir a Itália

«foi pela estrada assaltado por uma forte tormenta»59

. Sorte análoga à de outros bispos

regulares do império português que se arriscaram por terras distantes e com poucas rendas60

.

Por outro lado, uma nota do manual escrito pelo maestro de cerimónias da catedral de Otranto

era particularmente atenta a esta incógnita da viagem, sublinhando como, sabida a notícia da

partida do bispo desde Espanha para Roma, os sacerdotes nas celebrações da missa tinham

que rezar pela feliz viagem do neo-eleito61

.

Uma vez chegado perto do território de jurisdição, e superada a porta da cidade, uma

nova etapa marcava o triunfal advento. Nesta fase o bispo seguia debaixo do pálio

acompanhado pelo honorífico cortejo em direcção à catedral, montando uma «hacaneia

[ajaezada com] malha branca de prata»62

. Este era um rito diferente do seguido nas entradas

dos humildes apóstolos, muitas vezes chegados a pé aos principais centros de evangelização63

.

Também os primeiros prelados de Taranto e de Brindisi, respectivamente o irlandês S.

Cataldo e S. Leucio, nativo de Alexandria de Egipto, tinham desembarcado a pé64

. Os

antistites chegados desde o mar diferenciavam-se por isso do primeiro bispo de Lecce, S.

Oronzo, o qual era indígena. É significativa, neste sentido, a pintura (fig. 1; legenda: Giovanni

Andrea Coppola, S. Oronzo Vescovo, óleo, Lecce, catedral, 1656) representando o santo

prelado num itinerário pedonal, comissionada em 1656 pelo bispo Pappacoda65

. Voltaremos a

este magnífico texto figurado nas próximas páginas.

57

Memoria..., cit., pp. 263-264. 58

P. CAGNES e N. SCALESE, Cronaca..., cit., p. 1688. 59

Memoria..., cit., pp. 707-708. 60

J.P. PAIVA “Origini e carriere vescovili nel Portogallo Moderno: una visione comparata”, in Colòquio

Internacional, A Igreja e o clero português no contexto europeu, Lisboa, Centro de Estúdio de História

Religiosa, Universidade Católica Portuguesa, 2005, pp. 277-291, p. 280; ver também o caso especifico do bispo

de Goa frei Manuel Teles de Brito no curso da viajem de 1633, Idem, Os bispos..., p. 110. 61

ADO, Carte Varie, cit., f. 129. 62

BCG, ms. 37, cit., 48v. 63

D. RANDO, “Ceremonial...”, cit., pp. 34-40. 64

Carlo DALL’AQUILA (ed.), Cronotassi, iconografia e araldica dell‟episcopato pugliese, Bari, Regione Puglia

Assessorato alla Cultura, 1984, pp. 286 e segs. 65

Sobre esta pintura: Lucio GALANTE, Clero e nobiltà nelle vicende della pittura, in Storia di Lecce..., cit., pp.

589-629.

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Fig. 1: Giovanni Andrea Coppola, S. Oronzo Vescovo, óleo, Lecce, catedral, 1656.

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De momento, diversamente da imagem, a descrição seiscentista apresenta um percurso

em prevalência equestre entre as vias de Lecce, ao contrário de Taranto e Brindisi, onde o

cortejo era feito parte a pé e parte cavalgando. Contudo, cada ingresso era um iter que não ia

de imediato para a catedral. Utilizando a expressão de Bertelli, o cortejo avançava para o

edifício fulcral do poder episcopal segundo um caminho de «reconhecimento etológico» do

território: ou seja, um circuito segmentado e diversificado, em vez de uma percurso directo ou

de «penetração», durante o qual o prelado destinava à comunidade sinais da sua benéfica

acção. A bênção, por exemplo, era um acto entre os mais importantes de entre os distribuídos

pelo ordinário, representando um dom colectivo capaz de sanar males físicos e espirituais66

.

Nem sempre nas crónicas emerge esta forma de prodigalidade imaterial para a multidão

presente, ao contrário do que se lia nos manuais, particularmente atentos àqueles gestos

simbólicos, distribuídos por uma precisa articulação das mãos e dos dedos. Porém, aquele

acto podíamos considerá-lo uma poderosa forma de troca com a cidade, convidada a dar a boa

vinda ao bispo em maneira decorosa, de forma que «as vias sejam limpas […] com flores, e

com folhas dispersas em sinal de alegria»67

. Na cerimónia de Lecce da primeira metade do

século XVII, essa reticência do cronista para os actos do prelado deve-se, provavelmente, ao

facto de que o hóspede tinha que mostrar-se rígido e imóvel segundo posturas hieráticas

típicas das solenes marchas triunfais dos imperadores68

. Uma sucessiva descrição da entrada

de Spinelli (1791) mostra, ao contrário, uma particular atenção conferida às posições que

confirmavam e ostentavam sinais de soberania além de sacralidade.

Não só este acto fortalecia a função do bispo como defensor civitatis. Havia outras

simbologias que cumpriam essa função durante o trajecto da comitiva até à catedral. O

percurso de Pappacoda seguia o itinerário mais agradável, circundando os palácios e as

residências dos concorrentes e antagónicos poderes locais, como as dos jesuítas e teatinos, o

governador régio, até a chegar ao coração comercial, a praça onde era tributada ao bispo uma

homenagem pirotécnica. Era um roteiro pelas mais significativas riquezas artísticas da cidade

destinado a impressionar o forasteiro, e em simultâneo um tour durante o qual como que se

resacralizavam processionalmente os lugares referidos, expressões petrificadas dos elevados

patrimónios acumulados pelas ordens religiosas, pelas instituições civis e por famílias

aristocratas, mas também espaços onde se concentravam os tráficos de noticias e de

mercadorias. Essa sacralização do território, que podia configurar-se conflitualmente durante

66

S. BERTELLI, Il corpo..., cit. pp. 66-67, nesta reconstrução o autor baseia-se sobretudo no estudo do

antropólogo Clifford GEERTZ, Local Knowledge. Further essays in Interpretative Antropology, New York, Basic

Books, 1983; sobre o especifico gesto ver: J.P. Paiva,” A liturgy...”, cit., p. 147. 67

ADO, Carte varie, cit., f. 31. 68

S. BERTELLI, Il corpo..., cit., p. 85.

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os anos do governo episcopal, desenvolvia ainda uma função protectora análoga à das

procissões do santo padroeiro da cidade. Era no curso daqueles cortejos devocionais que se

podiam esconjurar uma série de potenciais perigos que nas diversas conjunturas ameaçavam a

actividade produtiva e a ordem social de uma comunidade69

. Interessante o percurso do

metropolita de Otranto que atravessava a rua comum e se encaminhava desde os armazens até

à porta daquela cidade portuária. Também nesse caso o palco era erigido perto do perímetro

das muralhas simbolicamente reforçado70

. Um aspecto que em Taranto era manifestado com

outras construções efémeras, mandadas erigir pelos quatro bairros da cidade (pettaggi),

chamados Baglio e S. Pietro (onde residiam os grupos sociais mais elevadas), e Torre Penna e

Ponte (habitados por pescadores, artesãos e pequenos comerciantes)71

. Naquela cidade a

explosão de júbilo chegou a tons paroxisticos por causa do grau cardinalício de Caetani. Na

sua entrada, não só o arcebispo encontrou um arco que indicava o emblema da família, como

a população urlava em uníssono «Papa, Papa»72

. Por outro lado, antes de entrar na galeria de

metonímicas metáforas, o cardeal tinha recebido obediência por parte do clero, no vizinho

convento agostiniano de S. Maria de Costantinopoli, uma forma de colaboração com as

ordens regulares da cidade, que atenuava, simultaneamente, o poder de outros corpos

concorrentes na esfera civil e religiosa. Ao contrário do titular da sé mais rica, o arcebispo de

Brindisi recebia aquela forma de homenagem na catedral: um pleno acto de submissão que

explica a particular atenção do bispo Andreas de Ayardis em patrocinar a reedificação do coro

em madeira (1591-1595), decorado com imagens do santo bispo da tradição local (S. Leucio),

além do santo apóstolo (S. André) homónimo do prelado mecenas73

.

O circuito de actos e lugares que marcavam o campo de acção jurisdicional e o

território episcopal tinha uma diferente ênfase em Gallipoli. As manifestações de alegria

como fogos e explosão de armas eram tributados ao novo prelado perto do presídio militar,

onde iria fazer-se explodir uma «salva real». Essa cerimónia de derivação secular sublinhava

a função de fortaleza militar da cidade74

, apesar de o ritual se distinguir por uma forma mais

efémera de manifestações a respeito de outros centros estratégicos «fidelíssimos», pela

69

Mario SENSI, Santuari, culti e riti “ad repellendam pestem” tra medioevo ed età moderna, in Sofia Boesch

GAJANO e Lucetta SCARAFFIA (eds.), Luoghi santi e spazi della santità, Torino, Rosemberg & Sellier,1990, pp.

135-149; pela área de riferimento ver: M. SPEDICATO (ed.), Santi patroni e identità civiche nel Salento moderno

e Contemporaneo, Galatina, Edipan, 2010; par um contexto europeu e, em menor escala, americano: H.

SCHILLING, Urban architecture, cit., pp. 20-23. 70

ADO, Carte varie, cit., f. 132. 71

“Relazione...“, cit., p. 69. 72

Ibidem. 73

R. JURLARO, Il coro della cattedrale di Brindisi: la scultura figurativa dei secoli XVI e XVII in Puglia,

Brindisi, Lions Club, 1969. 74

Sobre a derivação desde o mundo secular deste e de outros sinais e formas decorativas: J. P. PAIVA, “O

Cerimonial...”, cit., pp. 138-141.

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extraordinária homenagem musical que era consagrada aos prelados, tal como sucedeu nos

casos das entradas do teatino Orontio Filomarino e de António Maria Pescatori75

. Em Taranto

a boa vinda pirotécnica era manifestada perto de um quartel militar, espaço do poder régio, e

expressada também por outros símbolos daquela autoridade como o governador, cujas

disposições serviam para que não se efectuassem actos capazes de perturbar a cerimónia76

.

Neste quadro celebrativo, os fogos, os repiques de sinos e outras manifestações visuais ou

sonoras sacralizadas, apesar de serem expressões de homenagem e de louvor dos quais nem

sempre é possível reconstruir o significado e a morfologia, concorriam a conotar os topoi da

cartografia urbana no curso do rito77

.

Além dos momentos de alegria, o protagonista do acto era submetido também a outros

significativos gestos e movimentos de acompanhamento ritual. De facto, a entrada terminava

numa festa de cariz profano78

. Nesta última fase o prelado desaparecia de cena, uma vez que

se havia concluído a fase mais sacralizada: a entrada na catedral. Neste espaço fechado e

privado, também muito fortes eram as expressões do seu preeminente status. Além da

homenagem feita pela componente eclesiástica, outro sinal da autoridade episcopal era a

indulgência plenária, concedida a todos os que tivessem cumprido o sacramento da confissão

e comunhão. Um acto previsto no cerimonial e registado no manual de Otranto em ocasião da

entronização do prelado olivetano Ambrogio Piccolomini (1676)79

.

Antes deste momento particularmente sacralizado, no curso das últimas duas fases

litúrgicas, entre o cortejo processional e a chegada no principal edifício urbano (a Sé

catedral), novos actores compareciam na cena dando um novo curso ao rito.

No advento de Martelli, como já visto, a insígnia do bispo foi depredada pela

infantaria: um saque que se encontra também no percurso do ingresso de Caetani, e em outras

sucessivas, como em Gallipoli e Otranto. Na metrópole como deixa intuir o manual do

Procale, eram os oficiais a manter a ordem, de maneira que, «ninguém tinha a coragem de

deter o despedaçar o baldaquino»80

. Também em Taranto a anónima crónica registava uma

passagem da liturgia na qual essa forma de roubo foi evitada: «perto da catedral foi removido

o palio por uma janela por alguns que estavam ali para este efeito, e foi ordenado à cidade,

para que não se despedaçasse, ou fosse roubado, e no dia seguinte foi levado o dito palio ao

75

BCG, ms. 37, cit., ff. 49v, 55r. 76

“Relazione...“, cit., p. 333. 77

Relativo à visita pastoral de 1743 pelo bispo de Rio de Janeiro, ver o caso do roubo do badalo examinado por

Iris KANTOR, “Entradas Episcopais na Capitania de Minas Gerais (1743 e 1748): a transgressão formalizada”, in

Festa, Cultura..., cit., pp. 169-180, pp. 175-177. 78

J.P. PAIVA, “A liturgy...”, cit., pp. 149-150. 79

ADO, Carte Varie, f. 28. 80

Ibidem, f. 14.

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Senhor Cardeal em nome da cidade dentro de uma cesta de prata de valor de 200 ducados, e

foi doado também com a cesta a Sua Senhoria Ilustríssima»81

. Seguramente um signo de

urbanidade por aquele elaborado dom que entrava em competição com o saque ritual, e ainda

era consignado segundo regras compassadas e explicitando a estima monetária82

; expressando

um sintoma do polissémico rito a cujo valor económico era muito mais baixo do que o

simbólico.

Outros aspectos se podem evidenciar do excepcional momento de razia posto em cena

também em Roma, como noutras cidades setentrionais da Península Itálica83

. No caso dos

principais centros da geografia diocesana de Terra de Otranto podemos destacar que o ritual

se desenvolvia na praça anterior à catedral, como confirma a crónica do ingresso de

Pappacoda, ou do bispo de Gallipoli. Na primeira metade do século XVII quem segurou o

pálio foi um cidadão de Lecce; no centro portuário, numa altura mais tardia (1741), foi a

multidão a romper o silêncio da cerimónia do ingresso de Pescatori na catedral. Estes actos

não eram só concentrados sobre os solenes aparatos cerimoniais com uma forte carga

jurisdicional e dos quais podiam beneficiar uma ou mais pessoas. Tal como o papa também o

corpo do bispo podia ser submetido a formas de entusiásticas agressões. Pappacoda, por

exemplo, uma vez chegado à catedral, teve que refugiar-se num confessionário para fugir ao

assalto da multidão, dissimulando simultaneamente o seu desalento diante dos actos

desordenados e indisciplinados que se tinham verificado. Em Tarento, intentaram evitar esta

desordem de maneira que o governador «antes que chegasse o senhor Cardeal à porta da

igreja, e para evitar um desencontro foi removida do cavalo Sua Senhoria Ilustríssima e

entrou numa igreja de monjas diante da catedral, […] e logo entrou com sossego a pé na sua

igreja»84

.

Mais do que um acto de direito de jus spolii exercitado pela comunidade como

sugerido num estudo anterior85

, com um olhar sincrónico mais aprofundado e que tinha em

conta das especificidades taumatúrgicas atribuídas aos «objectos metonímicos», é possível

ligar esta necessidade de posse de pedaços ou de fragmentos impregnados de sacralidade com

os gestos análogos feitos para tomar posse das relíquias de quantos eram considerados «santos

vivos»86

. Como sublinhou Jean Michel Sallmann, focando o exemplo do jesuíta Bernardino

81

Relazione..., cit., p. 333. 82

Natalie ZEMON DAVIS, Il dono: vita familiare e relazioni pubbliche nella Francia del Cinquecento, Milano,

Feltrinelli, 2002. 83

Ver nota 10. 84

“Relazione...”, cit.. 85

P. NESTOLA, “Giochi...”, cit., p. 533. 86

J. M. SALLMANN, “I poteri del corpo santo: rappresentazione e utilizzazione (Napoli secoli XVI-XVIII)”, in

IDEM, Forme di potere e pratica del carisma, Napoli, Liguori ed.,1984, pp. 82 sgs.; IDEM, Santi barocchi.

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Realino, morto em Lecce, em 1616, depois da morte do eclesiástico o seu corpo foi saqueado

pelos devotos. Também estes eram gestos indisciplinados que, quer a nível romano, quer

periférico, não foi simples disciplinar. Por isso, quando na entronização da diocese a ênfase

popular explodia, por várias vias se tentavam controlar este tipo de actos que se

desencontravam com os ditames de decoro tridentino87

. Eram, além disso, gestos que

contribuíam a depauperar o património sagrado da sé diocesana.

Não sabemos se este último específico objectivo estava no articulado programa de

Pappacoda, muito atento a propor visualmente o acto institutivo do poder episcopal na sua

cidade, durante o seu longo governo (1639-1670). Como justamente foi evidenciado em

diversos estudos, o prelado napolitano aproveitou o facto de a Terra de Otranto não ter sido

tocada pela epidemia de peste da segunda metade do século XVII, utilizando esse favorável

ensejo para impor o santo bispo como patrono da cidade de Lecce88

. Desta maneira o antistite

reflectindo-se no santo taumaturgo aproveitava aquele carismático poder para dar novo

ímpeto ao débil papel do bispo numa cidade hegemonizada pelas ordens regulares tridentinas.

Uma estratégia que visualmente foi realizada num espaço específico: a catedral, fulcro

litúrgico mais que jurídico-espiritual do bispo. Coroamento da pirâmide diocesana, como bem

sublinhou Gérard Labrot, este edifício tinha um «esprit de compétition» num panorama de

dioceses com rendas muito pobres89

. Mais que isso, tinha que desdobrar um forte efeito visual

sobre os fiéis para suscitar uma submissão administrativa à instituição onde se outorgava o

principal sacramento identitário. Não é por acaso que este edifício, num contexto urbano

articulado pelas estruturas conventuais, era definido «uma obra magnífica, luminosa e cheia

de majestade» na visita ad limina feita em 1666 pelo “bispo construtor” poucos anos antes da

sua morte90

.

No monumento eclesiástico (re)costruido a partir de 1659, um dos pontos focais do

edifício foi a porta de ingresso em frente da praça. Como se pode ver na imagem proposta

(fig. 2; legenda: Giuseppe Zimbalo, Fachada da Catedral, Lecce, 1659), o acesso do edifício

está encimado pelo arco triunfal: ao centro é evidente a figura do bispo acompanhada por dois

anjos que o convidam a cruzar o limiar. Coroa esse acesso o emblema familiar de Pappacoda:

um leão comendo a própria cauda. Lido na conjuntura durante a qual este programa

Modelli di santità, pratiche devozionali, comportamenti religiosi nel Regno di Napoli dal 1540 al 1750, Lecce,

Argo, 1996; ver: G. GALASSO, A Outra Europa. Para uma antropologia histórica do Sul de Itália, Lisboa,

Bertrand Editora, 1987 [ed. it., 1982, Milano]. 87

J.P. PAIVA, “A liturgy...”, cit., p. 159 88

M.A. VISCEGLIA, Territorio..., cit., pp. 291 segs.; M. SPEDICATO, La lupa..., cit.. 89

Gérard LABROT, Sisyphes chrétiens. La longue patience des évêques bâtisseurs du royaume de Naples (1590-

1760), Seyssel, Champ Vallon, 1999, pp.176-177. 90

Ibidem.

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iconográfico foi realizado não era uma simples recordação do ingresso durante a qual vinha

louvada a casa de origem do prelado napolitano. O processo faz parte de um plano mais

complexo de promoção e legitimação do papel episcopal como defensor da ordem social, bem

como de auto-representação do nobre bispo napolitano. A mesma cena, embora com

elementos estruturais e decorativos diferentes, era figurada ainda na tela já nomeada antes,

situada no interior do mesmo edifício sacro. Na pintura realizada em 1656, o santo pastor,

também circundado pelos anjos, representa um momento mais íntimo da manifestação da

divindade em frente ao espaço público e aberto onde triunfa o arco de pedra encimado pela

arma bispal. A respeito da teofania do protobispo em acto de bênção sobre a inteira praça, é

nesta epifania que se pode identificar uma potente expressão figurada do ofício e da

autoridade do bispo Pappacoda. Mais do que os símbolos da dignidade episcopal, como a

mitra, báculo e pluvial, aos pés do santo podem ver-se também os fasces lictoris, juntos com

os demónios e os símbolos pagãos pisados durante o percurso do prelado. Em particular o

antigo símbolo romano indicava a completa jurisdição de poderes sobre a vida e a morte e o

rigor nas condenas91

. Por isso, através de uma articulada construção gestual a mensagem

iconológica da imagem aludia não só à epidemia de peste evitada pela acção benéfica do

santo: a presença daquele símbolo de justiça aludia ao papel supremo de magistrado de

Pappacoda. Com efeito ele havia-se tornado num pacificador social depois do surto da

insurreição de 1647, como também no campo judiciário por conta do Santo Oficio, quando

uma cadeia epistolar com Nápoles e com os vértices da Congregação romana comprometiam-

no na coordenação de um plano de acção anti-herética na Província do qual Lecce era o

epicentro92

. Por isso, através de uma calibrada «imagem de justiça» e de misericórdia

associada ao santo indígena e inserida numa poderosa profusão de decorações e de

inquietantes figuras, o prelado napolitano sabia tornar-se reconfortante protector,

distinguindo-se perante a hierarquia episcopal da malha diocesana de Terra de Otranto.

91

Sobre este e outros símbolos: A. PROSPERI, Giustizia bendata. Percorsi storici di un'immagine, Einaudi,

Torino, 2009, p. 147. 92

Sobre estas relações de Pappacoda com a Congregação da Inquisição romana estamos a realizar uma pesquisa

baseada nos fundos documentais do Arquivo da Congregação da Doutrina da Fé.

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Fig. 2: Giuseppe Zimbalo, Fachada da Catedral, Lecce, 1659.

Conclusões: enraizamento da dignidade episcopal e sua emblemática distinção

A análise das entradas episcopais efectuada contribui para corroborar as linhas de

definição dessas liturgias como uma das mais importantes cerimónias de afirmação do poder

episcopal e da sua imagem. Esta forma de adventus ao poder diocesano, se observada numa

área geográfica circunscrita, constitui um extraordinário laboratório para aprofundar as

dinâmicas dos sinais de distinção entre exponentes de um mesmo corpo episcopal

pertencentes a um específico grupo nobiliárquico. O novo lugar adquirido pelo bispo na

hierarquia eclesiástica depois de Trento vinha sublinhado por uma floresta de símbolos que,

em muitos casos, se baseavam numa tradição de poder que se enraizava num passado remoto

para mudar as relações com as outras componentes da societas christiana.

Vinculado pela residência, o novo pastor, humilde, caritativo além que justo,

empenhava-se numa obra de disciplina e educação da qual o rito de entronização constituía

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Poder episcopal e saques rituais na periferia do Império

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um espectacular banco de prova. O exame comparativo destas cerimónias, as quais a partir do

século XVII tiveram que espelhar o que sobre elas se determinava no centro romano, intentou

evidenciar como o mesmo rito não foi nunca petrificado, mas que se modificou com a

sociedade que o expressava. Esta evolução morfológica ressentia-se de contextos locais

específicos, além de variações conjunturais. Dessa forma a unidade predominante dobrava-se

a uma flexibilidade do rito, adaptado também à tradição e ao uso consuetudinário. Em

conjunturas extraordinárias esses actos rituais tornaram-se num instrumento de propaganda e

de afirmação episcopal, como no caso do antistite de Lecce Luigi Pappacoda que, através de

uma poderosa estratégia iconográfica centrada num específico topos do espaço urbano e em

objectos simbólicos da sua identificação, multiplicou o valor iconológico e a eficácia

simbólica do acto de entrada, transformado ao interior e ao exterior da catedral como uma

auto-celebração. Um jogo de emblemática ostentação pelo expoente da pequena nobreza vice-

reinal perante os outros prelados da mesma origem social da geografia provincial. Por outro

lado, aquela estratégia oriunda do principal centro administrativo provincial, referindo-se ao

indígena santo protobispo, imbuía-se de valores sagrados, distinguindo e afirmando o novo

patrono em âmbito urbano, diocesano e extra-diocesano. Esta representação proposta como

modelo de comportamento destinado a legitimar alterações nos equilíbrios político-culturais

da província, estabelecia, na prática, uma forma de domínio do representante máximo da

hierarquia do clero secular diante de um conjunto de pretendentes regulares, e apoiava-se em

articuladas expressões de representação do poder material e imaterial.