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“CRIANÇAS-PROBLEMA” EM ESCOLAS PÚBLICAS PERIFÉRICAS:
PODER, DISCURSO E (DES) CAMINHOS
Alexandre César Gilsogamo Gomes de Oliveira
Universidade de São Paulo
A árvore que não dá frutos
É xingada de estéril. Quem
Examina o solo?
O galho que quebra
É xingado de podre, mas
Não havia neve sobre ele?
Do rio que tudo arrasta
Se diz que é violento,
Ninguém diz violentas
As margens que o cerceiam
Bertold Brecht
INTRODUÇÃO
O presente texto traz características de uma pesquisa que se inicia a partir de
inquietações que me acompanham desde quando ingressei na rede pública de ensino no início
da década de 90. Desde então, enquanto professor e gestor tive contato diário e profundo com
esta complexa rede, suas contradições e desafios. Minha instigação cotidiana é problematizar
os abismos formados pelas teorizações, discursos e práticas junto às crianças e adolescentes
e de como tais aspectos possam favorecer uma “aproximação curricular” entre discência e
docência. Neste sentido, compreender as educandas1 em sua inteireza, considerando sua
formação enquanto sujeito, respeitando suas características históricas, sociais e culturais é
fundamental, tanto para as relações que de constituem no ambiente escolar, como para o
processo ensino-aprendizagem. Portanto, lidar com as estudantes como se todas fossem
“iguais”, não considerando a diversidade que as constituem – o que ainda, infelizmente, é
bastante comum nas práticas e discussões nas unidades educacionais – suscita uma necessária
reflexão, sobretudo, quando se pensa em uma escola calcada nos princípios democráticos.
Nesta perspectiva, no calor destas contradições que matizam a educação pública
1 O texto toma a liberdade de adotar, sempre, o gênero feminino por reconhecer a importância da mulher no
campo educacional, assim como em toda a sociedade.
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periférica, em particular, um aspecto me provoca e me conduz a uma investigação: os
distintos discursos e práticas que são produzidos pela educação, saúde e assistência social
acerca das “crianças-problema”2. Estas minhas inquietações acentuam-se ao constatar,
cotidianamente, nos últimos anos, um crescimento dos encaminhamentos3 de crianças e
adolescentes à profissionais de outras áreas provocados por um comportamento
“inadequado” no ambiente escolar e, acima de tudo, pela “não aprendizagem”. Corroborando
com tais angústias, Souza (2016, p. 59) salienta que:
Diariamente os serviços de atendimento à educação, saúde e assistência recebem
encaminhamentos de crianças, jovens e adultos com dificuldades em seu processo
de escolarização. Esses encaminhamentos chegam por meio de relatos que, de
maneira geral, buscam encontrar na criança, em suas famílias e em seu meio cultural
as causas do não aprender na escola. E, de alguma forma, esses encaminhamentos
revelam práticas que durante décadas foram realizadas no campo da educação,
utilizando, principalmente, explicações da área da saúde para compreender o mau
desemprenho escolar.
Destarte, baseado nas constatações apresentadas, penso que há a necessidade de
refletirmos sobre um aspecto da educação escolar que “de tão frequente, parece natural: a
presença de um contingente de alunos problemáticos que enfrentam dificuldades de
adaptação ao ambiente escolar” (LIMA, 2006, p. 127).
Os discursos voltados à “criança-problema” sempre pautaram a educação pública no
país. Contudo, é a partir da década de 30 que as ações públicas começaram a delinear e
implantar políticas para sanar os “problemas” causados por “crianças problemáticas”. De
acordo com Patto (1990), Lopes (2002) e Lima (2006), nomes como Arthur Ramos e
Raimundo Nina Rodrigues compunham uma geração de cientistas imbuídos pela busca de
soluções médicas para os “males da sociedade”. Lima (2006), aponta que:
2 Entende-se por “criança-problema”, a menina e o menino que destoa dos “padrões” estabelecidos por uma escola
calcada na concepção de que todas são “iguais”, ou seja, um ambiente escolar que desconsidera as características
sociais, históricas e culturais de suas educandas. Escolas assim, partem do pressuposto de que a criança que “não
aprende” ou que possui um comportamento “inadequado“, traz consigo, em princípio, alguma disfunção biológica
e/ou intelectual. 3 Estes encaminhamentos são relatórios elaborados pela escola. Geralmente, coordenadora pedagógica e professora
– algumas vezes, os responsáveis são convidados, também, a compor o documento – descrevem aspectos
relacionados à “indisciplina” da educanda, ou ainda, características ligadas a “não aprendizagem”.
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Criou-se o conceito de “criança-problema” em substituição ao termo pejorativo e
estreito de “criança anormal”, para indicar todos os casos de desajustamento
caracterológico e de conduta da criança ao seu lar, à escola e ao currículo escolar.
Alguns autores tomam a expressão num sentido largo, englobando no conceito de
“problema”, todas as dificuldades infantis – físicas, mentais e sociais. A expressão
ficou, porém, para designar mais especialmente os casos de desajustamentos psico-
sociais que não cheguem aos casos-limites do distúrbio mental constitucional. (RAMOS, 1939 apud LIMA, 2006, p. 134)
Percebe-se que a expressão “criança-problema” – embora representasse certo
“avanço”, pois substituía o termo “criança anormal” – é um conceito que convive com as
discussões educacionais há muito tempo, trazendo as questões neurológicas e biológicas
como preponderantes nos diagnósticos realizados, características que ainda permeiam a
educação contemporânea. Os aspectos sociais eram utilizados apenas para justificar as
“disparidades” comportamentais e intelectuais – crianças de classes populares e
desfavorecidas eram mais propensas a apresentarem algum distúrbio ou transtorno em relação
às demais, e não como um meio para compreender as situações adversas que identificavam
certas crianças. Com efeito, a grande preocupação dos precursores da Psicologia Escolar era
voltada aos que não aprendiam e que não aceitavam as regras impostas pelas escolas.
A década de 80 aponta uma guinada nos debates acerca do que vem a ser esta “criança-
problema”, ou seja, há uma ruptura com os modelos de compreensão das dificuldades
escolares até então. Nesta perspectiva, Souza et al. (2014) enfatiza que o conceito de
“fracasso escolar” (Patto, 1990) ampliou a visão a respeito das chamadas crianças que não
aprendem ou, simplesmente, “crianças-problema” e que o foco da discussão recai sobre
processos que constituem o aluno que fracassa, considerando o fenômeno do mau rendimento
escolar como originário de questões macroestruturais do sistema capitalista que se articulam
nas políticas educacionais e no cotidiano escolar. De acordo com Patto (1990), o fracasso
escolar é “produto da escola” e por isto, não pode ser tratado como um fenômeno individual
e descontextualizado das relações institucionais, pedagógicas, sociais e culturais.
Na esteira destas discussões, Souza (1996), Moysés (2001) e Lima (2004) apontam
que as características históricas, sociais e culturais das crianças e de suas famílias têm
fundamental importância quando analisamos situações que fogem aos “padrões”, quase
sempre instituídos por concepções ligadas a uma cultura dominante, posturas estas, que não
favorecem a compreensão das realidades predominantes nas classes mais pobres. “Há
concepções que produzem ficções sobre os homens, falam de homens abstratos, encobrem a
realidade e somem com a desumanização; há concepções que a desvelam, em nome do
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compromisso expresso com a vida justa” (PATTO, 2000, p. 73).
Diante disto, remeto-me à realidade das escolas públicas municipais paulistanas, em
especial as periféricas, no que se refere às crianças que são encaminhadas e, na maioria das
vezes, diagnosticadas com alguma doença a ser tratada. Parte-se da hipótese de que as
decisões de submeter tais estudantes a psicólogas, médicas e assistentes sociais, devido às
atitudes comportamentais e/ou de aprendizagem, são provenientes dos discursos que são
construídos no contexto escolar. Estes discursos parecem-me, em princípio, alimentados por
conceitos e concepções calcados numa “visão medicalizante” que assola as escolas
contemporâneas. Os discursos não estão dissociados das relações de poder que, por sua vez,
não estão apartadas da sociedade. “Viver em sociedade é, de qualquer maneira, viver de modo
que seja possível a alguns agirem sobre a ação dos outros. Uma sociedade “sem relações de
poder” só pode ser uma abstração” (FOUCAULT, 1995, p. 246).
Quando falamos de escolas públicas localizadas em regiões com maior
vulnerabilidade social, a impressão é de que os efeitos que emergem do “poder”, numa
concepção foucaultiana, são acentuados. As relações que caracterizam o ambiente escolar
são, em sua maioria, pautadas de acordo com a hierarquização dos indivíduos presentes no
cotidiano escolar. Portanto, as escolhas, as posturas e as decisões são construídas e
determinadas por aqueles que detêm o “poder” ou são designados para tal. Neste sentido,
Foucault aponta que:
O exercício do poder não é um fato bruto, um dado institucional, nem uma estrutura
que se mantém ou se quebra: ele se elabora, se transforma, se organiza, se dota de
procedimentos mais ou menos ajustados (...) poderíamos dizer que as relações de
poder foram progressivamente governamentalizadas, ou seja, elaboradas,
racionalizadas e centralizadas na forma ou sob a caução das instituições do Estado. (FOUCAULT, 1995, p. 247)
Com efeito, entende-se que as relações de poder existentes nas escolas públicas, em
especial as que estão presentes em regiões periféricas paulistanas, são fatores determinantes
no lidar com as crianças que apresentam alguma “anormalidade”. Desta forma, tais posturas
podem impedir de se considerar todos os fatores que podem caracterizar o estereótipo de uma
“criança-problema”. Lima (2006), quando analisa alguns precursores da Psicologia Escolar,
na década de 30, conclui que:
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É verdade que as crianças pertencentes às camadas desfavorecidas da população
continuaram sendo aquelas que se considerava necessário vigiar mais de perto, pois
as suas condições tornavam-nas especialmente predispostas aos desvios. O governo
da “criança-problema” não teve em vista apenas as crianças da população infantil,
mas todos os indivíduos, na medida em que incluía a prevenção dos
desajustamentos e, em princípio, nenhuma criança estava livre do risco de se tornar
um “problema”. (LIMA, 2006, p.148)
Por outra perspectiva, ainda, infere-se que condições sociais distintas, neste caso,
entre educadoras4 e educandas, favorecem posturas que não condizem com os princípios
democráticos de uma instituição pública, pois criam entraves nas “relações pedagógicas” que,
no limite, podem chegar, inclusive, a negação de direitos. Tais posicionamentos no contexto
escolar, de acordo com Oliveira (2015), podem revelar o que o autor chama de “paradoxo do
professor periférico” (p. 66), um movimento de “aproximação” e “distanciamento” entre
escola e estudantes. O pesquisador nos revela – após investigação em uma escola pública
periférica paulistana – que o fato das educadoras, em sua grande maioria, terem nascido
também em regiões periféricas – a maioria ainda mora nas regiões onde trabalham – em
muitos casos, não favorece a relação professora-aluna. Para Oliveira, termos como “eu
também já fui pobre, mas venci” e “não fazem porque não querem” – captados nas entrevistas
com o corpo docente – revelam o movimento paradoxal defendido em seu texto:
Aproxima os quando o objetivo é justificar as dificuldades no processo educativo. O
fato de que os professores vivenciaram as “mesmas” dificuldades de seus alunos no
passado “obriga” os mesmos, de algum modo, a se comportarem, no presente, de
maneira análoga. Ao mesmo tempo, um afastamento, pois percebe-se que não há
uma preocupação em fazer da escola um ambiente que contemple as características
históricas, sociais e culturais presentes na comunidade e que caracterizam, de certo
modo, professores e alunos. (OLIVEIRA, 2015, p.66)
Em que medida os discursos produzidos pela escola favorecem ou não os estigmas
acerca da “criança-problema”? Será que as relações (de poder) que permeiam as escolas, são
as responsáveis pela delimitação desta linha tênue que separa a “anormalidade” da
“normalidade”? Até que ponto os fatores sociais, históricos e culturais são considerados
quando rotulamos as crianças “que não aprendem” e as que possuem um comportamento que
fogem dos “padrões aceitáveis” pela escola?
4 Entende-se por educadoras todas que trabalham em uma escola: gestoras, professoras e funcionárias.
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A ESCOLA E SUAS ESCOLHAS
Um dos pressupostos que atravessa este texto e pesquisa é que os “entraves
pedagógicos” causados pelas “crianças-problema” na escola originam-se, particularmente,
pelas concepções de sociedade e indivíduo e, consequentemente, pela “aceitação” deste no
cotidiano escolar. O modo como as educadoras compreendem os sujeitos são fundamentais
para as relações humanas, assim como para o processo ensino-aprendizagem. Deste modo,
propomos considerar, rapidamente, alguns posicionamentos sociológicos e filosóficos que
possam auxiliar na compreensão dos processos de exclusão e, consequentemente, de
medicalização que permeiam a Educação em sua contemporaneidade.
Duas correntes de pensamento, que me parecem centrais – embora, tantas outras se
desenvolveram ao longo do tempo – podem significar o início de uma reflexão sobre a ideia
de constituição do indivíduo em uma determinada sociedade: o idealismo e o materialismo.
O idealismo, segundo Johnson (1997), calcado nas obras de Platão (428-348 a.C.),
Immanuel Kant (1724-1804) e Georg Hegel (1770-1831) é uma maneira de compreender a
relação entre os seres humanos e o mundo tal como é vivenciado por eles, assim:
A realidade consiste primariamente no modo como indivíduos nela pensam, e isso
depende de ideias e teorias humanas. O homem não é uma lousa branca na qual a
realidade grava impressões de si mesma. É, ao contrário, um sujeito ativo que utiliza
ideias e outros elementos da cultura para construir o que julga ser a realidade.
(JOHNSON, 1997, p.126)
Por esta ótica idealista – alimentada pelo racionalismo de René Descartes (1596-1650)
e que mais tarde influenciaria o positivismo de Auguste Comte (1798-1857) – as pessoas,
particularmente, suas ideias “moldam” a realidade, não o contrário. Neste sentido, grosso
modo, as contradições sociais, os desafios cotidianos e as relações humanas não são,
necessariamente, elementos primordiais na constituição da individualidade humana e de seu
pensamento.
Para os idealistas o “campo das ideias” está associado a algo imaterial, inerente à
natureza humana, intrínseca a cada indivíduo e, no limite, algo inato. Nesta perspectiva, as
características históricas, sociais e culturais que caracterizam os seres humanos, em toda
sociedade, não seriam, necessariamente, fatores de extrema relevância.
Esta concepção idealista emerge no campo educacional quando, no ambiente escolar,
consideramos as crianças e adolescentes como “iguais”, ou seja, quando as responsabilizamos,
devido às suas “naturezas”, pela (in) disciplina pelo (não) aprendizado. Neste sentido, não
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consideramos razões outras que possam ter influenciado, por exemplo, em seu fracasso
escolar.
Patto (1990, p.9), se apropriando das discussões geradas por Chauí (1981, p. 10-16),
esmiúça, com a devida propriedade, as características do idealismo. Sendo assim, penso ser
oportuno o trecho que diz:
Quando falamos em visão de mundo trazemos à tona a questão da natureza das
ideias: serão elas resultado de “puro esforço intelectual, de uma elaboração teórica
objetiva e neutra, de puros conceitos nascidos da observação científica e da
especulação metafísica, sem qualquer laço de dependência com as condições sociais
e históricas” ou “são ao contrário, expressão destas condições reais”? As ideias
explicam a realidade histórica e social ou precisam ser explicadas por ela? Quando
um teórico elabora uma explicação do mundo, ele está produzindo ideias verdadeiras
que nada devem à sua existência histórica e social ou está realizando uma
transposição involuntária para o plano das ideias relações sociais muito
determinadas?
O materialismo, por outro lado, pensamento onde se afirma que o espírito e a mente
são precedidos pela matéria na constituição do indivíduo, tem em Gottfried Leibniz (1646-
1716) e Julien La Mattrie (1709-1751) seus principais mentores. Segundo Johnson (1997, p.
139), o materialismo é utilizado para compreender a vida social “que se fundamenta na ideia
de que todos os aspectos da vida humana – biológicos, psicológicos, sociais, históricos etc. –
possuem uma base material original da reprodução humana e da produção econômica de bens
e serviços”. Para Johnson (1997), o enfoque materialista tem caráter fundamental na obra de
Karl Marx (1818-1883), que atribui aos padrões de mudança histórica (materialismo histórico)
um de seus aspectos fundamentais. Outra aplicação bastante difundida é a teoria de mudança
social conhecida como materialismo dialético. “Neste caso, Marx associa o materialismo ao
conceito de uma dialética – a luta entre odeias opostas sobre forças sociais (tese e antítese) –
que resulta em uma nova síntese” (p. 140).
Convido, novamente, Patto (1990, p.9) para subsidiar a discussão sobre as concepções
que se referem à formação do indivíduo – consequentemente, da educanda, da professora e da
comunidade escolar como um todo – e sociedade, assim como da importância da escola e de
suas educadoras considerarem as características intrínsecas, provenientes dos contextos onde
se insere, de suas crianças e adolescentes no cotidiano escolar. Diz ela:
Partindo do modo materialista histórico de pensar esta relação é que afirmamos a
necessidade de conhecer, pelo menos em seus aspectos fundamentais, a realidade
social na qual se engendrou uma determinada versão sobre as diferenças de
rendimento escolar existentes entre crianças de diferentes origens sociais.
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Tomando como pressuposto o fato de que crianças e adolescentes que “não aprendem”
e/ou são “indisciplinadas” não, necessariamente, possuem uma disfunção biológica e/ou
intelectual, o modo de como as concebemos, na escola, enquanto indivíduo é fundamental no
processo de ensino e aprendizagem destas que, muitas vezes são estigmatizadas precocemente
pela educação, saúde ou assistência social. O fato de considerarmos os contextos sociais,
históricos e culturais de todas e todos quando avaliamos o seu desenvolvimento escolar, seus
costumes e hábitos é primordial para que não sejamos, precipitados, injustos e excludentes.
Não defendo aqui, em hipótese alguma, que crianças desfavorecidas socialmente sejam menos
capazes, ao contrário, o que proponho é uma reflexão acerca do cotidiano escolar que, em meu
entender, interfere, diretamente, na formação destes sujeitos. Neste sentido, parte-se da
hipótese que questões outras, para além das psicológicas e/ou psiquiátricas, contribuem,
significativamente para o que se convencionou como “criança-problema”. Com efeito, as
educadoras não podem, de modo algum, “diagnosticarem” previamente uma criança, apenas
pelo fato de seu comportamento não estar “adequado”, tampouco por aspectos relacionados à
“não aprendizagem”, algo que, infelizmente, é muito recorrente.
Neste sentido, não se trata de olharmos para estas características pessoais como algo
metafísico, imaterial e, até mesmo, inato, mas discutirmos, com propriedade e seriedade que
relações humanas e de poder atravessam as vidas destas crianças e suas comunidades, em
especial, as periféricas.
CULTURAS ESCOLAR E DE PODER
A cultura escolar, definida pelo “jogo das complexas relações sociais que ocorrem no
processo institucional da educação” (AZANHA, 1991, p. 66), pauta as práticas e decisões
que regem estes ambientes. Desta forma, (in) conscientemente educadoras constroem
normas, regras, identidades e, consequentemente, “modelos” que são aceitos ou não em
contextos educacionais. Certamente, como vimos anteriormente, estas características do
ambiente escolar são definidas por concepções que se tem de indivíduo e sociedade que, nem
sempre, comtemplam as características identitárias de nossas crianças e adolescentes. Com
efeito, tais posturas levam, geralmente, a formalizações de estereótipos que excluem, de
forma contínua, àquelas e àqueles que, de alguma forma, não coadunam com os formatos
“aceitáveis” no ambiente escolar. Neste sentido, as relações (de poder) – entre gestoras,
professoras, funcionárias, educandas e responsáveis – que permeiam as escolas e que,
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consequentemente, as constituem e caracterizam, em meu entender, são as principais
responsáveis pelas estigmatizações em relação à algumas crianças e adolescentes que
destoam dos “padrões” aceitos por educadoras e educadores. Bourdieu & Saint-Martin (2011,
p. 193) traz à tona esta discussão sobre as formas de classificação, inclusive contexto escolar:
Não há dúvida de que os julgamentos que pretendem aplicar-se à pessoa em seu todo
levam em conta não somente a aparência física propriamente dita, que é sempre
socialmente marcada (através de índices como corpulência, cor, forma do rosto), mas
também o corpo socialmente tratado (com a roupa, os adereços, a cosmética e
principalmente as maneiras e as condutas) que é percebido através das taxinomias
socialmente construídas, portanto lido como sinal de qualidade e do valor da pessoa.
A discussão que está posta é a de que as rotulações e estigmatizações que são
desencadeadas pelas unidades educacionais em relação às crianças e adolescentes que, de
algum modo, destoam da “normalidade” são produzidas, diretamente, por educadoras que
estão cotidianamente envolvidas com estas educandas. Neste sentido, cabe à escola, na
maioria dos casos, decidir sobre a “taxinomia” (Bourdieu; Saint-Martin, 2011) de certas
crianças, em outras palavras, se elas passarão a ser denominadas de “criança-problema” ou
não.
Cabe ressaltar, que as decisões em relação às estas crianças que, em princípio,
possuem algum “problema” são, de fato, muito complexas. Salas numerosas, carga
extenuante de trabalho das educadoras e baixas remunerações são pontos relevantes.
Cotidianamente, as gestoras da escola recebem “pressões” das educadoras, muitas vezes, das
responsáveis pela criança e, até mesmo, das próprias colegas de sala. Isso porque, as
“crianças-problema”, geralmente, alteram a rotina das aulas e da escola, seja por impedir que
as demais alunas “avancem” no aprendizado, seja pela “indisciplina” causada. Tais fatores
são importantes e “consideráveis”, porém, em hipótese alguma, podem desencadear ações
excludentes provenientes de processos medicalizantes.
Não tenho a intenção, neste momento, de discorrer com o devido cuidado que o tema
requer, sobre os laudos que são emitidos por profissionais da área da saúde, assim como os
diagnósticos provenientes dos mesmos. No entanto, é importante considerar que, atualmente,
o diagnóstico por TDAH5 é o maior responsável pelo início de processos medicalizantes nas
escolas. Além do rótulo que ele estabelece na criança, para sempre, impedindo que ela, muitas
vezes, conviva e desenvolva com as “normais” da turma, há o caráter nocivo e preocupante
da medicação em si. Souza (2016, p. 65), alerta que:
5 Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade
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(...) a medicação oferecida hoje para os supostos casos de TDAH são
psicoestimulantes, remédios “tarja preta” que atuam sobre p Sistema Nervoso
Central e produzem seríssimos efeitos colaterais no sistema cardiovascular, podendo
causar inapetência, insônia, hipertensão, comportamento compulsivo em qualquer
faixa etária e mais ainda em crianças. O principal medicamento utilizado no Brasil
é o Cloridrato de Metilfenidato, comercializado com os nomes de Ritalina e
Concerta.
Neste sentido, todo o zelo pode ser muito pouco. Não se trata de dissiparmos um
“problema” pontual, de mediarmos um conflito causado por “indisciplina”, de pensarmos em
outras metodologias e propostas curriculares para facilitar a aprendizado. Trata-se do futuro
destas crianças e adolescentes, pois uma ação desencadeada no calor das “pressões”
cotidianas em uma escola pode comprometer uma trajetória de sucesso ou abrir o caminho
para o fracasso de escolar.
A discussão é ampla e está difícil de acumular consensos. Nesta perspectiva, tais
procedimentos devem permitir discussões e, talvez, compreensões sobre o que está posto,
principalmente em escolas públicas periféricas, em relação às “crianças que não aprendem”
ou que fogem aos “padrões comportamentais”, uma vez que:
O campo de pesquisas educacionais recentes, em vasta literatura, tem demonstrado,
quase à exaustão, que o fracasso escolar é o resultado previsível de políticas
educacionais, produzido no cotidiano da própria instituição escolar. Entretanto, as
áreas da saúde, medicina, psicologia, fonoaudiologia etc. permanecem
impermeáveis a esses conhecimentos, continuando a atuar como se as crianças não
aprendessem em decorrência de doenças e defeitos inerentes a elas. (MOYSÉS,
2001, p. 62)
CONSIDERAÇÕES
Diante destas considerações preliminares optou-se pela observação de duas escolas
geograficamente próximas – ou seja, que de alguma forma, em princípio, se caracterizem
historicamente, socialmente e culturalmente – mas que mediam, distintamente, as relações,
intervenções e procedimentos junto às educandas no que concerne à “não aprendizagem” e
ao comportamento “inadequado”. Desde já, parte-se da hipótese que, de algum modo, a
“cultura escolar”, assim como os discursos e práticas produzidos pelas educadoras favorecem
a “rotulação” e, consequentemente, o (não) desenvolvimento do processo ensino
aprendizagem das “crianças-problema”.
Com efeito, parte-se da compreensão de que a quantidade de encaminhamentos de
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“crianças-problema”, por parte das unidades escolares, para avaliações psicológicas e
médicas está diretamente ligada aos discursos forjados nas/pelas relações de poder que são
produzidos no ambiente escolar, alimentados, muitas vezes, por preconceitos e
desconhecimentos da realidade das alunas mas, sobretudo, pelo desencorajamento de
repensar práticas e propostas curriculares que conversem com os contextos que estão postos
na contemporaneidade.
Portanto, entende-se que “culturas escolares” distintas revelam distintos lidares com
as crianças que fogem aos “padrões” estabelecidos e/ou esperados pelas escolas. O desafio
que está posto é o de compreender em qual medida as “ações pedagógicas” discursos e
práticas são responsáveis pelos “processos medicalizantes” em curso nas escolas públicas
paulistanas, sobretudo, nas periféricas.
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